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EDITORIAL

EDITORIAL

No rastro do desenvolvimento dos conhecimentos científicos e de novas tecnologias, quer de base física, quer organizacionais, e de suas repercussões no campo do trabalho e da vida social, passou-se a afirmar e reiterar, por variadas formas e veículos, e em diferentes instâncias, a importância e o valor da educação no mundo contemporâneo. Políticas e programas, instrumentos e ações se multiplicam e se sofisticam, face às presumíveis necessidades estatuídas por uma suposta "sociedade do conhecimento", expressão ambígua e vaga, mas que tem o condão de suscitar em grupos e pessoas a demanda por mais educação, entendida tanto em sentido amplo, promovida por diferentes instituições sociais, quanto em sentido específico e tradicional, sob a forma de educação escolarizada, se possível em níveis sempre mais altos.

Independentemente das contribuições efetivas para o trabalho e para a vida social que essa demanda por mais educação produz, pode-se considerar positiva a demanda nela mesma. Ou seja, o discurso sobre a importância social e profissional de ser um indivíduo educado transformou-se, mais do que num valor, numa busca efetiva por mais educação por parte de amplos contingentes populacionais, tendo em vista as vantagens sociais e econômicas, supostas ou verdadeiras, que possam advir da posse de conhecimentos ou, mais prosaicamente, de informações ou mesmo de certificados. O resultado que se poderia esperar dessa demanda, e isto é positivo, é que setores mais amplos da população, inclusive aqueles tradicionalmente alijados da educação, teriam finalmente acesso a ela, não apenas porque a demandariam (o que constitui reivindicação antiga desses setores), mas porque interessaria aos próprios governantes e empregadores contar com uma população mais educada.

A questão do acesso à educação tornou-se, por essa razão, objeto de preocupação dos formuladores de políticas. Mais do que o acesso, a permanência na escola e a extensão da escolarização a níveis cada vez mais altos tornaram-se, no plano do discurso, alvo de atenção. No caso brasileiro, a preocupação manifesta em garantir e ampliar o acesso conduziu à produção de múltiplos programas e projetos, o que tem garantido a elevação do número de matriculados na educação básica, observando-se um grande crescimento da oferta de vagas no ensino médio, ainda que insuficiente para suprir a demanda. No entanto, nos últimos 12 anos, exatamente o período em que a educação, em particular a escolar, foi cultuada, tem-se assistido, no Brasil, no que concerne às políticas educacionais, a proposições e processos que tendem a estabelecer, entre quantidade e qualidade, relações contraditórias e perversas.

Sob esse aspecto, há entre as gestões Fernando Henrique Cardoso e Luis Inácio Lula da Silva continuidades e descontinuidades. As continuidades manifestam-se na manutenção do espírito das políticas propostas por FHC no que concerne à educação básica, à educação profissional e ao ensino superior. As descontinuidades, por sua vez, manifestam-se em alterações pontuais nas reformas desencadeadas no decorrer da década de 1990. Alguns exemplos podem ilustrar o afirmado. No caso da educação básica, o Decreto n. 5.154/04 que, por suposto, implicaria a revogação do Decreto n. 2.208/97, representou, na verdade, apenas a possibilidade de uma alternativa a mais na estrutura e relação entre o ensino médio e a educação profissional de nível técnico, mantendo-se o anteriormente proposto. Além disso, tal alternativa não encontrou respaldo financeiro no próprio governo para se viabilizar concretamente como tal. O texto de Kuenzer publicado no número 96 de Educação & Sociedade dá conta de que, embora introduzindo programas novos na educação profissional inicial e na direcionada a jovens e adultos, a gestão Lula não só deu continuidade, no financiamento desses programas e do PNQ, à política de parcerias entre o setor público e o setor privado desencadeada no governo FHC, mas, tal como este, deixou de formular políticas de Estado para essa modalidade de educação. O equivalente no que diz respeito ao ensino superior é o controvertido programa PROUNI, não obstante a ampliação do acesso ao ensino superior de setores da população dele antes completamente excluídos.

Em benefício do governo Lula, podem ser apontadas proposições de políticas e programas que ou acrescem, ou inovam em relação ao proposto nas gestões FHC: a priorização do enfrentamento do analfabetismo por meio do Programa Brasil Alfabetizado; a proposta do FUNDEB, resultante da discussão do governo com entidades de educadores; a realização de concursos públicos para preenchimento de vagas de professores e funcionários para as universidades federais e a proposta da ampliação de seu número; a proposta da política de "cotas", apesar do seu caráter controverso; a proposta do ensino fundamental de nove anos e, finalmente, a proposta de reforma do ensino superior.

Embora as políticas e programas para a educação traçadas na gestão de cada um dos dois presidentes contemplem, como não poderia deixar de ser, a qualidade da educação a ser ofertada, aparentemente o foco central das preocupações foi a viabilização do acesso. Pode-se afirmar, com segurança, que essa meta foi alcançada em todos os níveis da educação brasileira, ainda que, em muitos casos, à custa da delegação da oferta à iniciativa privada, por meio de parcerias, inclusive no ensino superior.

Todavia, apesar dos ganhos no que se refere a esse aspecto, o problema com que se defronta a educação brasileira, há décadas, mas que ganha contornos dramáticos na contemporaneidade, diz respeito à qualidade do ensino ofertado em todos os níveis, da educação infantil à pós-graduação, não obstante os mecanismos de avaliação institucional e de desempenho dos alunos instituídos em nível nacional por ambos os governantes.

Sem entrar na discussão do que caracterizaria uma educação de qualidade, em função da complexidade da questão, face ao espaço disponível, podem ser aventadas várias hipóteses para tentar explicar a reiterada afirmação de formuladores de política, gestores, professores, alunos e familiares e empregadores de que a qualidade da educação brasileira tem deixado muito a desejar. Avaliação que encontra respaldo e fundamento no relatório anual da UNESCO relativo ao ano de 2005, divulgado em outubro do corrente ano, tendo por referência as metas definidas na Conferência Mundial de Educação, no Senegal em 2000.

Embora o Brasil não tenha decaído da posição que ocupou na primeira avaliação em 2004 (72ª) e tenha elevado seu índice de desenvolvimento (de 0,899 em 2004 para 0,905 em 2005), permaneceu no bloco dos países com índice médio de desenvolvimento, principalmente em função de indicadores que se reportam, ainda que não exclusivamente, à qualidade do ensino oferecido: altas taxas de repetência e evasão no ensino fundamental, exatamente o que foi o alvo do FUNDEF, a política de financiamento mais agressiva do governo FHC, mantida por Lula. Para além das constatações decorrentes de avaliações internacionais, como os exames do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), nas quais o país ocupa persistentemente as últimas posições, os exames nacionais realizados pelos governos brasileiros têm mostrado que a qualidade da educação oferecida merece inúmeros reparos.

Evidentemente, num país em que grandes contingentes populacionais encontram-se fora da escola e no qual cerca de 37% da população de jovens entre 15 e 25 anos não completaram o ensino fundamental (Folha de S. Paulo, 12/11/06, p. B-1), a preocupação com a ampliação da cobertura é legitima, política e socialmente. Todavia, não nos parece legítimo o sacrifício da qualidade em nome da ampliação do acesso. O falso dilema encontra uma de suas possíveis explicações nas informações sobre o financiamento da educação. Como parte integrante do discurso do governo FHC a respeito da educação, o então ministro da pasta, ecoando pontos de vista do Banco Mundial, afirmava que o problema do financiamento da educação brasileira não estava no montante dos recursos, mas na sua gestão. Faltaria eficiência, não dinheiro. Aparentemente, o governo Lula parece acreditar nessa máxima, na medida em que, "de acordo com dados oficiais, o setor [da educação] recebeu R$31,5 bilhões do Orçamento da União no ano passado, equivalentes a 1,63 do PIB (...). Nos últimos três anos do governo FHC, o gasto com educação se manteve no patamar de 1,73 do produto" (Folha de S. Paulo, 11/11/06, p. A-7). Tal constatação obriga o questionamento: O que, do ponto de vista da continuidade e das novas propostas, é para valer? Assim como convoca a todos os educadores ao exercício da reflexão e prática militante, para exercer as pressões legítimas para que a educação nacional dê passos efetivos e duradouros no sentido de tornar-se realmente de qualidade.

Comitê Editorial

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Mar 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2006
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