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Análise da influência da tarifação em seis indicadores operacionais e de qualidade dos serviços de abastecimento de água no Brasil

Analysis of the effect of tariffs on six operational and quality indicators of water supply services in Brazil

Resumos

Este estudo analisou em que medida os valores das tarifas médias de água podem afetar seis indicadores operacionais e de qualidade dos serviços de abastecimento de água no Brasil. A análise utilizou os dados do Sistema Nacional de Saneamento e seguiu duas etapas: aplicação do teste de Kruskal-Wallis para identificar as diferenças dos indicadores de qualidade dos prestadores de serviços entre oito faixas de tarifação; e a aplicação do teste de Mann-Whitney para identificar as diferenças entre os grupos de prestadores com tarifas médias abaixo e acima de R$ 0,50 por metro cúbico de água. O estudo mostra que a tarifação pode afetar o desempenho dos serviços de abastecimento de água, sobretudo nos padrões de consumo de água da população. O artigo é concluído com uma discussão sobre as limitações dos dados e da necessidade de estudos futuros.

tarifação; abastecimento de água; indicadores operacionais; indicadores de qualidade; sustentabilidade econômico-financeira


This study analyzed the extent to which the values of water supply mean tariffs can affect six operational and quality indicators of urban water supply in Brazil. The analysis used data from the Brazilian National System of Sanitation Information, and followed two stages: application of the Kruskal-Wallis test to identify the differences of indicators among eight tariff blocks; and use of Mann-Whitney test to analyze potential differences of the indicators among water supply services that had mean water tariff above and below BRL 0.50 per cubic meter. The study shows that the water tariff can affect the performance of water supply services, most notably of the water consumption patterns. The article concludes by pointing out the limitations of the analyzed data, as well as by highlighting the need of future studies.

tariffs; watery supply; operational indicators; quality indicators; financial and economic sustainability


INTRODUÇÃO

Os serviços de saneamento básico ainda são considerados precários em todo o Brasil. Dados mais recentes do Serviço Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) indicam que, em 2011, mais de 50% da população brasileira não era contemplada com coleta de esgotos e que o índice de tratamento deles gerados era de apenas 37,5% (MCIDADES, 2013bMINISTÉRIO DAS, CIDADES - MCIDADES. (2013b) Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos - 2011. Brasília: Mcidades. .). Quanto aos serviços de abastecimento de água, apesar de os índices de atendimento superarem 90%, ainda persistem sérios problemas de qualidade. O diagnóstico do Plano Nacional de Saneamento Básico levantou que 64 milhões de brasileiros (33,9% da população) era abastecida com água fora dos padrões de potabilidade e/ou com intermitências prolongadas (MCIDADES, 2013cMINISTÉRIO DAS, CIDADES - MCIDADES. (2013c) Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB). Brasília: Mcidades. .).

Esse cenário de precariedade tende a mudar. Na última década, ocorreram significativos avanços institucionais e legais, com destaque para a promulgação da Lei 11.445 de 2007 (BRASIL, 2007BRASIL. (2007) Lei nº 11.445, de 05 de janeiro de 2007. Estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico; altera as Leis nos 6.766, de 19 de dezembro de 1979, 8.036, de 11 de maio de 1990, 8.666, de 21 de junho de 1993, 8.987, de 13 de fevereiro de 1995; revoga a Lei no 6.528, de 11 de maio de 1978; e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, n. 5.), que estabeleceu importantes princípios e instrumentos de planejamento, gestão e regulação do saneamento. Dentre os princípios fundamentais da lei está a eficiência e sustentabilidade econômica, a qual se baseia, sobretudo, no sistema de cobrança e composição das taxas e tarifas. Tal lei estabeleceu diversos critérios de cobrança/tarifação, a qual é considerada um pilar da sustentabilidade econômico-financeira dos serviços de saneamento. Como Peixoto (2009, p. 498)PEIXOTO, J.B. (2009) Sustentabilidade econômica e remuneração da prestação dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário: regulação econômica e fontes de financiamento . In: CORDEIRO, B. D.S. (Ed.) Prestação dos serviços públicos de saneamento básico. Brasília: Ministério das Cidades/Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental. .colocou: "Sem dúvida, a cobrança pela prestação é a fonte primária mais adequada e racional para o financiamento dos serviços públicos que admitem essa forma de remuneração".

Speers (2007)SPEERS, A. (2007) Bonn Charter Principles Series n. 4 - The Price of Water. p. 1-4 aborda que os custos dos prestadores de serviços de saneamento podem ser divididos em: operacionais (o custo de recursos como materiais de energia, recursos humanos, produtos químicos e aluguéis de espaços); de capital (o custo de obtenção de capital, incluindo um retorno sobre o investimento feito); e os de reposição (o custo da substituição ou reparação de bens à medida que se gastam). As principais estratégias a serem empregadas na gestão de custos são a identificação dos custos característicos do setor e das cadeias de formação dos custos e as estratégias de gestão de demanda, investimentos e políticas tarifárias (ANJOS Jr., 2011ANJOS Jr., A.H. (2011) Gestão estratégica do saneamento. 1 ed. Barueri: Manole .).

As estratégias de gestão tarifária aplicadas ao saneamento devem obedecer algumas subsidiárias: comerciais de segmentação de produtos e serviços; comerciais de segmentação de clientes e as gerais de relacionamento com os clientes (ANJOS Jr., 2011ANJOS Jr., A.H. (2011) Gestão estratégica do saneamento. 1 ed. Barueri: Manole .). Para Pereira Jr. (2007)PEREIRA Jr., J.S. (2007) Tarifas dos serviços públicos de água e esgotos no Brasil. Brasília: Câmara dos Deputados., existe certa dificuldade para uma avaliação das políticas tarifárias no Brasil, pois cada prestador tem uma metodologia particular. Todavia, no caso do abastecimento de água, é possível observar o predomínio de uma estrutura tarifária multipartes, ou seja, baseada em blocos ou faixas de consumo. Esta estrutura geralmente envolve um valor mínimo obrigatório referente ao primeiro bloco de consumo, que é costumeiramente fixado em 10 m3 mensais no Brasil. Consumos mensais superiores a este volume têm tarifas maiores, conforme tabelas fixadas pelas concessionárias ou pelos prestadores de serviços. Esse modelo, como aponta Andrade (2009)ANDRADE, T.A. (2009) Tarifação em serviços de saneamento: reflexões técnicas ensejadas pela Lei 11445/2007 . In: CORDEIRO, B. D.S. (Ed.). Prestação dos serviços públicos de saneamento básico. Brasília: Ministério das Cidades/Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental. ., é justificado no Brasil "pela necessidade de redistribuir renda real, cobrando-se tarifas menores aos usuários pobres e maiores para os não-pobres ou, ainda, que o objetivo é desestimular consumos excessivos (p. 490)". As políticas tarifárias, nos casos dos municípios em que não há micromedições nos pontos de consumo de água, geralmente se baseiam ou na cobrança de uma tarifa básica operacional, cujo valor é relativamente baixo e independe do volume de água consumido pelos usuários, ou na inexistência de cobrança direta ao usuário. Neste último caso, o usuário paga pelos serviços indiretamente, por meio dos impostos que contribuem para os caixas do Estado.

O Brasil tem diversos modelos de prestação de serviços de abastecimento de água e esgotos, que envolvem, ou não, cobranças por parte dos provedores de serviços. Os desempenhos dos diferentes modelos têm sido cada vez mais analisados por autores brasileiros (HELLER et al. 2006HELLER, L.; COUTINHO, M.L.; MINGOTI, S.A. (2006) Diferentes modelos de gestão de serviços de saneamento produzem os mesmos resultados? Um estudo comparativo em Minas Gerais com base em indicadores. Engenharia Sanitária e Ambiental, v. 11, n. 4, p. 325-336.; 2012HELLER, P.G.B.; NASCIMENTO, N.O.; HELLER, L.; MINGOTI, S.A. (2012) Desempenho dos diferentes modelos institucionais de prestação dos serviços públicos de abastecimento de água: uma avaliação comparativa do conjunto dos municípios brasileiros . Engenharia Sanitária e Ambiental, v. 17, n. 3, p. 333-342,.; SCRIPTORE & TONETO JÚNIOR; 2012SCRIPTORE, J.S.; & TONETO JÚNIOR, R. (2012) A estrutura de provisão dos serviços de saneamento básico no Brasil: uma análise comparativa do desempenho dos provedores públicos e privados . Revista de Administração Pública, v. 46, n. 6, p. 1479-1504, .). Pesquisas recentes, todavia, têm mostrado que os serviços envolvendo alguma forma de cobrança ou tarifação tendem a estimular um uso mais racional dos recursos hídricos, promovendo melhorias ambientais e sociais. Olmstead e Stavins (2009)OLMSTEAD, S.M.; & STAVINS, R.N. (2009) Comparing price and nonprice approaches to urban water conservation. Water Resources Research, v. 45, n. 4, .revistaram esta questão recentemente e concluíram que os benefícios da cobrança ou tarifação são percebidos mais claramente na conservação da água urbana.

Apesar das potenciais vantagens da tarifação evidenciadas na literatura internacional, dados do SNIS 2013 indicam que, no Brasil, aproximadamente 15% dos mais de 5 mil prestadores de serviços de abastecimento de água ou não tarifam ou tarifam valores relativamente "simbólicos" pelos serviços de abastecimento de água. Conforme evidencia a Figura 1, para 2011, existiam 360 prestadores que não tinham qualquer tarifa aplicada aos serviços de abastecimento de água, 176 que cobravam, em média, entre 0 e R$ 0,50, e outros 250, em média, entre R$ 0,50 e R$ 1,00 por m3 de água fornecida à população.

Figura 1.
Faixas de valores das tarifas médias (em R$.m-3) praticadas por 5.178 prestadores de serviços de abastecimento de água no Brasil.

Existe hoje uma vasta literatura acadêmica e de origem profissional e governamental, sobretudo internacional, que trata da tarifação dos serviços de saneamento, por exemplo, na União Europeia (EEA, 2013EUROPEAN ENVIRONMENT, AGENCY - EEA. (2013) Assessment of cost recovery through water pricing. Copenhagen: EEA .), Austrália (NRMMC, 2010NATURAL RESOURCE MANAGEMENT MINISTERIAL, COUNCIL - NRMMC. (2010) National Water Initiative (NWI) pricing principles. Canberra: NRMMC. .), Índia (AGGARWAL; MAURYA; JAIN, 2013AGGARWAL, V.; MAURYA, N.; JAIN, G. (2013) Pricing Urban Water Supply. Environment and Urbanization Asia, v. 4, n. 1, p. 221-241.), Serra Leoa (HARRIS; KOOY; JALLOH, 2012HARRIS, D.; KOOY, M.; JALLOH, G. (2012) The political economy of the urban water-pricing regime in Freetwon, Sierra Leone. London: Overseas Development Institute. .), dentre muitos outros locais. No Brasil, pesquisas sobre a tarifação, sobretudo no meio acadêmico, são relativamente escassas. Durante a preparação deste estudo, os autores efetuaram consultas sistemáticas aos portais acadêmicos Scopus e Scielo, mas não encontraram mais do que dez artigos que tratavam diretamente da tarifação dos serviços de saneamento. Diversas questões relacionadas aos benefícios, à efetividade e às barreiras da tarifação restam superficialmente exploradas.

O objetivo principal deste estudo foi entender os benefícios da tarifação dos serviços de abastecimento de água no Brasil. Mais especificamente, o estudo procurou entender em que medida a tarifação pode afetar aspectos operacionais e da qualidade dos serviços de abastecimento de água no Brasil, a partir de seis indicadores. Os resultados, conforme evidenciado a seguir, são relevantes não apenas para acadêmicos, mas também para gestores da área de saneamento, sobretudo aqueles envolvidos na implementação de políticas tarifárias.

METODOLOGIA

O estudo seguiu uma abordagem essencialmente quantitativa, baseada na coleta e análise estatística inferencial de dados numéricos. O trabalho focou-se na tarifação dos serviços de abastecimento de água, tendo em vista que estes dados são comparativamente mais abundantes e confiáveis do que aqueles sobre tarifação dos serviços de esgotamento sanitário e drenagem pluvial. A análise seguiu duas etapas. Primeiramente, foram realizados testes estatísticos para avaliar se havia diferenças estatisticamente significativas entre os valores dos seis indicadores e os prestadores de serviços, que foram divididos em grupos segundo suas respectivas faixas de tarifação de abastecimento de água. Em seguida, foi avaliado se os valores dos seis indicadores são diferentes entre dois grupos: o de prestadores com tarifas médias inferiores a R$ 0,50 e o daqueles com taxas superiores a R$ 0,50. A adoção do valor limite de R$ 0,50 foi arbitrária e refletiu a intenção dos autores de criar dois grupos de tarifas médias, sendo o primeiro de valores nulos ou relativamente baixos para o contexto brasileiro. Uma das premissas deste estudo é a de que as capacidades de pagamento dos grupos analisados são semelhantes, que foi adotada porque as faixas de tarifas analisadas incidem em conjuntos de municípios situados em diferentes regiões brasileiras que contemplam usuários de baixa, média e alta renda. Qualquer peculiaridade que possa influenciar na capacidade "média" de pagamento dos usuários, em grupos que refletem tamanha diversidade socioeconômica e geográfica, tenderia a ser minimizada ou eliminada.

Os dados necessários para as análises estatísticas foram obtidos no Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos de 2010 do Ministério das Cidades - MCidades (MCIDADES, 2012MINISTÉRIO DAS, CIDADES - MCIDADES. (2012) Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento: diagnóstico dos serviços de água e esgotos - 2010. Brasília: Mcidades .), também conhecido como "Diagnóstico SNIS 2010". Tal análise é realizada anualmente desde 1995, com base nos formulários enviados por prestadores de serviço que atenderam à solicitação do MCidades. As informações consideradas na pesquisa foram obtidas das cinco tabelas do "Diagnóstico SNIS 2010" (MCIDADES, 2013aMINISTÉRIO DAS CIDADES - MCIDADES.MINISTÉRIO DAS CIDADES - MCIDADES. (2013a) Dados brutos do Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos - 2010. Disponível em: <http://www.snis.gov.br/PaginaCarrega.php?EWRErterterTERTer=95>. Acesso em: 01 maio 2013.
http://www.snis.gov.br/PaginaCarrega.php...
). Os dados delas foram agregados em um único banco de dados sistematizado no programa IBM(c) SPSS(c) Statistics, versão 18. Durante a confecção do banco de dados agregado, ficou clara a existência de diversos erros de preenchimento nas informações que foram enviadas pelos prestadores de serviços de abastecimento de água ao MCidades. Por meio dos testes de outliers e inconsistências, foram eliminados ou ajustados, para esta pesquisa, os dados de diversos prestadores de serviço. O banco de dados corrigido e consolidado que foi considerado nas análises a seguir contemplou 5.178 prestadores de serviços de água e esgoto1, os quais são responsáveis pelo abastecimento de água de, aproximadamente, 88% dos municípios brasileiros, ou seja, de mais ou menos 160 milhões de habitantes (MCIDADES, 2012, p. 4MINISTÉRIO DAS, CIDADES - MCIDADES. (2012) Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento: diagnóstico dos serviços de água e esgotos - 2010. Brasília: Mcidades .).

A qualidade dos serviços de abastecimento de água pode ser avaliada por diversos indicadores de caráter financeiro, operacional e gerencial. Para a realização deste estudo, foram considerados os indicadores dos serviços de saneamento brasileiros disponíveis no "Diagnóstico SNIS 2010", que contém 75 indicadores divididos em três categorias: financeiros, operacionais e de qualidade de água. Este estudo procurou relacionar um tipo de indicador financeiro, qual seja a tarifa média de abastecimento de água, com os operacionais e de qualidade da prestação do serviço. Nesse sentido, foram elencados seis indicadores operacionais e de qualidade da base do SNIS para realizar as análises.

Os indicadores operacionais foram:

  • • índice de atendimento urbano de água;

  • • consumo de água per capita; e

  • • perdas de água na distribuição.

Enquanto os de qualidade foram:

  • • amostras de cloro residual fora do padrão;

  • • amostras de turbidez fora do padrão; e

  • • amostras de coliformes totais fora do padrão.

A seleção dos indicadores levou em consideração a confiabilidade e a completude dos dados fornecidos pelos prestadores de serviço, bem como a relevância dos indicadores para a caracterização da qualidade da rede e da água fornecida à população brasileira. O indicador de tarifação utilizado foi o IN005 do SNIS, que corresponde à tarifa média de água. As equações e os demais detalhes dos seis indicadores podem ser conferidos em MCidades (2012)MINISTÉRIO DAS, CIDADES - MCIDADES. (2012) Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento: diagnóstico dos serviços de água e esgotos - 2010. Brasília: Mcidades ..

Inicialmente, foram realizadas análises descritivas (média, mediana, moda, desvio padrão etc.), análises gráficas de curtose e assimetria, bem como testes de normalidade K-S. O teste de normalidade K-S para os dados dos seis indicadores apresentou valores significativos (<0,05) de não normalidade, situação que determinou a escolha de dois testes estatísticos não paramétricos para o entendimento da relação entre os indicadores e a tarifa média de água: o de Kruskal-Wallis, usado para comprovar ou não a existência de diferenças significativas entre os valores dos seis indicadores entre oito grupos de faixas de tarifação; e o de Mann-Whitney, que foi empregado para comprovar ou não a existência de diferenças significativas entre os valores dos seis indicadores entre dois grupos de faixas de tarifação. Estes testes são tradicionalmente utilizados em análises estatísticas não paramétricas de amostras independentes (AGRESTI & FINLAY, 1997AGRESTI, A.; & FINLAY, B. (1997) Statistical Methods for the Social Sciences. Upper Saddle River: Pearson Education. .; CORDER & FOREMAN, 2009CORDER, G.W.; & FOREMAN, D.I. (2009) Nonparametric Statistics for Non-Statisticians. Hoboken, NJ: John Wiley & Sons .). Os procedimentos e resultados dos testes são detalhados a seguir.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Teste de Kruskal-Wallis com oito faixas de tarifação

Os valores médios da tarifa média da água dos prestadores de serviços elencados no "Diagnóstico SNIS 2010" foram agrupados em oito faixas distintas, conforme observado na Figura 1. Para avaliar se havia diferenças significativas entre os valores dos seis indicadores e as faixas, elaborou-se a seguinte hipótese norteadora: "os valores indicadores de qualidade dos serviços de abastecimento de água diferem significativamente entre as faixas de tarifa de água" (H1). A hipótese nula que segue é a de que: "os valores dos indicadores de qualidade dos serviços de abastecimento de água não diferem entre as faixas de tarifa de água" (H0). O ordenamento das medianas dos indicadores entre as faixas de tarifação pode ser visto na Tabela 1.

Tabela 1.
Contagem e medianas dos valores dos seis indicadores entre as oito faixas de tarifação.

Os resultados do teste de Kruskal-Wallis, encontrados pelo SPSS 18 e evidenciados na Tabela 2, mostram que os indicadores tiveram valores de significância (evidentes na Tabela 2 como Asymp. Sig.) abaixo de 0,05, ou seja, indicaram que a hipótese nula de que "os valores dos indicadores de qualidade dos serviços de abastecimento de água não diferem entre as faixas de tarifa de água" deve ser rejeitada em relação a todos os indicadores.

Tabela 2.
Teste de Kruskal-Wallis das oito faixas de tarifação.

Esse resultado corrobora o argumento de que os valores de tarifação podem afetar significativamente a qualidade dos serviços de abastecimento de água no Brasil, pelo menos em relação aos seis indicadores pesquisados. Este resultado também está de acordo com a importância das políticas tarifárias. Todavia, o teste de Kruskal-Wallis não revela o valor específico da taxa a partir do qual os indicadores são positiva ou negativamente afetados. Eles devem ser calculados em testes específicos post hoc. A seção seguinte procura explorar um dos possíveis testes complementares ao Kruskal-Wallis.

Teste de Mann-Whitney para a comparação dos serviços tarifados abaixo e acima de R$ 0,50/m³

A fim de explorar a potencial influência dos valores de tarifas mais específicos nos indicadores de qualidade, o estudo dividiu novamente as faixas de tarifação em dois grupos: serviços sem tarifação ou com tarifação abaixo de R$ 0,50 e serviços com tarifação maior ou igual a R$ 0,50 por m3. A "lógica" desta divisão arbitrária das faixas em R$ 0,50, conforme mencionado na seção anterior, reflete a tentativa de reunir no primeiro grupo os prestadores de serviço que não tarifam ou tarifam valores "relativamente" baixos, implicando em contas mensais da ordem de R$ 0,00 a R$ 15,00 para famílias de cinco pessoas com consumo médio de 200 L.habitantes-1.dia-1.

Para avaliar se havia diferenças entre os valores dos seis indicadores e os dois grupos, elaborou-se a seguinte hipótese norteadora: "os valores dos indicadores de qualidade dos serviços de abastecimento de água diferem significativamente entre os prestadores que tarifam abaixo e acima de R$ 0,50/m3" (H1). A hipótese nula que segue é a de que "os valores dos indicadores de qualidade dos serviços de abastecimento de água não diferem significativamente entre os prestadores que tarifam abaixo e acima de R$ 0,50/m3" (H0). O ordenamento das medianas dos indicadores entre as faixas de tarifação pode ser visto na Tabela 4. Os resultados do teste de Mann-Whitney, também conduzidos no SPSS 18, podem ser conferidos na Tabela 4. Vale destacar que a grande diferença de tamanho dos grupos não afetou a confiabilidade do teste de Mann-Whitney.

Tabela 3.
Análise de Mann-Whitney U para os grupos de "Tarifa Menor que R$ 0,50" e "Tarifa Maior ou igual a R$ 0,50".

Tabela 4.
Contagem e medianas dos seis indicadores entre os grupos de prestadores que tarifam acima e abaixo de R$ 0,50 por m3.

As conclusões evidenciam diferenças importantes (p<0,05) entre os valores dos indicadores e os dois grupos de tarifação, tendo em vista que quatro dois seis indicadores tiveram valores de significância (evidente na linha da Tabela 3assinalada como "Asymp. Sig. 2-tailed"), abaixo de 0,05. As exceções foram os indicadores de incidência de amostras de turbidez e cloro residual fora do padrão. Isto significa que a hipótese nula só não deve ser rejeitada no caso do indicador de amostras de turbidez e cloro fora do padrão. De modo geral, esses resultados corroboram o teste de Kruskal-Wallis, ou seja, os valores de tarifação podem influenciar os indicadores operacionais e de qualidade dos serviços.

No teste de Mann-Whitney, foi possível apenas averiguar se um grupo apresentava valores significativamente maiores ou menores do que o outro no caso dos indicadores "consumo médio per capita de água" e "índices de perdas na distribuição". Os demais indicadores tiveram medianas praticamente equivalentes (Tabela 4), tendo em vista que as distribuições de seus respectivos dados estavam fortemente concentradas em um valor específico. No entanto, foram geradas duas importantes conclusões:

Quando os valores do consumo médio per capita de água foram analisados, encontrou-se que a mediana entre prestadores de serviços tarifando valores médios inferiores a R$ 0,50 era de 192,6 L de água, enquanto que, entre os prestadores cobrando valores maiores ou iguais a R$ 0,50, era de 116,5 L de água. O teste de Mann-Whitney concluiu que esta diferença era estatisticamente significativa: U=635397,5, com p=0,000. Quando os valores dos índices de perdas na distribuição foram estudados, encontrou-se que a mediana entre prestadores de serviços tarifando valores médios inferiores a R$ 0,50 era de 21,7%, enquanto que entre os prestadores cobrando valores maiores ou iguais a R$ 0,50 era de 31,2%. O teste de Mann-Whitney concluiu que esta diferença era estatisticamente significativa: U=387173,00, com p=0,000.

Esses resultados sugerem que tarifas maiores do que R$ 0,50, refletindo políticas tarifárias que vão além da tarifa básica operacional, cobrando valores proporcionais ao consumo, tendem a influenciar o comportamento dos usuários, no sentido de reduzir o consumo de água. Este resultado era esperado e está alinhado com as pesquisas de Olmstead e Stavins (2009)OLMSTEAD, S.M.; & STAVINS, R.N. (2009) Comparing price and nonprice approaches to urban water conservation. Water Resources Research, v. 45, n. 4, ., que concluíram que a precocidade pode levar a uma redução no uso da água em áreas urbanas.

O teste de Mann-Whitney gerou um resultado interessante, ou seja, o de que serviços de abastecimento de água com tarifas maiores ou iguais a R$ 0,50 tendem a apresentar maiores perdas no sistema de distribuição do que os serviços que não tarifam ou tarifam valores simbólicos pelo acesso à água. Isto sugere uma contradição, pois serviços com maiores arrecadações deveriam, a princípio, ter mais recursos para manutenção e investimentos na rede de abastecimento, de modo a reduzir as perdas. Esse resultado, porém, pode refletir o fato de os serviços com mais tarifação terem sistemas mais sofisticados de macro e micro medições, os quais podem afetar a disponibilidade de dados e a exatidão dos valores de medição de perdas. É de se aventar a hipótese de que os prestadores de serviços com nenhuma ou baixa tarifação não apresentam dados confiáveis de medições das perdas na distribuição.

Uma potencial falta de confiabilidade nos dados do SNIS pode também explicar as dificuldades em se detectar diferenças entre as medianas dos índices de amostras fora do padrão e atendimento urbano de água. Na planilha do SNIS havia muitos dados "arredondados", os quais sugerem que eles são primeiramente o resultado de "estimativas grosseiras" do que valores "fisicamente medidos" pelos prestadores de serviço do saneamento. Com o amadurecimento do SNIS, essas potenciais fragilidades poderão ser melhor investigadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As políticas brasileiras de tarifação dos serviços de saneamento ainda foram pouco abordadas no meio científico, apesar da clara importância dada ao tema pela Lei 11.445/2007. Este estudo procurou contribuir para esta lacuna do conhecimento ao analisar em que medida a tarifação pode afetar seis indicadores de qualidade de 5.178 prestadores de serviços de abastecimento de água no Brasil. A análise seguiu duas etapas. Primeiramente, aplicou-se o teste de Kruskal-Wallis para avaliar se havia diferenças de valores nos indicadores entre prestadores de serviços agrupados em oito faixas de tarifação. Em seguida, foi avaliado se os valores eram significativamente diferentes entre o grupo de prestadores com tarifas médias inferiores a R$ 0,50 e aquele com tarifas médias superiores ou iguais a R$ 0,50. Os resultados evidenciaram que os seis indicadores apresentam valores significativamente diferentes entre os grupos de tarifação. Eles também mostraram que os serviços de abastecimento de água com tarifas médias superiores a R$ 0,50 por m3 tendem a apresentar consumos per capitade água inferiores àqueles que não tarifam ou tarifam valores simbólicos pelo acesso à água.

Tais análises são preliminares, pois, dentre outros fatores, refletem os dados do sistema de informação, o SNIS, que, apesar de mais de 15 anos, ainda está em processo de amadurecimento, apresentando lacunas e inconsistências. Apesar dessas limitações, os resultados são suficientemente confiáveis para afirmar que alguns indicadores operacionais e de qualidade demonstram valores significativamente diferentes entre faixas de tarifa média de água no Brasil, um resultado que sugere que a política tarifária pode influenciar no desempenho dos serviços de saneamento. Recomenda-se que estudos futuros abordem outros indicadores, além dos seis selecionados aqui e que a análise das faixas de tarifação ocorra com base nos grupos de usuários com capacidade de pagamento evidentemente homogênea. Sugere-se ainda que outros estudos, de abordagem mais qualitativa, foquem em casos mais específicos dos prestadores de serviços de saneamento, de modo a capturar as nuanças políticas e operacionais da tarifação.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Cumpre salientar que diversas cidades têm mais de um prestador de serviços de saneamento, sobretudo quando os serviços estão em estágio de transferência de órgãos municipais para regionais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    14 Jan 2014
  • Aceito
    10 Out 2014
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