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Diálogos do “sexo débil”: significações das cartas de mulheres no jornal A Matutina Meiapontense (1830-1834)1 1 Texto revisado e ampliado a partir do que foi apresentado ao GT História do Jornalismo no 11º Encontro Nacional de História da Mídia, evento realizado de 19 a 21 de junho de 2019 em Natal (RN), sediado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e promovido pela Associação Brasileira de Pesquisadores da História da Mídia.

Dialogues of the “weaker sex”: meanings of women’s letters in the newspaper A Matutina Meiapontense (1830-1834)

Resumo

O texto debruça-se sobre as cartas e as respectivas significações e diálogos estabelecidos por duas mulheres que compunham a comunidade de leitores do jornal A Matutina Meiapontense, primeiro periódico impresso no Centro-Oeste que circulou entre 1830 e 1834: Rosseira Zellosa e A Apaixonada. Dentre outros temas, as leitoras-redatoras questionaram poderes instituídos e, principalmente, o lugar das mulheres em construções discursivas que são reveladoras das tramas e dos dramas de gênero presentes na Província goiana oitocentista. O principal corpo teórico-metodológico dialoga com os Estudos Culturais em uma abordagem qualitativa amparada na análise cultural enquanto instrumento metodológico e no levantamento bibliográfico, na pesquisa documental e na análise de narrativas como instrumentos de coleta e de tratamento dos dados. As considerações finais apontam para a dramática situação das goianas no início do século XIX, relegadas às sombras de uma estrutura sociocultural e política eminentemente patriarcal.

Palavras-chave
história do jornalismo; A Matutina Meiapontense; cartas de leitoras; Rosseira Zellosa; A Apaixonada

Abstract

The paper focuses on the letters and respective meanings and dialogues established by two women who were part of the community of readers of the newspaper A Matutina Meiapontense, the first periodical printed in the Center-West of Brazil that circulated between 1830 and 1834: Rosseira Zellosa and A Apaixonada. Among other themes, the reader-writers questioned instituted powers, and especially the place of women in discursive constructions that are revealing of the plots and the genre dramas present in the nineteenth century Goiás Province. The main theoretical-methodological body dialogues with Cultural Studies in a qualitative approach based on cultural analysis as a methodological instrument and bibliographic survey, documentary research and narrative analysis as data collection and treatment tools. The final considerations point to the dramatic situation of the goiana women in the early nineteenth century, relegated to the shadows of an eminently patriarchal social, cultural and political structure.

Keywords
history of journalism; A Matutina Meiapontense; letters of readers; Rosseira Zellosa; A Apaixonada

Considerações iniciais

“Quanto melhor educação tinha hum povo, tanto mais polidas eraõ suas maneiras para com o Sexo debil”. A frase, que aos olhos poderia ser vista como um afrontamento de gênero, foi publicada em dezembro de 1830 por uma mulher que se apresentou como A Apaixonada em correspondência enviada ao jornal A Matutina Meiapontense, o primeiro periódico impresso no Centro-Oeste brasileiro. Ousada e questionadora, a leitora deixou registradas importantes considerações sobre o lugar, o espaço e a condição da mulher naquele tempo histórico em um texto que ocupou praticamente uma das quatro páginas da edição de número 115. E é justamente sobre as significações elaboradas por mulheres que tiveram as suas cartas veiculadas no A Matutina Meiapontense que o presente estudo se debruça. Especificamente, interessa compreender quais eram as inquietudes de duas goianas que tiveram seus textos publicados no periódico, bem como quais diálogos elas conseguiram estabelecer: a Rosseira Zellosa e a já citada A Apaixonada.

Neste estudo, compreende-se que os conteúdos dos veículos de jornalismo são produzidos em tempos e períodos referenciados histórica, cultural e socialmente, traduzindo-se em registros documentais que perenizam narrativas e discursos dotados de memórias e, conforme aponta Ricoeur (2010)RICOEUR, P. Tempo e narrativa III: O Tempo narrado. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2010., de representâncias. Isso porque, segundo o autor, quando o conhecimento histórico revisita o passado, incorre-se num movimento de representância que atesta se e como algo realmente aconteceu que é capaz de referenciar ou entrecruzar a história e a realidade, sendo que uma das principais chaves de acesso é a memória – que pode ou não estar documentada. Em qualquer uma dessas situações, a memória não possui rigidez ou cimento, visto que é uma construção passível de incrementos, alterações e efemeridades. A respeito do assunto, Barbosa (2009, p. 297)BARBOSA, M. C. O reino dos predecessores e dos sucessores. In: Intercom – Revista Brasileira de Ciências da Comunicação: Memória, v. 32, n. 1, jan. jun. São Paulo: Intercom, 2009, p. 285-292. Disponível em: http://portcom.intercom.org.br/revistas/index.php/revistaintercom/article/viewFile/253/246. Acessado em: 12 abr. 2019.
http://portcom.intercom.org.br/revistas/...
assim diz: “A memória, espécie de lugar de nutrição da identidade, é a abertura fundamental que nos informa sobre a materialidade do passado”.

Por ter compreensão similar é que Ricoeur (2012, p. 349)______. A marca do passado. In: História da Historiografia. Ouro Preto, n. 10, dez. 2012, p. 329-349. Disponível em: https://hh.emnuvens.com.br/revista/article/viewFile/456/335. Acesso em: 15 abr. 2019.
https://hh.emnuvens.com.br/revista/artic...
, ao concluir suas reflexões sobre a memória e a verdade histórica, imputa a ambas as categorias uma dimensão dialética na qual “[...] não é possível fazer história sem, da mesma forma, fazer a história” (grifos do autor). Barbosa (2013)______. História da Comunicação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2013. corrobora com essa análise ao pontuar que a construção narrativa da história tem a sua gênese na compreensão de que o fazer histórico possibilita o revelar do passado, ao mesmo tempo em que pressupõe que o conhecimento histórico é envolto em pactos que permitem ao historiador descrever e analisar acontecimentos anteriores à sua própria existência. Portanto, o lugar de fala do presente estudo centra-se nos Estudos Culturais, especialmente naqueles que privilegiam o lugar cultural do Brasil em detrimento de outros cenários, mesmo porque o objeto empírico em questão está vinculado à História Cultural da Comunicação em Goiás.

Posto isso, pontua-se o entendimento de que pensar a História da Imprensa (ou do Jornalismo) como História Cultural é percebê-la como a história das próprias dinâmicas comunicacionais, uma vez que a comunicação, quando compreendida enquanto um processo de produção social de sentidos, está intimamente relacionada à cultura, “[...] condição constitutiva da vida social”, tal como pontua Hall (1997, p. 220)HALL, S. A centralidade da cultura: notas sobre revoluções culturais do nosso tempo. In: Educação & Realidade, vl. 22, n. 2, jul./dez. Porto Alegre: UFRGS, p. 15-46, 1997.. Portanto, é pensar a história dos sistemas de comunicação que considera circuitos de produção e de apropriação/significação dos conteúdos dos veículos midiáticos, bem como as suas contribuições na transformação simbólica e material das sociedades.

A pesquisa aqui exposta faz parte de um projeto mais amplo sobre a História Cultural da Imprensa goiana, vinculado ao Grupo de Pesquisa História da Comunicação em Goiás2 2 Grupo certificado pela Universidade Federal de Goiás e pelo CNPq. Link de acesso: dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/9894177026176850. . Ao se pretender estudar um objeto tão singular quanto as cartas de mulheres veiculadas no primeiro jornal que circulou no Centro-Oeste à luz dos Estudos Culturais, aponta-se a pesquisa qualitativa como a forma mais sensível de abordagem, tal como sintetiza Minayo (2001)MINAYO, M. C. de S. Ciência, técnica e arte: o desafio da pesquisa social. In:______. (org.) Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, p. 9-31, 2001.:

A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se preocupa [...] com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis

(MINAYO, 2001MINAYO, M. C. de S. Ciência, técnica e arte: o desafio da pesquisa social. In:______. (org.) Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, p. 9-31, 2001., p. 21-22).

Metodologicamente, aponta-se a análise cultural como o principal método de procedimentos, corroborando com as pontuações de Williams (2003)WILLIAMS, R. La larga revolución. Buenos Aires: Nueva Visión, 2003. de que nesse tipo de investigação a centralidade analítica contextualiza o viver expressado pelo conjunto da organização social, considerando-se ainda a cultura vivida, a registrada e a originária da tradição seletiva. Ainda de acordo com o autor, a análise cultural é capaz de apontar interpretações históricas que desnudam valores específicos e experiências de sujeitos em determinado período e lugar, na medida em que possibilita abordagens políticas, conjunturais e articuladoras da produção e do consumo cultural – também presentes nos jornais cujos acervos perenizaram registros acerca de dada cultura.

Os principais instrumentos de coleta e tratamento dos dados foram, respectivamente, o levantamento bibliográfico, a pesquisa documental e a análise de narrativas à luz da análise cultural. O levantamento bibliográfico, definido por Stumpf (2005, p. 51)STUMPF, I. R. C. Pesquisa Bibliográfica. In: DUARTE, Jorge.; BARROS, Antônio (orgs.). Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. São Paulo: Atlas, p. 51-61, 2005. como “[...] um conjunto de procedimentos que visa identificar informações bibliográficas” foi utilizado, especialmente, para reunir informações sobre o tempo histórico estudado, o que inclui tanto as poucas obras publicadas sobre a História da Imprensa em Goiás, quanto a conjuntura de produção da vida social no território goiano do século XIX. Ressalta-se que, apesar de já ter 189 anos de existência, a História da Imprensa goiana ainda não foi sintetizada em nenhuma pesquisa científica. Para além dos estudos contemporâneos focados em um veículo jornalístico ou comunicacional específico, as raras obras existentes mais trazem listagens registradoras da existência de periódicos impressos em distintos locais e temporalidades, a exemplo de Lobo (1949)LOBO, J. Contribuição à História da Imprensa Goiana. Goiânia: [s.n.], 1949. e Teles (1980)TELES, J. M. A imprensa goiana: síntese histórica. In: Associação Goiana de Imprensa. Imprensa goiana: depoimentos para sua história. Goiânia: CERNE, 1980., sendo que muitas delas foram construídas com angulações lineares, inventariantes ou meramente cronológicas, o que se consubstancia em um grande desafio aos pesquisadores que miram em objetos de estudos relacionados à História da Imprensa e da Comunicação em Goiás.

A pesquisa documental, conceituada por Moreira (2005, p. 271)MOREIRA, S. V. Análise documental como método e como técnica. In: DUARTE, Jorge.; BARROS, Antônio (orgs.). Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. São Paulo: Atlas, p. 51-61, 2005. como a “[...] identificação, a verificação e a apreciação de documentos para determinado fim”, corroborou no contato e na seleção das cartas das leitoras publicadas no jornal A Matutina Meiapontense no ano de 1830, cujo acesso ao acervo do jornal ocorreu por meio de um CD-ROM no formato Portable Document Format (PDF), uma vez que a totalidade dos exemplares do periódico foi digitalizada pela Agência Goiana de Cultura Pedro Ludovico Teixeira (AGEPEL) do Governo do Estado de Goiás e é disponibilizada gratuitamente aos interessados.

No que concerne à análise de narrativas, apontada por Motta (2007, p. 146)MOTTA, L. G. Análise pragmática da narrativa jornalística. In: LAGO, Cláudia; BENETTI, Márcia. Metodologia de pesquisa em jornalismo. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 143-167. como “[...] um campo e um método de análise das práticas culturais” capaz de traduzir o conhecimento objetivo e subjetivo das sociedades sequenciando passado, presente e futuro, considerou-se especialmente a necessidade de identificar os elementos do contexto histórico que permearam o ato comunicativo das leitoras que escreveram para o periódico goiano em 1830. As leitoras Rosseira Zellosa e A Apaixonada foram escolhidas por terem sido as duas primeiras mulheres a escrever para o impresso, pois já se sabia, por meio de breves menções nas obras de Teles (1989)______. A Imprensa Matutina. Goiânia: CERNE, 1989. e Curado (2018)CURADO, A. R. O. Jornal A Matutina Meiapontense no Contexto da Abdicação de Dom Pedro I: uma análise a partir da esfera pública de Habermas. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Faculdade de Informação e Comunicação, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2018., dos registros narrativos que ambas haviam deixado no impresso. A partir dessas deixas, procedeu-se a uma leitura da editoria “Cartas de Leitores” do A Matutina Meiapontense a fim de verificar se teria mesmo sido essas duas anônimas a inaugurar a publicação de textos assinados por mulheres no primeiro periódico do Centro-Oeste brasileiro, bem como perceber as suas narrativas, diálogos e inquietudes.

Apesar de o teor do objeto de pesquisa navegar em temáticas de gênero, o estudo proposto está focado muito mais nas significações, diálogos e narrativas das duas primeiras leitoras que tiveram suas cartas publicadas no jornal A Matutina Meiapontense, do que neste campo em si. Todavia, há o reconhecimento da indissociabilidade entre as questões de gênero e a conjuntura sócio-histórica, afinal, como sintetiza Scavone (2008, p. 180-182)SCAVONE, L. Estudos de gênero: uma sociologia feminista? In: Estudos Feministas, v. 16, n. 1, jan./abr. Florianópolis: UFSC, p. 173-186, 2008., “gênero é uma categoria de análise histórica, cultural e política, e expressa nas relações de poder [...] que retoma uma das questões centrais do feminismo: a indignação diante de um mundo dividido em gêneros”. Como dito, no presente texto este mundo dividido em gêneros remonta ao ano de 1830 na longínqua Província de Goyaz, no qual, mesmo diante do retumbante poder do patriarcado, duas mulheres ousaram enfrentar uma exposição pública, mesmo que sob a suposta proteção de pseudônimos, para denunciar as suas condições sociais e refletir sobre questões conjunturais, políticas e culturais da sociedade na qual sobreviviam.

A luz que clareia a aurora: o jornal A Matutina Meiapontense e o nascimento da imprensa em Goiás e no Centro-Oeste

As atividades impressas foram introduzidas nas Américas no século XVI, especificamente quando, em 1553, os espanhóis instalaram oficinas no México, sede do Vice-Reinado da Nova Espanha. No Brasil, a tipografia emergiu 275 anos depois, quando, em 1808, a Corte Portuguesa instalou-se no Rio de Janeiro e deu início à chamada Impressão Régia como parte das iniciativas governamentais que objetivavam assegurar o apoio infraestrutural à Coroa. Inicialmente, essa oficina tipográfica publicava apenas documentos necessários à burocracia estatal. Contudo, em junho de 1808, começou a imprimir papeis comerciais, folhetins e almanaques e, em setembro desse mesmo ano, deu início ao primeiro jornal do país, A Gazeta do Rio de Janeiro, órgão oficioso da administração portuguesa (BARBOSA, 2013______. História da Comunicação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2013.).

De acordo com Rizzini (1998)RIZZINI, C. O livro, o jornal e a tipografia no Brasil: 1500 - 1822 . São Paulo: Imesp, 1988., o início das atividades regulares de impressão no Brasil pode, cronologicamente, ser pensado em três momentos: o primeiro abarca o Rio de Janeiro (1808) e a Bahia (1811); o segundo engloba as Províncias de Pernambuco, Maranhão, Pará e Minas Gerais que, em 1821, contavam com tipografias e órgãos de imprensa; enquanto o terceiro registra uma expansão das atividades para o Ceará (1824), Paraíba (1826), São Paulo e Rio Grande do Sul (1827), outras localidades do Rio de Janeiro (1829), Goiás (1830), Santa Catarina e Alagoas (1831), Rio Grande do Norte, Piauí e Sergipe (1832), Espírito Santo e Mato Grosso (1840) e Amazonas (1852). Portanto, a imprensa goiana emergiu nesse terceiro momento, 22 anos após as atividades tipográficas terem sido oficialmente instaladas no país.

O primeiro jornal do sertão goiano e da Região Centro-Oeste nasceu com a matutina, a luz que clareia a aurora e anuncia o dia. É que, de 5 de março de 1830 a 21 de abril 1834, com um acúmulo de 526 edições, em Meia Ponte (atual Pirenópolis), a Typographia D’Oliveira, imprimiu o A Matutina Meiapontense. Tal como tantos outros periódicos que emergiram no Brasil oitocentista e que traziam em suas nomenclaturas os projetos e os pensamentos dos grupos aos quais se vinculavam, o nome do primeiro periódico goiano carrega posicionamentos geopolíticos e ideológicos que fazem alusão tanto à Meia Ponte, seu local de origem e centro de poder, quanto aos ideários liberalistas e iluministas ligados ao Estado Monárquico-Constitucional.

Na conjuntura nacional, o A Matutina Meiapontense despontou no acirramento das disputas das elites brasileiras com a Corte dirigida por Dom Pedro I no final do Primeiro Reinado (1822 a 1831) e se firmou na Regência, após a Abdicação em abril de 1831. Naquele momento histórico, para além das configurações de um Estado alicerçado na Monarquia Constitucional em detrimento da Absolutista, o que estava em disputa eram os privilégios da elite colonial, sobretudo frente à propriedade privada, à produção e ao comércio, o que, necessariamente, perpassava pelo trabalho escravo. O projeto de criação do A Matutina Meiapontense estava, portanto, vinculado a um pensamento político nacional, tanto é que os seus editores estabeleceram redes simbólicas com importantes grupos de liberais moderados que mantinham impressos, tais como os jornais A Aurora Fluminense, O Astro de Minas e O Farol Paulistano, todos lançados em 1827 e apresentados no editorial do primeiro número como “inspirações” (PROSPECTO, 1830PROSPECTO. Jornal A Matutina Meiapontense, Meia Ponte, 5 mar., p.1, 1830.).

Pelos locais indicados para que a assinatura pudesse ser realizada, é possível supor que o jornal circulava em Meia Ponte, na Cidade de Goiás, em Traíras, em Cuiabá e em São João Del Rei. No que concerne às cartas de leitores, os editores do impresso garantiam o sigilo da fonte e admitiam o uso de pseudônimos, desde que as correspondências obedecessem às “formalidades legais” e objetivassem o fortalecimento da “felicidade” de uma nação Constitucionalista (PROSPECTO, 1830PROSPECTO. Jornal A Matutina Meiapontense, Meia Ponte, 5 mar., p.1, 1830.). Em geral, as cartas assinadas eram enviadas por homens que ocupavam cargos públicos ou tinham alguma influência política ou religiosa. Todavia, apesar da condição social da goiana no contexto histórico do Brasil oitocentista, algumas correspondências de mulheres também foram impressas, conforme se verá a seguir.

Disputas simbólicas e enfrentamentos de gêneros na luz que prometeu trazer a aurora

A primeira carta de uma mulher endereçada ao jornal A Matutina Meiapontense foi publicada na edição 98, de 13 de novembro de 1830. A autora, que assinou com o pseudônimo de Rosseira Zellosa, denunciou e criticou o hábito da elite colonial vilaboense de sepultar seus membros no interior das igrejas, pois a saturação do solo gerava um acondicionamento inadequado dos cadáveres que se transformava em um problema de calamidade pública devido ao mau cheiro exalado, que chegava a atrapalhar a realização das missas. Assim ela começou a sua correspondência:

No dia 2 de 9br.º do corrente, dia em que se cellebraõ os Divinos Officios pelas Almas dos nossos fieis defuntos, me achei na Cathedral desta Cidade de Goyaz para enviar as minhas Orações ao Todo Poderozo, e elle as distribuir pelas Almas, quando de improviso me vi a tacada do mais execrando fedor que extendia-se por toda a Igreja, de maneira que naõ só eu como as de mais Senhoras assaz fatigadas e possuídas de uma intima dor de cabeça maldisiamos deste modo. Será possível que os homẽse stejaõ taõ faltos de temor de Deos, que se animem a enxer a sua Santa Caza de cadáveres os mais idiondos? Será crivel que estejaõ alucinados, ou faltos de olfacto para o naõ sentirem o quao danoso hé semelhante abuzo para o bem publico?

(ZELLOSA, 1830ZELLOSA, R. Correspondencia. In: Jornal A Matutina Meiapontense, Meia Ponte, nº 98, 13 nov., p. 3-4, 1830., p. 3-4).

Para além da denúncia de um modus operandi praticado com desmando por quem pertencia aos grupos econômicos de maior poder aquisitivo na Cidade de Goiás, o texto de Rosseira Zellosa explicita também uma imensa divisão social que dicotomizava homens e mulheres, já que a crítica recai sobre os homens ligados ao poder público que, em prol de um costume reforçador de status, colocavam em risco a saúde e o conforto das pessoas que queriam exercer a sua religiosidade. Na continuação do trecho citado, a autora fala da “estupidez dos homens” que, ao invés de utilizar os cemitérios, preferiam estocar os cadáveres na Catedral e nas Capelas, cuja “[...] a terra está bastante insopada, e pela sua grande canceira já naõ admite que sepossa sepultar mais nimguem, por isso que o seu maó alito talvez tenha contaminado á todos os povos” (ZELLOSA, 1830ZELLOSA, R. Correspondencia. In: Jornal A Matutina Meiapontense, Meia Ponte, nº 98, 13 nov., p. 3-4, 1830., p. 4).

A hierarquização de gênero também pode ser percebida no modo como Rosseira Zellosa encerra a sua carta. Apesar de ser letrada e de demonstrar domínio do movimento de escrita com capacidade crítica, coerência e coesão, a autora refere-se a si própria como uma “mulher ignorante” a quem falta os “mais ilustrados conhecimentos” para que pudesse melhor se expressar. Com isso, desculpa-se com o leitor e revela que a sua intenção ao redigir tão “mal trassadas linhas” tinha, de fato, um sentido político: agira “a bem do meo Sexo”, ou seja, das mulheres vilaboenses que, certamente, compunham o grupo populacional mais atingido com a situação denunciada:

Eu como mulher ignorante, e falta dos mais illustrados conhecimentos naõ me posso exprimir milhor. a bem do meu Sexo: más abondade do leitor disfarçará, conhecendo as minhas justas intençoens. Queira por tanto Senhor Redactor dar lugar na sua liminosa folha á estas duas mal trassadas linhas para vês se se pode sanar taõ grande mal, que a muito obrigará á esta que hé sua

(ZELLOSA, 1830ZELLOSA, R. Correspondencia. In: Jornal A Matutina Meiapontense, Meia Ponte, nº 98, 13 nov., p. 3-4, 1830., p. 4. Grifos nossos).

Em concordância com as queixas da leitora, logo abaixo da carta o redator inseriu o trecho de uma legislação que pontuava ser dever da Câmara Municipal providenciar cemitérios fora das igrejas, aferiu credibilidade à denúncia e arrematou registrando a primeira correspondência “do bello sexo” veiculada no A Matutina Meiapontense:

A vista da Lei, e do que diz a nossa Correspondente; julgamos muito a proposito chamar a attençaô da Camara Municipal da Cidade de Goyaz sobre hum facto, que julgamos verdadeiro, e de taô reconhecido, e pernicioso abuso, que deo motivo a apparecer na Matutina a primeira Correspondencia do bello Sexo!

(A LEI, 1830, p. 4. Grifos nossosA LEI de 1.º de Outubro de 1828. In: Jornal A Matutina Meiapontense, Meia Ponte, nº 98, 13 nov., p. 4, 1830.).

Dezessete edições depois, mais especificamente no número 115, que circulou em 23 de dezembro de 1830, outra mulher, que se declarou “apaixonada” e pertencente à comunidade de leitores do jornal A Matutina Meiapontense, fez menção à carta da Rosseira Zellosa, a qual considerou ter sido “censurada”, além de emitir a sua opinião a respeito de outros assuntos de relevância para o seu tempo histórico. Assim ela começa:

Senhor Redactor da Matutina. Sempre ouvi diser que as molheres são curiosas, e tudo querem saber, e por isso naô se levará a mal, que eu a exemplo da Senhora Rosseira Zelosa lhe dirija taô bem huma Correspondencia, que por ser de huma sertaneja sem a menor relaçaô com essa gente de lá dos povoados, talvez seja menos censurada

(A APAIXONADA, 1830A APAIXONADA. Correspondência. In: Jornal A Matutina Meiapontense, Meia Ponte, nº 115, 23 dez., p. 3-4, 1830., p. 3. Grifos da autora)

A censura a qual A Apaixonada se refere deve estar relacionada às repercussões no processo de significação social da carta de Rosseira Zellosa, já que não são encontradas reverberações no jornal A Matutina Meiapontense. Contudo, o que é mais pertinente em sua correspondência está na consciência de gênero, uma vez que ela contesta o lugar, o espaço, os direitos das mulheres no território goiano oitocentista, tanto é que Teles (1989, p. 115)______. A Imprensa Matutina. Goiânia: CERNE, 1989. a manchetou como “uma feminista escreve à Matutina”. Ainda no trecho inicial da carta de A Apaixonada, é possível perceber duas esferas socioculturais bem delimitadas: homens/mulheres e população dos povoados/sertanejos. Por ser sertaneja, A Apaixonada esperava que a sua correspondência fosse menos censurada, como se houvesse uma hierarquia capaz de fazer ecoar diferente o que escreveu a Rosseira Zellosa, moradora da capital, e ela, uma mulher interiorana.

Residente em São João das Duas Barras, província criada em 1808 e extinta em 1823 que hoje se localizaria ao Norte de Goiás entre os estados do Tocantins e do Pará, após o parágrafo introdutório, A Apaixonada explicitou que era uma mulher capaz de estabelecer diálogos com homens importantes do seu tempo, pois relata que, pessoalmente e em seu Arraial, já havia expressado a Luiz Gonzaga de Camargo Fleury, padre e redator de A Matutina Meiapontense, toda a sua indignação em relação ao modo como as goianas eram tratadas:

Eu, Sr. Redactor, tenho minha residencia nesta Commarca de S. Joaõ das Duas-Barras, e tive a honra de lhe communicar, quando V. por aqui andou meos fracos sentimentos a respeito do despreso com que era tractado n’esta Comarca o meu Sexo, e ainda me lembro a sua resposta que isso era devido ao abandono em que se achava a educaçaõ, e a falta de instrucçaõ nos homens, porque quanto melhor educaçaõ tinha hum povo, tanto mais polidas eraõ suas maneiras para com o Sexo debil

(A APAIXONADA, 1830A APAIXONADA. Correspondência. In: Jornal A Matutina Meiapontense, Meia Ponte, nº 115, 23 dez., p. 3-4, 1830., p. 4).

Na sequência, a leitora-redatora demonstra um profundo conhecimento da realidade imediata da sua região ao inventariar a situação das instituições educacionais de letramento, bem como indica possuir um alto nível intelectual ao fazer análises conjunturais. De acordo com ela, num universo de 34 paróquias e arraiais, apenas dois contavam com “Cadeiras de Primeiras Letras”, o que era algo inadmissível num Estado Constitucionalista. Em sua visão, essa situação tinha suas origens no desprezo com que os governantes do Sul tratavam o povo do Norte – tão patriota e “amante da liberdade” quanto os demais goianos. Fechando este assunto, novamente A Apaixonada explicita o seu vínculo com a comunidade de leitores do A Matutina Meiapontense quando se diz que “[...] todos puzemos nossas esperanças no Conselho Geral, e ficamos muito contentes quando lemos na Matutina a proposta sobre Cadeiras” (A APAIXONADA, 1830A APAIXONADA. Correspondência. In: Jornal A Matutina Meiapontense, Meia Ponte, nº 115, 23 dez., p. 3-4, 1830., p. 4).

Conforme se pode observar, o grande eixo discursivo de A Apaixonada está nos questionamentos acerca da condição da mulher diante do tratamento “miserável” dispensado ao “sexo débil” em Goiás, que era pior do que o dos “cativos”, o que poderia ser superado por meio da instrução dos homens, da instalação de instituições de primeiras letras para as mulheres e da efetivação de preceitos Constitucionais fundamentais às “[...] miseráveis molheres, que sem duvida são as que sofrem mais nos Estados Despoticos” (A APAIXONADA, 1830A APAIXONADA. Correspondência. In: Jornal A Matutina Meiapontense, Meia Ponte, nº 115, 23 dez., p. 3-4, 1830., p. 3).

Demonstrando uma surpreendente práxis, após questionar a situação da educação formal do Norte da Província, A Apaixonada revelou que nunca se casou porque não estava disposta a se sujeitar às práticas humilhantes impostas pelos maridos às suas esposas e ainda sugeriu que, unidas, as mulheres deveriam empreender esforços para que os princípios liberalistas que regiam a Constituição fossem efetivados:

Nunca me casei, Sr. Redactor, por naô me sugeitar a praticar os mais humilhantes, e abjectos serviços, que aqui exigem os maridos de suas melhores [mulheres], a classe dos captivos, naô sofre mais, e naô é isto huma barbaridade? Santa Constituiçaô! Ninguem como nós as Goyanas do Norte vos deve sua felicidade! He verdade que nossa condição ainda he a mesma, más nossas filhas gosaraô de bens, que nos só gosamos na imaginação, e reunidas todas faremos os mais extremosos exforços para que sejas observada, guardada, respeitada, e mantida, e isto a preço de todo quanto licitamente poderemos empregar. Viva a Constituiçaô que vem libertar as miseráveis Goyanas!. (A APAIXONADA, 1830A APAIXONADA. Correspondência. In: Jornal A Matutina Meiapontense, Meia Ponte, nº 115, 23 dez., p. 3-4, 1830., p. 4).

Afirmando-se pela terceira vez como membro da comunidade de leitores do jornal pelo qual era “muito apaixonada”, além de cobrar ações efetivas dos governantes da Província de Goiás, A Apaixonada também atribuiu responsabilidades aos editores do A Matutina Meiapontense ao fazer outro inventário, só que agora com foco nas correspondências que eram publicadas. A sua principal reclamação recaiu tanto na diminuição do número das cartas de leitores, quanto na preferência dos assuntos do Sul em detrimento Norte. Além disso, a leitora-redatora cobrou do jornal a não divulgação de “planos de melhoramento para esta Província” pelos “Srs. De Goyaz” e os silenciamentos do periódico acerca de diversos conflitos territoriais com povos indígenas das etnias Xerente e Avá-Canoeiro que teriam ocasionado a morte de 90 pessoas na região de Porto Real e de seis soldados milicianos no Tocantins. A Apaixonada deu sequência ao seu texto dizendo que iria fazer mais perguntas e que tinha consciência de que poderia ser considerada uma “bacharela intrometida”. Todavia, ao invés de recuar, acentuou a acidez das palavras tocantes aos “Srs. De Goyaz” e seguiu assumindo os riscos do latente embate de ideias ao qual se propôs:

Eu queria fazer ainda mais perguntas porem poderaõ me chamar bacharela, intrometida, e... o que quiserem: por isso so digo que como esses Srs. De Goyazes tiveraõ sempre debaixo da vara dos antigos Capitaẽs Generaes, por isso a semelhança das bestas, que andando peadas muito tempo, ainda depois de soltas pulaõ como peadas, assim esses meos Srs. Afeitos no arôxo, ainda cuidaõ, que estão do reinado das Rolhas, e nenhum se atrave a diser palavra, pobre gente!!! (3)

(A APAIXONADA, 1830A APAIXONADA. Correspondência. In: Jornal A Matutina Meiapontense, Meia Ponte, nº 115, 23 dez., p. 3-4, 1830., p. 4).

O número (3) inserido ao final do parágrafo guia para uma nota de rodapé do redator inserida abaixo do término da carta de A Apaixonada. Ao contrário do que aconteceu com a correspondência da Rosseira Zellosa, cujo redator aferiu credibilidade à denúncia na mesma edição em que a correspondência foi veiculada e sequer rebateu suas críticas aos homens “alucinados e estúpidos de Goiás”, o teor da nota indica que A Apaixonada incomodou o patriarcado goiano:

(3) A nossa Correspondente attribue injustamente aos Srs. De Goyaz taes sentimentos, nós os conhecemos de perto, e reconhecemos que há em Goyaz muitos Srs. De huma firmeza inabalavel, de huma probidade a toda a prova, e de hum Caracter cheio de honra, e Patriotismo: he muito grande erro attribuir a mingea [míngua] de Liberdade a falta de Correspondencia, e porque estamos certos que a nossa Correspondente naõ terá companheiros no seo modo de pensar, e por isso não expendemos mais difusamente as rasões, que temos para pensar de outro modo, e sem offença de pessoa alguma

(FLEURY, 1830FLEURY, L. G. de C. (3) A nossa Correspondente. In: Jornal A Matutina Meiapontense, Meia Ponte, nº 115, 23 dez. 1830, p. 4., p. 4).

Nessa nota de resposta, além de defender a honra e o caráter dos “Srs. De Goyaz”, o redator ainda distorceu as críticas que A Apaixonada fez ao A Matutina Meiapontense com um absoluto reducionismo, pois, conforme foi debatido anteriormente, a leitora-redatora não atribuiu a pouca liberdade das mulheres à falta de correspondências no jornal. Sem apresentar respostas aos questionamentos realizados, Luiz Gonzaga de Camargo Fleury ainda atestou que, por ser ofensivo, o pensamento de A Apaixonada não encontraria eco, numa perspectiva que não corrobora com o diálogo que anteriormente eles teriam empreendido em São João das Duas Barras, fato que abre a carta da leitora-redatora e que não foi contestado pelo padre.

A Apaixonada ainda critica o teor da correspondência da Rosseira Zellosa porque, em sua opinião, a falta de “Cadeiras” de primeiras letras na Cidade de Goiás era um assunto muito mais pertinente e urgente do que a problemática por ela abordada; pede que o padre Luiz Gonzaga de Camargo Fleury que mantenha o sigilo a respeito da sua identidade e também afirma, pela quarta vez, a sua pertença à comunidade de leitores do jornal: “[...] conforme minhas enfermidades o permittirem ainda lhe dirigirei minhas toscas linhas, porque sou da sua Matutina” (A APAIXONADA, 1830A APAIXONADA. Correspondência. In: Jornal A Matutina Meiapontense, Meia Ponte, nº 115, 23 dez., p. 3-4, 1830., p. 4).

As inquietudes dessas duas mulheres que escreveram para o A Matutina Meiapontense evidenciam tramas e dramas vivenciados no início do século XIX e auxiliam na compreensão de inúmeros aspectos socioculturais e políticos da patriarcal Província de Goiás oitocentista. As indignações de Rosseira Zellosa e de A Apaixonada são, portanto, muito mais bem compreendidas quando os olhares se voltam aos processos históricos edificadores de territorialidades e existências do povo goiano.

As sombras das “inibidas”, “estúpidas” e “sem princípios” mulheres do sertão goiano

Entre os anos de 1726 e 1740, quando circulou a informação de que a região dos índios Goyazes era rica em ouro e pedras preciosas de fácil exploração, enormes contingentes populacionais que eram predominantemente masculinos migraram de vários lugares do Reino e, principalmente, de Minas Gerais e do Mato Grosso, dada a proximidade geográfica e a intensa atividade mineradora já existente naquelas áreas. Nesse momento histórico, a predominância da população masculina em Goiás era tão latente que, em 1819, o botânico, naturalista e viajante francês Auguste de Saint-Hilaire a registrou com espanto em suas memórias. Na obra Viagem à Província de Goiás, o ensaísta tentou compreender a realidade com a qual se deparou com o seguinte questionamento:

Mesmo hoje, quando existem em toda a Província de Goiás núcleos de colonização já enraizados, qual a mulher que não se assustaria com a distância que separa os postos do mar dessa região central, e com as fadigas de uma viagem de vários meses através dos sertões, onde às vezes faltam as coisas mais necessárias?

(SAINT-HILAIRE, 1975SAINT-HILAIRE, A. de. Viagem à Província de Goiás. São Paulo: Itatiaia: Edusp, 1975., p. 53).

Ainda tentando explicar a situação, Saint-Hilaire (1975, p. 53) assinalou que “[...] os primeiros aventureiros que se embrenharam nesses sertões traziam consigo unicamente mulheres negras, às quais seu orgulho não permitia que unissem pelo casamento. A mesma razão impediu-os de desposarem as índias”. Portanto, a escassez de mulheres às quais ele faz referência tem um perfil: são brancas com a qual a elite colonial goiana poderia constituir casamento. Tal conjuntura fez com que o expedicionário francês também registrasse a sua perplexidade com outra característica sociocultural da Província, a qual denominou como “libertinagem” e “relaxamento de costumes”. A respeito do que observou em Vila Boa, Saint-Hilaire (1975, p. 53)SAINT-HILAIRE, A. de. Viagem à Província de Goiás. São Paulo: Itatiaia: Edusp, 1975. registrou que

Em nenhuma outra cidade o número de pessoas casadas é tão pequeno (1819). Todos os homens, até o mais humilde obreiro, têm uma amante, que eles mantêm em sua própria casa. As crianças nascidas dessas uniões ilegítimas vivem ao seu redor, e essa situação irregular causa são pouco embaraço a eles quanto se estivessem casados legalmente. Se por acaso algum deles chega a casar, passa a ser motivo de zombarias. Esse relaxamento de costumes data do tempo em que a região foi descoberta.

Acostumado com a presença de mulheres nas cortes da Europa, Saint-Hilaire (1975, p. 54)SAINT-HILAIRE, A. de. Viagem à Província de Goiás. São Paulo: Itatiaia: Edusp, 1975. também se mostrou estupefato com o isolamento sociocultural, com a falta de letramento, com a submissão e com a ausência de hábitos básicos educacionais, tais como os modos de vestir-se e comportar-se das goianas, às quais não poupou julgamentos morais, utilizando-se de termos como “inibidas e estúpidas”, “sem delicadeza”, com “gestos desgraciosos”, voz “sem doçura”, de conversa “desprovida de encanto”, “sem princípios” e “reduzidas praticamente ao papel de fêmeas para os homens”, com seus “olhos negros e brilhantes” que “traem as paixões que as dominam”.

Ao escrever sobre as mulheres de Goiás, Saint-Hilaire eternizou pistas para a compreensão do papel social que lhes era reservado pela elite colonial goiana, inclusive com registros de hábitos cotidianos. Um dos maiores exemplos está no apontamento de que “durante o dia só se veem homens nas ruas da Cidade de Goiás. Tão logo chega a noite, porém, as mulheres de todas as raças saem de suas casas e se espalham por toda parte” (SAINT-HILAIIRE, 1975SAINT-HILAIRE, A. de. Viagem à Província de Goiás. São Paulo: Itatiaia: Edusp, 1975., p. 54). Os passeios noturnos das mulheres, relegadas às sombras de uma sociedade patriarcal, ocorriam em grupos e raramente eram acompanhados por homens.

Pela descrição do expedicionário francês, também é possível perceber que o controle social também ocorria sobre o corpo das goianas, que, nos passeios noturnos, apesar do calor típico da região, eram envolvidos em “amplas capas de lã”, enquanto a cabeça era coberta com um lenço ou com um chapéu de feltro geralmente masculino. Até mesmo o modo como as mulheres andavam – ou se “arrastavam”, na percepção de Saint-Hilaire (1975, p. 54)SAINT-HILAIRE, A. de. Viagem à Província de Goiás. São Paulo: Itatiaia: Edusp, 1975. – era padronizado: “[...] caminham umas atrás das outras [...] sem moverem a cabeça nem os braços, parecendo sombras deslizando no silêncio da noite” (Grifos nossos).

Considerações finais

O jornalismo é uma prática social que estabelece relações com o universo material e simbólico dos indivíduos e dos grupos sociais, cuja maior centralidade está tanto no tempo presente, quanto na memória. Ao registrar fatos, testemunhos e ações que ocorreram em distintas épocas e momentos históricos, o jornal adquire status de agente de memória do presente vivido. Porém, isso não quer dizer que os veículos jornalísticos são depositários de todas as memórias, pois, na condição de instituições simbólicas, também estão inseridos na seara das disputas, inclusive pelas memórias. Isso implica em compreender que os jornais são instâncias que registram e significam memórias, ao mesmo tempo em que também podem silenciá-las. Na condição de um lugar de guardar – ou de encobrir – memórias, o jornal constrói e registra histórias e narrativas de determinado espaço e tempo que, quando analisadas à luz da pesquisa historiográfica comunicacional, têm a potencialidade de se transformar em passado registrado de objetos e valores socioculturais.

Ao veicular as cartas de Rosseira Zellosa e de A Apaixonada, o jornal A Matutina Meiapontense permitiu que melhor se compreendesse o contexto do patriarcado goiano em aproximações com mulheres intelectuais do início do século XIX que denunciaram e criticaram silenciamentos, abusos e estruturas de poder que contrariavam o liberalismo e o próprio escopo político-pedagógico do periódico com os quais estabeleceram diálogos. Noutros termos, ao registrar o pensamento e as inquietudes de duas goianas, o jornal A Matutina Meiapontense imprimiu memórias que hoje, a exemplo do que pontua Ricoeur (2012)______. A marca do passado. In: História da Historiografia. Ouro Preto, n. 10, dez. 2012, p. 329-349. Disponível em: https://hh.emnuvens.com.br/revista/article/viewFile/456/335. Acesso em: 15 abr. 2019.
https://hh.emnuvens.com.br/revista/artic...
, são capazes de exorcizar a morte porque trazem narrativas que iluminam o tempo presente. Mais do que perenizar acontecimentos, as correspondências de Rosseira Zellosa e de A Apaixonada acessam memórias e significações que vão além do explícito, do que está dado a ler e, simbolicamente, atingem a tessitura das realidades históricas do seu tempo. Assim, a análise aqui empreendida reforça que tão importante quanto compreender a história dos veículos de jornalismo, é perceber a memória dos fatos, personagens, fontes e interlocutores que neles está guardada – ou mesmo que neles sequer foi registrada, mesmo porque é justamente daí que emerge o caráter cultural dos estudos ligados à História da Comunicação e da Imprensa.

Talvez a fonte mais rica de histórias seja mesmo a memória, registro sensível do que determinado fato ou momento representou para agrupamentos sociais e pessoas. Aparentemente, a memória possui apenas uma dimensão individual, fruto de vivências do sujeito nos espaços do seu tempo histórico. Contudo, a dimensão histórica e dialética da formação do sujeito imputa à memória um caráter também coletivo, já que a memória não possui rigidez ou cimento, sendo passível de incrementos, alterações e até mesmo efemeridades. Pensar a História da Imprensa (ou do Jornalismo) como História Cultural é percebê-la como a história do próprio processo comunicacional, que não envolve somente a produção, uma vez que a comunicação é, fundamentalmente, elaboração social de sentidos. Portanto, é pensar a história dos sistemas de comunicação que considera circuitos de produção e de apropriação/significação do conteúdo jornalístico, a exemplo do que ensinam Rosseira Zellosa e A Apaixonada acerca da condição social das goianas no início do século XIX, relegadas às sombras de uma estrutura sociocultural e política eminentemente patriarcal.

  • 1
    Texto revisado e ampliado a partir do que foi apresentado ao GT História do Jornalismo no 11º Encontro Nacional de História da Mídia, evento realizado de 19 a 21 de junho de 2019 em Natal (RN), sediado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e promovido pela Associação Brasileira de Pesquisadores da História da Mídia.
  • 2
    Grupo certificado pela Universidade Federal de Goiás e pelo CNPq. Link de acesso: dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/9894177026176850.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    17 Jul 2019
  • Aceito
    02 Dez 2019
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