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Emergência dos complexos culturais nas ecovilas: estudos etnográficos Brasil/Suíça

Resumo

Este artigo contribui com o estudo sobre subjetividade dos moradores de ecovilas a partir do conceito de complexo cultural. A pesquisa foca nos complexos que emergiram em relação ao indivíduo, ao coletivo e à natureza, procurando entender como eles se desenvolveram e foram trabalhados. Contamos com a noção de complexos culturais para compreendermos as relações dos indivíduos consigo, com os outros e com o meio ambiente em contextos comunitários. Fizemos observações participantes em três ecovilas. As análises nos mostram que a vida em ecovilas desenvolve complexos coletivos que mediam as relações dos indivíduos com os seus respectivos grupos no que tange aos aspectos da individualidade e da coletividade, bem como aos modos de se relacionar com a natureza. Contudo, em cada comunidade, o contexto físico e a presença ou ausência de trabalhos de autorreflexão desenvolviam os complexos culturais de formas distintas, produzindo relações específicas de cada indivíduo com seu contexto.

Palavras-chave
Cultura; Integração comunitária; Meio ambiente; Pesquisa participativa baseada na comunidade

Abstract

This article aims to contribute to the subjectivity study of ecovillage dwellers based on the concept of cultural complex. The investigation focused on the complexes that emerged with regard to the individual, collective, and nature, how they developed and were worked on. We rely on the notion of cultural complexes to understand the relationships of individuals with themselves, with others, and with the environment in the community framework. We observed the participants in two ecovillages in Switzerland and one in Brazil. The analyses evidenced that life in ecovillages develops collective complexes that mediate the relationships of individuals with their relevant groups regarding aspects of individuality and collectivity and ways of relating to nature. However, in each community, the physical context and the presence or absence of self-reflection works developed cultural complexes in different ways, producing specific relationships between each individual and their context.

Keywords
Community integration; Community-Based Participatory Research; Culture; Environment

Diante das crises econômicas e ambientais que o mundo pós-industrial tem vivido e o excessivo foco dado à individualização, a vida em comunidade tem sido uma alternativa para confrontar os efeitos societários (Merz-Benz, 2006Merz-Benz, P.-U. (2006). Beyond the Individualism, the Theorem of Community and Society – Ferdnand Tönnies and Communitarianism. Swiss Journal of Socilogy, 32(1), 27-52.). O movimento das ecovilas é uma modalidade que tem crescido, consoante a essa perspectiva.

Segundo dados atuais da Global Ecovillage Network, as ecovilas contam com mais de 10.000 comunidades em todos os continentes ao redor do planeta. No Brasil, existem 41 ecovilas registradas (Global Ecovillage Network [GEN], 2021Global Ecovillage Network. (2021). What is an Ecovillage? https://ecovillage.org/projects/what-is-an-ecovillage/
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). Enquanto um modelo de comunidades intencionais, elas objetivam alcançar mudanças nas práticas em direção à sustentabilidade em suas dimensões sociais, culturais, ecológicas e econômicas (GEN, 2021Global Ecovillage Network. (2021). What is an Ecovillage? https://ecovillage.org/projects/what-is-an-ecovillage/
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). As ecovilas visam integrar todas as dimensões da sustentabilidade em uma abordagem de todo o sistema, buscando restaurar e regenerar seus ambientes sociais e naturais.

As pesquisas sobre relacionamento social e aprimoramento individual em ecovilas avançaram nos últimos anos como temas-chave. Alguns estudos analisaram como as pessoas em ecovilas desenvolvem práticas como autoconhecimento (Roysen & Mertens, 2019Roysen, R., & Merstens, F. (2019) New normalities in grassroots innovations: the reconfiguration and normalization of social practices in an ecovillage. Journal of Cleaner Production, 236, e117647. https://doi.org/10.1016/j.jclepro.2019.117647
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), resolução de conflitos e tomada de decisão (Chitawere, 2017Chitawere, T. (2017). Sustainable communities and green lifestyles: consumption and environmentalism. Routledge.), porém pouco tem se pesquisado sobre a subjetividade dos habitantes dessa modalidade de assentamento humano (Duarte & Ferreira Neto, 2021Duarte, L. G. M. F., & Ferreira Neto, J. L. (2021). Estudos sobre modos de governo e processos de subjetivação em ecovilas: uma revisão integrativa. Psicologia & Sociedade, 33, e236675. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2021v33236675
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).

Nesse sentido, este artigo pretende contribuir com o estudo sobre subjetividade dos moradores de ecovilas a partir do conceito de complexo cultural, advindo da Psicologia Analítica. A pesquisa foca nos complexos que emergiram em relação ao indivíduo, ao coletivo e à natureza, procurando entender como eles se desenvolveram e foram trabalhados.

O intuito deste estudo é contribuir com a Psicologia Analítica, que tem privilegiado a evolução individual e o processo de individuação, desde sua criação com Jung (1971/1991)Jung, C. G. (1991). Estudos sobre Psicologia Analítica, Vol. VII. Obras Completas. Editora Vozes. (Originalmente publicado em 1971). até os dias atuais (Stein, 2020Stein, M. (2020). Jung e o caminho da individuação: uma introdução concisa. Editora Cultrix.). Mesmo quando trabalha a relação com a natureza (Kiehl, 2020Kiehl, J. (2020). Engaging the Green Man, breaking our spell. In M. Dale (Ed.), Depth Psychology and climate change: the green book. Routledge.), relega a sociedade e os grupos, muitas vezes, ao status de sombra.

Para contrapor tal perspectiva, Singer e Kimbles (2020)Singer, T., & Kimbles, S. L. (2020). A teoria emergente dos complexos culturais, In J. Cambray & L. Carter (Orgs.), Psicologia analítica: perspectivas contemporâneas em análise junguiana. Editora Vozes. desenvolveram o conceito de complexo cultural. Para os autores, os complexos culturais estruturam a experiencia emocional pessoal e coletiva. Eles são um modo de descrever como crenças e emoções arraigadas operam na vida do grupo e teriam a função de mediar a relação entre o indivíduo e o coletivo.

Os estudos sobre complexos culturais têm se expandido, sendo utilizados, por exemplo, para analisar as mais diversas culturas, como as do Brasil (Boechat, 2014Boechat, W. (2014). A alma brasileira: luzes e sombra. Editora Vozes.), do México (López, 2010López, V. G. M. (2010). mexican wrestling: its compensatory function in relation to cultural trauma. Jung Journal, 4(4), 33-45. https://doi.org/10.1525/jung.2010.4.4.33
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) ou da Austrália (Mawby, 2019Mawby, A. (2019). Australia: shadow and cultural complex in the antipodes: what happened to us? Jung Journal, 13(1), 49-68. https://doi.org/10.1080/19342039.2018.1560797
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); ou mesmo alguns grupos, como povos indígenas (Oliveira, 2020Oliveira, H. (2020). Morte e renascimento da ancestralidade indígena na alma brasileira: psicologia junguiana e inconsciente cultural. Editora Vozes.) ou escravizados (Oliveira, 2018Oliveira, H. (2018). Desvelando a alma brasileira: psicologia junguiana e raízes culturais. Editora Vozes.). Contudo, ainda existe uma lacuna acerca de estudos que dissertem sobre como esses complexos se produzem em pequenos grupos, especialmente em comunidades intencionais, novas abordagens que pretendemos desenvolver aqui.

Complexo Cultural

Singer e Kimbles (2020)Singer, T., & Kimbles, S. L. (2020). A teoria emergente dos complexos culturais, In J. Cambray & L. Carter (Orgs.), Psicologia analítica: perspectivas contemporâneas em análise junguiana. Editora Vozes. desenvolveram o conceito de complexos culturais como sendo estes os responsáveis pela formação dos componentes essenciais de uma sociologia interior. Os complexos (Jung, 1971/1986) são entendidos aqui como a congregação de afetos, imagens, experiências, em torno de núcleos arquetípicos – padrões coletivos, abstratos e hipotéticos de comportamento (Jung, 1976/2006Jung, C. G. (2006). Os arquétipos e o inconsciente coletivo, Vol. IX/1, Obras Completas. Editora Vozes. (Originalmente publicado em 1976).) –, dispondo de certo grau de autonomia, capaz de direcionar a percepção e a atitude de cada indivíduo, para além de sua intenção consciente. No que tange aos complexos culturais, eles apresentarão composição semelhante, porém em nível coletivo, ou seja, referente às informações e às desinformações sobre as estruturas das sociedades, tais como foram vivenciadas ao longo da história de cada grupo específico (Singer & Kimbles, 2020Singer, T., & Kimbles, S. L. (2020). A teoria emergente dos complexos culturais, In J. Cambray & L. Carter (Orgs.), Psicologia analítica: perspectivas contemporâneas em análise junguiana. Editora Vozes.) – neste caso, as ecovilas.

Como apontou Jung em suas conferências de 1925, entre a psique individual e o inconsciente coletivo existem camadas intermediárias de culturas (família, tribo, nação) (Mcguire, 1989McGuire, W. (1989). Analytical psychology: notes of the seminar given in 1925. Princeton University Press.). Essas camadas da personalidade seriam compostas por representações provenientes das emoções vividas pelos sujeitos, mediadas pelas experiências de determinado grupo social e registradas na psique coletiva (Boechat, 2014Boechat, W. (2014). A alma brasileira: luzes e sombra. Editora Vozes.).

Como podemos compreender até então, os complexos culturais exercem um papel significativo na estruturação das experiências emocionais, atuando tanto em nível individual quanto coletivo (Singer & Kimbles, 2020Singer, T., & Kimbles, S. L. (2020). A teoria emergente dos complexos culturais, In J. Cambray & L. Carter (Orgs.), Psicologia analítica: perspectivas contemporâneas em análise junguiana. Editora Vozes.). Seguindo os autores, e para nós, como forma de instrumentalizar o conceito para a análise das vidas em ecovilas, os complexos culturais serão trabalhados como as crenças e as emoções sedimentadas no grupo, que funcionam autonomamente e que mediam a relação indivíduo/comunidade. Essa mediação se apresenta a partir do sentimento de pertencimento de um sujeito ao grupo no qual ele está inserido. Nesse sentido, os complexos culturais criam ressonâncias entre as pessoas envolvidas, criando um senso de familiaridade. No caso das ecovilas, é compreender como eles organizariam os moradores ao redor de expectativas coletivas, de sua autodefinição enquanto grupo, seu destino, unicidade e suas projeções e introjeções.

Método

A coleta de dados ocorreu em três ecovilas: uma situada no oeste da Suíça, outra no norte da Suíça e a terceira no sudeste do Brasil. O processo envolveu de dez a oito semanas de imersão em cada campo de pesquisa (janeiro / março, junho / agosto e outubro / novembro de 2019, respectivamente), observações participantes e entrevistas. Os autores compartilharam os resultados da pesquisa com os participantes.

O método de observação participante envolve a participação nas atividades diárias de um grupo para aprender os aspectos explícitos e implícitos de suas rotinas e cultura. Conforme apontado por Aagaard e Matthiesen (2015), esse método vai além do uso exclusivo da linguagem para a análise dos dados. Outra ferramenta é prestar atenção ao mundo material, aos corpos humanos e a outros objetos para aprender os significados embutidos na vida em grupo.

A observação participante permite comparar a subjetividade dos participantes e seus comportamentos, relatando suas crenças e ações. Ela ajuda a compreender os contextos físicos, sociais, culturais e econômicos em que vivem os participantes. É possível testemunhar relações entre pessoas, contextos, ideias, normas e eventos.

Os dados analisados dizem respeito à estrutura física e administrativa de cada ecovila e as relações dos moradores consigo, com os outros e com o ambiente. Todas as entrevistas foram gravadas e, posteriormente, traduzidas. Para fins de análise, os dados selecionados foram codificados dedutivamente em torno de três temas: 1) a emergência dos complexos; 2) como eles eram trabalhados; e 3) como eles se desenvolveram (Creswell, 2014Creswell, J. W. (2014). Investigação qualitativa e projeto de pesquisa: escolhendo entre as cinco abordagens. Artmed.).

A análise dos dados foi realizada a partir de uma perspectiva etnográfica, em que as interpretações foram realizadas com base na rotina e em eventos importantes de cada comunidade, apresentando diferentes perspectivas dos participantes em relação a cada um deles. Para fazer a comparação intercultural entre ecovilas, aplicamos à análise de perspectiva etnográfica a abordagem de estudo de caso, procurando semelhanças e diferenças entre os casos (Creswell, 2014Creswell, J. W. (2014). Investigação qualitativa e projeto de pesquisa: escolhendo entre as cinco abordagens. Artmed.).

Todos os moradores das ecovilas foram convidados a participar da pesquisa, e os que aceitaram o convite assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, submetido e aceito por Comitê de Ética, seguindo todos os preceitos éticos dos dois países (CAAE 89152318.5.0000.5137).

Análise das emergências dos complexos culturais

A partir dos dados da pesquisa, extraímos dois complexos culturais os quais denominamos de coletivo/individual e de gaia. Analisamos o material coletado em torno de três aspectos: 1) a emergência dos complexos culturais; 2) o trabalho com os complexos culturais; e 3) o desenvolvimento dos complexos culturais.

Complexo cultural individual / Coletivo

Apoiados nos dados coletados, conseguimos verificar que o complexo cultural individual/coletivo aborda tanto nuances do conflito entre individualidade e coletividade como a experiência de fazer parte de um grupo e se sentir só. Além disso, a hierarquia constitui parte da constelação desse complexo cultural.

A primeira ecovila é uma comunidade intencional, gerida por uma cooperativa. A comunidade localiza-se em uma casa na região oeste da Suíça, com fácil acesso ao transporte público e aos centros urbanos. Durante a observação, a população da casa era composta por 16 habitantes, em média, levando em consideração a rotatividade. Dentre todos os moradores, um era membro da cooperativa. No final do período de observação deste estudo, quatro dos dezesseis habitantes moravam há mais de seis meses na casa. A idade dos moradores variava de 1 a 60 anos.

Nesta ecovila, a aposta na mudança das relações comunitárias se dava por meio de um contrato social. O objetivo principal do contrato social era desenvolver uma noção de comunidade que “tivesse bases comuns, uma intenção comum e se adaptasse a contextos diferentes”, como afirmado por um membro da cooperativa. Para criar tais circunstâncias, a cooperativa pressupunha a reunião comunitária como momento principal de encontro e que a própria arquitetura, com a cozinha comunitária e menos espaços individuais, promovesse tais encontros. A ideia era propiciar uma esfera de comunhão, como um dos moradores mais antigos afirmava. A cooperativa, representada pelo morador mais antigo, previa que, com o tempo, a noção de “meu” se dissolvesse, surgindo um “nosso”, em que tudo pudesse ser compartilhado.

Contudo, ao longo da observação, isso não se confirmou. Em períodos de maior presença dos representantes da cooperativa na casa, as atividades eram mais reguladas, reforçando a hierarquia entre membros da cooperativa e apenas moradores, ocorrendo de forma mais individualizada. Na ausência dos representantes da cooperativa, os encontros na casa ocorriam de forma mais espontânea. Como aponta Duarte (2021)Duarte, L. G. M. F. (2021). Empowerment in an ecovillage: unveiling the role of power relations in social practices. Community Development, 52(5), 592-606. https://doi.org/10.1080/15575330.2021.1923045
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, a presença de vigília promove efeitos dissipadores em comunidades, enquanto a liberdade de encontros em um ambiente que ofereça tais condições auxilia no encontro e no investimento comunitário por parte de seus moradores.

As reuniões comunitárias, que ocorriam uma vez ao mês, representavam um espaço informativo. Durante os encontros, era repassado o que ocorria na comunidade. A abordagem mostrava-se mais preocupada com a técnica para redução de consumo do que em promover a reflexão e o desenvolvimento pessoal por parte dos habitantes.

Os entrevistados disseram que esses procedimentos centralizavam o poder de tomada de decisão nos cooperados. Isso mostrou-se presente durante uma reunião. Antes de iniciá-la, dois representantes da cooperativa (um morador e outro que cuidava da parte técnica) anunciaram que o equipamento de aquecimento seria modificado, porque o atual aquecia pouco. Eles criticavam a atitude dos moradores. Alguns tentavam questionar o fato de que não tiveram a chance de discutir sobre o assunto, porém eram rebatidos, com afirmações de que os responsáveis pelo projeto de aquecimento que decidiam.

Quando discussões surgiam durante as reuniões, os representantes da cooperativa reforçavam que o processo de tomada de decisão estava no contrato social. Eles justificavam essa escolha dizendo: “Não podemos deixar que todos os novos moradores tomem decisões que possam mudar toda a comunidade”. Para participar da tomada de decisão, era preciso morar na comunidade há, pelo menos, seis meses.

Como aponta Calland (2019)Calland, R. (2019). Race, power, and intimacy in the intersubjective field: the intersection of racialised cultural complexes and personal complexes. Journal of Analytical Psychology, 64(3), 367-385. https://doi.org/10.1111/1468-5922.12503
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, mesmo com a existência do desejo de amor, aqui, a de comunhão comunitária, muitas vezes é preciso lutar contra as estruturas de poder para desenvolvê-la. Nesse sentido, o representante da cooperativa decidia os temas a serem discutidos, e os moradores deveriam segui-los. Uma das moradoras afirmou em entrevista o seguinte: “Quando cheguei, gostaria de fazer algo para ajudar a comunidade, mas nunca sei como. Existem momentos em que as pessoas que não moram aqui têm mais poder do que nós que vivemos”. Algumas consequências do modelo de gestão baseado na normatividade vertical geravam uma insatisfação crescente entre os habitantes da cooperativa, ocasionando uma alta rotatividade de moradores.

Ao denominarmos o local como complexo cultural individual/coletivo, verificamos que, em vez de conseguirem desenvolver um complexo que promovesse a união do grupo, duas tradições se confrontavam na vivência da ecovila. Por um lado, a tradição da vida em comunidade impulsionava todos, cooperativa e habitantes, a buscarem um modelo de moradia e convivência que priorizasse o coletivo. Assim, moravam próximos e reuniam-se com frequência, porém, esse fenômeno acontecia sob a égide da cooperativa, que, na figura de seu coordenador, assumia um aspecto patriarcal. Diferente da afirmativa de Jung de que a alma europeia estava habituada à ordem patriarcal e de que sua ausência levaria a uma anarquia (Jung, 1941/1988Jung, C. G. (1988). A prática da psicoterapia, Vol. XVI. Obras Completas. Editora Vozes. (Originalmente publicado em 1941).), no presente caso, esse patriarcado, presente na incessante busca de submeter os coabitantes à lei, fragilizava os laços afetivos, e a ausência da figura patriarcal permitia a comunhão de seus membros.

A segunda ecovila encontra-se em um castelo do século XVIII, situado no norte da Suíça, a três quilômetros do centro da cidade. Ela foi formada por cinco grupos espirituais distintos que se uniram com a intenção de criar uma comunidade que promovesse “Encontros e consciência de si” sem terem um guia espiritual. Também foi criado um Centro de Seminários onde promoveriam workshops relacionados ao tema de desenvolvimento pessoal.

A população da ecovila era multigeracional (variando de 1 a 65 anos) e multicultural. À época, eram 57 moradores, 34 adultos e 23 crianças, que moravam na comunidade há 8 anos, em média.

Nesta ecovila, o foco principal era possibilitar aos indivíduos que trabalhassem suas próprias personalidades e relações interpessoais, sem desconsiderar a importância da coesão comunitária. Esse processo de autorreflexão seria a maior força coletiva que a ecovila poderia criar. Mesmo que, em sua época, Jung (1941/1988)Jung, C. G. (1988). A prática da psicoterapia, Vol. XVI. Obras Completas. Editora Vozes. (Originalmente publicado em 1941). privilegiasse apenas a psicoterapia, ele já ressaltava a importância do trabalho do indivíduo para o bem comum, já que é nele que floresce a vida.

Assim como na ecovila anterior, os moradores procuravam a vida na comunidade para fugir do isolamento vivido nos grandes centros, em busca de relações mais próximas que acreditavam existir na comunidade. Nesse momento, o complexo cultural coletivo/individual exigia um processo para que o indivíduo conseguisse viver na comunidade. Como aponta uma funcionária que trabalhava no Centro de Seminários: “Muitas pessoas se sentiram iludidas com a vida na comunidade. Elas achavam que chegariam aqui e nunca se sentiriam sozinhas. Não é verdade. Já vi pessoas se sentirem solitárias na comunidade e irem embora”. Já uma das moradoras mais recentes ressalta a alegria de viver na ecovila: “Percebi que sempre quando volto das férias, é assim: ‘Oh, oi!’ E todo mundo diz: ‘Como foi?’ Então é tipo ‘uau’ muitas pessoas aqui sabem onde eu estive, e estamos felizes”.

Percebemos que o complexo coletivo/individual aqui presente não diz respeito a uma perda de individualidade, mas, pelo contrário, é um coletivo que inclui o individual como parte essencial. Daí a nomenclatura complexo cultural coletivo/individual, pois um não se sobrepõe ao outro, mas os integra e permite o diálogo entre os pares de opostos, sendo interdependentes. E o que tornaria o espaço diferente em uma ecovila, em comparação com a sociedade em geral? No presente caso, trata-se do trabalho que os indivíduos e os grupos realizam sobre si mesmos em encontros regulares que denominavam como grandes círculos (semanais) e períodos intensivos (três vezes por ano).

O principal artifício ressaltado por muitos deles é o trabalho com a sombra. Um dos membros disse: “Acho que aprendi muito a falar sobre meu mundo interior. Isso também ajuda nos relacionamentos. Aceito as sombras melhor do que antes. Sombra significa qualidades e dificuldades que tenho comigo mesmo e outras pessoas”. A reflexão ocorre por meio do processo que eles chamam de espelhamento, quando aprendem com suas próprias projeções. O mesmo morador afirma: “Somos espelhados nessa comunidade. Em outras palavras, aqui aprendo, por exemplo, o que havia aprendido anteriormente e não avancei”. E nesse ponto, o trabalho em grupo se mostra muito efetivo em dois aspectos, tanto na integração dos moradores quanto no desenvolvimento individual.

Diferente da afirmação de Jung em carta a Illing (Hobson, 1964Hobson, R. F. (1964). Group dynamics and Analytical Psychology. Journal of Analytical Psychology, 9(1), 23-49. https://doi.org/10.1111/j.1465-5922.1964.00023.x
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), em que o autor afirmava que o grupo criava uma falsa sensação de segurança, comparando-o ao estatuto de pai ou mãe, a presente ecovila não apresenta por completo essa acolhida parental pressuposta pelo autor. Os efeitos de não desenvolvimento, mantendo a dependência, insegurança e infantilidade previstos, são expostos e passíveis de serem trabalhados pelo grupo, como aponta uma psicóloga que morava na comunidade: “Existem duas motivações para se morar em uma comunidade, uma consciente e outra inconsciente. E a inconsciente quase ninguém trabalha. […] Existem expectativas sobre o que os outros podem fazer sobre as próprias histórias infantis não resolvidas”. E essa é uma das principais fontes de conflitos na comunidade, que se modifica quando os sujeitos se dispõem a se tornar responsáveis por si e por suas funções. Como aponta a psicóloga, a comunidade se torna um espaço para “[...] se ir e se abrir, e se mostrar com todas as suas forças e fraquezas”.

O complexo cultural coletivo/individual media as relações dos indivíduos com o grupo. No momento em que gera o sentimento de acolhimento, exige a imposição de limites para não ser consumido pelo coletivo. “Para mim, viver em comunidade é criar barreiras. Eu sempre mantenho minha individualidade, para não me perder na comunidade”, dizia uma das moradoras. Por outro lado, os moradores não poderiam se fiar ao individualismo. Outra moradora afirmava o seguinte: “[...] para viver com outras pessoas, não se deve se apegar ao seu próprio ego. Você precisa reconfigurar sua mente em um ‘nós’ em vez de ‘eu’. E se isso acontecer, tudo influencia. Não é ‘meu’. É o ‘nosso’ jardim. É ‘nosso’ lugar. É ‘nossa’ comunidade. É a ‘nossa’ vida aqui. É ‘nossa’ responsabilidade”. Ou seja, viver o complexo coletivo/individual pressupõe lidar com a dualidade da existência de um grupo, com seus momentos de comunhão e outros de divisão, necessários tanto para os indivíduos quanto para a comunidade.

O desenvolvimento do complexo cultural coletivo/individual, que intenta integrar as duas características díspares na convivência do cotidiano, propondo a coexistência de ambas, apresentava aspectos semelhantes na terceira ecovila, situada no sudeste brasileiro, e na segunda.

A terceira ecovila, localizada no sudeste do Brasil, foi criada por um grupo de amigos que já realizavam muitas atividades de caráter comunitário em conjunto. Em determinado momento, eles resolveram estudar o modelo de vida das ecovilas.

A terceira ecovila encontra-se no sudeste do Brasil, em uma área de preservação ambiental a 16 km do centro de uma cidade de aproximadamente 5.000 habitantes. Durante a pesquisa, a comunidade era composta por oito moradores. A maioria deles tinha mais de quarenta anos. Havia também uma criança.

A primeira característica que podemos apontar desta semelhança em relação à segunda e à terceira ecovila é a dicotomia entre a comunhão dos membros e o sentimento de isolamento. Desde a criação do grupo, os membros fundadores realizavam diversas atividades chamadas comunitárias (moravam juntos, faziam brechós coletivos no bairro), que uniam as pessoas ao mesmo tempo que mantinham as suas individualidades. O ideal de construção da comunidade simbolizou tal aspecto, tendo o círculo inferior como o espaço comum, para as vivências em conjunto e as moradias na região do centro do morro, preservando a independência de cada um.

Nos momentos de eventos, ou quando a comunidade estava mais habitada, o sentimento de comunhão era mais presente. Quando havia mais residentes, os entrevistados realizavam reuniões regulares, tanto para realizar atividades de autorreflexão como para comer. Como pôde ser vivido pelo autor principal, no estágio do Gaia Education (para mais detalhes, ver <www.gaiaeducation.org>), ocorriam com frequência encontros para autorreflexão, como Fórum ZEGG. Durante o encontro, uma pessoa que se sinta impelida a falar vai ao centro e expõe seus sentimentos, pensamentos e vivências. Em seguida, três pessoas vão ao centro voluntariamente, uma de cada vez, para dizer como a fala reverberou nela, com o intuito de coletivizar os sentimentos e as vivências que até então eram consideradas individuais. Como apontam Odde e Vestergaard (2021)Odde, D., & Vestergaard, A. (2021). A preliminary sketch of a Jungian socio analysis – an emerging theory combining analytical psychology, complexity theories, sociological theories, socio- and psycho-analysis, group analysis and affect theories. Journal of Analytical Psychology, 66(2), 301-322. https://doi.org/10.1111/1468-5922.12667
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, os campos individuais e sociais emergem dos mesmos processos dinâmicos de relação e interação.

No entanto, assim como na ecovila do norte da Suíça, mesmo com o sentimento de comunhão promovido pelo grupo, a individualidade se impunha em três momentos. O primeiro diz respeito ao sentimento de solidão, agravada pela escassez de moradores e a arquitetura. Como apontou uma moradora “[...] acho que ecovila com pouca gente com casas afastadas gerou um pouquinho uma sensação de solidão”.

O segundo momento se refere à necessidade de impor limites. Como apontou um morador sobre o ritmo individual:

Eu tenho que encontrar o meu ritmo e manter o meu ritmo e dialogar com esse ritmo coletivo. Eu me organizar para estar no momento realmente importante e conseguir meu espaço pessoal. Esse é um aprendizado e todo mundo tem que passar quando muda para lá, separar coletivo do individual.

E o terceiro momento remete à necessidade de confrontar o próprio ponto de vista com o coletivo. Termos como “espelhamento” e “sombra” também surgiam. Uma das moradoras afirmou que:

Essa adaptação com o coletivo é o maior desafio aqui, para mim. Viver com todos e cada um diferente, entendendo sua atuação dentro do grupo e vendo como ela repercute no outro. Você tem que se rasgar e abrir-se para que a outra pessoa saiba o que você está pensando, porque se você não fizer isso, as coisas não acontecerão e a gente vai reproduzindo o que está lá fora.

Diferentemente do que a maior parte da literatura em Psicologia Analítica propõe, desde os escritos de Jung, sobre o fato de que a vida em grupo anularia a individualidade (Hobson, 1964Hobson, R. F. (1964). Group dynamics and Analytical Psychology. Journal of Analytical Psychology, 9(1), 23-49. https://doi.org/10.1111/j.1465-5922.1964.00023.x
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), as duas experiências mostram que o desenvolvimento do complexo cultural coletivo/individual exige dos participantes de determinado grupo a vivência tanto da comunhão e sedução coletiva quanto o autoconhecimento e a solidão da individualidade. Por outro lado, corroborando a ideia do próprio autor, apenas com a disposição de cada um em trabalhar sua própria individualidade é que as características do complexo se aproximam da consciência, possibilitando maior manejo das situações. Para que isso ocorra, as relações de hierarquia precisam ser mais maleáveis, sendo necessário o trabalho subjetivo de cada indivíduo. Assim, a vivência em grupo é primordial, pois nela surgem as projeções e as sombras, sendo certo que cada um tem a chance de ampliar mais sua consciência, fortalecendo cada indivíduo e o coletivo simultaneamente.

Complexo cultural de Gaia

Assim como o complexo analisado na seção anterior, o complexo cultural de Gaia também apresenta duas polaridades. A partir das observações em ecovilas, verificamos que este complexo pode emergir em um polo através do consumo de recursos provindos do meio ambiente ou no outro polo como uma identificação com os ciclos naturais.

Na primeira ecovila, a redução do impacto ambiental estava intimamente ligada à estrutura física da construção. A casa era construída basicamente de madeira. Apenas o primeiro andar era construído com concreto, devido às exigências de segurança do cantão. O restante da construção da casa era norteado pelos preceitos da bioconstrução. O aquecimento da casa era feito à base de pellets (grãos de madeira), que utiliza menos recursos naturais que o aquecimento fornecido pelo cantão, que era à base de óleo e energia nuclear. Com essa estrutura, a casa recebeu o rótulo suíço de sustentabilidade (Minergie).

No que dizia respeito ao comportamento pró-ambiental, as opiniões dos moradores divergiam. Para alguns, a estrutura criada pela cooperativa permitia que se sentissem mais ecológicos. Isso porque consumiam alguns alimentos em conjunto e de produtores locais, além de proporcionar o uso mais otimizado dos espaços físicos.

A logística proposta pela cooperativa incluía a compra de legumes orgânicos de uma fazenda local. Esses legumes eram comprados a partir de um caixa comum e poderiam ser consumidos por todos que estivessem na casa, tanto os moradores quanto os cooperados em serviço. Nesse sentido, um dos moradores que era arquiteto disse: “Aqui eu me sinto mais ecológico, pois compartilhamos os legumes e compramos a comida orgânica de um fazendeiro local”.

Para outro morador, que também trabalhava na construção da casa, a bioconstrução da ecovila era exemplar. Ele afirmou que “Aqui eu aprendi muito sobre bioconstrução. Eu pretendo usar os conhecimentos para fazer a minha própria comunidade com alguns amigos”.

Por outro lado, no que diz respeito ao comportamento pró-ambiental individual dos moradores, a opinião era o contrário. Isso porque o consumo individual de alimentos e meios de transporte permanecia semelhante ao que tinham antes de entrarem na comunidade. Um dos moradores, que era engenheiro, dizia que “Aqui não é o top de sustentabilidade. Existem projetos melhores. Aqui cada um tem seu carro. Além de que consumimos como fazíamos antes, sem nos preocuparmos com a sustentabilidade”.

Podemos analisar que o modelo de relação com a natureza era fundado em uma construção ecologicamente eficiente e em normatividades. Com isso, afirmamos que a estrutura da ecovila promove uma plataforma na qual as pessoas não precisam refletir para ter comportamentos pró-ambientais em seu cotidiano, visto que a estrutura é energeticamente eficiente. Contudo, os comportamentos que dependiam da reflexão e da escolha individual não eram alterados, pois as pessoas não eram levadas a refletir sobre a própria atitude e o comportamento dentro de tal estrutura.

Na segunda ecovila, mesmo tendo o desenvolvimento pessoal e social como o foco principal da comunidade, o desenvolvimento ecológico aparece como um preceito da ecovila, tendo seus efeitos e resultados.

A estrutura física dos edifícios era um dificultador para a renovação estrutural, visando ao uso mais eficiente dos recursos naturais. Desejava-se criar captação de água de chuva e mudar a forma de aquecimento dos prédios, mas não havia recurso financeiro suficiente para fazê-los. Por outro lado, a vida comunitária, com os processos de autorreflexão promovidos nos encontros, facilitava a criação de projetos ambientalmente sustentáveis. Os moradores criaram em conjunto a horta de permacultura, que atendia aos moradores e um pequeno mercado de comida orgânica dentro da própria comunidade, voltado para o consumo interno.

Em nível individual, a vida comunitária produzia efeitos, no que diz respeito ao consumo. Mesmo considerando-se consumidores de poucos recursos, muitos diziam que a vida em comunidade os tornava mais críticos sobre seu consumo. Eles diziam comprar menos por impulso e mais pela necessidade que tinham. Conforme um dos fundadores da comunidade afirma: “Acho que a última coisa que comprei foi há dois anos ou algo assim. Mas eu cheguei tarde demais. Então o que sobrou foram calças com tamanhos grandes. Eu apenas desisti. Eu não preciso disso”.

Segundo os entrevistados, essa postura deve-se tanto pelo nível de contentamento com a vida e ressignificação do propósito de cada coisa quanto pela menor necessidade de se apresentar de forma impecável para as outras pessoas. Uma das moradoras mais recentes disse: “Então, quando você está contente com as coisas, não é importante como elas são. Agora eu realmente comecei a apreciar as coisas pelo seu propósito”.

Ter uma horta de permacultura e o mercado na comunidade também promovia novas experiências. A ida à cidade tornava-se menos necessária, diminuindo o consumo de combustível e de produtos industrializados. A responsável pela horta de permacultura conta essa experiência: “A horta de permacultura mudou muito o meu consumo. Agora é bem diferente. Eu percebi também que não fazia sentido comprar algo que vinha de tão longe para comer no inverno. Então eu fiquei mais consciente sobre a alimentação”.

Ainda assim, algumas pessoas sentiam que a vida em comunidade havia alterado pouco o seu consumo. Nessas situações, elas preferiam preservar a sua individualidade e focar na preservação do seu próprio estilo, como aponta uma das moradoras: “Meus hábitos não mudaram muito. Na minha lista de prioridade está a aparência do meu apartamento. Nós o reformamos e pintamos novamente, deixando tudo bonito e chique”. Mesmo com a horta de permacultura, nem todos utilizavam essa possibilidade. A responsável pelo projeto se surpreendia: “Não entendo alguns moradores. Eles até investem financeiramente no projeto, mas nunca os vi aqui para pegar alguma verdura. Ao menos eles ajudam aos outros que precisam mais”. Mesmo com posturas distintas quanto ao modelo de consumo, isso não se tornava conflito entre os moradores. A tendência da maioria era a reflexão maior sobre seus comportamentos em direção à redução do impacto ambiental, respeitando a individualidade de cada pessoa.

Como aponta Han-Pile (2016)Han-Pile, B. (2016). Foucault, normativity and critique as a practice of the self. Continental Philosophy Review, 49, 85-101. https://doi.org/10.1007/s11007-015-9360-2
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, as práticas de autorreflexão, como os círculos de reflexão, os períodos intensivos promovidos pela comunidade e as atividades comunitárias, como o cultivo coletivo da horta e a limpeza e organização dos prédios, favorecem o exercício da crítica ou da autocrítica. Permitem a desidentificação com uma forma de subjetividade, promovendo a construção de novos modos de existência. No caso da presente ecovila, essas práticas fizeram com que os habitantes superassem, em certa medida, as influências das normas e da identidade social em seus comportamentos pró-ambientais. As emoções e a moral individual ganharam mais relevância nas tomadas de decisões, fazendo com que os moradores criticassem e reduzissem suas necessidades de consumo.

Constatamos que a relação com a natureza da presente ecovila também se baseava no consumo. Mesmo que existisse o trabalho de cada indivíduo consigo, a relação com o meio ambiente ainda girava em torno da redução de recursos. Podemos afirmar que, nesse contexto, os comportamentos pró-ambientais estão ligados à autorreflexão, à autocrítica e às decisões pessoais. Não queremos dizer que todo o comportamento depende apenas da iniciativa individual, mas que, mesmo com as limitações das estruturas, os sujeitos se põem a refletir sobre seu comportamento, na construção de uma vida ética, compatível com a moral ambiental que eles desejam seguir.

Já os moradores da terceira ecovila diziam seguir os preceitos da permacultura. Isso significa que procuravam utilizar os recursos naturais com o intuito de não os esgotar, preservando-os ou mesmo regenerando-os. Uma moradora explicava essa reflexão sobre a relação indivíduo e natureza: “Viver na ecovila é viver num lugar que tem um modelo pensado para ser integrado com a natureza. Modelo em que a gente se vê como parte da natureza”. Ela acrescenta: “tudo aquilo que a gente consome a gente devolve para a natureza de uma forma limpa, o máximo possível, em comparação ao nosso mundo contemporâneo”.

Na visão dos entrevistados, a criação da ecovila visava recriar um sistema de vida que responsabilizasse seus moradores no que tange à preservação da natureza e proporcione aprendizado. Nesse novo sistema, eles eram utilizadores mais reflexivos dos recursos naturais e da estrutura física. Para eles, o modelo de vida que criaram era um processo de problematização constante das próprias ações. Eles gostariam de criar um sistema que fosse exemplo para outras pessoas. Essa reflexão constante os levava a desnaturalizar seu modelo de consumo, compreendendo que era possível criarem modos de vida mais sustentáveis ecologicamente, como aborda uma das fundadoras:

É conseguir estar mais responsável pela minha própria pegada ecológica, mais consciente dela. Eu saio, eu me retiro de um sistema onde eu compulsoriamente tenho que utilizar de coisas que eu não acredito e não concordo. Vou buscar uma minimização de impacto e acho que a gente que está aqui tem muito um perfil da educação junto, de buscar experimentar coisas para que isso seja olhado e replicado.

O constante questionamento da sustentabilidade das práticas levava à transformação na forma de refletir a relação com a natureza e no comportamento pró-ambiental. Esse questionamento promovia um processo de desaprendizagem e reaprendizagem, ou seja, de desidentificação com uma forma de subjetividade para a construção de outra mais coerente com o projeto (Han-Pile, 2016Han-Pile, B. (2016). Foucault, normativity and critique as a practice of the self. Continental Philosophy Review, 49, 85-101. https://doi.org/10.1007/s11007-015-9360-2
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). Eles desenvolviam complexos que os levavam a se perceber como parte da natureza, e não mais como sujeitos distintos do meio natural, consumidores de recursos.

Os moradores da ecovila utilizavam diversas estratégias para mudar sua relação com a natureza. Eles utilizavam de normas e dos princípios de permacultura para definir o que seria mais ecológico para a comunidade e para que pudessem reger a vida comunitária, realizando práticas de autorreflexão (como encontros e diálogos – seja em sala, seja em contato com o meio ambiente) tanto em nível reflexivo como prático. Esse modelo promoveu resultados ambientais perceptíveis, como a mudança de hábitos de consumo e a preservação e a regeneração da vegetação no entorno, além de modificar a noção de existência dos habitantes, que se sentiam parte constituinte da natureza. Uma das mais antigas moradoras dizia: “[...] somos o elemento autorreflexivo da natureza”.

Do cotidiano da terceira ecovila emergiu um complexo cultural de Gaia em que os habitantes se viam em outro tipo de relação com a natureza. Por um lado, os comportamentos pró-ambientais estão ligados a uma estrutura que exige de seus moradores determinadas ações e reflexões sobre o tema da sustentabilidade ambiental. Por outro, o funcionamento dessa estrutura dependia da autorreflexão e da autoexperimentação dos habitantes em interação direta com o meio ambiente.

A comparação das três ecovilas ressaltou a importância das práticas de si no desenvolvimento dos complexos culturais de Gaia. Diferentemente do que aponta Kiehl (2020)Kiehl, J. (2020). Engaging the Green Man, breaking our spell. In M. Dale (Ed.), Depth Psychology and climate change: the green book. Routledge., não é só pela autorreflexão individual, como por exemplo, a imaginação ativa, que se chega a uma nova perspectiva sobre a relação homem e natureza. As estruturas físicas e de normas sociais se apresentaram como facilitadoras ou dificultadoras da execução dessa modalidade de comportamento. Considerando ainda as estruturas da comunidade, foram os exercícios dos habitantes das ecovilas sobre si mesmos que possibilitaram a mudança de atitude e comportamento individuais em prol da preservação e recuperação do meio ambiente.

Conclusão

Baseados nas observações participantes, conseguimos comprovar como a vida em ecovilas possibilita o desenvolvimento de novos complexos culturais. Além disso, verificamos que, para além dos aspectos históricos, os complexos culturais são atualizados na vida cotidiana, a partir do trabalho que cada indivíduo faz sobre sua própria subjetividade, especialmente quando em contato com o grupo a que pertence.

Por um lado, pudemos averiguar que a vida em comunidade não leva exclusivamente a uma submissão ao coletivo, mas que a dicotomia entre individualidade e coletividade é ativada na vivência comunitária, que denominamos como complexo cultural individual/coletivo. A mesma situação ocorre com o complexo cultural de Gaia, que faz emergir duas formas de se relacionar com a natureza: por um lado, em forma de consumo; por outro, como uma integração ao ritmo da natureza. Porém, como as experiências empíricas nos mostram, apenas o árduo trabalho de autorreflexão de cada indivíduo nos encontros comunitários é que permitiu a integração desses complexos, possibilitando uma negociação melhor entre os polos opostos de cada um.

Dado o escopo deste trabalho e a recente experiência das ecovilas, ainda não podemos verificar como essas vivências deixam, ou não, registros inconscientes, para maior integração dos complexos presentes nas relações dos indivíduos com a coletividade e o meio ambiente. Para tal, mais pesquisas que abordem esses aspectos e o desenvolvimento de complexos culturais na atualidade se tornam necessárias, para aprofundar e ampliar o conceito de complexos culturais.

  • Como citar este artigo: Duarte, L. G. M. F., Barçante, H., & Bragança e Moreira, J. (2023). Emergência dos complexos culturais nas ecovilas: estudos etnográficos Brasil/Suíça. Estudos de Psicologia (Campinas), 40, e210139. https://doi.org/10.1590/1982-0275202340e210139
  • Suporte

    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Código de financiamento 001 (subsídio nº 88881.188851 / 2018-01).

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Editado por

Editor responsável

Raquel Souza Lobo Guzzo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Ago 2021
  • Aceito
    30 Maio 2022
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