Acessibilidade / Reportar erro

Ação e aprendizagem: o teatro como facilitador da socialização na escola

Learning and action: theater facilitating socialization in school

Resumos

Este é um relato de experiência de um trabalho voluntário realizado com crianças de três a sete anos de idade, com oficinas de teatro. Estas atividades tinham, inicialmente, o intuito de socialização. As crianças eram convidadas a participar de jogos, de dramatizações, de leituras compartilhadas e atividades musicais. Os professores notaram melhoras no comportamento e na concentração, o que trouxe progressos na aprendizagem, sobretudo para a leitura. Baseando-nos na teoria de Vygotsky, entendemos que o teatro pode agir como facilitador na socialização e em outras aprendizagens, se intermediado pelo adulto que funciona como "andaime", amparando-as até que sejam capazes de executar ações sozinhas e com eficiência.

Zona Proximal; alfabetização; encenação; desenvolvimento cognitivo


This is a report of experience from a volunteer work done with children from three to seven years of age, with theater workshops. These activities had, initially, the purpose of their socialization. They were invited to participate in games, dramatizations, shared readings and musical activities. The teachers noted improvement in their behavior and concentration, enhancing their learning, especially for reading. Based on the theory of Vygotsky, we believe that the theater can facilitate socializing and other learning if mediated by the adult who acts as "scaffolding'', supporting them until they are able to perform the actions by themselves with efficiency.

Proximal Area; literacy; role play; cognitive development


RELATO DE PESQUISA

Ação e aprendizagem: o teatro como facilitador da socialização na escola

Learning and action: theater facilitating socialization in school

Mickael MeneghetiI; Cléria M. L. Bittar BuenoII

IEstudante de Psicologia da Universidade de Franca - SP (Iniciação Científica). E-mail: mickaelmenegheti@yahoo.com.br

IIPsicóloga. Docente do Programa de Mestrado em Promoção de Saúde e do curso de Psicologia da Universidade de Franca. Coordenadora do NUPIGEN - Núcleo de Pesquisa Interdisciplinar de Gênero. Endereço: Universidade de Franca - Mestrado em Promoção de Saúde. Av. Dr. Armando Sales de Oliveira, 201 - Parque Universitário, Franca, SP. CEP: 14.404-600. E-mail: cleria@unifran.br

RESUMO

Este é um relato de experiência de um trabalho voluntário realizado com crianças de três a sete anos de idade, com oficinas de teatro. Estas atividades tinham, inicialmente, o intuito de socialização. As crianças eram convidadas a participar de jogos, de dramatizações, de leituras compartilhadas e atividades musicais. Os professores notaram melhoras no comportamento e na concentração, o que trouxe progressos na aprendizagem, sobretudo para a leitura. Baseando-nos na teoria de Vygotsky, entendemos que o teatro pode agir como facilitador na socialização e em outras aprendizagens, se intermediado pelo adulto que funciona como "andaime", amparando-as até que sejam capazes de executar ações sozinhas e com eficiência.

Palavras-chave: Zona Proximal; alfabetização; encenação; desenvolvimento cognitivo.

ABSTRACT

This is a report of experience from a volunteer work done with children from three to seven years of age, with theater workshops. These activities had, initially, the purpose of their socialization. They were invited to participate in games, dramatizations, shared readings and musical activities. The teachers noted improvement in their behavior and concentration, enhancing their learning, especially for reading. Based on the theory of Vygotsky, we believe that the theater can facilitate socializing and other learning if mediated by the adult who acts as "scaffolding'', supporting them until they are able to perform the actions by themselves with efficiency.

Keywords: Proximal Area; literacy; role play; cognitive development.

INTRODUÇÃO

Este estudo demonstra os resultados da experiência do autor, como professor voluntário de teatro amador de uma escola particular de ensino infantil na cidade de Franca-SP, onde vem sendo realizado este trabalho voluntário desde 2007. Inicialmente a proposta era o desenvolvimento de atividades teatrais para a facilitação da socialização de alunos da pré-escola e da 1ª série, crianças na faixa etária de três a sete anos de idade. Entretanto no decorrer do tempo de trabalho voluntário, os professores relataram outras mudanças positivas no comportamento das crianças, assim como maior habilidade para o letramento - aquisição básica para a escrita.

O interesse pelo teatro como trabalho voluntário nesta escola deveu-se à experiência anterior com teatro amador, iniciado ainda quando aluno do ensino médio - no Grupo Teatral Raízes do Princípio, criado em 2003, prática que continua até hoje. Este estudo é resultado da experiência com teatro amador, do voluntariado e do desejo de trabalhar com crianças.

São apresentados inicialmente os referenciais teóricos da origem e desenvolvimento do teatro no mundo ocidental, as primeiras pesquisas da psicologia sobre o tema em sua relação com o teatro e educação, como também as contribuições da psicologia e da teoria de Vygotsky, que nortearam a compreensão do desenvolvimento infantil.

Vygotsky utilizou-se do teatro como facilitador para a aprendizagem de conceitos, nas crianças. Ele elaborou a concepção de Zona de Desenvolvimento Proximal, que advoga que o comportamento humano é precedido de potencialidades para seu crescimento e desenvolvimento, tendo o adulto e o meio social a importância de balizarem este fenômeno, servindo de "andaimes" conceituais para que o processo de aquisição das competências cognitivas das crianças seja possível.

Por andaimes conceituais entende-se a ajuda que o aluno recebe ao longo do aprendizado, para o desempenho de determinadas tarefas. Esta analogia com os andaimes (WOOD; BRUNER; ROSS, 1976) se justifica, por exemplo, na relação com o professor, que se utiliza de diversos métodos para aumentar a abrangência de certo conhecimento a ser transferido. À medida que a criança apreende o conteúdo deste conhecimento, o mestre vai elevando o "andaime" para que o aprendiz consiga proficiência no aproveitamento de um conhecimento já consolidado (COSTA, 2000). Vygotsky aponta ainda o importante papel da imitação, pois a criança só é capaz de imitar algo que está dentro de sua faixa de desenvolvimento e compreensão, e o teatro é um facilitador desta habilidade imitativa (MERCER, 1994).

Neste artigo são apresentadas algumas contribuições destas oficinas de teatro, que funcionaram como facilitadoras na relação ensino-aprendizagem, sendo o teatro um importante instrumento e recurso para que o professor dele se utilize como "andaime" para a aquisição de novas competências para a criança em fase de aquisição da leitura.

O TEATRO COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL E PESSOAL

Breve história do teatro ocidental

O teatro ocidental teve suas raízes na Grécia Antiga quando se festejava o culto ao deus Dioniso a partir do século VII a.C. Embora essa forma de teatro tenha recebido influências de outras culturas, o teatro grego é reconhecido por sua originalidade. Sabe-se que no Egito Antigo, na Índia, na China, o teatro já existia, mas o que diferencia o teatro grego dos outros existentes é que seu foco estava nas relações humanas cotidianas dos cidadãos gregos, enquanto os demais eram litúrgicos, ou seja, as encenações eram todas ligadas a temas religiosos.

Os atores usavam máscaras e dialogavam com o coro. Existiam basicamente dois estilos de espetáculo, a tragédia e a comédia ou sátira. A primeira se caracterizava pelo fim trágico sofrido pelo protagonista, que estava à mercê das vontades dos deuses ou do destino. Já o segundo estilo se caracterizava por satirizar a sociedade, a política e até mesmo os deuses, levando para a cena situações cotidianas que geralmente se tornavam ridículas, gerando muitas risadas na plateia.

Com a conquista da Grécia por Alexandre, "O Grande", a cultura grega foi divulgada por todos os territórios sob o domínio de Alexandre, mas o teatro grego, apesar de disseminado para outras culturas, também sofreu modificações.

Embora Roma já tivesse sua forma de teatro, este foi fortemente influenciado pelo modelo grego, porém criou algumas inovações, por exemplo, apenas um ator representava todos os papéis alterando as máscaras entre um personagem e outro. Com o surgimento do Cristianismo o teatro romano foi considerado profano e pagão, sendo banido da sociedade. Apenas alguns atores, em pequenas caravanas, deram continuação à forma romana de atuar, indo de cidade em cidade, promovendo peças e festivais populares.

O teatro medieval foi fortemente influenciado pelo Cristianismo. No início era utilizado para recontar a história da ressurreição de Cristo, sendo representado por membros da Igreja como padres e monges. Com o tempo outras passagens bíblicas foram sendo representadas com o objetivo de propagação da doutrina religiosa. Esta forma de teatro prevaleceu até o fim do século XV, quando entrou em declínio.

Houve um movimento de transição entre o teatro medieval e o renascentista que foi denominado de teatro humanista. Entre os representantes deste novo modelo estavam os italianos, que apesar de serem, em sua maioria, atores amadores, estavam sob intenso trabalho de profissionalização com a recente Commedia Dell' Arte, que provinha da tradição romana de teatro. Outro representante do teatro humanista foi o português Gil Vicente (1465-1537), cuja obra é caracterizada por "nenhuma preocupação com unidade de tempo, lugar, ação, ou mesmo de tom, como se preconizava para o teatro clássico" (BERARDINELLI, 1974, p. 11).

O teatro renascentista rompe com as ligações medievais, inova na estrutura cênica, das quais muitas são preservadas até hoje, inova também na infraestrutura do palco, onde se possibilita uma melhor mobilidade dos cenários,assim como uma melhor versatilidade nas representações, e permite a entrada da mulher para o elenco, visto que os papéis femininos até então eram representados por homens. É a primeira vez que a mulher ganha um espaço legítimo no teatro (A BELA..., 2004).

O teatro moderno é decorrente das mudanças proporcionadas pela Revolução Industrial e Revolução Francesa. As mudanças foram na estrutura dramática, com a criação de novos gêneros teatrais. O figurino ganha uma atenção especial objetivando maior realismo. Com tantas mudanças surge a necessidade da figura do diretor para supervisionar todas as etapas do processo teatral.

O teatro contemporâneo do século XX se caracteriza pelo rompimento com as antigas tradições e torna-se eclético. Não há um padrão predominante, mas sim vários estilos de direção. O fazer teatral torna-se mais democrático, encontrando espaço em todos os meios sociais, econômicos e culturais. O teatro não é mais uma representação artística da elite. Vários autores se destacam por suas obras, como Stanislavsky, Brecht e o brasileiro Augusto Boal, entre outros.

Com a ascensão do capitalismo moderno e de uma cultura de consumo, o teatro perde sua posição de arte maior para o cinema, que emprega investimentos milionários. O cinema passa a ser o centro da mídia de entretenimento, enfocando a badalação de artistas tornando-os ícones populares.

O teatro brasileiro

O teatro no Brasil teve início com os primeiros jesuítas. Estes utilizavam a linguagem teatral nas pregações, com o objetivo de doutrinar e catequizar o nativo brasileiro. Com a linguagem cênica, as parábolas e passagens bíblicas eram transmitidas para os índios de forma didática. Os precursores do teatro no Brasil foram os padres José de Anchieta e Antônio Viera. A fim de doutrinar a mente indígena ,o teatro jesuíta era carregado de dramaticidade e alguns efeitos cênicos.

Após o teatro da colonização, o Brasil sofreu uma influência muito grande do teatro francês até o final do século XIX. Mas, ao falar de teatro no Brasil, tem que se levar em conta a extensão territorial e cultural. Podem-se identificar regionalismos na produção teatral brasileira, como exemplo, os textos de Ariano Suassuna e seus personagens tipicamente nordestinos, Jorge Andrade retratando a industrialização paulista e a política mineira; Nelson Rodrigues e suas tragédias cariocas. Mais recentemente o teatro contemporâneo brasileiro sofreu influências do Teatro de Arena de São Paulo (PATRIOTA, 2005). Este grupo incentivou a formação de uma identidade teatral brasileira, com a nacionalização da dramaturgia universal e, posteriormente, incentivando a criação de textos brasileiros.

Assim, seguindo a tendência do teatro moderno no mundo, o teatro brasileiro é variado, encontrando variações de gênero, dramaturgia, região, economia, técnicas e outras tantas variáveis cênicas.

Inicialmente deve-se recordar que a atividade teatral no Brasil é muito diversificada, possui inúmeras matrizes estéticas e teóricas, e geograficamente está dispersa pelo País, considerando capitais como Porto Alegre (RS), João Pessoa (PB), Salvador (BA), Recife (PE), além de inúmeras cidades no interior dos Estados (PATRIOTA, 2005, p. 3).

O teatro no Brasil foi e ainda é, literalmente, um palco para expressões de criação e atuação humana. O caráter político do teatro teve seu auge na ditadura militar, quando os artistas denunciavam nos palcos os abusos cometidos pelo governo da época. O teatro no Brasil também é palco para as denúncias das desigualdades sociais. Um dos diretores que mais trabalhou sobre essa questão foi Augusto Boal com a criação do Teatro do Oprimido. Este tem como característica incluir a plateia na ação encenada com o objetivo de denunciar sua posição de oprimidos para assim encontrarem, de forma coletiva, uma solução para os problemas encenados.

Atualmente existe uma pluralidade de correntes estéticas, filosóficas, culturais no teatro moderno brasileiro.

O ENCONTRO DE MELPÔMENE E PSIQUÊ

O teatro e a psicologia são "fenômenos" tão antigos quanto o ser humano. Ninguém sabe identificar ao certo quando foi que os seres humanos começaram a representar-se dramaticamente e nem quando começou a pensar sobre sua própria existência. Para o mundo ocidental, essas duas instâncias humanas tiveram um marco histórico na Antiga Grécia. Foi nesta sociedade que o teatro se desenvolveu e começou a ser referência. Foi nela também que nasceu a filosofia, "mãe" da psicologia, que busca uma explicação para a existência humana e seus porquês.

E é na mitologia grega que se encontra a referência mais antiga sobre a origem do teatro e da psicologia. Melpômene, a musa da tragédia, cujo nome significa "côro", foi uma das nove musas, filha de Zeus e Mnemósine. Ela era representada por uma máscara com a expressão trágica, usada em todos os espetáculos do teatro grego, e botas de couro, que também eram tradicionalmente usadas pelos atores trágicos. Ela, assim como as irmãs, nasceu do desejo dos deuses de verem divindades perpetuarem a sua vitória sobre os Titãs no monte Olimpo, a morada dos deuses.

Psiquê (do grego, "alma") conta a história de uma jovem e bela humana que se apaixona por Eros, o deus do amor. O mito retrata como a representação da alma humana encontra o amor, mas fala também de como a alma humana fere o amor para ter que depois reconquistá-lo. Psiquê passa por várias provas e tarefas no encalço de Eros, que dela foge, quando ferido, ainda que ela não tivesse a intenção de ferí-lo. É o retrato da saga humana em cada um de nós em busca do amor e do reconhecimento de nossas individualidades perante o ser amado.

O encontro do teatro e da psicologia tem sido possível de diversas formas e modos. Para o mundo científico esse encontro se deu graças a diversos autores, mas principalmente a Jacob Levi Moreno (1889-1974), psiquiatra romeno, conhecido como o precursor do Teatro Espontâneo que foi também o pai do psicodrama, uma forma de psicoterapia de grupo que trabalha questões da psique humana e suas emoções através de dramatizações. O psicodrama trouxe uma enorme contribuição tanto para o teatro, com a mudança do foco em ensaios e treinamento para a exploração da espontaneidade dos atores, como para a psicologia, contribuindo com a prática psicoterápica e o entendimento do funcionamento dos grupos.

Dessa relação teatro-psicologia, surge um tema que agrega a aprendizagem e o teatro: o Teatro-Educação. Desde a Grécia Clássica, com Platão e Aristóteles, passando-se por Roma, com Horácio, até os filósofos modernos, como Montaigne e Rousseau, o teatro tem sido concebido como ferramenta na educação acadêmica do ser humano (REVERBEL, 1989). No Brasil, embora o teatro "pedagógico" tenha sido instituído pelos jesuítas, o ensino do teatro na escola pública foi inserido na matéria de Educação Artística, por força da Lei 5.692, de 11 de agosto de 1971, que fixa as diretrizes e bases do ensino de 1º e 2º graus, posteriormente revogada pela Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996 ,que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.

O ensino do Teatro na educação escolar básica nacional foi formalmente implantado há cerca de quase trinta anos no âmbito dos conteúdos abrangidos pela matéria Educação Artística, oferecida obrigatoriamente por força da Lei 5692/71 (JAPIASSU, 1998, p. 82, grifo do autor).

Embora a história demonstre um incentivo à união do teatro com a educação, muitos educadores nos dias atuais simplesmente ignoram tal possibilidade, caracterizando muitas vezes esta atividade como supérflua, como critica Japiassu (1998). Haja vista que nas leis subtende-se a utilização do teatro como disciplina ou ferramenta pedagógica, conforme se lê nos artigos, já que discorrem genericamente sobre a arte na educação, não fazendo menção ao termo teatro;

§ 2º O ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos (BRASIL, 1996).

Infere-se que isso pode justificar, em parte, sua ausência em sala de aula, sendo substituído por outros conteúdos relacionados à arte, comumente mais utilizados pelos professores, sobretudo os de formação em Educação Artística.

Em seus estudos sobre os jogos dramáticos, Slade (1978, p. 18) discorre que o "atuar" é inerente na criança, sendo o "drama" - palavra grega que significa "ação", "eu faço" - um comportamento natural na busca de experimentação e vivência. "O jogo dramático infantil é uma forma de arte por direito próprio; não é uma atividade inventada por alguém, mas sim o comportamento real dos seres humanos" (SLADE, 1978, p. 17). Pode-se ver semelhante posicionamento em Reverbel (1989, p. 18):

A linguagem, que de início é movimento, grito, choro ou riso, vai gradualmente adquirindo os mais diversos matizes sonoros, até converter-se em palavra. [...] pouco a pouco, os saltos, os gritos e as garatujas vão se transformando em mímica, dança, canto, desenho e modelagem. O jogo lúdico muda espontaneamente para o jogo dramático.

Essa linha de pensamento proposta por Slade e Reverbel encontra embasamento na teoria do desenvolvimento conhecida como sócio-histórica, proposta pelo teatrólogo, psicólogo e professor soviético Lev Semenovich Vygotsky (1896-1934).

Vygotsky era filho de comerciantes judeus abastados. Formou-se em filosofia, literatura e artes. Sua primeira obra foi Psicologia da Arte, publicada em 1925, fruto de sua tese de doutorado. Associando as ideias marxistas à psicologia, Vygotsky entendia o desenvolvimento humano como uma dialética entre natureza, pensamento e história. Para ele o desenvolvimento do pensamento e a linguagem somente era possível através da "interiorização" da cultura. A criança adquire através de processos complexos os conteúdos compartilhados socialmente (VYGOTSKY, 1984).

A linguagem é um dos paradigmas do autor, afirmando que sua aquisição somente é possível com o desenvolvimento dos Processos Psicológicos Superiores (PPS). Para que os PPS se desenvolvam é necessária uma maturação ontogenética. Os Processos Psicológicos Elementares (PPE) são resultados do desenvolvimento normal, e são predisposição necessária para o surgimento dos PPS. Os PPS não são resultados evolutivos dos PPE, muito pelo contrário, esses processos são possíveis somente pelo intermédio da dialética sujeito-sociedade (VYGOTSKY, 1991).

Portanto, para Vygotsky, o teatro tem um papel importante no desenvolvimento da criança, pois através do brincar de "faz-de-conta", e principalmente pela imitação (OLIVEIRA, 1997), a criança tem a possibilidade de interiorizar o conteúdo observado na sociedade. O teatro possibilita à criança, dentro do seu limite cênico, movimentar, expandir, testar, descartar e expressar aquilo que ela observa na sociedade.

O jogo dramático é uma parte vital da vida jovem. Não é uma atividade de ócio, mas antes a maneira da criança pensar, comprovar, relaxar, trabalhar, lembrar, ousar, experimentar, criar e absorver (SLADE, 1978. p. 17-18).

Oliveira (1997) afirma que o próprio Vygotsky via na imitação, um dos recursos explorados pelo teatro, uma maneira de a criança reconstruir em si aquilo que observou nos outros. E essa reconstrução não era uma simples cópia do conteúdo observado, mas sim uma "cópia criativa" - transferência do conteúdo externo para o interno, criando um novo "espaço" interno.

Aliás, o próprio Vygotsky reconheceu ao Teatro a primazia na abordagem da questão do pensamento por trás das palavras e destacou aspectos do texto cênico (repertório gestual, entonação, silêncios, pausa etc.) que ajudam a distinguir entre significado e sentido de uma determinada palavra numa elocução voluntariamente enunciada (Vygotsky, 1993, p. 127-32 apud JAPIASSU, 1998, p. 6, grifo do autor).

Outro aporte teórico desenvolvido por Vygotsky, relacionado ao que versa neste estudo, sobre o auxílio do teatro no ensino, foi por ele cunhado de Zona de Desenvolvimento Proximal. Transformar o desenvolvimento "potencial" em desenvolvimento "real" é possível através do contato com outro ser humano. Em um desenvolvimento ontogenético, o ser humano tem as potencialidades de crescimento inerentes em si, porém, para que estas se desenvolvam, é necessário o contato com o meio sociocultural para que estas potencialidades possam se tornar reais (JAPIASSU, 1998).

O ser humano tem todo um desenvolvimento biológico que lhe possibilita desenvolver sua comunicação através da fala, porém, esta somente se desenvolverá se o sujeito estiver incluído num meio sócio-histórico. O teatro possibilita a expressão e a troca de experiências entre os mais diversos sujeitos.

Como afirma Japiassu (1998), o teatro possibilita o contato entre as diversas séries da escola, dando um acolhimento para o grupo como um todo. O aprendizado através de uma pessoa que já domina os instrumentos mediadores possibilita a interiorização dos conteúdos, tornando real o desenvolvimento em potencial. A experiência anterior com o teatro amador, fundamentado nas teorias da psicologia, sobretudo a vygotskiana, é que norteou a reflexão sobre esta prática realizada com as turmas da pré-escola e 1ª séries do ensino fundamental.

MÉTODOS E PROCEDIMENTOS

O trabalho iniciado em fevereiro de 2008 foi proposto e aceito pelos dirigentes, professores e pais de alunos que frequentam esta escola, fundamentado na experiência do autor como ator e diretor do grupo amador de teatro Raízes do Princípio e pelo interesse pela linha de pesquisa Teatro-Educação. As oficinas eram realizadas todas as sextas-feiras, das 16 às 17 horas. A escola atende alunos da faixa etária de três a sete anos, regularmente matriculados na pré-escola e na 1ª série do ensino fundamental. A instituição - baseada nas premissas da Doutrina Espírita, atua sem fins lucrativos, e iniciou suas atividades em janeiro de 2007 com o trabalho voluntário realizado pela maior parte da equipe. Somente as professoras das duas séries eram remuneradas. A escola oferece, além das matérias pedagógicas básicas, o ensino de música, inglês, informática, ensino ambiental, e também teatro/expressão corporal e refeição com acompanhamento de uma nutricionista.

A oficina de teatro foi inicialmente proposta para os dois últimos anos, ou seja, para as salas de pré-primário e da 1ª série do ensino fundamental, que reuniam crianças de cinco a sete anos, e eram realizadas na quadra ou dentro de uma sala (em caso de chuva) com estes dois grupos reunidos. O trabalho com turmas com diferenças etárias no teatro tem caracterizado a prática teatral e pedagógica do pesquisador/voluntário desde 2003, e está previsto no artigo 24 da Lei 9394/96, em seu inciso quarto, onde se lê:

Art. 24. A educação básica, nos níveis fundamental e médio, será organizada de acordo com as seguintes regras comuns:

IV - poderão organizar-se classes, ou turmas, com alunos de séries distintas, com níveis equivalentes de adiantamento na matéria, para o ensino de línguas estrangeiras, artes, ou outros componentes curriculares;

Este trabalho foi realizado com 17 crianças de cinco a sete anos, sendo seis da 1ª série do ensino fundamental, e 11 do pré-primário. As atividades eram iniciadas com o aquecimento corporal e vocal (aproximadamente por 10 minutos), que visavam à preparação do corpo e da voz para a ação, e também a conscientização do cuidado com o corpo (BOAL, 1985).

Após os aquecimentos o professor fazia uma leitura dramatizada de um texto escolhido para o tema daquela semana. As escolhas dos textos variavam conforme a demanda das crianças, ou seja, aquilo que elas queriam aprender, ou a partir de situações propostas pelos outros professores, como veremos a seguir. Após a leitura dramatizada eram feitas a reflexão e discussão do tema.

A discussão e a reflexão consistiam em interrogações às crianças sobre o conteúdo da estória1 1 Manteve-se esta grafia para diferenciar de "história", como fato real. lida, possibilitando-lhes expressar suas ideias e sentimentos em relação a esta, tecendo elogios, críticas e comentários em geral. Após este momento era realizada a dramatização, que unificava o conteúdo da oficina (aquecimentos, leitura e discussão).

Para as oficinas de teatro, foram utilizados também outros recursos pedagógicos, tais como vídeos, fotografias e desenhos.

Durante todo o tempo que durou a atividade voluntária, manteve-se contato frequente com os professores, com o objetivo de averiguar quais fatores estes destacavam sobre as atividades teatrais, quais pontos eles destacaram como positivos e/ou negativos em sala de aula, após o início das oficinas de teatro.

Aproximadamente a cada quatro ou cinco oficinas com as crianças, o professor de teatro reunia-se com os demais professores a fim de conhecer suas percepções e opiniões a respeito das atividades que estavam sendo desenvolvidas nas oficinas de teatro, e se estas deveriam focar outros conteúdos; também, se estavam trazendo algum tipo de alteração quanto à socialização das crianças, nos trabalhos em grupo, ou outro tipo de comportamento. É preciso dizer que em mais de três ocasiões, estes encontros coincidiram com as reuniões mensais em que participam todos os professores e coordenação da escola, e que, embora as oficinas de teatro não fossem ministradas para as crianças de três a quatro anos e onze meses, os professores destas classes se mostravam bastante interessados havendo, ao final do período letivo deste mesmo ano, um pedido para que durante o ano seguinte (2009), as oficinas fossem estendidas a todas as crianças da escola.

Nos encontros com as crianças, as atividades seguiram uma programação prévia, flexível, entretanto, quanto às escolhas das estórias, feitas pelas crianças. O motivo era que muitas vezes os professores pediam que fossem abordados alguns assuntos que necessitavam ser trabalhados, geralmente em função de problemas de briga entre as crianças, ou da necessidade de cooperação ou de trabalhar valores como amizade, respeito ao próximo, ao meio ambiente. Respeitava-se, contudo, o interesse e a escolha das crianças, ainda que o pedido dos professores fosse acatado. A escolha da estória, previamente selecionada entre outras cujos temas contemplavam o pedido feito, cabia sempre às crianças.

Para a análise e discussão dos dados que se apresentam neste artigo, foi feito um recorte de diversos momentos vivenciados tanto em sala, com as crianças, como com os professores, sendo que seus discursos estão registrados no diário de campo, onde foram transcritas todas as atividades de oficina com as crianças e todas as reuniões com os professores, sejam essas individuais, em grupos, e ainda as participações nas reuniões docentes bimestrais.

O diário comporta, então, os relatos das atividades realizadas com as crianças, e as transcrições de suas falas originadas durante as oficinas de teatro, além das sugestões, opiniões e percepções dos professores, colhidas em reuniões individuais ou com o corpo docente. É deste diário que saíram os presentes comentários discentes e docentes que compõem a discussão deste artigo.

ANÁLISE E DISCUSSÃO

As atividades foram realizadas majoritariamente na quadra da escola. A união das duas classes com faixas etárias diferentes tinha como objetivo possibilitar a criação de "zonas de desenvolvimento proximal" - crianças mais velhas eram ajudadas, mas, por sua vez, tornavam-se também o apoio principal das menores, e não somente permanecia este apoio focado na figura do professor.

O professor estava necessariamente disponível para os dois grupos, entretanto em suas ações, sobretudo quando se trabalhavam valores e senso de cooperação, as crianças mais velhas, ou as mais aptas, eram estimuladas a assumirem o protagonismo diante das mais novas, e aquelas que demonstravam maiores habilidades com alguma tarefa específica, eram incentivadas a se ocuparem de seus pares, segundo a visão vigotskyana - em que o mais hábil colabora com aquele que ainda não atingiu o mesmo nível de excelência.

Como salienta Hoel (1999, tradução nossa):

[...] os alunos [...] podem funcionar como andaimes um em relação ao outros, assumindo papéis complementares e suplementando o conhecimento e habilidades uns dos outros porque podem se tornar experts em áreas distintas.

Ao apoiar as crianças em suas atividades, aumentando-se o grau de dificuldade à medida que pareciam dominar o conteúdo, tanto o educador como os alunos cooperadores atuavam como apoio, como "andaimes" na preparação para a aquisição de novas habilidades ou mudanças de comportamento. E é neste exato momento que se pode dizer que se deu a aprendizagem de novos conceitos.

O aquecimento corporal tinha como objetivo preparar o corpo para movimentos livres e espontâneos, estimulando-os à atividade (BIANCHI, 1984; BOAL, 1985). Algumas crianças alegavam, inicialmente, terem preguiça, entretanto, aos poucos foram compreendendo a necessidade do aquecimento para que o desempenho das atividades fosse melhor. Como observou o professor de educação física, "eles comentam sobre as similaridades entre as atividades teatrais e minha aula", dizendo este ter notado que o aquecimento corporal possibilitou às crianças um melhor rendimento em suas aulas, porque "alguns alunos repetiam o discurso aprendido nas aulas de teatro, da importância do aquecimento para o corpo e para a 'inteligência', como eles mesmos diziam" (professor de educação física).

O movimento durante as atividades dramáticas melhora a concentração nas instruções às tarefas propostas pelo professor (KHISIMOTO, 1996), além de que, a união entre as duas salas possibilitou a criação de vínculos sociais, enfatizando-se a necessidade de cooperar para melhor realizar suas tarefas.

Dá pra perceber que alguns na sala cobram os colegas no desenvolvimento das atividades, exigindo atenção. Mas o mais interessante é perceber o senso de cooperação deles, sempre ajudando uns aos outros (professora da 1ª série).

Infere-se a partir da tática do adulto, em incentivar os mais aptos a se sentirem corresponsáveis pelo bom andamento e desempenho das atividades, ter servido para o propósito inicial, de colaboração entre os grupos e socialização, um bom resultado que também pareceu refletir-se em outras áreas do conhecimento e do comportamento das crianças, como salientou a professora da sala do pré-primário; "depois do início das atividades teatrais, as crianças ficaram menos dispersas, o que facilitou também para assimilarem conteúdos novos em sala de aula, mesmo os de matemática".

O que igualmente se faz lembrar é que o processo de aprendizagem necessita da atenção para a memorização, que apesar de inata, precisa ser motivada, tarefa difícil quando se trata de manter crianças - criaturas que se exprimem "no" e "pelo" movimento - trancafiados em sala de aula! A atividade corporal exigida no teatro mostrou-se excelente ferramenta de conscientização corporal (FREIRE, 1992), e aprender a dirigir a atenção para o corpo, para determinados movimentos ou membros específicos, despertou-lhes interesse por conhecer outros processos relacionados à biologia e fisiologia.

Segundo a percepção da professora do pré-primário:

[...] não era incomum vê-los repetir as técnicas de respiração e relaxamento em outras ocasiões, ainda que não tivessem ligação imediata com o que estivessem fazendo. O que chamou a atenção é que, pareceu-me que eles dispunham de um recurso, de um conhecimento "guardado" de maneira a utilizar, quando necessário.

Também junto ao aquecimento corporal era feito o aquecimento vocal. Em todos os encontros esclarecia-se a importância do corpo e da voz e seu aquecimento no teatro, sendo estas duas técnicas, ferramentas fundamentais para a encenação. O aquecimento da voz proporcionou às crianças o contato com sons diferentes e engraçados, dos quais elas riam e se divertiam ao reproduzi-los. Era a técnica de aquecimento favorita para elas, além de proporcionar uma melhor dicção e projeção de voz durante as encenações. Comenta a professora de música:

São os mesmos exercícios que eu passo na minha aula, [relatando progressos inclusive, no controle da altura da voz] no início do ano letivo. Ao final das aulas, alguns alunos saíam com dor na garganta ou tossindo de tanto gritar, conforme o tempo foi passando, e os exercícios vocais sendo aplicados, tanto nas aulas de música, como nas oficinas de teatro, as crianças aprenderam a projetar a voz sem precisar gritar [completou] e consequentemente sem machucar as cordas vocais, além de demonstrarem um maior respeito no momento em que um colega estivesse falando. No início eles falavam ao mesmo tempo, mas depois aprenderam a esperar sua vez de falar e também aprenderam a ouvir a ideia do colega.

Em sequência aos aquecimentos era realizada a leitura dramática. Inicialmente as crianças sentavam-se em círculo. A estória era lida, eram mostradas as figuras do livro e em algumas situações as crianças eram interrogadas sobre o desenrolar da estória e quais outros possíveis finais esta poderia ter. Foi percebido que inicialmente as crianças menores se distraíam muito facilmente, algumas tentavam sentar no colo do professor de teatro, gerando brigas entre elas, outras se levantavam do círculo. Intuitivamente o professor resolveu ficar de pé no meio do círculo, lendo e dramatizando a estória, o que lhe possibilitou captar-lhes a atenção e desenvolver a atividade proposta.

Um dos meus passatempos prediletos consistia em sentar-me ao pé de uma grande árvore nos jardins de Viena, permitindo às crianças que se aproximassem e escutassem um conto de fadas. A parte mais importante da estória era que eu estava sentado ao pé de uma árvore, com um ser exterior ao conto de fadas [...]. Não se tratava tanto do que eu lhes estivesse contando, o conto em si, era mais o ato, a atmosfera de mistério, o paradoxo, o irreal tornando-se real. Eu ocupava o centro, muitas vezes deslocava-me o pé da árvore e sentava-me mais no alto, num galho; as crianças formavam um círculo (MORENO, 1984, p. 15-16).

O trecho acima é d'O Teatro da Espontaneidade, de Jacob L. Moreno (1984), em que ele relata uma experiência similar ao que este professor tivera (como este mede 1 metro e 89 centímetros talvez representasse ele próprio "a árvore" nesta ocasião).

Em algumas ocasiões o professor utilizou uma peruca, fantoches, ou ainda uma caixa cheia de objetos que iam se transformando nos personagens da estória. "Legal ver que o que o professor vira [se transforma] na aula, nunca vi um professor assim" (M.P., 5 anos), o que notadamente chamava-lhes a atenção e contribuía para a sua participação no processo.

Quando as leituras foram propostas nestas formas de dramatização, a falta de atenção foi se dissipando e as crianças foram atentando-se para a situação, até que a organização reinou absoluta e unânime na sala. Segundo Papalia (2000) é esperado para crianças da segunda infância que as atividades concretas sejam de maior interesse, o que vai de acordo com a dramatização feita com o professor no centro do círculo.

A leitura dramatizada possibilitou às crianças uma interação maior com o texto, além de poderem expressar suas ideias e visões de mundo, assim como esclarecimentos de dúvidas. As reflexões posteriores possibilitaram aos alunos a oportunidade de expressar suas ideias, opiniões, sugestões e até críticas. Surgiram alguns comentários como: "Este lobo mau que você fez se parece muito com o cachorro do meu avô" (A, 5 anos e 2 meses).

"A Chapeuzinho vermelho tinha que ter ido pelo caminho mais longo. Viu no que dá não escutar a mamãe?" (B, 5 anos e 10 meses).

"Muitas vezes os alunos parecem cansados e desanimados, mas depois das aulas de teatro eles vêm a mil! Aproveito para passar atividades que deem continuidade a essa "explosão corporal" (professora do Pré). Este comentário foi em um momento em que a professora do pré-primário comunicava sua surpresa quanto ao paradoxo encontrado entre o que ela chama de "maior explosão corporal" e as atividades relacionadas à escrita e leitura. Em seu julgamento anterior, o fato de as crianças estarem cansadas, faria com que as dinâmicas teatrais ainda as cansassem mais, o que, segundo a mesma, seria um "desastre" para suas aulas, mas foi justamente o contrário que se deu.

Segundo sua percepção, corroborada pela outra professora (de artes), as dinâmicas teatrais, apesar de muito vivazes, traziam as crianças mais despertas e prontas para as atividades de aprendizagem em sala:

[...] como dizia, tenho que aproveitar o momento para ensinar o que preciso, e elas, apesar de agitadinhas, quando vêm da aula de teatro, conversando, comentando sobre o que viram ou aprenderam, ficam mais ativas. Dá pra falar um monte de coisas.

[Percepção esta que é compartilhada pela professora de artes, quando disse]: integrar teatro, artes, música e dança torna-as mais sensíveis e aptas para outras aprendizagens. É como se falava, na faculdade ... eu aprendi, [tentando se lembrar], como é que é mesmo?Ah! Lembrei. Era que a aprendizagem é pelo corpo, né? Então, o corpo fala, o corpo pede, e o corpo aprende quando está motivado. E o cérebro também!

A dramatização, última atividade na oficina, possibilitou a reunião de todo o conteúdo do dia - desde os aquecimentos, passando-se pelo momento da reflexão da estória lida, das livres expressões de seus conteúdos e, por fim, do jogo cênico/ dramático que propunham para selar aquele momento.

Percebemos que os jogos dramáticos tendem a se transformar em jogos teatrais. Conforme as regras vão sendo negociadas e às vezes impostas pelo próprio grupo, vão sendo também interiorizadas (SLADE, 1978; SANTOS, 1975). A assimilação das regras, estipuladas na maioria das vezes pela 1ª série, foi possível através da dramatização, demonstrando, na prática, o que preconizou Vygotsky sobre o papel que tem a imitação em sua relação com as zonas de desenvolvimento proximal.

As imitações dos personagens das estórias feitas pelas crianças foram feitas de forma bastante criativa. Elas não imitaram de forma idêntica, como um verdadeiro ator faria, mas imitaram conforme a sua visão do personagem, o que Baquero (1998) chamou de "cópia criativa". É o que se percebe no comentário desta criança, por ocasião de uma atividade em que elas imitavam diferentes meios de transporte: "Adoro fazer aqueles exercícios que a gente imita as coisas. Quando a gente faz o carro sempre faço os pneus" (I.A, 4 anos e 5 meses), dizendo sobre sua criação, quando escolheu ser o pneu de um carro.

Houve um momento muito peculiar e que merece destaque. Foi durante uma encenação sobre a inauguração da horta da escola. O professor era o agricultor e as crianças eram as sementes de legumes. Ele cuidadosamente as "plantava" e, aos poucos, elas iam "despertando" lentamente, nascendo, como no processo de brotar as sementes. Havia uma criança, V. (7 anos), diagnosticada com TDAH - Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade - que não quis participar da criação da cena, permanecendo sentada, observando o movimento de um canto da sala.

Depois que as "crianças-legumes" foram "plantadas e colhidas", iniciou-se uma atividade de fazer uma grande sopa de legumes com todas elas, que participariam como ingredientes principais. A algazarra era contagiante e, aos poucos, um por um, iam entrando numa "panela", feita com sucata de material utilizado nas aulas de artes.

Mas em dado momento uma das crianças, uma menina N.A. (6 anos e 10 meses) cochicha algo com outra amiginha e diz: "Mas está faltando alguma coisa nessa sopa!", e o professor com ar pensativo pergunta-lhe o que seria. Neste momento, outra criança sai da panela e vai buscar V., que de seu lugar observava tudo. A criança que a trouxe disse, então, alegremente: "Ah, tio, tava faltando o tempero!"

O encenar coletivo propicia situações como esta, de inclusão, compartilhamento, e grandes descobertas (SAMPAIO, 1981).

Ainda em relação à mesma dinâmica, é possível ver em outro comentário, como que as crianças lidam com a fantasia a partir do dado real de que dispõem; "Será que posso ser um legume de pernas e braços?" (F. 6 anos e 5 meses).

Segundo Baquero (1998), a interação do educador na dramatização traz uma riqueza muito grande à vivência dos alunos. Não é o professor quem vai ditar as regras; ele apenas participa e observa o desenrolar do processo espontâneo-criativo da turma, intervindo no momento oportuno para que o trabalho não tome um rumo inesperado. Portanto cabe ao professor, segundo Reverbel (1989, p. 19), "acompanhar e orientar as mudanças e comportamento do aluno, estimulando o desenvolvimento cognitivo, psicomotor e afetivo".

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise das situações descritas permite dizer que o teatro pode ser utilizado como excelente ferramenta pedagógica na escola, além de suas atividades proporcionarem a criação de "zonas de desenvolvimento proximal" quando trabalhado com salas de diferentes faixas etárias. O teatro trabalhado sob o paradigma histórico-cultural possibilita aos alunos não só um mecanismo de expressão artística, mas também a possibilidade de criação e experimentação, como em todo trabalho em grupo.

A aprendizagem da leitura ganha reforço com a dramatização dos textos lidos, pois os alunos além de imaginarem as estórias lidas também as vivenciam em sua particularidade e em sua criatividade. "No drama, a criança descobre a vida e a si mesma através de tentativas emocionais e físicas e depois através da prática repetitiva, que é o jogo dramático" (SLADE, 1978, p. 18).

Os resultados obtidos geraram reflexões sobre como o teatro vem sendo utilizado nas escolas públicas e particulares do Brasil. As pesquisas em Teatro-Educação demonstram a importância do teatro nas escolas, não se reservando apenas a apresentações ensaiadas para as apresentações das datas comemorativas, mas também deveria ser utilizado como um meio de desenvolvimento humano, na aprendizagem da leitura e na convivência grupal, o que muitas vezes não ocorre por não se vislumbrar ser a técnica possível de ser executada em escolas com um grande número de crianças por salas, ou porque há poucos professores trabalhando com estes conteúdos, talvez porque não tivessem tido experiência com o teatro durante o período de formação acadêmica.

É possível estruturar aos diversos contextos escolares a prática teatral como ferramenta do desenvolvimento humano, não só para a leitura, mas para auxiliar em temas como a cidadania, a convivência grupal, a ética, a tolerância, entre outros valores desejáveis. Os professores podem utilizar o teatro em suas disciplinas lembrando que a prática integrada às outras disciplinas, possibilita um resultado mais completo.

Reconhece-se a necessidade de haver mais estudos direcionados à inserção do teatro na educação como ferramenta pedagógica e não apenas manifestação artística, assim como é utilizado para diversas outras finalidades em outros segmentos da sociedade, como o que foi visto no breve histórico traçado.

O trabalho voluntário durante a graduação também é uma valiosa ferramenta de aprendizagem, assim como os estágios. No voluntariado o aluno pode contribuir para o que acredita, com seus conhecimentos, suas práticas e visão de mundo, atuando em diversos segmentos da sociedade. É a possibilidade de colocar em prática tudo aquilo que está nos livros de modo a contribuir com a sociedade e com a sua própria aprendizagem profissional e pessoal.

Esta experiência tem possibilitado ao professor perceber que sua ação foi, e ainda é, igualmente participante e criativa, não se restringindo apenas à observação passiva do fenômeno. Apesar da experiência do autor com o teatro, o "fazer" na escola tem-lhe possibilitado uma nova aprendizagem da prática teatral, facultando-lhe também a compreensão de que o teatro - como cena em ação, é intrinsecamente constituinte do ser humano.

NOTA

Recebido em: março de 2009

Aceito em: dezembro de 2009

  • A BELA do palco. Direção: Richard Eyre. Produção: Robert De Niro, Hardy Justice e Jane Rosenthal. Roteiro: Jeffrey Hatcher Intérpretes: Billy Crudup, Claire Danes, Rupert Everett, Tom Wilkinson, Ben Chaplin. [S.1.]: BBC Films, 2004. 1 DVD (110 min), son., color., 35 mm.
  • BERARDINELLI, C. Gil Vicente - Autos. Rio de Janeiro: Agir, 1974.
  • BAQUERO, R. Vygotsky e a aprendizagem escolar Porto Alegre: Artes Médicas: 1998.
  • BIANCHI, T. Seu corpo sua história "dramaintegração": técnica sensibilizante. Petrópolis: Vozes, 1984.
  • BOAL, A. 200 exercícios e jogos para o ator e não-ator com vontade de dizer algo através do teatro 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985.
  • BRASIL. Lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 21 dez. 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/l9394.htm>. [1996]. Acesso em 23 ago. 2009.
  • BRASIL. Lei 5.692 de 11 agosto de 1971. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 12 ago. 1971. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5692.htm>. Acesso em 23 ago. 2009.
  • COSTA, S. R. Interação e Letramento escolar: uma (re)leitura à luz vygotskiana e bakhtiniana. Juiz de Fora: EDUFJF; São Paulo: MUSA, 2000.
  • FREIRE, J. B. Educação de corpo inteiro: teoria e prática da educação física. São Paulo: Scipione, 1992.
  • HOEL, T. L. Students cooperating in writing: teaching, learning, and research based on theories from Vygotsky and Bakhtin. British Education Index, Leeds: Education-line, 1999. Internet Documents. Disponível em: <http://www.leeds.ac.uk/educol/documents/00001347.htm>. Acesso em 26 ago. 2009.
  • JAPIASSU, R. Jogos teatrais na escola pública. Revista da Faculdade de Educação, São Paulo,v. 24, n. 2,jul./dez.1998. p. 81-97. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-25551998000200005&Ing=pt&nrm=iso>. Acesso em 21 fev. 2008.
  • KHISIMOTO, T. (Org.). Jogo, brinquedo, brincadeira e educação São Paulo: Cortez, 1996.
  • MERCER, N. Neo-Vygotskian Theory and classroom education. In: B. STIERER, J. MAYBIN (Org.). Language, literacy and learning in educational practice Clevedon: Multilingual Matters, 1994. p. 92-110.
  • MORENO, J. L. O teatro da espontaneidade Tradução Maria S. M. Neto. São Paulo: Summus, 1984.
  • OLIVEIRA, M. K. Vygotsky, aprendizado e desenvolvimento: um processo sócio-histórico. São Paulo: Scipione, 1997.
  • PAPALIA, D. E. Desenvolvimento Humano 7. ed. Porto Alegre: Artmed, 2000.
  • PATRIOTA, R. A escrita da história do teatro no Brasil: questões temáticas e aspectos metodológicos. História, Franca, v. 24, n. 2., p. 79-110, jul./dez. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-90742005000200004&script=sci_arttext>. Acesso em 21 fev. 2008.
  • REVERBEL, O. Um caminho do teatro na escola São Paulo: Scipione, 1989.
  • SAMPAIO, M. F. Meu filho faz teatro São Paulo: Almed, 1981.
  • SANTOS, A. Persona: o teatro na educação, o teatro na vida. Rio de Janeiro: Eldorado, 1975.
  • SLADE, P. O jogo dramático infantil São Paulo: Summus, 1978.
  • VYGOTSKY. L. S. Formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
  • VYGOTSKY. L. S. Pensamento e linguagem 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.Série Psicologia e Pedagogia.
  • VYGOTSKY. L. S. Psicologia da arte Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
  • WOOD, D., BRUNER, J.S., ROSS, G. The role of tutoring in problem solving. Journal of Child Psychology and Child Psychiatry, New York, v. 17, p. 89-100, 1976.
  • 1
    Manteve-se esta grafia para diferenciar de "história", como fato real.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      Abr 2010

    Histórico

    • Recebido
      Mar 2009
    • Aceito
      Dez 2009
    Universidade Federal Fluminense, Departamento de Psicologia Campus do Gragoatá, bl O, sala 334, 24210-201 - Niterói - RJ - Brasil, Tel.: +55 21 2629-2845 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: revista_fractal@yahoo.com.br