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Editorial

EDITORIAL

As políticas e programas para a educação, traçados nas duas últimas gestões de governo, contemplam, como foco central das preocupações, a viabilização do acesso. Todavia, apesar dos ganhos no que se refere a esse aspecto, o problema com que se defronta a educação brasileira, há décadas, mas que ganha contornos dramáticos na contemporaneidade, diz respeito à qualidade do ensino ofertado. Cabe, portanto, perguntar que qualidade de formação tem sido oferecida às crianças e jovens que demandam a educação escolar em seus diferentes níveis e modalidades. Essa avaliação é hoje possível, seja com base em pesquisas qualitativas, seja em função dos repetidos resultados dos exames nacionais. Qualquer que seja a fonte, a conclusão é que a qualidade do ensino público oferecido a maior parte da população estudantil, especialmente a mais empobrecida, é muito precária, em função de uma série de fatores, que vão das instalações físicas e equipamentos à natureza das propostas educativas em curso, passando pela formação dos professores e pelo financiamento.

Essa avaliação encontra respaldo e fundamento no relatório anual da UNESCO relativo ao ano de 2005, divulgado em outubro de 2006, tendo por referência as metas definidas na Conferência Mundial de Educação, no Senegal, em 2000. Embora o Brasil não tenha decaído da posição que ocupou na primeira avaliação em 2004 (72ª) e tenha elevado seu índice de desenvolvimento (de 0,899 em 2004 para 0,905 em 2005), permaneceu no bloco dos países com índice médio de desenvolvimento, principalmente em função de indicadores que se reportam, ainda que não exclusivamente, à qualidade do ensino oferecido: altas taxas de repetência e evasão no ensino fundamental, exatamente o que foi o alvo do FUNDEF.

Evidentemente, num país em que grandes contingentes populacionais encontram-se fora da escola e no qual cerca de 37% da população de jovens entre 15 e 25 anos não completaram o ensino fundamental (Folha de S. Paulo, 12 nov. 2006, p. A-2), a preocupação com a ampliação da cobertura é legitima, política e socialmente. Todavia, não nos parece legítimo o sacrifício da qualidade em nome da ampliação do acesso.

A proposta para o segundo mandato (Programa Setorial de Educação, 2006) do governo Lula mostrou estar sensível ao problema. Após chamar a atenção para as ações desenvolvidas no primeiro governo em relação à qualidade social da educação (referindo-se, principalmente, aos programas de formação dos educadores e demais profissionais da educação e à avaliação do desempenho de estudantes e de escolas), o documento afirma enfaticamente que "a qualidade da educação será prioridade absoluta" (p. 13). O discurso sugere a continuidade da preocupação com esse quesito, ao ressaltar que "a ampliação do financiamento, a construção e reforma de prédios escolares, (...) a distribuição de equipamentos e melhoria dos programas de atendimento aos alunos (...) foram ações estruturantes voltadas para responder aos desafios da qualidade da educação básica" (p. 13, grifos nossos), reconhecendo, todavia, a necessidade de que sejam superadas "as idéias e as práticas que conduziram à fragmentação e superposição de iniciativas" (p. 13). A profissionalização dos professores continuaria, aparentemente, a ser o carro-chefe dos programas de qualidade, apoiado em quatro áreas prioritárias: instituição do piso salarial profissional nacional (com base no FUNDEB); estabelecimento de diretrizes nacionais de carreira, tendo em vista a jornada de trabalho do professor; avaliação do trabalho docente, com vistas a seu aperfeiçoamento e, finalmente, a formação, por meio de uma política nacional (p. 13 e 14).

O Programa estabeleceu uma série de metas gerais para alcançar a qualidade social da educação, as quais deveriam conferir prioridade a) a programas de incentivo à permanência de crianças sob a orientação de professores, quer em escolas, quer em outros espaços públicos; b) ao aperfeiçoamento da gestão educacional em vários níveis; c) à inclusão digital; d) à continuidade das avaliações nacionais; e) aos programas de incentivo à leitura; f) à educação profissional, em termos de ampliação do acesso e articulação com o ensino médio; g) a ações visando a diminuição da evasão e da repetência; h) à formação inicial e continuada de professores.

O Programa de Desenvolvimento da Educação (PDE), recentemente lançado pelo MEC, pode ser entendido como um desdobramento do Programa Setorial que, ao mesmo tempo, o aprofunda e inova, na medida em que concretiza, por meio de programas específicos, algumas daquelas metas e propõe outros programas, não claramente estimulados por aquele documento. O PDE arrola proposições que contemplam o ensino superior, o financiamento, a formação de professores, a avaliação, a educação profissional, a educação especial, a informatização de dados, as condições infra-estruturais e de serviços que visam à otimização do funcionamento da instituição escolar, assim como propostas pedagógicas com a finalidade de melhorar a qualidade da educação.

É inegável que o Programa traz em seu bojo muitos aspectos positivos, como, por exemplo, a criação de condições favoráveis ao acesso e permanência dos alunos na escola, a proposição de aumento de vagas no ensino superior, o enriquecimento das bibliotecas escolares, o investimento na infra-estrutura de creches e pré-escolas.

Todavia, há também muitos aspectos que, pelo menos à primeira vista, demandam discussões mais aprofundadas. Três ações do programa, duas delas relacionadas ao trabalho docente, servem de exemplo. A primeira refere-se à formação inicial e continuada de professores de educação básica a distância. O suposto de que tal estratégia resulte em melhor preparo do professor parece não levar em conta que sua formação tem se revelado precária, mesmo sob as condições mais favoráveis do ensino presencial. É recorrente, entre os que atuam na formação de professores, a avaliação de que esta não se esgota nas aquisições de caráter cognitivo e técnico, mas demanda a constituição de valores, atitudes e habilidades, cujo cultivo implica a relação não só com os encarregados da formação, mas com os próprios colegas. A segunda diz respeito ao estabelecimento do piso nacional de salário dos professores e seu progressivo aumento. Embora tal medida possa ser satisfatória para alguns segmentos do professorado nacional, é insatisfatória no que se refere à melhoria da qualidade do ensino, pois esta depende de que outras condições objetivas do trabalho docente sejam consideradas, como, por exemplo, a jornada integral em uma só escola.

No que respeita à educação profissional, as ações a ela referentes tendem a apoiar-se no questionável suposto de que a mais formação técnica corresponderão melhores oportunidades no mercado de trabalho e de que tal mercado será mais favorável em nível regional. Tal suposto é questionável, considerando-se que a inserção no mercado de trabalho não é comandada pela educação, mas pela economia, ainda que possa contribuir para tal. Torna-se ainda mais questionável se tal modalidade de educação passa a ser oferecida a distância, em escolas adaptadas para tal fim, dadas as características e exigências implicadas.

Na forma como se apresenta, o Programa configura-se como um conjunto de cerca de 38 ações voltadas para dimensões específicas e tópicas. Sua segmentação é, no entanto, aparente. A costurar e cimentar tais ações existe uma concepção que privilegia bandeiras presentes nos principais documentos que fundamentaram as reformas educacionais desencadeadas na década de 1990, as quais conferem primordialmente à educação o papel de formação de recursos humanos para o setor produtivo e, portanto, servem de alavanca para o crescimento econômico. A qualidade da educação, nesse sentido, tende a referir-se à busca da eficiência, de um lado, e, de outro, à tentativa de produzir, por meio de diferentes ações, alguma forma de coesão tendo em vista as diversas manifestações de esgarçamento do tecido social.

Cabe, por fim, dado o fato de que Educação & Sociedade reservou um espaço privilegiado para a discussão do trabalho docente, assim como pela constatação, reiterada em muitos dos discursos oficiais, de que o sucesso das ações propostas depende fundamentalmente desse trabalho, fazer algumas ponderações sobre as formas como este poderia ser afetado pelas ações propostas no PDE.

Neste particular, é necessário lembrar que, cada vez mais, o trabalho docente deixa de se restringir às atividades desenvolvidas em sala de aula e àquelas a elas diretamente relacionadas, como o preparo das aulas e a apreciação das tarefas realizadas pelos alunos. Por solicitação mesmo dos docentes e também por demandas criadas por projetos educacionais que chegam à escola, às suas atividades tradicionais acrescem-se as participações em múltiplas reuniões intra e extra unidade escolar, as exigências da formação continuada, o desenvolvimento de projetos pedagógicos com grupos de alunos ou com pais e moradores do bairro em que se situa a escola. Em função disso, o trabalho docente vem se intensificando cada vez mais, ao mesmo tempo em que se diversifica, se segmenta e se precariza.

Às pressões e tensões resultantes de tais demandas somam-se aquelas que decorrem do contexto social brasileiro atual, no qual os docentes de muitas escolas públicas, situadas em regiões pauperizadas, encontram enormes dificuldades para levar avante seu trabalho, em função das próprias condições da população atendida, assim como da violência que ronda as unidades escolares, as invade ou delas passa a fazer parte.

Não há dúvida de que o PDE se propõe, por meio das diversas ações que o compõem, minorar várias dessas pressões e tensões. Todavia, há que considerar dois aspectos importantes. O primeiro diz respeito ao fato de que as medidas preconizadas pelo PDE podem, contraditoriamente, facilitar e dificultar o trabalho dos docentes: facilitar, por meio do apoio a diversas das atividades que professores e professoras realizam na unidade escolar; dificultar, pelo acúmulo de mais atividades ao conjunto daquelas que já realizam, implicando mais horas de trabalho, ao mesmo tempo que a revisão continuada de práticas e saberes.

O segundo refere-se ao fato de que várias delas, pelo seu caráter transitório e emergencial, deixam intocados os determinantes da adversidade que se propõem erradicar, pelo fato de não se constituírem como políticas que visam a raiz das situações postas. No que respeita ao trabalho docente, em particular, a criação de condições de trabalho dignas e permanentes é condição sine qua non para que até mesmo medidas emergenciais possam ser bem sucedidas.

Comitê Editorial

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Set 2007
  • Data do Fascículo
    Ago 2007
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