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A subjetividade fora da mente

The subjectivity out of mind

Resumos

O artigo contextualiza uma tradição que se apresenta de maneira recorrente nas práticas clínicas da psicologia e da saúde mental: o Mentalismo. O Mentalismo pressupõe uma concepção interiorizada do sujeito em prol de modelos instrumentais de clínica. A partir da crítica ao Mentalismo, os autores examinam outras possibilidades de se lidar não mais com o sujeito essencializado, porém, com os complexos processos de subjetivação. Esta é uma perspectiva clínica que recorrendo a Deleuze, Guattari e à Filosofia da Diferença oferece estratégias mais condizentes com a complexidade do mundo contemporâneo, introduzindo debates éticos, políticos e estéticos na dimensão psíquica.

subjetividade; clínica; Deleuze; esquizoanálise


This present article contextualises and examines a tradiction that presents itself recurrent way in the midst of clinical practice of psychology and mental health: Mentalism. The Mentalism assumes an internalized and essencialized conception of the subject in favor of instrumental models of clinica. From the criticism on mentalism the authors examine other possibilities to deal with no more the essentialized subject, however, with the complex process of subjectivity. This is a clinical perspective that resorting to Deleuze, Guattari and to Philosophy of Difference offers conception, strategies more commensurate to the complexity of the contemporary world, introducing ethical, political and aesthetic discussions in the psychic dimension

subjectivity; clinical; Deleuze; schizoanalysis


A subjetividade fora da mente

The subjectivity out of mind

Alexandre SimõesI; Gesianni Amaral GonçalvesII; Batistina Maria de Sousa CorgozinhoIII; Ana Mônica Henrique LopesIV

IPsicanalista. Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenador do Mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais da Fundação Educacional de Divinópolis (FUNEDI), unidade associada à Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Coordenador do Centro de Pós-Graduação da mesma IES. Endereço: Campus da FUNEDI/UEMG Av. Paraná, 3001, Bairro Jardim Belvedere, CEP: 35501-170. E-mail: alexandresimoes@terra.com.br

IIEspecialista em Arte Educação, Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, docente da FUNEDI/UEMG. E-mail: gesianni@terra.com.br

IIIDocente do Mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMG. Socióloga, doutora em educação pela UFMG, coordenadora do Centro de Memória da FUNEDI. E-mail: batistina@funedi.edu.br

IVDocente do Mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais da FUNEDI/UEMG. Historiadora, doutora em história pela UFMG. E-mail: lubango@gold.com.br

RESUMO

O artigo contextualiza uma tradição que se apresenta de maneira recorrente nas práticas clínicas da psicologia e da saúde mental: o Mentalismo. O Mentalismo pressupõe uma concepção interiorizada do sujeito em prol de modelos instrumentais de clínica. A partir da crítica ao Mentalismo, os autores examinam outras possibilidades de se lidar não mais com o sujeito essencializado, porém, com os complexos processos de subjetivação. Esta é uma perspectiva clínica que recorrendo a Deleuze, Guattari e à Filosofia da Diferença oferece estratégias mais condizentes com a complexidade do mundo contemporâneo, introduzindo debates éticos, políticos e estéticos na dimensão psíquica.

Palavras-chave: subjetividade; clínica; Deleuze; esquizoanálise.

ABSTRACT

This present article contextualises and examines a tradiction that presents itself recurrent way in the midst of clinical practice of psychology and mental health: Mentalism. The Mentalism assumes an internalized and essencialized conception of the subject in favor of instrumental models of clinica. From the criticism on mentalism the authors examine other possibilities to deal with no more the essentialized subject, however, with the complex process of subjectivity. This is a clinical perspective that resorting to Deleuze, Guattari and to Philosophy of Difference offers conception, strategies more commensurate to the complexity of the contemporary world, introducing ethical, political and aesthetic discussions in the psychic dimension

Keywords: subjectivity; clinical; Deleuze; schizoanalysis.

"A continuidade do avesso e do direito substitui todos os níveis de profundidade." (DELEUZE, 1998, p. 12)

Uma Certa Tradição Clínica

O cotidiano das práticas, saberes e sensibilidades de uma boa parte dos profissionais que compõem o campo da saúde mental no Brasil está largamente sedimentado em uma tradição. Esta tradição acomoda aqueles profissionais a uma forma específica de escuta que, inevitavelmente, repercute em suas conduções clínicas, tendendo a uniformizar um certo estilo na abordagem do outro (o paciente). Notemos que essa tradição, por sua vez, longe de ser uma tendência recente ou das últimas décadas já se faz um tanto quanto longa (RUSSO, 2002) e, ademais, apresenta íntimas correlações com a modernidade e a razão instrumental segundo Weber (apud HERRERO, 1986) e, principalmente, com aquilo que aí se sedimenta: um modo bastante marcante de se conceber o sujeito (HALL, 2005). A racionalidade que em larga escala se desenvolveu na sociedade moderna é uma racionalidade instrumental, isto é, uma atividade racional que adequa meios a fins e isso corresponde a um processo de reificação da vida humana. Constitui-se entre estes elementos - o sujeito, a modernidade, a instrumentalidade da razão -, tal como o entrelaçamento do fio e da trama, um tecido que, por fim, demarcará para os profissionais já aludidos um constante modelo de clínica no que tange ao acolhimento ou tratamento das afecções psíquicas.

A despeito da aparente diversidade na formação desses profissionais - pensemos como exemplo, na enorme variedade e até mesmo na disparidade de matrizes e perspectivas que integram a formação acadêmica de um psicólogo - e apesar das distintas possibilidades de escolha quanto às teorias, às técnicas e às abordagens do outro se torna nítida a primazia de um modelo.

Independentemente dos escrúpulos dos profissionais em suas condutas clínicas esse modelo ora se insinua de maneira discreta, ora se expõe de forma explícita, contudo, ele insistentemente permeia as mais diversas matrizes teórico-práticas do território psi, ordenando, enquanto tal, as intervenções, as indagações e, sobremaneira, as concepções de cura (tratamento) de psicólogos, psicanalistas, psiquiatras, enfermeiros, assistentes sociais e demais profissionais onde quer que eles atuem: hospitais, ambulatórios, serviços substitutivos ao manicômio, clínicas privadas, equipes ou núcleos de apoio ao PSF, empresas ou indústrias, postos de saúde, manicômios etc. Esse modelo, por um lado, leva-os a conceber certas direções e possibilidades em relação ao sofrimento e à dor; entretanto, por outro lado, os conduz, sobretudo a deixar de considerar muito daquilo que está decisivamente em jogo quanto à complexidade e inventividade da coisa psíquica (FERREIRA NETO, 2004). É bastante comum, por exemplo, que na ambiência daquele modelo o ato clínico do profissional privilegie muito mais a dimensão da descoberta ou da revelação (de lembranças, idéias, conteúdos fantasmáticos) em detrimento da produção: produção de novos modos de existência, inventividade de uma poiesis outra para e na vida.

Tal modelo, alicerçado em bases caras à fenomenologia, vai se mostrar presente e atuante não só nos atos clínicos francamente aderentes a matrizes fenomenológicas ou existenciais, mas curiosamente, ele também vai se impor em outras estratégias teóricas aparentemente distantes ou, até mesmo, antagônicas àquelas. Esta situação de continuidade se instala, por exemplo, entre uma certa apreensão da psicanálise (a despeito de seu ímpeto subversivo) e, principalmente, o vigente território tecnofílico das ciências da cognição. É importante ressaltar que desde os aspectos constituidores do aludido modelo a psicanálise, os vieses da terapia comportamental cognitiva (TCC) e os ditames das neurociências compartilham de uma só e mesma circunstância; o que torna a maior parte das controvérsias e dilemas estabelecidos entre estas perspectivas um falso problema.

Vejamos, pois, que, em nossa atualidade, o referido modelo funciona como um visco. É difícil desvencilhar-se dele. É mais trabalhoso ainda ocultar a nódoa que ele deixa em nossas mãos e em nossos modos de perceber, de pensar e de sentir.

Mas, afinal, que modelo acerca do psiquismo e, mais ainda, da própria vida, vem a ser este?

Este modelo, ou mais exatamente, esta perspectiva (pois se trata aqui de um ponto organizador do olhar desde o qual diversas imagens ganham forma e obtêm sentido) é o mentalismo. Em suma, a suposição quanto à existência de um espaço psíquico que coincidiria com uma interioridade privada a qual nós todos, humanos, possuiríamos. A existência, deste território peculiar e íntimo pode ser autônoma ou não, primitiva ou derivada de outros processos visto que independentemente desse estatuto tal suposição coordenaria todas as possíveis formas de dualismos ou determinações hierarquizantes classicamente vigentes entre o domínio do corpo e o espaço mental.

Devemos ainda dizer, para ser mais claros, que a premissa fundamental do mentalismo nos propõe que de um lado há o mundo, com a multiplicidade de seus objetos, fluxos, materialidades, acontecimentos e, diante dele, face a ele (e, até mesmo, para ele), há o psiquismo. Daí, a nossa menção inicial às suas bases fenomenológicas, inclusive, humanistas desse modelo. O psiquismo, elevado à condição de mirante do mundo, pode ou não ser reduzido inteira ou parcialmente à consciência. Isso também pouco interfere nas conseqüências desse modelo, na medida em que não mudaria o elemento princeps. O crucial, para o mentalismo, é a pressuposição idealista de que o psíquico diga respeito seja a processos ou a fenômenos psicológicos, seja a um sujeito ou a uma subjetividade, seja a uma personalidade que estão todos eles diante do mundo, destacados do mundo. Este estar diante do mundo implica em uma separação entre esta dimensão e o próprio mundo. Isto usualmente conduz o sujeito (perspicazmente confundido com o indivíduo e referenciado à sua dimensão identitária) a se situar separado do mundo ou, até mesmo, a reconhecer o mundo como algo com o qual ele deve se (re)ligar (SAIDÓN, 2008). Esta clivagem é a mola-propulsora do mentalismo. Segundo Saidón (2008, p. 42), "em sua última entrevista, Deleuze dizia que o perigo do pensamento é crer que o mundo é o que nos falta, é pensar que o que aconteceu predominantemente conosco é que perdemos o mundo, que nos separamos dele".

Esses processos e elementos (fenômenos psicológicos, sujeito, subjetividade) são tidos, por conseguinte, como instâncias privilegiadas porque portariam a axiomática prerrogativa de ordenar o mundo, lê-lo, compreendê-lo, julgá-lo, conhecê-lo, enfim, para usar uma palavra-guia dessa perspectiva: representá-lo. E o bom funcionamento da representação em muito interessa à razão instrumental e ao uso de seu poder, pois a eficácia da representação e o jogo de sentido daí derivado têm como contrapartida o estabelecimento de um campo límpido de realidade. Essa é a famosa morada do sujeito do conhecimento, com suas prerrogativas apodícticas, ou seja, necessárias e universais, tão especiais à filosofia (em sua versão clássica), especialmente aos saberes, técnicas e ideais que se alinham no eixo que vai de Descartes a Kant e que se aprimora no ambiente da Ilustração e da modernidade tardia.

Este sujeito ditou rotas no campo das humanidades, mas também no das ciências de linhagem fisicalista, plasmando-se na própria lógica da razão instrumental. O sujeito, assim, uma vez revelado mostra a sua estrutura: é uma mão que pega, segura, reparte, manuseia e golpeia o mundo (o território das corporeidades). Aqui, como já notamos, a rota da produção é submetida ao encanto retórico da descoberta, pois é vital, nesse quadro, que o sujeito seja algo já-dado e perene.

Assim, de acordo com o mentalismo, teríamos necessariamente a naturalização ou essencialização de um sujeito, de um homúnculo embutido no homem, que se contraporia à complexidade do mundo. Como já sublinhamos, trata-se aqui, certamente, de uma forma típica de estabelecimento de fronteiras e espaços dualistas: o sujeito e o objeto, o direito e o avesso, a consciência e o mundo, o centro e a periferia, o local e o global, o dentro e o fora, o transcendente e o concreto (SANTOS, 1999). É possível constatar, sem grandes dificuldades, como esta trilha nos conduz a uma espécie de tirania do sujeito. Segundo Lins (2001, p.105), temos aqui:

Um eu, portanto, sem o outro; um eu contra o outro, um eu alicerçado num tempo psicótico cujo axioma fundamental é a anulação, por meio da denegação, da alteridade. [...] De fato, o eu-déspota, mediante a lógica da denegação, nutrida pelo imaginário enganador e pela ética niilista, instaura uma ordem moral, isto é, um assédio moral, um niilismo ordinário nefasto às subjetividades autônomas, à criatividade e à própria vida.

Essa tirania do sujeito manifesta-se claramente, ainda, na sua convicção altaneira de ser o próprio cosmo ou a totalidade, ao qual tudo se subordinaria. Esse processo de individualização e de crença na sua capacidade racional coloca-o na situação de uma pretensa capacidade de olhar para as coisas e pessoas como se não fosse afetado por elas. A possibilidade do agir racional obscurece no sujeito a afetividade que lhe é inerente, ou seja, a possibilidade de ser afetado pelo seu entorno dando-lhe a ilusão de estar separado do mundo.

O Psíquico Interiorizado

Por conta disso, somos levados a reconhecer aí o que nomeamos de geometrização esférica do psiquismo, isto é, a tendência a sempre abordá-lo, no que diz respeito às suas propriedades, tal qual uma esfera. Por conseguinte, a geometrização esferóide do psiquismo representaria o espaço psíquico como aquilo que sempre apresenta um dentro contraposto a um fora, um interno e íntimo separados (ou ameaçados por?) de um externo e estranho. Estamos diante de uma legítima operação de estriamento (DELEUZE; GUATTARI, 1997) do psíquico. Por estriamento, queremos dar a entender, junto de Deleuze & Guattari (1997), aquele processo que implica na delimitação, segmentação e isolamento de um espaço. No espaço estriado (diferentemente do que se passa no espaço/processo liso), sempre nos deparamos com um direito e um avesso, enfim com o contorno de territórios.

Essa geometrização do psiquismo é uma manifestação tardia de um processo de geometrização ampliada de tudo e resultado da aplicação das bases do conhecimento matemático a todo conhecimento. A geometrização ou matematização oferece segurança e revela-se como um porto seguro de onde se vê e se avista o entorno.

Nessa espacialidade esférica, tão impregnante ainda na formação de psicólogos e outros profissionais psi, podemos reconhecer, por exemplo, uma certa (apressada e engodante) apreensão da psicanálise, quando, reiteradamente, se depreende o inconsciente como um depósito de relíquias mantidas nas profundezas ou resguardadas nos recônditos da mente. O mesmo se passa quando se considera o espaço analítico e o ato do psicanalista como vias legítimas para a assunção do inconsciente, para torná-lo consciente, cognoscível, digerível, enfim, destituí-lo de sua potência descentralizadora. Pressupõe-se, nessa via, que a verdade já esteja dada desde o início (uma proto-verdade que antecede ao sujeito e que faz deste sua estrada-real) e que, portanto, seja justo resgatá-la. As afecções psíquicas, sejam elas brandas ou não, sindrômicas ou mono-sintomáticas, ordenadas pela ansiedade ou pelo delírio, diluídas em meio à continuidade da vida na cidade ou incapacitadoras e paralisantes quanto ao ir-e-vir, de cunho neurotizante ou psicotizante (não nos esquecendo da ampla e temível gama das sociopatias) haveriam de ser, tecnicamente, reconectadas (reequilibradas!) com a verdade. Recorre-se às lembranças infantis, aos insights, à mais meticulosa anamnese, à cena do trauma, ao excesso ou insuficiência de afeto, o mais das vezes, com este propósito reconciliador. Na perspectiva de Lins (2001, p. 106):

O que é verdade permanece verdade, assim reza o princípio de identidade, princípio fundamental da coerência e do pensamento, axioma primordial da metafísica, filosofia que se define como busca de uma verdade permanente, subsistente.

A idéia de um psiquismo profundo, escondido, teatral (sob o primado da representação), merecedor de uma reveladora interpretação, de uma escavação ou de uma captura pela introspecção (e suas constantes reedições) também se atrela a esta geometrização esférica da vida e do psiquismo. Ele cria a ilusão de que bastaria trazer à tona esse amontoado de sensações e sentimentos, guardados em uma urna fechada, habitada por uma espécie de ativo e ululante vampiro, que acordará sob o impacto da luz da razão que o ilumina e o domina pelo conhecimento. Estamos aqui em meio à supremacia do latente que nos é exposta da seguinte forma por Deleuze & Guattari (2004, p. 28):

A grande descoberta da psicanálise foi a da produção desejante, a das produções do inconsciente. Mas, com o Édipo, essa descoberta foi rapidamente ocultada por um novo idealismo: substituiu-se o inconsciente como fábrica por um teatro antigo; substituíram-se as unidades de produção inconsciente pela representação; substituiu-se um inconsciente produtivo por um inconsciente expressivo (o mito, a tragédia, o sonho [...]).

Por isso, o mentalismo, na clínica, é usualmente acompanhado de atitudes essencialistas que lançam, de certa forma, a complexidade e a produção no mundo, naquilo que está adiante (o objectum) e, por outro lado, artificialmente simplificam o subjectum tornando-o subjacente, reconhecendo-o como aquilo que sustenta, suporta, mede e funda um dado campo de realidade (que, sem esse suporte ou fundamento, correria o risco de se deteriorar, se esgarçar, segundo os essencialistas, esses platônicos contemporâneos). Daí, sua tirania, pois o mundo, o outro são todos como o seu domus. Essa separação, tão cara ao pensamento positivista, coloca em pólos opostos o sujeito e o objeto do conhecimento, pleiteando uma suposta neutralidade científica, desconhecendo o quanto sujeito/objeto estão interligados e se afetando mutuamente. Isso não significa, por outro lado, esquecer-se do necessário estranhamento em relação ao que se está conhecendo, capaz de fazer emergir o olhar crítico.

Vale sublinhar que hypokeimenon (palavra à qual o conceito de sujeito em sua face identitária está, inevitavelmente, vinculado) é uma noção valiosa aos gregos no momento fundante da filosofia ocidental e em sua subseqüente operação platônica, que vem promover o distanciamento do logos em relação às artes e à vida comum (e, muitas vezes, à vida-em-comum). Hypokeimenon significa, ao mesmo tempo, fundamento e sujeito. Uma boa parte das psicologias, da psiquiatria e da psicanálise continua seqüestrada por esta tecnologia clínica. Muito do que hoje se entende por terapia ou tratamento gira em torno desse eixo: a suposição de uma existência prévia que lê, organiza, modifica o mundo. Quantas vezes a própria idéia de interpretação não conduz os mais diversos profissionais do campo da saúde mental a uma operação em que o crucial é a tomada de posse de uma parte da história do sujeito que lhe falta? Eis aqui uma concepção bastante colonizadora da interpretação: a expectativa de que o sentido seja o preenchedor que falta ao domínio de si ou do outro adequando, assim, os meios e os fins de forma instrumental.

O Sujeito, o Indivíduo e o Aço

O paroxismo da atitude mentalista (seja do paciente, do profissional da saúde ou da instituição na qual eles se encontram) é muito bem discernido no solipsismo, na proporção em que este promulga um enunciado dessa ordem: "o mundo é rigorosamente meu mundo, naquilo que ele tem de privado, interior e idiossincrásico!". Trata-se aqui da fina aliança do mentalismo com o individualismo, no que esse tem de mais corrosivo e disciplinador, proporcionando a expectativa de um aparelho mental demarcado pelo pathos da distância: distância do mundo, do outro, da diferença. Vale sublinhar que esse modo de apresentar o sujeito e o espaço psíquico pode ser tomado como um ângulo bem específico daquilo que poderia ser nomeado como "subjetividade capitalística" (GUATTARI, 1993, p. 184). Essa atitude solitária e ensimesmada não se reconhece enquanto afetividade, ou seja, como capaz de ser afetado pelo que lhe rodeia, produzindo, em decorrência, um conhecimento superficial que se crê suficiente.

Esse modus operandi da subjetividade vai ganhando contornos mais definidos e, ao mesmo tempo, se insinuando amplamente em todos os espaços da vida social (seja ela privada ou pública) a partir do século XVIII. Vemos ali um desequilíbrio que, ainda hoje, impõe amplas conseqüências em nossas vidas e em nossas relações com o humano, o não-humano e, certamente, o pós-humano: o desequilíbrio das relações estabelecidas entre os homens e as máquinas. Espaços e territorialidades até então aparentemente blindados aos mecanismos e máquinas serão, doravante, impactados pelos mesmos, de forma inexorável. Por exemplo, as corporeidades física e social, a anatomia e as cidades, os membros e os órgãos de um corpo e os da política estarão subsumidos e atravessados pelo capital, suas maquinações e máquinas invertendo o seu campo de significação, tal como nos é proposto por Guattari (1993, p. 185):

Antes era o Déspota real ou o Deus imaginário que serviam de pedra angular operacional para a recomposição local de Territórios existenciais. Agora será uma capitalização simbólica de valores abstratos de poder, incidindo sobre saberes econômicos e tecnológicos [...]. A nova 'paixão capitalística' varrerá tudo o que encontrar pelo caminho: em especial as culturas e as territorialidades que, bem ou mal, haviam conseguido escapar aos rolos compressores do cristianismo.

É em meio a essa operação que surgirá, de uma forma alastrada, como até então não ocorria, o mecanismo que mais solidamente divide os espaços, as moradas, a vida e o sujeito em um dentro e um fora, um interno e um externo: o império do aço (e a conjunção, aí fixada, entre identidade, indivíduo e corpo):

O primado do aço e das máquinas a vapor que multiplicará a potência de penetração dos vetores maquínicos tanto na terra, no mar e no ar, quanto no conjunto dos espaços tecnológicos, econômicos e urbanísticos. (GUATTARI, 1993, p. 185).

Vale notar o que está subentendido nesta argumentação: o sujeito, antes de ser um elemento desde já dado, situado face ao mundo, é uma dimensão que não se furta ao domínio da produção. Em outros termos, a demarcação de um espaço psíquico interiorizado, supostamente perene e segmentado do mundo já é um modo muito particular de se produzir o sujeito no esteio da razão instrumental; é desde aí que esta subjetividade conhece e reconhece o mundo e se apropria do mesmo em função de seus desígnios em busca da eficiência.

O desequilíbrio nas relações processadas entre os homens e as máquinas conduzirá os primeiros, nesse ambiente, a uma posição adjacente e de propensão parasitária quanto às segundas. Desta feita, segundo Guattari (1993, p. 186):

Portanto, sejam quais forem as aparências de liberdade de pensamento com a qual o novo monoteísmo capitalístico sempre gostou de se pavonear, ele sempre pressupôs uma dominação arcaizante e irracional da subjetividade inconsciente, especialmente através de dispositivos de responsabilização e de culpabilização hiperindividualizados que, levados a seu paroxismo, conduzem às compulsões autopunitivas e aos cultos mórbidos do erro, repertoriados com perfeição no universo kafkaniano.

O solipsismo do indivíduo e o processo permanente de culpabilização que permeia suas relações com o mundo é a garantia da manutenção mais profunda da ordem capitalista e suas promessas de uma abstrata liberdade.

Do Sujeito Interiorizado à Subjetivação na Superfície Complexa

Em contrapartida a tudo isto, sem, obviamente, recairmos em oposições simplistas, temos os instigantes convites da Filosofia da Diferença: esse amontoado de folhagens, de discursos, de rotas não lineares que, principalmente a partir das elucubrações de Gilles Deleuze e Félix Guattari promovem aí, na esfera, um descentramento que terá como efeito uma alteração drástica em sua geometria, levando-a a sair do seu lugar comum de precisão e a apresentar propriedades e possibilidades bem outras:

O pensamento clássico mantinha a alma afastada da matéria e a essência do sujeito afastada das engrenagens corporais. Os marxistas, por sua vez, opunham as superestruturas subjetivas às relações de produção infra-estruturais. Como falar da produção de subjetividades, hoje? (GUATTARI, 1993, p. 177)

Deleuze, em outro momento, sem se esquecer que foi Foucault quem, inicialmente, em muito provocou esse grande combate contra a representação de um "eu imbuído de um singular sem singularidade" (DELEUZE, 1992, p. 132) nos interpela:

A subjetivação não foi para Foucault um retorno teórico ao sujeito, mas a busca prática de um outro modo de vida, de um novo estilo. Isso não se faz dentro da cabeça: mas hoje onde será que aparecem os germes de um novo modo de existência, comunitário ou individual, e em mim, será que existem tais germes?

Santos & Meneses (2009) discutem a discrepância entre os nossos saberes e práticas e a falta de teorias para lidar com a quantidade de transformações pelas quais passa o mundo e nos convidam a nos distanciar das teorias tradicionais para que possamos descobrir as diversidades do conhecimento. Para tanto, é preciso conhecer os novos atores sociais comprometidos com a transformação e valorizar os conhecimentos oriundos dos movimentos sociais. Segundo esse autor, para mudar o mundo é preciso conhecer as diversidades culturais existentes e não tanto estar de posse de uma grande teoria.

Voltando à reflexão de Deleuze, ocorre aí uma legítima torção moebiana, isto é, uma transformação do dentro-fora promovendo uma superfície complexa e sob o contínuo efeito de várias dobras, giros e percursos. Deleuze, nesse caso, lança a provocação anti essencialista: "dobrar a linha do fora" (DELEUZE, 1992, p. 141). Isto implica em pensar a subjetividade não mais como um processo decorrente do desenvolvimento de capacidades ou funções psíquicas inerentes ao humano ou como um espaço destacado do mundo, porém, como dobras de uma superfície complexa e constantemente (re)produzida sob novas linhas e rotas; uma espécie, pois de subjetivação origami.

O dentro e o fora, o familiar e o estranho, o estriado e o liso não mais seriam entidades repartidas, portadoras de naturezas distintas e, uma vez hipostasiadas, garantidoras de processos substancialmente díspares. Seriam, antes, efeitos, dobras de uma só e mesma superfície, compartilhantes de processos complexos. Isso acarretaria uma transformação sobre o sujeito, bem como sobre o objeto, caso essas duas sinalizações - sujeito e objeto - façam ainda, nesse ponto, algum sentido:

O espaço liso e o espaço estriado, - o espaço nômade e o espaço sedentário, - o espaço onde se desenvolve a máquina de guerra e o espaço instituído pelo aparelho de Estado, - não são da mesma natureza. Por vezes podemos marcar uma oposição simples entre os dois tipos de espaço. Outras vezes devemos indicar uma diferença muito mais complexa, que faz com que os termos sucessivos das oposições consideradas não coincidam inteiramente. Outras vezes ainda devemos lembrar que os dois espaços só existem de fato graças às misturas entre si: o espaço liso não pára de ser traduzido, transvertido num espaço estriado; o espaço estriado é constantemente revertido, devolvido a um espaço liso. [...] Note-se que as misturas de fato não impedem a distinção de direito, a distinção abstrata entre os dois espaços. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 179)

A perspectiva da Filosofia da Diferença retira a problemática do sujeito do âmbito do indivíduo e de sua interiorização demasiado estriada, inserindo-a em territórios maquínicos (DELEUZE; GUATTARI, 2004), nos quais verificamos uma constante bricolagem entre elementos heterogêneos. Isto tem como conseqüência, dentre outras, em se propor uma clínica não mais demarcada por lugares ou segmentações assegurados, porém, como espaço de produção. Ao ver de Deleuze, trata-se de se inserir a produção no desejo e reconhecer o desejo na produção (DELEUZE, 1992). Em outros termos, devemos tecer a clínica e a crítica conjuntamente. Isso, por si só, torna o ato clínico muito mais complexo e digno das modalidades de afetação que se inscrevem em nosso cotidiano:

[...] sujeito é esse que não é um indivíduo [e nem mesmo está centrado no indivíduo], que não é universal [e nem sequer constitui uma totalidade], que não se separa com precisão de seus 'objetos' [e, de fato, estão variavelmente acoplados] e que nem se prende verticalmente a uma 'ontologia' particular [e, de fato, se produz em processos múltiplos e heterogêneos, que se dão em vários níveis e escalas diferentes] (TEIXEIRA, 2001, p. 52).

A aceitação desses princípios traz consigo a necessidade de se romper com os procedimentos científicos tradicionais e o esforço de se estabelecer uma relação diferente entre o pesquisador ou clínico e aquilo que está sendo observado ou pesquisado.

Trata-se, pois, de assumir a complexidade dos acontecimentos contemporâneos que não mais se coadunam aos ditames nítidos e retilíneos de um mundo alavancado pelo aço e pelas individuações identitárias aí constituídas. Ao ver de Deleuze (2003, p. 328, tradução nossa),

[...] a noção de sujeito perdeu muito de seu interesse em favor de singularidades pré-individuais e de individuações não-pessoais. Mas, precisamente, não é suficiente opor os conceitos entre si para saber qual é o melhor. É preciso confrontar os campos de problemas aos quais eles respondem, para descobrir sob quais forças os problemas se transformam e exigem, eles próprios, a constituição de novos conceitos.

Clínica e Produção

Não se trata mais de se partir da questionável constatação que nos diz que a consciência, o sujeito, o inconsciente, os processos psíquicos estejam diante do mundo (prontos a suportá-lo, representá-lo, torná-lo inteligível e operável), mas, bem diferentemente, verificar que a subjetividade é uma coisa produzida dentre outras, ao invés de um espelhamento da realidade. Uma produção, notemos, que não se atém a um arché, ou seja, a um princípio ou ponto de origem, a uma espécie de instante zero que manteria relação com uma entidade transcendente tida como criadora ou causadora. Por outro lado, tal produção também é destituída de um télos, essa espécie de fim e de progresso já pré-estabelecidos. É isso que faz do psíquico (e pensemos na clínica que aí se instala, com seus propósitos, limites e possibilidades) muito mais um processo afeito ao espaço liso ao invés de estriado, para nos utilizarmos mais uma vez de uma perspicaz interrelação proposta em Mil platôs, por Deleuze e Guattari (1997).

Devemos nos lembrar aqui, por exemplo, do estatuto fundante que Freud concede à pulsão (que é absolutamente diferente do instinto, visto que ela é, ao mesmo tempo, duas coisas: força constante e exigência de trabalho, trabalho psíquico) bem como à perspectiva energética (econômica) a partir da psicanálise. Dizer aqui que o psíquico, em sua digna complexidade, comporta uma espacialidade lisa e origami (que é bem diferente de um espaço homogêneo, notemos), implica em estar atento para o fato de o liso ser:

[...] ocupado por acontecimentos ou hecceidades, muito mais do que por coisas formadas e percebidas. É um espaço de afectos, mais do que de propriedades. É uma percepção háptica, mais do que óptica. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 185).

Propor o psiquismo não mais como ponto organizador do mundo, mas como um dos elementos dentre outros, exige não mais considerar o mundo e o sujeito, o corpo e a afetação (pathos) desde perspectivas dualistas. Implica em verificar processos complexos e paradoxais que apresentam o coletivo e o singular sob novos parâmetros, bem como a subjetivação e os objetos (as dimensões agenciadoras). Enfim, nessa perspectiva, a subjetivação "[...] se determina enquanto não se atendo a nenhum lugar, detém-se enquanto não interrompe sua trilha." (SIMÕES, 2008, p. 21).

Compreendemos, que é a partir daí que se pode localizar em escalas múltiplas os interesses recíprocos entre a Filosofia da Diferença, a clínica e saúde mental coletiva, tendo como via de passagem os processos de subjetivação e suas produções, desdobramentos, aventuras e riscos. Estes processos podem promover um alinhamento ético, político e estético que comporte a chance de colocar o fazer humano sob o âmbito constante da interrogação e da dúvida não exatamente para corroê-lo, todavia, para produzi-lo sempre como possivelmente outro, vivamente diferente.

Para todos aqueles que atuam no campo psi e para os trabalhadores sociais (GUATTARI; ROLNIK, 2004), bem como para todos os cidadãos que aí transitam, são chamados a produzir demandas e põem em cheque os dispositivos e suas tecnologias de tratamento, a proposta de uma conexão complexa entre sujeito e objetos, findando por nos conduzir às paragens dos distintos modos de produção de subjetividade é cada vez mais valiosa para a nossa contemporaneidade. Precisamente aí reside a possibilidade de atos clínicos que sejam divergentes quanto às atitudes prescritivas, normativas, adaptativas e moralizantes, tão afeitas às subjetividades estriadamente esféricas.

Vale, ainda, manter como inquietação e convite a pergunta de Guattari (1993, p. 177), apresentada mais atrás e verificar os seus efeitos páticos e práticos: "como falar da produção de subjetividades, hoje?".

Recebido em: 01 de dezembro de 2009

Aceito em: 14 de junho de 2011

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2011
  • Data do Fascículo
    Ago 2011

Histórico

  • Recebido
    01 Dez 2009
  • Aceito
    14 Jun 2011
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