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Anthropologie et cinéma

RESENHAS

Cornelia Eckert

Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Brasil

PIAULT, Marc Henri. Anthropologie et cinéma. Paris: Editions Nathan/HER, 2000. 285 p.

Marc Henri Piault, neste livro lançado recentemente, privilegia o cruzamento de caminhos percorridos por antropólogos e cineastas, estetizados pela construção destes campos de conhecimento, as ciências humanas, por um lado, e a técnica da imagem (ou tecnologia), por outro lado.

Percorrer seus escritos nos permite reconhecer a dialética entre o presente e o passado concebendo, desta forma, efeitos de historicidade na trajetória de uma disciplina humanista construída na interface com o experimento técnico e inventivo do cinema e da fotografia.

Neste propósito, Piault segue o grande cientista do real, Jean Epstein, para quem descobrir é aprender que os objetos não são aquilo que acreditávamos ser, pois conhecer é, antes de tudo, abandonar o mais evidente e o mais certo do conhecimento (p. 83).

Seguir o percurso traçado pelos pioneiros do cinema documentário e refletir sobre a produção de documentaristas contemporâneos permite-nos o conhecimento do estado de arte da produção e debates nesta interface da antropologia e do cinema. O autor traz à discussão, as diversas tonalidades teóricas com as quais se solidariza no questionamento sobre o conhecimento produzido, seja no resultado fílmico, seja no processo de filmagem que diz respeito ao olhar e intencionalidade do pesquisador. O autor igualmente leva em consideração as formas de "antropologizar" a produção fílmica pelo estabelecimento de "critérios" ou "disposições acadêmicas" seja na criação, seja na recepção e leitura destas imagens, o que sugere laços entre os tempos técnicos e espaços de poder, na pesquisa com imagens.

O mundo moderno é o contexto técnico e intelectual deste livro que conforma o nascimento e amadurecimento da disciplina antropológica relacionada a invenções dos dois últimos séculos, destacando os aparelhos de registro e projeção de imagens e/ou som.

Caminhos cruzados, o aparelho fotográfico, a máquina fílmica, serão desafios lógicos acomodados na bagagem do antropólogo ou de sua equipe de pesquisa em excursões pioneiras e desbravadoras. Definitivamente, máquinas audiovisuais serão importantes instrumentos de pesquisa ao lado do caderno de notas, objeto já tradicional para o registro da escritura linear, fonética, desenhos, gráficos, diagramas, no projeto antropológico de "elaborar a ciência social do observado" (Lévi-Strauss, C. Anthropologie structurale. Paris: Plon, 1958. p. 379).

Os limites técnicos da época não desencorajaram os pais fundadores, como Haddon, pesquisando entre Austrália e Nova Guiné, ou Spencer ou Pöch, ou ainda Major Reis no Brasil e Flaherty no Canadá, trajetórias revisitadas pelo autor.

Piault é criterioso ao refletir sobre os paradigmas e as problemáticas teóricas que embasaram as relações sócio-históricas e produziram as novas linguagens de interpretação do mundo social, que a travessia do século XX propôs. Conforme o autor: "o conceito espaço-tempo começa a ser explorado pelos físicos e, neste momento, igualmente, a sensação visual se fragmenta com a divisão cromática experimentada pelos impressionistas" (p. 23), tanto quanto se duvida, no mundo ocidental moderno, da certeza científica como verdade.

No capítulo três, especificamente, encontra-se uma interessante reflexão sobre os caminhos cruzados entre as inovações técnicas e as novas concepções cientificas que explica a passagem a uma descrição antropológica que seria outra coisa que a ilusão inventiva e naturalizante dos inícios do cinema (p. 23). Entre outros, Marc Piault destaca a obra de Henri Bergson. Explica que este, ao teorizar sobre o espírito e a matéria (1889 e 1896), estabeleceu a relação entre a imagem-movimento e a imagem-tempo, elucidando sobre a relação entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo. Desta forma instrumentalizou conceitualmente os primeiros grandes teóricos do cinema a refletir sobre a relação entre o campo imagético e o campo experimental.

O diálogo entre as narrativas sobre a subjetivação do sujeito e as narrativas cinematográficas coloca o real em questão a partir de uma demanda ficcional, performática, interativa, representacional; a vida é uma construção social e a Antropologia fílmica se coloca não somente como uma reflexão sobre a imagem, mas igualmente, senão antes de tudo, como um exercício imagético e um procedimento cognitivo, sugere Piault.

O antropólogo se constrói no olhar sobre o outro, sobre a alteridade. Portanto, ele está amarrado a um jogo de rupturas de cumplicidades e distanciamentos que enunciam um processo de identificação e conhecimento entre sujeitos, entre grupos, entre mundos culturais, etc.

A pesquisa filmada denota igualmente a orientação do olho-câmera, da intenção do enquadramento, da montagem e da disposição ao público. O autor situa justamente aqui a invenção da montagem como ligada à liberação dos movimentos da câmera e à ruptura da temporalidade próprias às narrativas literárias e teatrais (p. 32). Neste interim, a narrativa cinematográfica se autonomiza, ou seja, toma consciência dela mesma, colocando de imediato o questionamento sobre a intenção significante bem como a das modalidades analíticas de observação (p. 33).

Na sequência, Piault mostra a riqueza da obra de Vertov para entendermos as imagens como idéias organizadas na forma de um pensamento inteligente, por isso interpretativo. "A observação prescinde da intencionalidade", com esta máxima Dziga Vertov trouxe a ambiência revolucionária russa à tona no campo fílmico (L'Homme à la Caméra, de 1927, e Trois Chants sur Lénine, de 1934), revelando o cinema ritmo e movimento, o "cinema-olho" é proposto: as imagens não serão simplesmente inventários do visível, mas desvendamento e interpretação (p. 55).

As rupturas epistemológicas operam um caminho complexo, palavras são trabalhadas, imagens tecidas, o cenário moderno é ambiência de um ficcional coletivo. A obra de Robert Flaherty aqui é central na aprendizagem da "câmera participante", deixando como herança aos jovens antropólogos visuais o projeto de uma relação entre o cineasta e o nativo Nanook, construindo uma narrativa encantadora do cotidiano esquimó.

Para Piault, de Flaherty ao mestre contemporâneo, o francês Jean Rouch, a reconstrução do real estará na ordem do dia da Antropologia visual, ou audiovisual. As condições de realização serão habitualmente esclarecidas, os autores identificados e a pertinência formal da produção, justificada (p. 40).

Desta forma, trata-se de entender que a observação fílmica é uma situação de ruptura com o mundo objetivo onde importa a vigilância epistemológica (para tomar emprestada esta referência à Bourdieu) de nosso olhar que "antropologiza", dirá Piault, o trabalho de conhecer em imagens o ambiente social, de forma que, hoje, o antropólogo preocupado em refletir sobre a questão e motivado à produção de imagens, se socialize nesta aprendizagem de examinar as imagens produzidas no âmbito de pesquisas etnográficas. Por detrás de uma aparente linearidade narrativa, cabe captar a dinâmica das imagens, movimentos de câmera, luminosidade e enquadramentos, etc.

A leitura atenta deste livro propõe ao aluno aprendiz ou a um simples curioso em Antropologia fílmica, um inventário das idéias e ações que os construtores de imagens fílmicas-etnográficas produziram sobre os atores sociais e suas representações do mundo real e imaginário, mapeando as pluralidades culturais e diversidades de estilo de vida.

Assim, filmes como os de Flaherty, de Luc de Heusch (o iniciador da câmera participante), de Cooper e Shoedsock, de Marcel Griaule, etc., nos apresentam o olhar do viajante que persegue o exótico como objeto clássico, ou nos mostram antropólogos preocupados com os efeitos da política colonizadora e civilizatória sobre as populações tradicionais, traduzindo aos espectadores ocidentais, a complexidade destas organizações sociais, suas singularidades culturais e simbólicas.

Neste ínterim, o cinema real ganha espaço e traz à ordem do dia a preocupação com o testemunho e o engajamento (p. 96), questionamentos sobre as crises pós-guerra e transformações sociais em efervescência. Trata-se de um cinema que segue a lição de Vertov e Flaherty, combinada a um Luis Buñuel, um John Grierson ou um Cavalcanti. No cinema populista e no cinema social o lugar dado à voz do autóctone permitem à emergência de novos espaços de troca e negociação da realidade de uma sociedade em transformação. A análise, aqui, permite deslizar para o contexto político e levar em consideração a sociedade democrática que se constitui no âmbito de poderes estatais, produzindo múltiplos sistemas de interlocução e situações de interação que comunicam identidades e pertencimentos sociais diversos.

No contexto acadêmico, Jean Rouch absorve as críticas contra a colonização da mídia, mensagens divulgadas nos movimentos sociais e desenvolvidas pelos aspirantes revolucionários que clamam por um mundo mais justo e ético. As repercussões no campo cinematográfico e antropológico são imediatas e promovem os atores sociais como sujeitos cognoscentes e construtores de histórias singulares e legítimas. Identificamos aqui a proposta de Jean Rouch por uma Antropologia compartilhada (Au Pays des Mages Noirs, 1947; Bataille sur le Grand Fleuve, 1952; Chasse au Lion à l'Arc, 1965; Jaguar, 1967; Maîtres Fous, 1954, etc). Vários centros se motivam nesta tarefa da pesquisa compartilhada, nos EUA, no Canadá, na França, na Alemanha, na Inglaterra, no Brasil. A crença no olhar neutro é superada por uma postura do cinema direto e interativo.

Ao referir-se à produção fílmica a partir de uma Antropologia compartilhada, Piault lembra que, no Brasil, o Centro do Trabalho Indigenista de São Paulo é pioneiro na formação de videastas-índios, que utilizam o vídeo para desenvolver um meio de conhecimento, reconhecimento e comunicação (p. 157).

Mas, ninguém melhor que Jean Rouch manterá em diálogo vivo, a Antropologia e o cinema. Sua competência não é só acadêmica, mas antes de tudo humanista. A Antropologia fílmica contemporânea é aprendiz de Rouch, mestre que possibilita com sua obra, sobretudo, a diversidade de trajetórias de seus seguidores.

Piault mostra que a descolonização da Imagem do Outro reproduzido nos primórdios do cinema-documentário é, certamente, uma das conquistas do cinema compartilhado na sua proposta de reencontro intercultural, interétnico como um tempo-lugar de aprendizagem sobre as diversidades e alteridades na comunidade humana. Na mesma perspectiva de encontro com o Outro, são colocados em questão o contexto a partir do qual o pesquisador interage com o grupo e sociedade filmada, o lugar de interlocução da câmera, as intencionalidades na montagem e a preocupação com o público para quem se destina a obra filmica, como redescoberta crítica de um projeto de conhecimento.

Outro destaque cabe ao cinema australiano do casal de antropólogos Mac Dougall. Sua obra remete à "fenomenologia imagética", onde o questionamento e as modalidades de aproximação e de interação do cineasta com a comunidade são objeto constante de reflexão, da mesma forma que a câmera (o instrumento que observa e registra o Outro) não se reduz a um simples olhar destinado a transmitir uma mensagem em imagens, mas ela é um interlocutor a mais neste "espaço dialógico" entre o pesquisador, o grupo ou situação filmada, o público e expectadores de modo geral. Cada um considerado a partir de sua trajetória coletiva e individual, suas crenças e posições intelectuais, desejos e decepções, etc. Todos estes elementos em relação dialética, são constitutivos do processo de conhecimento e identificação dos objetos (p. 245). Aqui percebe-se que a descrição imagética aporta um tipo de resposta à questão do saber; pensar o outro como totalidade, conforme pondera o autor (p. 246).

Fica da leitura desta obra o gosto da descoberta de um ato poético do conhecimento, termo caro a Piault. Mas fica, igualmente, a mensagem-lição sobre a ousadia dos pais fundadores vista como projeto epistemológico na sua qualidade narrativa. Penso que, no plano teórico, isto supõe um trabalho de reflexão sobre a historicidade da Antropologia fílmica, ou da Antropologia e Cinema, como propõe o sub-título: passagem à imagem, passagem pela imagem. Marc Piault nos estimula a esta reflexão sobre o suporte fílmico e imagético.

Seguir, portanto, as reflexões do autor sobre a Antropologia e o cinema, nos permite não apenas o acesso a esta triagem de produtores e produções fílmicas, que coloca em relação o campo da pesquisa e do cinema, mas permite ao leitor o aprendizado das condições históricas e epistemológicas que motivaram os jogos de idéias e os atos de produção em contextos temporais e espaciais diversos.

A elegância da obra reside, sobretudo, na qualidade de traduzir o mundo em sua diversidade cultural no percurso construído pelo pensamento dos sujeitos pesquisadores que pensaram o viver humano traduzido em imagens, trajetória que mapeia o próprio arranjo do pensamento efervescente do autor.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Set 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 2001
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