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Avaliação de diferentes parâmetros para interpretar a necessidade de descanso em ergonomia

Resumos

INTRODUÇÃO: A Escala de Necessidade de Descanso (Enede) tem sido amplamente utilizada na ergonomia. No entanto, não há ponto de corte validado na literatura que permita identificar de forma consensual altos níveis de necessidade de descanso. OBJETIVO: Comparar a utilização de diferentes parâmetros matemáticos para interpretação dos dados da Enede, sendo eles tercil, quartil e média, assim como pontos de corte já sugeridos pela literatura, no sentido de investigar o comportamento desses parâmetros na identificação de altos níveis de necessidade de descanso. MATERIAIS E MÉTODOS: Participaram do estudo 679 trabalhadores, sendo 192 trabalhadores da indústria, 128 profissionais de enfermagem e 359 operadores de teleatendimento. A coleta de dados foi realizada pela aplicação de questionários. RESULTADOS: A distribuição dos resultados variou consideravelmente entre os grupos. As separatrizes definidas com base na distribuição dos dados (tercil e quartil) apresentaram valores semelhantes a alguns pontos de corte descritos na literatura. Os diferentes pontos de corte propostos pela literatura não identificaram quantidades similares de trabalhadores com altos níveis de necessidade de descanso. A distribuição não normal de duas das populações mostrou que a média pode não ser um parâmetro adequado. DISCUSSÃO E CONCLUSÕES: Os diferentes parâmetros matemáticos utilizados para identificar altos níveis de necessidade de descanso não conduziram a resultados equivalentes, sugerindo cautela na sua seleção. Até que estudos com maiores populações estejam disponíveis, a utilização da própria distribuição dos dados de um grupo é mais recomendada que a utilização de pontos fixos para identificar altos níveis de necessidade de descanso.

Fadiga; Valores de referência; Parâmetros; Trabalhadores; Prevenção primária


INTRODUCTION: The Need for Recovery Scale (NFR) has been widely used in Ergonomic studies. However, there is no consensual cutoff point in the literature to identify high levels of need for recovery. OBJECTIVE: To compare the results from different mathematical parameters used to interpret the levels of need for recovery, among them, tertile, quartile and mean, as well as the cutoff values already suggested in the available literature in order to investigate how these parameters will identify high levels of need for recovery. MATERIALS AND METHODS: A total sample of 679 workers participated in this study. Of this total, N = 192 were industrial workers, N = 128 nursing professionals and N = 359 call-center operators. Data collection was performed by means of questionnaires. RESULTS: The data distribution varied widely between groups. The cutoff points determined considering data distribution (tertile and quartile) presented similar values to few of cutoff points proposed by the literature. Divergent number of workers with high levels of need for recovery was identified using the different values of cutoff points proposed by the literature. The non-normal distribution of two worker groups indicated that the mean may not be an adequate parameter for all populations. DISCUSSION AND CONCLUSIONS: The mathematical parameters used to identify high levels of need for recovery led to different results, suggesting caution when selecting a method of evaluation. Inasmuch results from larger studies are not available, the use of the own data distribution parameters for each group is recommended instead of cutoff points already available in the literature.

Fatigue; Reference values; Parameters; Workers; Primary prevention


ARTIGOS ORIGINAIS

Avaliação de diferentes parâmetros para interpretar a necessidade de descanso em ergonomia

Cristiane Shinohara MoriguchiI; Taísa TrevizaniII; Ana Beatriz de OliveiraIII; Helenice Jane Cote Gil CouryIV

IDoutora em Fisioterapia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), professora voluntária do Departamento de Fisioterapia da mesma instituição, São Carlos, SP Brasil, e-mail: crisshinohara@gmail.com

IIAcadêmica do curso de Fisioterapia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, SP Brasil, e-mail: tfisio09@gmail.com

IIIDoutora em Fisioterapia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), professora adjunta do Departamento de Fisioterapia da mesma instituição, São Carlos, SP Brasil, e-mail: biaoliveira@gmail.com

IVDoutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professora titular do Departamento de Fisioterapia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, SP Brasil, e-mail: helenice@ufscar.br

RESUMO

INTRODUÇÃO: A Escala de Necessidade de Descanso (Enede) tem sido amplamente utilizada na ergonomia. No entanto, não há ponto de corte validado na literatura que permita identificar de forma consensual altos níveis de necessidade de descanso.

OBJETIVO: Comparar a utilização de diferentes parâmetros matemáticos para interpretação dos dados da Enede, sendo eles tercil, quartil e média, assim como pontos de corte já sugeridos pela literatura, no sentido de investigar o comportamento desses parâmetros na identificação de altos níveis de necessidade de descanso.

MATERIAIS E MÉTODOS: Participaram do estudo 679 trabalhadores, sendo 192 trabalhadores da indústria, 128 profissionais de enfermagem e 359 operadores de teleatendimento. A coleta de dados foi realizada pela aplicação de questionários.

RESULTADOS: A distribuição dos resultados variou consideravelmente entre os grupos. As separatrizes definidas com base na distribuição dos dados (tercil e quartil) apresentaram valores semelhantes a alguns pontos de corte descritos na literatura. Os diferentes pontos de corte propostos pela literatura não identificaram quantidades similares de trabalhadores com altos níveis de necessidade de descanso. A distribuição não normal de duas das populações mostrou que a média pode não ser um parâmetro adequado.

DISCUSSÃO E CONCLUSÕES: Os diferentes parâmetros matemáticos utilizados para identificar altos níveis de necessidade de descanso não conduziram a resultados equivalentes, sugerindo cautela na sua seleção. Até que estudos com maiores populações estejam disponíveis, a utilização da própria distribuição dos dados de um grupo é mais recomendada que a utilização de pontos fixos para identificar altos níveis de necessidade de descanso.

Palavre-chave: Fadiga. Valores de referência. Parâmetros. Trabalhadores. Prevenção primária.

Introdução

O perfil de adoecimento dos trabalhadores tem sido modificado devido ao estresse e à fadiga mental gerados pelo trabalho (1, 2). Esse fato pode ser verificado pela maior demanda de auxílio-doença acidentário relacionado a transtornos mentais e comportamentais em levantamentos nacionais recentes (3). Contrariamente à tendência de queda no número de ocorrências acidentárias mais gerais, os auxílios ligados a esses transtornos têm aumentado e já são a terceira causa mais frequente das concessões (3).

Os efeitos do acúmulo da fadiga devido à sobrecarga mental do trabalho podem contribuir para a ocorrência de diversos problemas, dentre eles, os distúrbios relacionados à saúde mental e psicossomáticos (4). Além dos prejuízos para os indivíduos, a fadiga também pode trazer consequências econômicas, tais como maiores índices de absenteísmos e de acidentes de trabalho, aposentadoria por invalidez, perda da capacidade para o trabalho, diminuição da eficiência (5, 6, 7) e, consequentemente, queda na produtividade (8). Assim, a tentativa de redução da fadiga torna-se um fator crucial para a qualidade de vida dos indivíduos, para as empresas e para o sistema previdenciário e de saúde, que podem atuar de forma preventiva, intervindo antes da manifestação de doenças, ou no sentido de impedir sua evolução.

Assim sendo, ferramentas que possam auxiliar na identificação precoce de situações em que haja acúmulo de fadiga em trabalhadores podem ser bastante úteis para serviços de saúde ocupacional. Para avaliar a fadiga no ambiente de trabalho, diversos questionários têm sido propostos pela literatura (9). Dentre os instrumentos disponíveis, a Need for Recovery Scale (NFR) é uma ferramenta economicamente viável, de simples aplicação e capaz de avaliar os sintomas iniciais da fadiga no trabalho, os quais precedem o desenvolvimento de exaustão emocional, distúrbios de sono e sintomas psicossomáticos (10, 11). Esse questionário foi traduzido e validado para a Língua Portuguesa do Brasil como Escala de Necessidade de Descanso (Enede) (12).

A necessidade de descanso tem sido avaliada em diversas populações de trabalhadores com diferentes objetivos. Em estudos transversais, a escala foi utilizada para avaliação da prevalência de necessidade de descanso em trabalhadores (13), como também para verificar a associação da necessidade de descanso com o estresse ocupacional (14), ansiedade, depressão, procura por assistência médica (15), insônia (16) e com fatores individuais (17, 18, 19). A escala também tem sido usada para comparação da necessidade de descanso entre gêneros, diferentes tipos de trabalho (11, 19), ou diferentes exposições a fatores de risco, como longas jornadas de trabalho e quantidade de dias trabalhados por semana (20). Em estudos longitudinais, a escala tem sido utilizada para verificar o risco de que grupos com alta necessidade de descanso possam vir a desenvolver problemas cardíacos (21), problemas gerais de saúde (11) e sofrer acidente de trabalho (7); ainda, para verificar a efetividade de intervenções ergonômicas na redução da necessidade de descanso (22). Com base nesses estudos, pode-se constatar o amplo uso da Enede como uma ferramenta útil na identificação de sintomas iniciais de fadiga em trabalhadores, visando a prevenção ou reabilitação em saúde ocupacional.

Apesar de seu amplo uso como ferramenta em situações ocupacionais, ainda não existe um valor de referência descrito na literatura, expresso por um ponto de corte validado, para identificação de grupos com altos níveis de necessidade de descanso (23). Nos estudos prévios disponíveis, diversos pontos de corte foram sugeridos para a avaliação do que poderia ser considerado alto nível de necessidade de descanso. A diversidade nos valores propostos pode estar relacionada à falta de padronização dos métodos utilizados para essa determinação. Kiss e De Meester (24) utilizaram como ponto de corte o valor de 50, mas não apresentam justificativa para esta escolha. Já em estudo posterior, esse mesmo grupo utilizou um ponto de corte inferior, de 45, estabelecido com base na análise da sensibilidade e especificidade da escala para prever casos de desenvolvimento de queixas psicossomáticas a longo prazo (17), no entanto, os valores propostos não são discutidos comparativamente. Níveis ainda mais baixos, como 36, também foram sugeridos, com base em entrevistas com sindicatos, profissionais da saúde, representantes de empresas e pesquisadores (23). Enquanto que De Raeve et al. (25) e Verdonk et al. (13) utilizaram um ponto de corte maior, de 54. Se, de um lado, De Raeve et al. (25) justificam a escolha com base na distribuição dos dados da população holandesa (terço superior), Verdonk et al. (13) se basearam na análise da sensibilidade e especificidade da escala para prever casos que receberiam tratamento por queixas psicológicas.

Como não há um consenso sobre o ponto de corte, alguns autores, quando utilizam a Enede como variável dicotômica em sua análise, têm adotado a própria distribuição dos dados para estabelecer o parâmetro de corte, utilizando para isso os valores de tercil e quartil principalmente (7, 16, 26). Por outro lado, há autores que também utilizam a Enede como variável contínua para efetuar a comparação entre médias ou em regressões lineares e correlações (20, 27). A escolha arbitrária do parâmetro pode ser vista no estudo de De Croon, Sluiter e Frings-Dresen (28), em que os autores classificam a necessidade de descanso tanto em três níveis (baixo, médio e moderado), com base nos tercis para calcular o risco de afastamento por meio do odds ratio, como também a consideram como variável contínua e utilizam o teste t de Student para comparar a necessidade de descanso encontrada em duas avaliações consecutivas. No estudo de Kant et al. (29), os autores identificam altos níveis de necessidade de descanso com base no quartil superior para avaliar prevalência e incidência acumulada de fadiga, e também utilizam a correlação de Pearson para verificar correlação entre o Enede e outras variáveis do estudo. Dessa forma, o que se verifica é uma ausência de consenso na escolha do parâmetro utilizado. Os autores também não justificam as razões utilizadas para a adoção de um determinado parâmetro, ou mesmo discutem, comparativamente, os seus resultados neste contexto.

Para explorar os resultados do uso dos diferentes parâmetros na identificação de trabalhadores com altos níveis de necessidade de descanso, três populações de trabalhadores submetidas a diferentes sobrecargas de trabalho foram avaliadas no presente estudo. Operadores de teleatendimento, que apresentam trabalho sedentário com alta demanda mental (30), profissionais de enfermagem e trabalhadores da indústria, que apresentam trabalho com alta demanda física e mental (19, 31), foram aqui avaliados por meio da Enede. Portanto, o objetivo do presente estudo foi comparar a utilização de diferentes parâmetros matemáticos de avaliação, sendo eles tercil, quartil, média; e pontos de corte já sugeridos pela literatura, no sentido de investigar o comportamento desses parâmetros na identificação de altos níveis de necessidade de descanso.

Métodos

Sujeitos

Participaram do presente estudo 679 trabalhadores (média de idade de 31 ± 9 anos). Dentre eles, 192 eram profissionais da indústria (média de idade de 34 ± 8 anos), 128 eram profissionais de enfermagem (média de idade de 35 ± 10 anos) e 359 eram operadores de teleatendimento (média de idade de 27 ± 8 anos).

Aspectos éticos

Todos os trabalhadores foram informados previamente dos procedimentos da pesquisa da qual fariam parte, leram e assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para participar do estudo. A participação dos trabalhadores foi voluntária e livre de qualquer ônus, e a pesquisa foi realizada durante o expediente regular de trabalho. O estudo obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade (CAAE 1080.0.000.135-10, Parecer n. 154/2010).

Procedimentos

A coleta de dados foi realizada por meio da aplicação de dois questionários. O primeiro coletou dados demográficos e ocupacionais dos trabalhadores. O segundo questionário apresentava a versão da Enede traduzida e adaptada culturalmente para o português do Brasil (12).

Os questionários foram respondidos no próprio local de trabalho, após explicação sobre como respondê-los, sobre a importância de todas as questões serem respondidas e da confidencialidade das respostas.

Ferramentas utilizadas

A Enede é uma escala autoexplicativa, com 11 questões objetivas, com quatro alternativas de resposta. As alternativas de resposta são pontuadas pelo método de Likert (nunca = 0, algumas vezes = 1, frequentemente = 2 e sempre = 3), com exceção da quarta questão que apresenta pontuação invertida. A pontuação total da Enede varia entre 0 e 33, que é transformada por regra de três simples em uma maior a pontuação, maiores os sintomas de fadiga apresentados pelo trabalhador (12).

Indivíduos que não responderam cinco ou mais questões foram excluídos do estudo, e os indivíduos que não responderam quatro ou menos questões tiveram sua pontuação ajustada proporcionalmente ao número de questões respondidas (20).

Análise dos dados

Com base nos parâmetros já utilizados pelos estudos disponíveis na literatura para identificação de grupos de risco quanto à necessidade de descanso (tercil, quartil, média e pontos de corte), foi realizada análise descritiva dos resultados obtidos pelas populações avaliadas no presente estudo.

Para cada grupo de trabalhadores, foram determinados o tercil (26, 28) e o quartil superiores (29, 32) para identificação das separatrizes que delimitam os 33% e 25% de maiores níveis de necessidade de descanso, respectivamente. Para determinação das separatrizes, a partir do tercil e quartil superiores, os dados foram ordenados e, depois, foram identificados os valores de necessidade de descanso que separavam, respectivamente, os 33% e 25% maiores valores encontrados na amostra avaliada. Como em distribuições assimétricas, o intervalo interquartílico é o que melhor representa a variabilidade dos dados (33), o quartil inferior também será apresentado.

Como medidas de tendência central foram utilizadas a média e a mediana. A média foi apresentada por ser a medida de tendência central mais utilizada para representação de dados (33), e também por ser um parâmetro utilizado em estudos prévios para a representação da necessidade de descanso (20). No entanto, embora versátil, a média sofre maior influência de valores extremos em relação à mediana (34). Dessa forma, a mediana compreende a medida da tendência central mais indicada para distribuições assimétricas (35), e, portanto, também foi apresentada.

Com base nos parâmetros de corte descritos na literatura, os trabalhadores foram classificados em duas categorias (alto e baixo nível de necessidade de descanso). Os pontos de corte utilizados foram: 36 (23), 45 (17), 50 (24) e 54 (13, 25).

Diagramas de caixas com apresentação dos valores de tercil e quartil associados aos pontos de corte da literatura foram apresentados para permitir a visualização da equivalência entre esses parâmetros (Gráfico 1). A distribuição das frequências absolutas de necessidade de descanso associadas às médias e medianas para cada população também foi calculada (Gráfico 2). Diagramas de caule e folhas também foram apresentados (Tabela 2) para melhor visualização de ocorrências repetidas para alguns valores dos resultados.



Alguns estudos também têm considerado os resultados da escala de necessidade de descanso como uma variável quantitativa contínua, com uso de testes estatísticos como t de Student, ANOVA e correlação de Pearson para análise dos dados e não como variável ordinal ou dicotômica (11, 15, 22, 27). Assim, foi utilizado o teste de KolmogorovSmirnov para testar a normalidade dos dados de cada população de trabalhadores. Os dados foram analisados a partir do pacote estatístico SPSS v.11.5 (SPSS Inc., Chicago, IL, USA) e os gráficos foram plotados no programa SigmaPlot.

Resultados

Os pontos de corte de 36, 45, 50 e 54 conduziram a diferentes números de trabalhadores classificados como de alto nível de necessidade de descanso em cada uma das três populações avaliadas (Tabela 1). Por outro lado, um mesmo valor fixo de corte variou consideravelmente na identificação de altos níveis de necessidade de descanso entre as populações devido à diferente distribuição dos dados que estas apresentaram.

Outro aspecto que chama a atenção é a insensibilidade de alguns pontos de corte aos diferentes valores apresentados por cada uma das populações. Para os operadores de teleatendimento, todos os pontos de corte maiores ou igual a 45 não foram sensíveis para categorizar a necessidade de descanso (Tabela 1). Por outro lado, o ponto de corte de 36 classificou com alta necessidade de descanso mais da metade dos trabalhadores da indústria e profissionais de enfermagem.

As separatrizes determinadas pelo tercil e quartil superiores apresentaram valores equivalentes aos valores de alguns pontos de corte descritos previamente na literatura (Gráfico 1). No entanto, essas equivalências variaram entre parâmetros e populações. Isso pode ser ilustrado pelo fato de que, para os operadores de teleatendimento, que em termos gerais apresentaram os menores valores de Enede, houve coincidência entre o valor do tercil superior e o ponto de corte de 36; para os profissionais da enfermagem, houve equivalência entre o valor do quartil superior e o ponto de corte de 50; enquanto que para os trabalhadores da indústria, que comparativamente apresentaram os maiores valores da Enede, houve equivalência entre o tercil superior e o ponto de corte de 50. Assim, não houve uma tendência comum entre os parâmetros de separatriz e os pontos de corte disponíveis na literatura. No entanto, parece ter havido uma relação de dependência entre as médias gerais da Enede e alguns dos pontos de corte, no sentido de que pequenos valores de necessidade de descanso apresentados pela população se correspondiam com menores pontos de corte e vice-versa, sugerindo uma relação parâmetro-dependente.

Por meio do Gráfico 1 verifica-se também maior variabilidade dos dados dos trabalhadores da indústria, que apresentaram maior valor de intervalo interquartílico que os enfermeiros e operadores de teleatendimento.

O Gráfico 1 apresenta coincidência entre o ponto de corte de 36 e a separatriz determinada pelo tercil superior para os operadores de teleatendimento, e entre esse mesmo ponto e a mediana para os profissionais de enfermagem. No entanto, a porcentagem de trabalhadores com altos níveis de necessidade de descanso identificados pelo ponto de corte 36 para os operadores de teleatendimento foi de 37,3% (Tabela 1), o que não corresponde exatamente aos 33% do tercil superior ilustrado no Gráfico 1. O mesmo ocorre para os profissionais de enfermagem, quando o ponto de corte de 36 identifica 54,7% dos trabalhadores como fadigados (Tabela 1) ao invés de 50% mostrado pela mediana no Gráfico 1. Assim, verifica-se que a utilização dos pontos de corte não determinaram exatamente o tercil ou 50% dos valores superiores como apresentado pelo Gráfico 1. Isso ocorre porque diferentes indivíduos podem apresentar mesma pontuação (Tabela 2), aumentando assim o número de sujeitos para um valor específico, o que infla a porcentagem de trabalhadores identificados como possuindo altos níveis de necessidade de descanso.

A comparação entre os dados da Tabela 1 e o Gráfico 1 demonstra que o ponto de corte de 45 permitiu identificar aproximadamente 33% dos profissionais de enfermagem com altos níveis de necessidade de descanso, apesar do valor do tercil superior não corresponder ao valor de 45, mas a 42,4. Apesar da diferença numérica entre os pontos de corte 45 e o tercil superior (42,2), ambos identificam aproximadamente os 33%, maiores níveis de necessidade de descanso para essa população. Essa discrepância ocorreu devido à característica da escala, cujos dados não apresentam linearidade, dada sua natureza ordinal, o que pode ser visto pelas folhas dos diagramas apresentadas na Tabela 2.

Os dados de necessidade de descanso dos operadores de teleatendimento (p = 0,016) e dos profissionais de enfermagem (p < 0,001) apresentaram distribuição não normal. Apenas os dados dos trabalhadores da indústria apresentaram distribuição normal (p = 0,176). Histogramas das três populações são apresentados no Gráfico 2.

A assimetria à direita dos dados pode ser verificada pela maior proximidade da mediana do primeiro quartil (Gráfico 1) e pelo deslocamento da média em relação à mediana para a direita (Gráfico 2), para os dados dos operadores de teleatendimento e profissionais de enfermagem. Já para os trabalhadores da indústria, a mediana apresentou-se equidistante dos quartis inferior e superior (Gráfico 1) e a média e mediana apresentaram valores mais próximos (Gráfico 2). Com a distribuição normal apresentada pelos dados dos trabalhadores da indústria, a média mostrou-se como uma medida de tendência central adequada para essa população, mas não para os operadores de teleatendimento e profissionais de enfermagem.

Discussão

O presente estudo utilizou diferentes parâmetros para categorização dos níveis de necessidade de descanso para, assim, identificar trabalhadores com altos níveis de necessidade de descanso: distribuição dos dados (tercil e quartil) e pontos de corte estabelecidos pela literatura. Os resultados apresentados revelaram que não houve equivalência direta entre esses parâmetros. Já quanto à utilização da escala de necessidade de descanso como uma variável quantitativa contínua, pôde-se verificar que entre as três populações avaliadas, duas apresentaram distribuição não normal. Para essas duas populações, a utilização de medidas de tendência central e a utilização de testes estatísticos, que se baseiam em pressupostos de distribuições normais, não seriam o parâmetro e a análise mais adequados para identificação de populações com maiores níveis de necessidade de descanso. Portanto, a definição dos parâmetros matemáticos de avaliação da necessidade de descanso requer cautela e a verificação do atendimento aos pressupostos dos testes estatísticos paramétricos.

Os pontos de corte utilizados no presente estudo foram propostos com base nos estudos realizados por van Veldhoven (23), Kiss, De Meester e Brackman (17), Kiss e de Meester (24) e Verdonk et al. (13). A partir desses estudos, pode-se verificar a diversidade dos pontos de corte propostos pela literatura (valores propostos entre 36 a 54), que revela a dependência de determinação tanto dos métodos utilizados e da população como também dos desfechos clínicos avaliados. Outro ponto observado é que mesmo nos estudos em que a especificidade e sensibilidade dos pontos de corte foram testadas, detalhes a respeito dos métodos, população avaliada e resultados não são apresentados. Assim, não há um ponto de corte que possa ser recomendado com base nos estudos disponíveis na literatura, sem que a escolha seja arbitrária.

Nos resultados do presente estudo, o número de trabalhadores identificados com altos níveis de necessidade de descanso para cada ponto de corte proposto pela literatura variou entre as três populações estudadas, o que revela a influência da distribuição dos dados na sensibilidade (Tabela 1). Além disso, o número de trabalhadores identificados com altos níveis de necessidade de descanso entre os pontos de corte variou consideravelmente, ou seja, os diferentes pontos de corte não apresentam resultados equivalentes. Alguns dos pontos de corte mostraram inclusive não ser sensíveis para identificar parcelas de trabalhadores com altos níveis de necessidade de descanso, como ocorreu com o ponto de corte de 36 para os profissionais de enfermagem e trabalhadores da indústria (Gráfico 1).

Outro aspecto importante a ser considerado no uso de pontos de corte fixos é a precisão da escala. No caso da Enede, que apresenta quatro alternativas de resposta, a pontuação final varia de 0 a 33 e, quando transformada por regra de três em escala de 0 a 100, a pontuação final apresenta intervalos de 3,03 (Tabela 2). Assim, a versão brasileira apresenta maior precisão da pontuação, sendo sensível aos pontos de corte de 50 e 54. No entanto, para a escala dicotômica não há diferença entre a utilização desses dois pontos de corte, pois a precisão desta é de 9 pontos quando transformada em escala de 0 a 100.

Alternativamente aos pontos de corte propostos pela literatura, há o parâmetro baseado na distribuição dos dados para identificar trabalhadores com maiores níveis de necessidade de descanso (tercil e quartil). No entanto, esses parâmetros não são capazes de revelar se mais trabalhadores estão sob risco ou não, além dos que estão acima dos valores determinados pelo tercil e quartil, diferentemente da situação em que um ponto de corte fixo é utilizado. Outro aspecto a ser considerado quanto à utilização da distribuição dos dados é a presença de dados repetidos, o que pode interferir na classificação dos resultados caso haja muita repetição de valores. Além disso, a comparação dos resultados de estudos que utilizam a própria distribuição dos dados pode ficar comprometida.

Portanto, considera-se a utilização da distribuição dos dados para identificar os indivíduos com altos níveis de necessidade de descanso como melhor parâmetro para interpretação dos resultados da Enede, até que bancos de dados representativos da população trabalhadora brasileira, com uso da escala que apresenta quatro alternativas de resposta, estejam disponíveis. Isso se deve às limitações previamente apresentadas para os pontos de corte propostos pela literatura e ao fato de que estes foram determinados a partir da escala com duas alternativas de resposta e em amostras não representativas da população brasileira.

Conclusão

O presente estudo mostrou que a escolha de um parâmetro de identificação de trabalhadores com altos níveis de necessidade de descanso é um aspecto complexo, já que diferentes resultados podem ser encontrados de acordo com o parâmetro utilizado e população estudada. Com a ausência de pontos fixos determinados para a população brasileira e a variabilidade dos resultados intergrupos encontrada entre os diferentes pontos de corte, a utilização de parâmetros baseados na própria distribuição dos dados é a mais recomendada.

Agradecimentos

PUIC/UFSCar – Protocolo n. 040/2011, PNPD/CAPES – Processo n. 23038.006938/2011-72, CNPq – Processo n. 301.772/2010-0.

Recebido: 21/08/2013

Received: 08/21/2013

Aprovado: 07/10/2013

Approved: 10/07/2013

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2014
  • Data do Fascículo
    Dez 2013

Histórico

  • Recebido
    21 Ago 2013
  • Aceito
    07 Out 2013
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