Acessibilidade / Reportar erro

Apresentação

APRESENTAÇÃO

A relação entre religião e política impõe-se como um tema clássico no âmbito das ciências sociais. Sua longa duração como objeto de estudo, ao invés de apontar para o seu esgotamento, parece indicar uma variação efervescente e criativa de arranjos e articulações que esses dois campos da vida social engendram. Os textos reunidos neste número de Horizontes Antropológicos apresentam um quadro diversificado de interações que ultrapassam os limites impostos pela divisão moderna de campos sociais tanto da política quanto da religião. Partindo de uma perspectiva abrangente do que seja a política e a religião, os autores procuram destacar, em diferentes configurações sociais, articulações entre política e religião.

Um primeiro conjunto de artigos apresenta alguns arranjos possíveis na articulação entre religião e política em diferentes contextos nacionais. O primeiro, de autoria de Otto Maduro, sociólogo venezuelano radicado nos Estados Unidos, discute o papel da religião na sua modalidade pentecostal enquanto um importante recurso de que as populações latino-americanas lançam mão para lidar com as dificuldades impostas pela migração que as posiciona em situação de desvantagem econômica, cultural, lingüística, legal e educacional frente à população anglo-americana estabelecida.

Os Estados Unidos aparecem ainda como o contexto nacional de atuação do líder espiritual judaico Chabad, Menachem Mendel Schneerson (1902-1994), que esteve à frente de um movimento messiânico de tradição chassídica que, desde Nova Iorque, teve uma atuação global sobre os acontecimentos relativos à formação do Estado de Israel e os conflitos no Oriente Médio. Seu autor, Enzo Pace, sociólogo italiano, analisa, desde uma perspectiva weberiana, a questão da construção social do carisma, centrada na figura do líder do movimento, e o seu deslocamento para a comunidade que, no movimento Chabad, representa um caso de extremo messianismo e de impasse para revolver e regular a sucessão do carisma depois da morte do rabino.

O texto de Gao Bingzhong, ainda no horizonte do pensamento weberiano, mas já incorporando a contribuição de Habermas, analisa o reavivamento das associações de base na China, que articulam religião e folclore, depois da abertura econômica e cultural do país. O fato desses grupos sociais existirem e agirem, mesmo não estando em conformidade com a lei, se explicaria, segundo o autor, pela razão de possuírem legitimidade política, legitimidade administrativa e legitimidade social. Essa situação, por sua vez, estaria forçando um processo que busca estabelecer regras jurídicas para o funcionamento dessas associações que coincide com o esforço governamental para legalizá-las.

A religião vai aparecer no artigo de David Lehmann, sociólogo britânico, também como um recurso social do qual populações pobres vão lançar mão para enfrentar situações de vulnerabilidade social. Mas, ao invés de partir de uma situação empírica, como o faz Otto Maduro, o autor trabalha com a categoria de capital social para ressaltar os fins e objetivos não intencionais ou explícitos das práticas e instituições religiosas que acabam por se constituir num importante fator de empoderamento para essas populações. Aqui também aparece o papel das associações de base, como no texto de Gao, mas ao invés de analisar os processos pelos quais essas associações passam de uma situação de legitimidade para a de legalidade, Lehmann destaca a contribuição dos movimentos religiosos para a formação de lideranças sociais, sendo que em muitos casos as organizações religiosas são as únicas que persistem em situações de profunda desagregação social e política.

Os grupos religiosos também constituem o objeto do artigo de Rita Laura Segato, da Universidade de Brasília, mas com uma ênfase nas repercussões das relações entre religião e política para dentro dos próprios grupos. A autora aborda o grupo religioso como território em movimento e aponta para o uso da doutrina como emblemas ou marcas de pertencimento ao grupo. Sugere, ainda, que as fronteiras entre grupos religiosos são exacerbadas como uma estratégia de consolidação de redes internamente coesas que passam a agir como identidades políticas e grupos de interesse.

Ernesto Seidl, da Universidade Federal de Sergipe, traz o debate sobre religião e política para o âmbito institucional, abordando as contradições no discurso do episcopado católico brasileiro entre o seu posicionamento como grupo homogêneo destinado a produzir mensagens unívocas para públicos variados e a necessidade de falar com autoridade sobre ampla gama de temas frente ao universo da "política" e do "social". A análise do autor procura evidenciar, por um lado, a lógica dos mecanismos de produção de representações do alto clero como grupo e, por outro lado, um conjunto variado de estratégias para legitimar a posição da Igreja como instituição religiosa hegemônica no contexto nacional.

A análise da atuação política da Igreja católica vai aparecer novamente no artigo de Aramis Luis Silva e Melvina Afra Mendes de Araújo, da Universidade de São Paulo, mas agora a situando no contexto missionário indígena e abordando-a desde uma perspectiva etnográfica. Partindo da observação da atividade missionária católica contemporânea junto a populações ameríndias, os autores exploram os rendimentos de conceitos como mediação cultural e código de comunicação para pensar processos de comunicação inter-simbólicos.

A articulação entre religião e política é também a temática abordada por Alessandra Siqueira Barreto, da Universidade Federal de Uberlândia, mas agora dentro do universo pentecostal e no contexto etnográfico de uma eleição em âmbito local, na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro. Assim, a autora analisa as estratégias pelas quais a religião foi apropriada pelo discurso político com o objetivo de potencializar a disputa eleitoral. Partindo de conflitos políticos em torno de algumas personalidades políticas da/na Baixada, o artigo destaca o papel da religião, especialmente a evangélica, na configuração do campo político na região.

Os dois artigos que seguem vão tratar de conflitos que se instauram na relação das instituições religiosas com o poder público em torno do ensino religioso nas escolas. A partir de contextos nacionais diferenciados – o Timor-Leste, no caso do artigo de Kelly Cristiane da Silva, da Universidade de Brasília, e o Brasil, no artigo de Maria Amélia Schmidt Dickie e Janayna de Alencar Lui, da Universidade Federal de Santa Catarina e da Universidade Federal do Rio de Janeiro, respectivamente – esses textos apontam para as contradições entre a ideologia republicana do Estado laico e a reivindicação das religiões hegemônicas. Em ambas situações, observa-se o papel protagonista da Igreja católica na defesa de privilégios do Estado que assegurem sua posição frente aos grupos religiosos minoritários ou que se encontram em posição desfavorável devido a dificuldade de adequar-se ao modelo dominante de religião que se apresenta na sociedade moderna. Se no Timor-Leste os embates se dão ao redor da disputa por diferentes projetos de um Estado-Nação pós-colonial que está em processo de instauração, no Brasil a questão central gira em torno das diferentes interpretações da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1996, que implementou o ensino religioso em escolas públicas.

Os dois últimos textos têm como cenário a América Latina. O artigo de André Corten, Vanessa Molina e Thomas Chiasson-Lebel, da Universidade do Quebec, em Montreal, Canadá, analisa o caráter instituinte do sagrado e o vínculo entre a cena política e os mitos de uma sociedade. A abordagem dos autores parte de dados empíricos coletados em cinco países da América Latina e os interpreta à luz do debate centrado na história européia. A partir desses dados, e do referencial teórico utilizado para interpretá-los, o texto levanta uma série de questionamentos sobre a distinção entre o político e o religioso, como parece com freqüência nas análises de alguns cientistas sociais. Já Ari Pedro Oro, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e Marcela Ureta, da Universidade Paris III, França, analisam a relação entre religião e política a partir os vários modelos de relação estabelecidos legalmente nos países da América Latina entre igrejas e Estado, religião e política, e as implicações desses modelos para as temáticas da secularização e da liberdade religiosa.

Na secção Espaço Aberto, é apresentada uma entrevista com Jacques Gutwirth, na qual este importante antropólogo francês fala de sua trajetória de vida e de sua carreira acadêmica, com destaque para os anos em que viveu no Brasil, em sua juventude, e dos laços afetivos e profissionais que estabeleceu com o país. Ele foi o coordenador francês do Convênio Capes-Cofecub entre o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS e o Departamento de Ciências Sociais da Universidade Paris V nas décadas de 1980 e 1990. Sua narrativa biográfica confunde-se em grande medida com a própria história da antropologia a partir da segunda metade do século XX e início do atual. Seu pioneirismo na criação da antropologia urbana na França e seus estudos na área da religião, indo dos estudos do movimento do chassidismo judaico ao televangelismo norte-americano, marcaram a antropologia contemporânea. E, aos 80 anos de idade, ainda está ativo e fazendo projetos voltados para o resgate da história da antropologia da qual ele é um importante personagem.

Por fim, a ilustração da capa deste número traz uma composição gráfica que retrata um dos eventos mais emblemáticos da articulação entre religião e política na história do Ocidente, onde estiveram envolvidos o rei da Inglaterra, Henrique VIII, Ana Bolena, sua segunda esposa, e o papa Clemente VII.

Ari Pedro Oro

Carlos Alberto Steil

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2007
  • Data do Fascículo
    Jun 2007
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - IFCH-UFRGS UFRGS - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43321, sala 205-B, 91509-900 - Porto Alegre - RS - Brasil, Telefone (51) 3308-7165, Fax: +55 51 3308-6638 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: horizontes@ufrgs.br