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O III SEB e suas marcas no novo PNE

EDITORIAL

O III SEB e suas marcas no novo PNE

Em fevereiro/março de 2011, o Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES) promoveu o III Seminário de Educação Brasileira (SEB) com o objetivo de debater, durante três dias, o Projeto de Lei n. 8.035, de 2010, relativo ao Plano Nacional de Educação (PNE) – 2011-2020, em cumprimento ao artigo 214 da Constituição Nacional.

O cedes enfatiza e reconhece publicamente que a origem desse Projeto de Lei se situa na Conferência Nacional da Educação (CONAE), cujas deliberações, contidas no Documento Final, aprovado por delegados de todo o país, constituem a sua referência e base social.

A função de estabelecer uma política de Estado, atribuída ao PNE, o torna uma grande prioridade do Estado e da sociedade brasileira. Nesse sentido, o cedes, ao convocar esta reunião de trabalho, de estudos e análises do Projeto de Lei do PNE, teve o firme propósito de abrir um espaço no qual pudessem ser levantadas e debatidas as questões mais desafiadoras, bem como enfrentados os embates emblemáticos provocados pelo exame detalhado e cuidadoso do referido Projeto de Lei.

Ao final dos trabalhos do III SEB – "O Plano Nacional da Educação: questões desafiadoras e embates emblemáticos" –, foram apreciadas, em assembleia geral, as propostas encaminhadas pelos vários simpósios, por intermédio de seus respectivos relatores, como indicações para a elaboração de um Documento Institucional.

Este Documento de proposições de emendas ao Projeto de Lei n. 8.035/2010 apoiará os trabalhos, articulações e ações do CEDES junto à organização dos movimentos sociais da educação, particularmente junto ao Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, assim como no Poder Executivo e no Congresso Nacional. Importante ressaltar também que os editoriais de Educação & Sociedade têm acompanhado a construção do PNE.

A Revista dedicou o n. 112, de 2010, aos temas do III SEB, referentes aos "Caminhos na construção do Plano Nacional da Educação: questões desafiadoras e embates emblemáticos". O presente Editorial propõe-se a avançar questões centrais sobre o Projeto de Lei do PNE, constantes do Documento de Emendas do CEDES, mais geral e pontual.

Durante os três dias do III SEB foram aprofundadas, a partir de múltiplos olhares, análises e avaliações do PNE que, pela sua pertinência e relevância para o texto definitivo, merecem destaque especial e incisivo. É imprescindível reafirmar a exigência do acompanhamento, monitoramento e avaliação do Plano Nacional da Educação, assim como das Políticas Públicas da Educação.

É central, no PNE, a carência de explicitação do papel maior previsto para o Projeto de Lei, conforme referido na Emenda Constitucional n. 59/2009, na parte que altera o artigo 214 da Constituição, já salientado no Editorial da Revista n. 112: "Um forte avanço na CONAE é representado quando se define claramente pela criação de um Sistema Nacional de Educação", entendido como "mecanismo articulador do regime de colaboração no pacto federativo, que preconiza a unidade nacional, respeitando a autonomia dos entes federados", conforme consta no Documento Final da Conferência (2010, p. 15).

A aprovação da expressão Sistema Nacional de Educação no texto constitucional pela Emenda n. 59/2009, na parte que altera o artigo 214, passa a estabelecer

(...) o Plano Nacional de Educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o Sistema Nacional de Educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e o desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades, por meio de ações integradas dos poderes públicos, das diferentes esferas federativas (...).

A organização da educação em um Sistema Nacional de Educação (SNE) é bandeira histórica dos movimentos da área, constante do projeto da LDB, substituído, em 1995, pelo projeto do governo FHC. Tal proposta foi retomada pela CONAE, com o objetivo de compor um PNE que, como política de Estado, configure um SNE baseado no artigo 205 da Constituição Federal, "com diretrizes educacionais comuns, válidas para todo o território nacional e estruturado através da criação do Fórum Nacional da Educação e de um Conselho Nacional da Educação, autônomos em suas funções administrativas e financeiras".

Este objetivo maior do PNE, de articulador do SNE em regime de colaboração, não está devidamente contemplado no atual Projeto de Lei, porquanto carece de explicitações e tratamentos mais visíveis. Embora nos dez incisos do artigo 2º defina diretrizes em seu corpo e estabeleça vinte metas e múltiplas estratégias, estas se referem muito mais ao próprio Plano que ao SNE.

As diretrizes definidas nos dispositivos do Projeto de Lei do PNE para 2011/2020 (art. 2º) são igualmente omissas a respeito da educação enquanto direito de todos à formação cidadã, embora destaquem a "formação para o trabalho" como uma de suas dimensões. Esta fragmentação confere ao PNE uma concepção de educação não como direito, mas, antes, como comprometimento com o mercado do trabalho.

Ainda no artigo 2º merece ênfase o parágrafo I, que reafirma a "erradicação do analfabetismo", evitando o conceito correto de "universalização do alfabetismo", associado à universalização do atendimento escolar (parágrafo II) e às estratégias para a concretização do grande princípio constitucional da educação como direito de todos. O conceito agora usado no documento e no texto da Constituição Federal (art. 214) é objeto de críticas por parte de pesquisas acadêmicas contemporâneas que o apontam como portador de uma visão preconceituosa historicamente constituída.

Algo semelhante ocorre ao ser mantida a lógica equivocada do enfoque etário (zero a 17 anos), negando o princípio da educação como direito de todos. É fundamental que o PNE considere as pesquisas acadêmicas e respeite as legítimas conquistas alcançadas ao longo de nossa história em relação à defesa da educação para todos, mais uma vez expressas na CONAE. Numa palavra, o PNE deve estabelecer de maneira inequívoca as bases e estruturas jurídicas que garantam, sob a responsabilidade do Estado, o direito de todos a uma educação de qualidade na próxima década.

Do mesmo modo, é muito preocupante o fato de a Exposição de Motivos do Projeto de Lei n. 8035/1010 não fazer menção ao diagnóstico da educação brasileira constante do Documento Final da CONAE. O diagnóstico nos parece uma condição básica para que congressistas (deputados e senadores), não familiarizados com o campo educacional, possam convencer-se da necessidade da aprovação do conjunto de metas e estratégias propostas para o Plano. Ao contrário disso, dá-se muito mais destaque ao realizado pelo Executivo, no âmbito e vigência do último PNE, e às sumárias justificativas de cada uma das vinte metas do Projeto de Lei. O diagnóstico traria dados e contextos muito mais convincentes, seja a respeito da precária e desfavorável situação da educação no país, inclusive comparativamente aos demais países da América Latina, seja com relação à necessidade de se ampliar, de forma gradativa, os recursos do Fundo Público Federal, Estadual e Municipal, até se atingirem índices de 7, 8, 9 e 10% do Produto Interno Bruto (PIB).

Aliás, há que se ressaltar que o financiamento da educação é elemento central para se obter o cumprimento das metas quantitativas e qualitativas de qualquer plano de educação que se pretenda efetivo. Neste sentido, causa surpresa que os 10% do PIB de investimento público em educação, aprovados pela CONAE, tenham se transformado em 7% do PIB no Projeto de Lei. Mais do que isso, o Projeto não define o ritmo da ampliação dos investimentos, deixando para o remoto 2020 a meta que, no PNE 2001-2010, o país já deveria ter atingido nos idos de 2005, se não houvesse ocorrido o veto do então presidente. Não basta definir metas potencialmente generosas de atendimento educacional se os meios para alcançá-las não são assegurados. Além disso, o Projeto de Lei n. 8.035/2010 se omite sobre questões críticas definidas e votadas pela CONAE, como a destinação exclusiva de recursos públicos para instituições públicas e o avanço nos mecanismos de gestão democrática, com a garantia de participação da comunidade escolar.

Ainda no que se refere ao financiamento, é preciso ressaltar que, em virtude da vinculação de uma parcela da receita de impostos da União, estados e municípios ao ensino, os entes federados, em especial a União, têm adotado estratégias de ampliação de sua receita tributária por meio da criação de fontes de receita que não se configurem como impostos. Como forma de barrar esta estratégia, a CONAE estabeleceu que a vinculação de recursos para a educação deve ter como base não apenas a receita de impostos, mas o conjunto da receita tributária, que é, pelo menos, o dobro da primeira. Neste tópico há ainda o enorme desafio do pacto federativo. Hoje há uma grande concentração da responsabilidade educacional nas mãos dos municípios, entes federados com menor receita tributária. No caso do financiamento da educação, os dados mostram que a participação da União, detentora de mais da metade da receita tributária líquida, ainda é claramente insuficiente para eliminar as desigualdades regionais e garantir o padrão mínimo de qualidade de ensino, como previsto na Constituição Federal. O custo aluno-qualidade (CAQ), diretriz da CONAE para enfrentar este desafio, foi praticamente ignorado no Projeto de Lei.

Nessa mesma direção, causa estranheza e preocupação a inclusão de metas/estratégias contrárias às deliberações da CONAE, como, por exemplo, o incremento à ampliação do atendimento em creches por entidades beneficentes subsidiadas por recursos públicos e a presença velada de uma concepção meritocrática e tecnicista de avaliação curricular. Confrontam-se também com a CONAE metas e estratégias relativas à educação profissional, que priorizam claramente o atendimento pelo setor privado nessa modalidade de educação.

A correção destas carências é de extrema relevância para a organização do SNE, com princípios e diretrizes, estruturas e conteúdos capazes de garantir uma nova educação pública de qualidade, como direito de todos, conforme se espera de um Plano Nacional de Educação. A expectativa criada pela CONAE no campo educacional é de que o Plano constituiria um Sistema Nacional da Educação que consolidasse mudanças mais consistentes e "ousadas" na construção da educação pública de qualidade, prevendo a disponibilização dos recursos públicos necessários para a concretização da melhoria da educação brasileira.

É como direito do cidadão brasileiro que a oferta, a permanência e a qualidade da educação precisam ser entendidas, razão pela qual os resultados derivados dos debates ocorridos durante o III seb reafirmam a importância do investimento das verbas públicas exclusivamente na educação pública, entendida esta como a educação ofertada e mantida pelos diferentes níveis governamentais em redes próprias. Essa assertiva minimizará o movimento deflagrado pelos setores privados lucrativos e não lucrativos, cujos mais evidentes exemplos são, de um lado, as disputas entre grupos empresariais lucrativos pela venda de materiais às redes públicas de ensino – como mecanismo de ampliação de sua "margem de lucro" – e, de outro lado, pelos não lucrativos, a corrida pelo "selo" oficial de entidade sem fins lucrativos, condição para a sua identificação como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) e, por conseguinte, para a assunção de contratos de gestão com o poder público.

Na forma como se encontra, o Projeto de Lei privilegia, ainda que subliminarmente, o modelo sócio-político hoje hegemônico. O que se espera do SNE é que forme pessoas não só capazes de atuar pragmaticamente no interior desse sistema, mas que se comprometam, também, como cidadãos políticos e críticos com a superação de suas contradições e ambivalências, visando uma sociedade com mais justiça social. O modelo de sociedade capitalista implantado no Brasil ainda está distante de assegurar direitos sociais já consolidados em países da América do Sul com indicadores econômicos equivalentes. O PNE não pode se limitar apenas a gerar e regenerar aquilo que aí está em termos de organização social, de ideologia, de economia, de problemas ambientais. É necessário avançar em direção a uma sociedade mais digna e justa. Nesse sentido, é surpreendente a ausência dos grandes temas que preocupam e afligem hoje a sociedade nacional e internacional. Mais do que um plano que desenha o futuro da educação nacional, o Projeto de Lei limita-se a louvar o passado construído; assume mais características de um plano de governo do que um plano de Estado; louva as conquistas do passado e se esquece dos desafios do futuro. Se são inegáveis os avanços dos últimos anos, o Brasil ainda se coloca como o país da América Latina com os piores indicadores educacionais, quando comparado a seus parceiros de economia equivalente.

Do ponto de vista técnico, é importante ressaltar que o Projeto de Lei não prevê estratégias de realização gradual, limites de prazo para a maioria das metas e fixação de submetas ou metas intermediárias (anuais, bianuais, trianuais etc.), medida imprescindível para se evitar que a realização se concentre nos anos finais do Plano, com os conhecidos e costumeiros atrasos ou o simples abandono do previsto.

O Projeto n. 8.035/2010 transmite a impressão de que seus proponentes nada aprenderam com a experiência, em boa medida fracassada, do PNE 2001-2010, cujos propósitos não puderam ser integralmente alcançados em decorrência da indefinição, da falta de metas intermediárias e da ausência de uma supervisão sistemática e rigorosa.

Outra observação importante na análise do Projeto de Lei do PNE revela a opção por um enfoque formal e técnico, preocupado com aspectos que, embora essenciais à normalização jurídica, deixam em aberto temas indispensáveis como, por exemplo, a definição do que seja "educação de qualidade".

No corpo propriamente dito do Projeto não há nenhuma menção que, de alguma forma, delineie minimamente o sentido desse importante conceito, decisivo para todo o sistema da educação. Esta constatação permite presumir que os legisladores supõem que a qualidade da educação decorra da sinergia das diretivas notoriamente quantitativistas, economicistas e produtivistas presentes no texto. A esta ambivalente suposição subjaz uma perspectiva conservadora e sistêmica de educação que não dá conta da visão crítica a respeito dos sentidos, pressupostos antropológicos, sociais, culturais e éticos do processo científico-tecnológico que domina a vida, a sociedade e a cultura contemporâneas, manifestadas na CONAE.

Permanecendo assim, o PNE não atenderá às principais expectativas do processo da CONAE, levado a termo com enorme empenho e sucesso exatamente para subsidiar a elaboração do PNE, a partir da percepção e dos desejos da sociedade civil.

Ora, é profundamente contraditório menosprezar os resultados das difíceis negociações entre os diversos segmentos da sociedade civil na construção de um PNE, que tinham como objetivo subsidiar a ação do Estado no sentido de atender às demandas históricas de uma escola pública de qualidade para todos. E, mais do que isso, significa desconsiderar a explícita intenção de assegurar instrumentos concretos de acompanhamento e avaliação sistemática do cumprimento de metas, ao contrário do que ocorreu com o PNE 2001-2010. Atuar para a efetivação desta perspectiva é a tarefa que se coloca no horizonte imediato das forças políticas e sociais compromissadas com a real democratização da educação no país.

Nesse sentido, merece ser destacada a rearticulação do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública (FNDEP) com a finalidade de assumir uma posição política comum frente ao novo PNE. A retomada das atividades do Fórum foi definida por diversas entidades do campo educacional, cujos presidentes ou representantes estiveram reunidos no III seb. Na oportunidade, estiveram representadas as seguintes entidades: Associação de Educadores da América Latina e Caribe (AELAC); Associação Nacional de Educação (ANDE); Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN); Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (anfope); Associação Nacional de Política e Administração da Educação (ANPAE); Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANDEP); Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES); Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE); Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica (SINASEFE) (ver o Manifesto da Informação, disponível em: http://www.cedes.unicamp.br/manifesto_informativo.htm).

Educação & Sociedade, mantendo a sua identidade editorial já consolidada, mas procurando oferecer aos leitores um visual mais arrojado e afinado com as tendências contemporâneas dos periódicos científicos, apresenta, a partir desta edição, algumas mudanças em seu projeto gráfico: a revista passa a ser impressa em formato 16x24cm, com resumos e palavras-chave também em francês e nova tipografia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Maio 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 2011
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