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Bolivianos, paraguayos y argentinos en la obra: identidades étnico-nacionales entre los trabajadores de la construcción

RESENHAS

VARGAS, Patrícia. Bolivianos, paraguayos y argentinos en la obra: identidades étnico-nacionales entre los trabajadores de la construcción. Buenos Aires: Editorial Antropofagía: IDES, 2005. 120 p. (Serie Etnográfica).

Daniel Angel Etcheverry Burgueño * * Doutorando em Antropologia Social.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil

A obra de Patrícia Vargas versa sobre o trabalho de imigrantes bolivianos e paraguaios, junto a nacionais argentinos, no campo da construção civil na cidade de Buenos Aires. Com base em trabalho etnográfico, a autora evidencia as relações de trabalho baseadas em referências étnico-nacionais e em contatos e redes sociais, e mostra como essas relações convivem e até se superpõem às conjunturas política e econômica atual.

Três formas, ou requisitos, interpenetráveis estão presentes na contratação, por parte de uma firma construtora, de um oficial contratante de serviços especializados para a realização das diferentes tarefas na construção e na formação de uma equipe de trabalhadores por parte deste. São eles: o pertencimento a uma rede de relações sociais, a adscrição étnico-nacional e a confiança.

Através das redes de relações sócias, compostas por conhecidos, familiares e conterrâneos, fluem recursos materiais e simbólicos que perpetuam uma forma específica de trabalhar: Elas constituem não somente a forma de ingresso a essa parcela do mercado de trabalho e de incorporação a uma certa equipe, mas também de transmissão do conhecimento sobre o ofício, de formas de ascender na hierarquia da equipe e de conhecer as pautas de comportamento na "obra".1 1 Ao usar o termo "obra" entre aspas refiro-me ao local de pesquisa. Essas redes são encabeçadas por alguém que conseguiu vincularse a alguma empresa construtora e que age como mediador entre ela e possíveis trabalhadores, ou entre a oferta e a demanda de trabalho. Fazer parte de uma rede, no contexto da "obra", significa fazer acordos, às vezes não vantajosos imediatamente para ambas as partes, mas que extrapolam a especificidade do momento em favor de futuras contratações possíveis. Quando acordos verbais não são respeitados, pode ser mais conveniente não reclamar, a fim de manter o vínculo com a empresa ou com o oficial contratante.

Citando Carmen Bueno Castellanos, autora do prólogo à obra de Vargas: "El entendimiento de la dinámica de la red va más allá del cálculo económico, de relaciones instrumentales, su comprensión exige un acercamiento al ámbito socio-cultural."

Através das redes fluem também bens materiais como pagamentos complementares e objetos de uso pessoal, e recursos simbólicos. O pertencimento à rede serve também como forma de ascensão numa hierarquia marcada pelo conhecimento do trabalho, domínio das pautas de comportamento e, sobretudo, pela posse de valores como virilidade, arrojo e esperteza.

O conhecimento sobre o trabalho é transmitido in situ, portanto, aqueles que dominam melhor uma tarefa conseguem ampliar sua influência junto aos outros. Há, assim, uma idéia de evolução ou progresso implícita nessa transmissão de conhecimento do trabalho e na aquisição dessas capacidades. Uma espécie de troca de lealdades circula também como recurso simbólico que poderá ser acionado no futuro. Implícita no sentimento de pertença a uma rede está a obrigação de se fazer jus a essa pertença, à confiança depositada pela pessoa por quem se foi convidado a trabalhar. A rede aparece também como uma maneira de controle e constrangimento; aquele que é bom trabalhador, que se conforma aos padrões de comportamento e não faz quilombo2 2 "Quilombo", no linguajar popular rio-platense: bagunça, desordem ou comportamento inadequado. poderá se manter na "obra" e na rede, multiplicando seu capital social ao longo do tempo. Embora a autora não explore profundamente esse aspecto, caberia se perguntar em que medida e de que forma é esse constrangimento incorporado pelo sujeito.

A adscrição étnico-nacional é acionada pelos trabalhadores como um estigma positivo que garante uma aptidão especial para o tipo de trabalho. Poder-se-ia pensar esse tipo de argumentação como uma forma de agency por parte dos trabalhadores; conhecendo quais são as características valorizadas no trabalho na construção civil (força física, resistência, coragem frente a situações de perigo e virilidade) e sabendo que a sua identidade étnico-nacional é associada a essas características aos olhos dos homens da cidade, acionar sua identidade étnico-nacional como recurso para conseguir um trabalho parece não ter nada de casual. Eles estariam, assim, usando os valores e até preconceitos da classe branca dominante portenha em seu favor.

Contrariamente, poder-se-ia também pensar essa argumentação como uma forma de substituir categorias e valores da classe dominante pelos equivalentes possíveis dentro de seu mundo de possibilidades. Entretanto a forma como a autora pensa as relações entre os trabalhadores e os oficiais contratantes permite ver que, se por um lado existem formas de constrangimento que dizem respeito à pertença à rede social e à necessidade de se manter dentro dela, por outro há sim uma opção por parte dos trabalhadores em manter-se aquém do permitido por essas formas de constrangimento. Há benefícios econômicos para todos em trabalhar informalmente, por exemplo, ou em ater-se às pautas de conduta que redundam em confiança por parte da firma e em benefícios extras para o trabalhador.

Ambas as análises são válidas. Entretanto, considerando que a autora debruçou-se sobre o entrelaçamento da questão migratória com o trabalho, acredito que uma outra análise também seria possível. Sem esquecer que os trabalhadores provêm das classes populares da Bolívia, do Paraguai e do Norte argentino, as próprias redes de relações sociais baseadas na adscrição étniconacional e na confiança são não somente formas de conseguir trabalhadores e trabalho, mas também lugares de formação de uma forma de ser imigrante trabalhador da construção civil. A forma como as redes de relações são referidas na obra de Vargas me faz pensar que além dos bens materiais e simbólicos já descritos, que transitam por elas, transita também algum tipo de ensinamento sobre o que é ser um imigrante de um "país limítrofe", trabalhador desse ramo que é concretizado e posto à prova na "obra". Junto aos outros trabalhadores paisanos aprende-se a ser forte, a resistir ao trabalho duro, a ser temerário e desafiar as situações de perigo. Aprende-se a não ter medo da altura e sobre a necessidade de mostrá-lo não usando proteção; aprende-se a negociar e a tirar vantagens de acordos aparentemente pouco vantajosos; aprende-se a identificar sua origem étnico-nacional a determinados valores e, sobretudo, a usar essa identificação em beneficio próprio. Aprende-se a lidar com a tensão entre aceitar o constrangimento exercido pela própria pertença à rede e a vontade de desafiá-lo, ou seja, em cada situação, até onde é possível ou conveniente levar adiante um determinado comportamento. Aprende-se, além de tudo isso, a saber quem se é em contraposição ao "outro".

Embora Vargas narre como a adscrição étnica é associada a valores e comportamentos específicos, proponho que ela não constitui um recurso em si, senão que é o pertencimento ou a proximidade a uma rede de pessoas baseada nela que permite que se faça da adscrição étnico-nacional um recurso. Alguém é apto para o trabalho e forte por ser boliviano ou por que a identificação com um certo tipo de pessoas assim o confirma?

Na tentativa de ir além da obra de Vargas, seria interessante um trabalho que considere, desde uma perspectiva temporal, as tensões entre ruptura e continuidade associadas ao deslocamento e à pertença ou ingresso a uma rede de trabalhadores imigrantes. Dessa forma, teríamos uma visão mais abrangente do que mudou na vida dessas pessoas com o deslocamento, e se o próprio deslocamento faz parte da forma em que o grupo ou classe social de origem se projeta. Pensando nos termos de Bourdieu (1994), cabe pensar se na visão dessas pessoas, a ida a Buenos Aires para trabalhar na construção civil é a opção dos bolivianos e paraguaios das classes populares que, diferentemente de seus conterrâneos das classes médias, não possuem o capital econômico ou cultural para migrar para Europa ou para tentar um outro tipo de trabalho ou é, pelo contrário, uma forma de agenciar sua própria existência contando com as possibilidades que suas redes de relações, suas capacidades físicas e expectativas lhes proporcionam. A autora parece manter, a esse respeito, visão próxima à de Sherry Ortner (1995, p. 185): "The question here is how to retain some sense of human agency, the capacity to interpret and morally evaluate their situation and to formulate projects and try to enact them." Fica ainda por descobrir também o universo de opções que os trabalhadores manejam em sua tomada de decisão e se, de fato, ela os considera como sujeitos de escolha quando se trata de optar por trabalhar no lugar de origem ou em outro lugar.

Pensar antropologicamente a questão migratória implica vê-la como um processo que começa a se gestar em algum momento antes da partida, em função das motivações individuais dos sujeitos e/ou de condições sociais, e que se perpetua após a chegada ao lugar de destino, na percepção da própria trajetória que esses sujeitos que se deslocam elaboram em face da nova realidade. Embora dentro dos limites de sua proposta os sujeitos apareçam, sim, como sujeitos de carne e osso, acredito que uma etnografia que houvesse se centrado também nas narrativas dos sujeitos sobre sua trajetória poderia nos apresentar uma idéia mais ampla dos caminhos percorridos por eles até o momento da pesquisa etnográfica. Poderia nos ajudar também a ver quais as perspectivas desses sujeitos em relação ao trabalho e à sua permanência no lugar.

Nesse sentido, a voz dos sujeitos se escuta, quase exclusivamente, por trás dos ruídos da "obra"; senti falta, ao ler o texto, das palavras dos próprios trabalhadores. Não que elas estejam ausentes, mas parece-me que a ênfase na descrição da vida no trabalho feita pela autora ofusca as vozes dos próprios trabalhadores.

O conceito de país limítrofe percorre todo o texto de Patrícia Vargas. Esse conceito não é suficientemente problematizado na obra, e com ele a autora refere-se à Bolívia e Paraguai. Os outros três países limítrofes da Argentina, Chile, Uruguai e Brasil, não são contemplados como paises limítrofes. Caberia perguntar-se o que é designado com esse conceito. Mantendo-me dentro dos limites da obra de Vargas, uma racialização do conceito de nacionalidade parece-me bastante evidente. Se, desde o ponto de vista dos sujeitos que formam e pertencem a redes de relações, a nacionalidade parece ter seus limites marcados pelas oposições, primeiro entre estrangeiros e nacionais e segundo entre bolivianos e paraguaios, ao se considerar a totalidade da obra, a questão gentílica parece estar atrelada a uma racialização do olhar. A apresentação de cada novo trabalhador vem acompanhada de uma descrição de suas características físicas, onde todos os que realizam a parte braçal do trabalho têm pele e cabelos escuros, são fortes e de olhos quase sempre puxados. O pessoal hierárquico, por outro lado, e alguns dos responsáveis pela realização da obra, parece não se encaixar nessa descrição; as fotografias tiradas no local confirmam as descrições da autora. Dessa forma, penso no conceito "limítrofe" usado na obra mais em termos dos limites sociais baseados em uma racialização dos sujeitos, onde a origem étnico-nacional, ou, mais especificamente, o fato de ser de um "país limítrofe", é identificado com um tipo físico, com um tipo de trabalho, com uma relação com o trabalho, com um status social, e com um estilo de vida. Desde o ponto de vista de uma cultura dominante centralizada na cidade de Buenos Aires, é, então, construída uma alteridade racialmente definida que inclui imigrantes desses dois países e sujeitos do Norte argentino.

Nessa construção da alteridade, evidenciada, mas, no meu ponto de vista, não suficientemente explorada na obra de Vargas, não importa se os sujeitos são ou não nascidos na Argentina. Chilenos, uruguaios ou brasileiros não entram nessa "outridade" por não apresentarem, em sua maioria, os traços característicos do "outro" e por não participarem do mundo do trabalho da mesma forma que os imigrantes dos países chamados limítrofes.

Na obra de Vargas, esse assunto permanece nos preâmbulos de uma problematização, e, junto com ele, a dúvida sobre o lugar desde onde a autora constrói seus sujeitos. Ela inicia a apresentação de sua obra apresentado-se a si mesma como filha de imigrantes chilenos pobres na Patagônia, de certa forma, para justificar seu interesse no assunto. Embora sua experiência migratória através de seus pais e a vivência da pobreza possam ser compartilhadas com seus sujeitos, a experiência dos imigrantes bolivianos e peruanos, e até das províncias do Norte, está marcada por uma racialização que está principalmente no âmbito do visual, do primeiro encontro. Ela passa por uma categorização que inclui aos sujeitos em um lugar da hierarquia racial e social específica, antes mesmo de qualquer tipo de interação com os outros. Essa é uma experiência pela que a pesquisadora e autora não passa, pois, aos olhos de qualquer pessoa, como o mostra inclusive a fotografia dela junto a um trabalhador, ela poderia ser uma argentina ou bonaerense mais. Embora ela possa haver-se identificado com os trabalhadores na "obra", não questiona como ela é vista por eles. Talvez por isso, ela não tenha sentido a necessidade de problematizar mais profundamente o conceito de país limítrofe.

O estranhamento de esse primeiro olhar categorizador que permeia todas as relações parece-me ausente na obra de Vargas. Citando Lila Abu-Lughod (1991, p. 141), "feminist and halfies anthropologists cannot easily avoid the issue of positionality. Standing on shifting ground makes it clear that every view is a view from somewhere and ever act of speaking a speaking from somewhere."

Um outro aspecto do texto de Vargas que diz respeito à sua posição no campo está relacionado com a linguagem e a forma narrativa.

A autora prioriza uma linguagem narrativa, descrevendo o trabalho na "obra" e interpretando as situações dentro desse contexto. Entretanto, por algum motivo difícil de explicitar, os sujeitos parecem estar muito longe da pesquisadora. Embora exista uma tentativa de trazer sujeitos de carne e osso para o interior da descrição, as vozes deles parecem permanecer na "obra". Talvez, se a pesquisadora-autora houvesse refletido mais em sua obra sobre sua posição no campo, teria conseguido salvar, no texto e mediante um exercício de reflexão, as distâncias que a separam de um mundo que, de fato, não é o dela. Os sujeitos pouco falam além das questões que dizem respeito às intenções da pesquisadora. Parecem estar ausentes da obra de Vargas aqueles comentários aparentemente dissonantes com o resto da obra, mas que freqüentemente acrescentam carne aos ossos dos sujeitos. Mesmo quando ela se esforça em trazer o vocabulário empregado por eles, como o uso da palavra quilombo, o emprego entre aspas ou em itálico das palavras permite ver que essa palavra está ali porque tem um motivo específico e esclarecedor do que ela quer dizer, retirando a ênfase da vivência do sujeito e colocando-a no uso que ela lhe dá dentro de um contexto que ela mesma recorta conforme o objetivo da pesquisa.

A organização da obra, por eixos temáticos, requer um esforço maior em trazer os sujeitos como partícipes portadores de uma história e de uma visão sobre suas próprias trajetórias que uma etnografia menos recortada. Assim, ela parece construir um texto bem costurado, fechado, com limites bem precisos e com poucas contradições, sendo esclarecedora do tema que a ocupa, porém ficando, no meu ponto de vista, aquém da experiência do cotidiano.

Referências

ABU-LUGHOD, Lila. Writing against culture. In: FOX, Richard (Ed.). Recapturing Anthropology: working in the present. Santa Fe: School of American research Press, 1991. p. 137-162.

BOURDIEU, Pierre. Gostos de classe e estilos de vida. In: ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo. Ática, 1994. p. 82-121.

ORTNER, Sherry. Resistance and the problem of ethnographic refusal. Comparative Studies in Society and History, v. 37, n. 1, p. 173-193, Jan. 1995.

VARGAS, Patricia. Bolivianos, Paraguayos y Argentinos en la obra: identidades étnico-nacionales entre los trabajadores de la construcción. Buenos Aires: Antropofagia, 2005.

  • *
    Doutorando em Antropologia Social.
  • 1
    Ao usar o termo "obra" entre aspas refiro-me ao local de pesquisa.
  • 2
    "Quilombo", no linguajar popular rio-platense: bagunça, desordem ou comportamento inadequado.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Set 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2007
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