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Religiosidades nómadas: creencias y prácticas heterodoxas en Guadalajara

RESENHAS

DE LA TORRE CASTELLANOS, Renée. Religiosidades nómadas: creencias y prácticas heterodoxas en Guadalajara. México: CIESAS, 2012. 279 p.

Rodrigo Toniol* * Doutorando em Antropologia Social.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil

A longa duração do interesse disciplinar da antropologia por fenômenos do universo religioso não significa que as práticas, os enunciados, os rituais, as performances e mesmo a religião enquanto categoria analítica tenham permanecido inabaláveis com o correr do tempo. As transformações do próprio fenômeno religioso somadas a deslocamentos nos enquadramentos analíticos do tema pluralizaram os objetos de investigação comuns à antropologia da religião a tal ponto que os próprios contornos dessa subárea foram colocados à prova. Afinal, quais as implicações e, sobretudo, como proceder diante de afirmações como a de Pierre Sanchis (2001, p. 17), "o campo religioso é cada vez menos o campo das religiões", ou, mais recentemente, a de Ronaldo Almeida (2010), que reconheceu um novo vigor do fenômeno religioso a partir de sua dissolução em outras lógicas? Numa primeira reação a esse tipo de assertiva, poderíamos seguir a sugestões de diversos autores e buscar atentar para a emergência de certo religioso desisntitucionalizado (Steil, 1999) ou ainda de religiões do self (D'Andrea, 1996). Contudo, talvez também seja produtivo nos perguntarmos sobre a relação entre esse contexto de fragmentação do religioso e aquele do sagrado institucionalizado, entre a nova era e a era cujo adjetivo nova quer marcar a diferença.

Trata-se de tentar jogar luzes menos nos aspectos disjuntivos entre tais contextos (ou momentos) e mais nas suas continuidades. A isso se propõe o livro da antropóloga mexicana Renée de la Torre Castellanos, Religiosidades nómadas: creencias y prácticas heterodoxas en Guadalajara.

Em certo sentido, a própria trajetória de pesquisas da autora é exemplar no que se refere às transformações do universo religioso no México, e também aos próprios deslocamentos dos interesses dos cientistas sociais da religião nas últimas duas décadas. A partir da eleição de universos de pesquisas cujos limites se confundem com as fronteiras institucionais de igrejas,1 1 Refiro-me aos livros Los hijos de la luz (De la Torre Castellanos, 1995) e La Ecclesia Nostra (De la Torre Castellanos, 2006). a autora privilegiara, em investigações anteriores, a produção de uma espécie de analítica da dinâmica institucional de comunidades religiosas. Atenta às hierarquias, às teologias e às apropriações populares das liturgias oficiais, essas pesquisas permitiram dessubstancializar determinadas apreensões das práticas e do próprio religioso nas igrejas analisadas. Já em Religiosidades nómadas, Renée de la Torre toma como fenômeno de interesse as crenças, os valores e os rituais de uma religiosidade transitória, difusa e sem contornos institucionais claros.

Aos leitores familiarizados com a extensa literatura sobre movimentos religiosos contemporâneos, a caracterização desse universo a partir de substantivos que rementem a não fixidez soa conhecido. Para citar apenas dois exemplos, Daniéle Hervieu-Léger (2008), com a ideia do religioso peregrino – num contraponto ao convertido –, remete tanto à fluidez dos percursos que os sujeitos experimentam na elaboração de sua identidade como também à forma de sociabilidade religiosa que se dá a partir desse tipo de mobilidade e associação temporária às comunidades religiosas. Leila Amaral (2000), por sua vez, investe na ideia de que a nova era é uma cultura religiosa errante, um espírito sem lar. Com isso, a antropóloga brasileira assinala dois aspectos centrais para sua definição desse contexto religioso, a autonomia dos sujeitos em compor seus próprios sistemas de crenças e, mais do que isso, a possibilidade de uma composição religiosa que não seja tributária de outras tradições – um espírito sem lar. Embora a ideia do nomadismo em Religiosidades nómadas corrobore descrições de certo tipo de espiritualidade como algo fluido e produzido por trajetos individuais, a metáfora do livro em questão está amparada por um argumento que tensiona apreensões que concebem essas práticas como autônomas a tradições religiosas de longa duração.

Como afirma Renée de la Torre, ainda que possam ser apresentadas como novas, essas formas de crenças heterodoxas não ocorrem de maneira paralela ou desligada das tradições religiosas, mas, pelo contrário, demonstram predileção pelo tradicional, pelo ancestral e pré-hispânico, porque as referências ao passado permitem redesenhar imaginários sem perder de vista linhagens religiosas duradouras. Tal perspectiva guarda um parentesco próximo com sugestões como a de Pierre Sanchis, que, ao refletir sobre o sincretismo no campo religioso brasileiro, afirmou a existência de uma referência generalizada e constante ao cristianismo – e mais especificamente ao catolicismo. Nas próprias palavras de Sanchis (2001, p. 45), "vale perguntarmo-nos se estas mutações [do campo religioso] não continuariam acompanhando os lineamentos de uma antiga lógica". É nessa chave analítica que Renée de la Torre reconhece a religiosidade popular como o lócus de produção de sínteses de vários sistemas religiosos: as cosmovisões indígenas, a magia e a nova era. Para a autora, seriam nas porosidades entre tais sistemas e a religião popular que se gerariam as formas contemporâneas de crer.

A opção pelo termo religiosidade em detrimentos de outros para designar a dinâmica das crenças e práticas heterodoxas em Guadalajara é justificada porque, em contraposição à ideia de espiritualidade, por exemplo, esse conceito não alude exclusivamente à individualização da experiência religiosa, permitindo, assim, fazer referências aos suportes coletivos e tradicionais de tais práticas. Ao assumir essa perspectiva, distinta daquelas cujos enfoques recaem sobre as descontinuidades da nova era com as tradições religiosas, Renée de la Torre mobiliza um tipo de problematização ainda pouco explorado pelas ciências sociais da religião. Já não se trata mais de perguntar sobre aspectos orgânicos da experiência religiosa nova era, mas, sim, das pontes cognitivas que permitem que o novo se ancore na tradição.

Quais são os novos referentes da autorização dos marcos de crença dos novos movimentos religiosos dentro do catolicismo popular e como se vão privilegiando as heranças históricas da magia e da religiosidade popular em um jogo de luta pela legitimação das novas correntes de espiritualidades alternativas? (p. 40, tradução minha).

O livro, dividido em seis partes, é resultado de uma série de investigações realizadas entre a década de 1990 e os anos 2000. Nesse período a autora acompanhou diversos rituais, reuniões, vivências e práticas distintas entre si, mas relacionadas por conta de certo tipo de referência à nova era, à tradição popular católica e à memória pré-hispânica da região. Assim, a pesquisa que deu origem a Religiosidades nómadas pode ser caracterizada por uma espécie de transversalidade, no sentido de que a autora se propôs a analisar e discutir aspectos relativos à nova era não circunscritos a contextos religiosos. O que parece estar em jogo é um tipo de problematização que escapa de análises exclusivistas sobre a nova era, inserindo-a em um conjunto de relações mais amplas do universo cultural. Nesse sentido, Renée de la Torre não hesita em reconhecer as práticas heterodoxas pesquisadas como parte de uma exitosa indústria cultural que extrapola os contextos dos rituais religiosos, e que produz efeitos, inclusive, nas estratégias de venda de empresas de saúde e beleza, por exemplo.

A instigante etnografia da autora sobre os diversos contextos observados durante o período da pesquisa complexifica seus argumentos acerca da relação entre religiosidade popular e nova era. Por um lado, ao remeter as práticas heterodoxas a uma matriz cultural mais ampla – que insere a nova era em linhagens persistentes da tradição – a autora desloca a suposta singularidade dessas práticas colocando-as sob a guarda da religiosidade popular. Por outro lado, aquilo que denomina de religiosidade popular é conjuntural, de modo que o que é constante é a relação entre religião popular e nova era e não os termos dessa relação. Desse modo, torna-se possível pensar na globalidade do fenômeno das novas religiosidades sem concebê-lo como invariável. Se, tal como afirma a autora, no Brasil, a nova era se vinculou com o espiritismo kardecista e com os cultos afrorreligiosos, no México,

as práticas heterodoxas se desenvolveram transversalmente com o catolicismo sincrético e se fundiram com a magia, o esoterismo e o ritualismo indígena. Talvez a marca mais central da nova era mexicana foi sua adaptação à reivindicação das novas cosmovisões e rituais indígenas, que teve com resultado o resgate e a reivindicação da neoindianidade, tanto em sua manifestação sincrética como nos projetos essencializadores. (p. 210, tradução minha).

É desse modo que, embora façam referências e estejam ancoradas em processos de individualização, a nova era no México não é, muitas vezes, um fenômeno individual isolado, mas, antes disso, trata-se de uma heterodoxia generalizada que permite a fiéis (católicos) empreenderem buscas por respostas alternativas sem sair de uma comunidade e tra dição católica. Sem deixar de tecer os sentidos de suas crenças no terreno da religiosidade popular, esses sujeitos produzem articulações não esperadas com práticas caras à nova era.

Somando-se a uma série de produções sobre espiritualidades contemporâneas, nova era e movimentos religiosos emergentes, o livro Religiosidade nómadas: creencias y prácticas heterodoxas en Guadalajara apresenta contribuições que extrapolam aspectos teóricos e metodológicos pontuais. Em sua etnografia e proposta analítica, Renée de la Torre apresenta algumas chaves heurísticas capazes de balizar a produção de investigações comparativas, sobretudo na América Latina, acerca de fenômenos caros àquilo que chamou de crenças e práticas heterodoxas.

  • ALMEIDA, R. Religião em transição. In: MARTINS, C. B.; DIAS, L. F. D. (Org.). Horizontes das ciências sociais: antropologia. São Paulo: Anpocs; Barcarolla, 2010. p. 367-405.
  • AMARAL, L. Carnaval da alma: comunidade, essência e sincretismo na Nova Era. Petrópolis: Vozes, 2000.
  • D'ANDREA, A. A. F. O self perfeito e a nova era: individualismo e reflexividade em religiosidades pós-tradicionais. Dissertação (Mestrado em Sociologia)Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1996.
  • DE LA TORRE CASTELLANOS, R. Los hijos de la luz: discurso, identidad y poder en La Luz del Mundo. Guadalajara: Unversidad de Guadalajara/ITESO/CIESAS, 1995.
  • DE LA TORRE CASTELLANOS, R. La Ecclesia Nostra: el catolicismo desde la perspectiva de los laicos: el caso de Guadalajara. México: CIESAS/Fondo de Cultura Económica, 2006.
  • HERVIEU-LÉGER, D. O peregrino e o convertido: a religião em movimento. Petrópolis: Vozes, 2008.
  • SANCHIS, P. Fiéis & cidadãos: percursos de sincretismo no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2001.
  • STEIL, C. A. A Igreja dos Pobres. Da secularização à mística. Religião e Sociedade, v. 19, n. 2, p. 61-76, 1999.
  • *
    Doutorando em Antropologia Social.
  • 1
    Refiro-me aos livros
    Los hijos de la luz (De la Torre Castellanos, 1995) e
    La Ecclesia Nostra (De la Torre Castellanos, 2006).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Out 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2013
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