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GATTI, Gabriel (Ed.). Un mundo de víctimas. Barcelona: Anthropos Editorial, 2017, 431 p.

GATTI, Gabriel. (Ed.). Un mundo de víctimas . Barcelona: Anthropos Editorial, 2017, 431 p.

No clássico Os afogados e os sobreviventes, Primo Levi (2004LEVI, P. Os afogados e os sobreviventes. São Paulo: Paz e Terra, 2004.) inicia sua reflexão recordando a difícil aceitação das primeiras notícias do extermínio nazista. Ele lembra os relatos de sobreviventes sobre como, ainda nos campos, assombrados pela consciência do absurdo, sonhavam com a volta para casa, quando contavam emotivamente a experiência vivida a seus familiares e recebiam de volta a mais profunda indiferença. Entre outras questões, Primo Levi se referia, assim, aos bloqueios na comunicabilidade da experiência concentracionária que, nas primeiras décadas após o fim da Segunda Guerra Mundial, sinalizavam a ausência de um espaço social para o reconhecimento do sofrimento. No momento de sua escrita, quatro décadas após os fatos, o cenário era de transformação. Mas seria necessário o fim da Guerra Fria para que a rejeição integral das experiências totalitárias consolidasse na comunidade internacional um novo olhar para a questão (Judt, 2007JUDT, T. Da casa dos mortos. Ensaio sobre a memória europeia moderna. In: JUDT, T. Pós-guerra: uma história da Europa desde 1945. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 789-815.; Torpey, 2006TORPEY, J. Making whole what has been smashed: on reparation politics. Cambridge: Harvard University Press, 2006.; Wilson, 2003WILSON, R. The social life of rights. In: WILSON, R.; MITCHELL, J. (Ed.). Human rights in global perspective. New York: Routledge, 2003. p. 1-15.). Levando as memórias dolorosas para o centro de políticas globais e locais de reconhecimento e reparação, a transição para o século XXI implicou a produção de novas linguagens e padrões de moralidade e sensibilidade em relação à violência que alçaram a vítima a um lugar de centralidade política na contemporaneidade (Fassin; Rechtman, 2009FASSIN, D.; RECHTMAN, R. The empire of trauma: an inquiry into the condition of victimhood. Princeton: Princeton University Press, 2009.).

Tendo esse recente processo em perspectiva, o livro Un mundo de víctimas expressa uma demanda por compreender de forma mais densa as configurações assumidas pelo fenômeno nos dias atuais, quando a vítima se encontra não somente consolidada como sujeito (global e local) de demandas e cuidados, mas também se constitui como um tipo subjetivo não mais exclusivamente ligado à excepcionalidade das grandes tragédias políticas que residem na origem de seus usos contemporâneos. Construído a partir de pesquisa empírica realizada no contexto espanhol, o livro se propõe a refletir sobre um complexo cenário de multiplicação e diversificação dos sujeitos sociais inseridos no espaço público a partir de suas dores e, através delas, de uma reivindicada condição de vítima. Mais do que uma compilação de artigos, ele resulta do projeto de investigação coletivo e multidisciplinar “Mundo(s) de víctimas. Dispositivos y procesos de construcción de la identidad de la ‘víctima’ en la España contemporánea”. Com duração de cinco anos, o projeto envolveu equipe de 15 pesquisadores de sete universidades, coordenado por Gabriel Gatti, a partir do Centro de Estudios sobre la Identidad Colectiva da Universidad del País Vasco.

Em termos metodológicos, a investigação se desenvolveu sobre um recorte de quatro diferentes casos observados na Espanha: as vítimas de violência de raiz política; as vítimas de violência machista ou de gênero; as vítimas de acidente de trânsito; e um conjunto heterogêneo de outras vítimas. Entre as últimas, aquelas que demandam, inspiradas nas experiências das três primeiras, mecanismos institucionais de reconhecimento, o projeto trabalhou especialmente com o caso de roubo de bebês. Os quatro casos foram selecionados a partir de critérios como: a causa da vitimização, o grau de institucionalização, o tipo de estrutura organizativa existente entre as vítimas, as expertises e retóricas que mobiliza, sinalizando uma atenção voltada para os espaços de confluência entre movimentos reivindicativos e instituições gestoras. A pesquisa foi realizada por meio de entrevistas individuais em profundidade com vítimas e especialistas de cada caso, observação etnográfica em espaços variados, e entrevistas coletivas organizadas com grupos mistos de vítimas dos quatro casos. Com tal fôlego e dimensões, o projeto assumiu o desafio de produzir dados que fornecessem lastro histórico e sociológico para a compreensão situada de um fenômeno sobre o qual pesam múltiplas pressões universalizantes. Porém, tão instigantes quanto as colaborações empíricas são as contribuições teóricas desenvolvidas a partir de uma proposta analítica que combina de maneira interessante abordagens genealógica e comparativa.

A questão centralmente proposta é a possibilidade de se falar hoje em um mundo de vítimas. Um espaço compartilhado, onde certa universalização das formas de gerir e habitar o sofrimento transcende as singularidades caso a caso para dar lugar a uma vítima sem adjetivos, ponto de confluência entre ideias sobre cidadania e vulnerabilidade. Uma nova perspectiva se coloca na proposta de pensar a vítima em sua relação com o cidadão, trazendo para o centro das inquietações as implicações recíprocas da progressiva diluição das fronteiras que antes separavam os dois termos antagonicamente. Referindo-se à genealogia da ascensão global da vítima no final do século XX, tais fronteiras remetem aos pactos políticos que associaram a categoria aos mártires e heróis consagrados nos diferentes processos de transições políticas nacionais vividos naquele momento. Tomadas como fiadoras morais das cidadanias gestadas nesses contextos, as vítimas foram delas excluídas por sua excepcionalidade. Extraordinárias, porém passivas, na medida em que definidas pela dor e pela necessidade de assistência, as vítimas nasceriam como opostos dos cidadãos, sujeitos ordinários, porém ativos, definidos por sua participação na esfera pública. Ao investigar a constituição e a expansão de novos campos sociais de vítimas, colocando-os em perspectiva, o projeto aponta os limites de tal dicotomia para pensar a atualidade.

Os 24 capítulos do livro foram divididos em seis seções. São 16 produções de pesquisadores membros da equipe, e oito contribuições de autores convidados. Enquanto as duas primeiras seções concentram textos referentes à pesquisa coletiva levada adiante nos marcos do projeto, as quatro restantes se abrem a temas transversais. A primeira seção introduz e condensa as proposições de alcance mais geral em dois textos: uma reflexão crítica de Gabriel Gatti sobre a bibliografia voltada à temática da vítima; e um glossário colaborativo de 21 verbetes que reúne as ferramentas teóricas mobilizadas no acesso coletivo ao mundo de vítimas, tanto conceitos já consolidados no campo quanto as alternativas propostas pelo projeto.

Na segunda seção, o leitor é levado a caminhar pelos casos. Entre os capítulos quatro e sete, adentramos os quatro campos sociais de vítima investigados, cada um deles forjado por referências normativas, institucionais e assistenciais próprias, contribuições profissionais e acadêmicas especializadas, e estratégias específicas de atuação das vítimas. Em meio a tensões variadas, seus dispositivos e agências convergem para delimitar sentidos singulares para as experiências que perfazem os casos coletivos de sofrimento e vitimização. Se uma leitura isolada desses capítulos conduz o leitor a universos específicos e incomunicáveis, no texto inicial da seção, Gatti e María Martínez afirmam haver um horizonte comum imaginado pelos que, nos distintos campos, investem na construção de identidades coletivas em busca de reconhecimento. Ao compararem os casos, os atores concordam que o sofrimento é o traço comum que, ao singularizar a todos, também os equipara. Com referência nele, tecem um único campo simbólico, paradigmático e moral no qual o cidadão que sofre, qualquer um, sempre encontra subsídios para interpelar Estado e sociedade. O que não impede que reconhecimentos sociais diferenciados venham a se estabelecer e hierarquizar os distintos casos, inclusive como consequência de disputas entre vítimas pela afirmação de sua singularidade. O mundo de vítimas seria, assim, um paradoxo de forças que convergem ao mesmo tempo em que se enfrentam.

Refletindo acerca das vítimas de raiz política, Gatti e de Jesús Izquierdo Martín enfatizam o investimento na corrosão das fronteiras que mantinham a exclusividade do reconhecimento para as vítimas da organização independentista basca ETA, de acordo com os consensos da transição espanhola. A inclusão de outras vítimas no caso - como as da perseguição estatal ao ETA, do conflito no País Basco, do franquismo e, mais contemporaneamente, do terrorismo - não deixou de ser hierarquizada, evidenciando o cultivo de uma identidade de alto prestígio social. Mesmo dessacralizada, na medida em que se amplia até chegar ao cidadão comum (com o terrorismo), a vítima política mantém seu reconhecimento assentado na distinção que a toma como extraordinária a partir dos acontecimentos as quais está ligada. Situação distinta é apresentada por David Casado-Neira e María Martínez acerca das vítimas da violência de gênero. Lidando com uma violência cotidiana, o campo pensa a vulnerabilidade como condição geral da mulher no patriarcado. Suas vítimas encontram um vasto aparato institucional e profissional de cuidado e assistência que determina um itinerário por meio do qual as mulheres precisam admitir-se vítimas para deixarem de sê-lo. Um movimento, para os autores, muito mais instrumental do que identitário. Também instrumentalizadas são as vítimas de acidente de trânsito, discutidas por María del Carmen Peñaranda-Cólera e Martí Oliver-Mora. Atingidas por causas excepcionais, ainda que corriqueiras, elas divergem sobre a existência de sistematicidade naquilo que pode atingir qualquer cidadão, alimentando incertezas quanto ao seu direito ao uso da categoria. Por outro lado, elas são aquelas cujo corpo é tomado como base para intervenções institucionais, por meio das quais a medição e a classificação de danos normatiza e objetifica o que é ser vítima. Por fim, Gabriel Gatti e Sandrine Revet refletem sobre o caso dos bebês roubados em maternidades, acompanhando a luta pela construção de uma identidade comum entre pessoas que somente a partir do surgimento de uma narrativa pública descobriram antigos dramas particulares como parte de um mesmo problema coletivo. Entre elas, uma dificuldade de se reconhecer nas leis existentes e o desejo por uma credencial jurídica própria que lhes garanta a entrada específica como vítimas em um mundo que identificam como extremamente institucionalizado e marcado por retóricas particulares.

As seções seguintes são organizadas em torno de temas transversais, abrindo-se para contribuições de autores externos ao projeto. A terceira seção aborda o papel dos especialistas e seus conhecimentos na construção de políticas de vítimas. Dialogando com as hipóteses do projeto, o texto de Gabriel Gatti e Ignacio Irazuzta toma a noção foucaultiana de dispositivo para pensar a produção combinada entre saberes especializados e tipos subjetivos como exercícios de governo. Francisco Ferrándiz traz uma reflexão sobre a submersão dos especialistas nos mundos de vítimas a partir de sua experiência etnográfica nas exumações de valas comuns da Guerra Civil Espanhola, quando o conhecimento produzido por sua equipe de pesquisa passou a ser requisitado e mobilizado por distintos atores interessados, inserindo a própria equipe no contexto das disputas políticas. Partindo de envolvimento semelhante, em seu caso na elaboração e implementação de políticas estatais de reparação psicológica a vítimas do terrorismo de Estado na Argentina, Fabiana Rousseaux reflete sobre as implicações clínicas da atribuição da condição de vítima aos assistidos pelo projeto terapêutico. Já a especialista em justiça transicional Sandrine Lefranc faz uma leitura crítica do campo humanitário transnacional, problematizando sua aparência homogênea ao iluminar as disputas entre campos profissionais e as correntes que se embatem no interior de cada um deles.

A quarta seção se volta para questões referentes a processos de institucionalização e normatização. Em mais um texto tributário das teses da equipe, Gabriel Gatti e Ignacio Irazuzta analisam comparativamente toda a legislação espanhola sobre vítimas, compreendendo-a como um processo de ampliação inclusiva em que a vítima transita do excepcional ao comum, abrindo-se para novas e distintas demandas em uma sociedade cada vez mais sensível ao vulnerável. Ramón Sáez Valcárcel amplia o debate ao pensar a trajetória da vítima no direito penal, problematizando sua mobilização atual, em um contexto neoliberal, por teorias punitivistas com intuito de legitimar moralmente a limitação de direitos e garantias individuais. Reflexão no mesmo sentido faz Jon-Mirena Landa Gorostiza sobre os impactos das leis de vítimas espanholas no direito penal. Gabriel Gatti, María Martínez e Sandrine Revet trazem uma etnografia dos julgamentos de casos de violência contra a mulher, tentando entender como o drama judicial contribui para a construção dessa vítima, considerando os papéis que se esperam desempenhados pelas mulheres nesses espaços. Debate que segue com Janine Barbot e Nicolas Dodier em uma reflexão sobre o repertório normativo dos juristas a respeito do lugar ocupado pelas vítimas no processo penal.

Na quinta seção, os textos se deslocam dos espaços estatais para as dimensões ética e afetiva do problema, discutindo a vítima em sua condição humana. Ignacio Arazuzta, Silvia Rodríguez Maeso e Adriana Villalón refletem sobre a participação de vítimas nos programas de educação para a paz e direitos humanos desenvolvidos pelo governo basco para o ensino médio, procurando pensar a racionalidade política que sustenta tal gestão sentimental. Galo Bilbao Alberdi parte das categorias inocência e reconhecimento para relacionar alguns movimentos reflexivos necessários à construção de uma ética da vítima. Também em um exercício de maior abstração teórica, Pascale Molinier desenvolve uma abordagem psicossocial, discutindo pontos de contato e distanciamento entre os conceitos de cuidado e vulnerabilidade.

Na sexta seção a questão em pauta é a representação. Josebe Martínez e David Casado-Neira se interrogam sobre a existência de uma forma especificamente hispânica de representar a vítima a partir do recurso à estética barroca. Acompanhando a proposta mais geral de pensar a construção de uma nova vítima, Jaume Peris Blanes reflete sobre a produção de marcos narrativos e imagéticos que sustentam culturalmente as empatias necessárias ao reconhecimento de novos dramas coletivos. Abordando a temática do testemunho, António Sousa Ribeiro reflete sobre as possibilidades de uso do cômico como recurso retórico para a construção de reciprocidade na relação entre fala e escuta. Encerrando a obra, Josebe Martínez faz uma bela reflexão sobre as memórias e os agentes apagados no decurso da transição política espanhola pós-franquismo desde um ponto de vista politicamente situado, a um só tempo autobiográfico e geracional.

Compondo ou não o projeto “Mundo de víctimas”, os trabalhos reunidos compartilham o entendimento de que estão diante de uma categoria complexa e em movimento, a um só tempo situada e global, e constituída por contradições e paradoxos. No conjunto, o livro apresenta ao leitor um material extremamente rico em dados e denso em reflexões. Voltando-se para um amplo leque de problemas, e admitindo formas variadas de aproximação a partir de seu viés multidisciplinar, a obra tem o mérito de propor muitas respostas criativas, mas também, e sobretudo, de multiplicar as perguntas. Embora suas proposições teóricas tragam muito do contexto espanhol que serviu de base para sua elaboração, elas não apenas nos estimulam a escrutinar seu alcance e validade para outros contextos, mas também nos mostram que ainda há muito para se pesquisar e se refletir a respeito do lugar ocupado pela vítima na contemporaneidade.

Referências

  • FASSIN, D.; RECHTMAN, R. The empire of trauma: an inquiry into the condition of victimhood. Princeton: Princeton University Press, 2009.
  • JUDT, T. Da casa dos mortos. Ensaio sobre a memória europeia moderna. In: JUDT, T. Pós-guerra: uma história da Europa desde 1945. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 789-815.
  • LEVI, P. Os afogados e os sobreviventes São Paulo: Paz e Terra, 2004.
  • TORPEY, J. Making whole what has been smashed: on reparation politics. Cambridge: Harvard University Press, 2006.
  • WILSON, R. The social life of rights. In: WILSON, R.; MITCHELL, J. (Ed.). Human rights in global perspective New York: Routledge, 2003. p. 1-15.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018
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