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Apresentação

A pesquisa científica sobre sociedades indígenas Kaingang e Mbyá Guarani do Rio Grande do Sul iniciou na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) com os trabalhos desenvolvidos entre 1950 e 1980 pelos professores e pesquisadores Balduíno Rambo, Pedro Ignácio Schmitz e José Justiniano Proenza Brochado. Eles consolidaram conjuntamente os estudos indígenas dentro do campo antropológico da UFRGS, publicando a partir de 1972, quatro números do Boletim do Gabinete de Arqueologia. Porém, é a partir de 1979, com a criação do Mestrado, em 1991 do Doutorado em Antropologia Social, que a UFRGS incorpora aos programas das ciências sociais a especialização na disciplina “sociedades indígenas”. Com a criação, em 1993, do Núcleo de Pesquisa em Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais (NIT), impulsionado pelo professor Sergio Baptista da Silva, é que consolida uma tradição de estudos antropológicos nesta área.

Os frutos estão amadurecendo. O presente número da revista Horizontes Antropológicos do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS está dedicado às sociedades indígenas, em particular da América Latina. A intenção é de apresentar algumas das questões relacionadas com a problemática indígena atual nesta região do Continente americano. Fica claro que em um número de nossa revista não é possível incorporar estudos sobre mais de quatrocentas etnias indígenas e menos ainda desde uma grande diversidade de enfoques e temáticas. Por esta razão, Horizontes Antropológicos, nesta edição privilegiou a região sul do continente americano. Mesmo assim, cabe observar que se solicitou aos colaboradores a escolha de um tema sobre o qual eles estão trabalhando e pesquisando para inseri-lo então dentro da temática geral “sociedades indígenas”. O resultado foi, como o leitor poderá apreciar, bastante coincidente, apesar de não se pretender uma “unidade temática” mais específica. Os enfoques são, podemos dizer, contemporâneos, mais centrados nas preocupações e problemas da população indígena frente a situações que se encontram relacionadas com a identidade, a religião, a etnicidade, o político, o social, a saúde, a presença não “oficial” da população indígena, etc., dentro das chamadas “sociedades nacionais” e elos “estados nacionais”; como também frente a um processo sócio-cultural, econômico e político que alcança as próprias raízes das estruturas em todos os níveis da sociedade global deste fim de século. Eu diria que os autores dos artigos aqui apresentados fazem uma tentativa no sentido de realizar uma analise inadiável de uma realidade, como é a do indigenato, que têm a ver com a modernidade, a utopia, o neoliberalismo, a emergência da consciência étnica indígena e, finalmente, o lugar que os indígenas, enquanto sujeitos e atores sociais, ocupam, têm que ocupar, ou pretendem ocupar no processo histórico-social mundial e latino­americano. Deste modo, apresentamos dois artigos sobre movimentos étnico­sociais, um na Bolívia e outro no México (dois países com maioria populacional indígena) de Xavier Albó, de Alicia M. Barabas e Miguel Bartolomé, respetivamente; dois artigos relacionados com uma aproximação a cifras verdadeiras sobre a dimensão numérica da população indígena no Brasil e no Paraguai, de João Pacheco Oliveira Filho, de Bartolomeu Meliá e Ignacio Telesca; dois artigos referentes a etnicidade e identidade no Peru e na Argentina, o primeiro de Alberto Chirif e o segundo de Liliana Tamagno; dois artigos relacionados com narrativa e cosmologia religiosa indígenas no Brasil e na Colômbia, de Robert Crépeau e Jean Matesson Langdon respetivamente e, finalmente, um artigo sobre uma forma particular de história oral e de memória coletiva através da nomeação das pessoas entre indígenas do sul da Bolívia, de Jan-Åke Alvarsson.

Não poderia deixar passar esta oportunidade na apresentação dos trabalhos de meus colegas antropólogos neste número de Horizontes Antropológicos sem destacar o fato de que os povos indígenas, neste fim de século, têm conseguido, superando uma história repleta de derrotas e de extermínio, colocar-se novamente em pé e definitivamente mudar o rumo dessa história em direção a uma presença ativa que não se pode elidir no mundo contemporâneo. Estes povos se ergueram a partir de sua própria identidade étnica, de seus próprios sistemas sócio-políticos e culturais, de sua própria história reformulada e reconstruída em um contato secular com outros grupos étnicos, principalmente provenientes da Europa, e passaram, de objeto de estudos e de exploração, a sujeitos e agentes de uma história na qual cada vez participam mais seres humanos na busca da comunicação e do intercâmbio a partir das particularidades. Hoje, os foros internacionais de onde se emite o discurso do poder, os espaços acadêmicos nos quais se produz e se reproduz o saber, os meios de comunicação através dos quais se veicula a informação, deixaram de ser patrimônio absoluto do etnocentrismo. Hoje, os assim chamados índios penetraram nessas instâncias e a partir daí formulam suas lutas e exigem seus direitos. Se pudesse empregar uma expressão de cunho cristão, eu diria que este fenômeno é um dos resultados positivos deste século que termina e, quem sabe, se possa descrevê-lo como um dos signos, se não do fim dos tempos, pelo menos de fim de século e de fim de uma história não reconhecida e marginalizada.

Os antropólogos tiveram importante participação neste processo. Muitos deles estenderam sua práxis acadêmica a uma prática intimamente comprometida com os projetos indígenas, como demonstram as chamadas “Reuniões de Barbados”, de 1971, 1972 e 1993, onde dialogaram líderes indígenas e antropólogos de diversos países. É oportuno, então, referendar aqui este fato com algumas de suas declarações. Georg Grünberg (1995)GRÜNBERG, G. Introducción. In: GRÜNBERG, G. (Coord.). Articulación de la diversidad. Quito: Abya-Yala, 1995. p. 5-8., na sua apresentação dos resultados da Terceira Reunião de Barbados, realizada em 1993 no Rio de Janeiro, e compilados no livro Articulación de la diversidad, observa que a partir dos anos setenta “se nota o surgimento de um grande número de organizações indígenas nos níveis locais e regionais” que, desafiando inclusive ao estado nacional, possibilitaram uma “presença pública direta e a colocação de problemas e de necessidades frente a instituições políticas nacionais e internacionais”. Estas organizações - acrescenta- foram vistas “por muitos como o desenrolar verdadeiro de um processo de ‘liberação indígena’, quer dizer, como uma caminhada em direção à autodeterminação e à autogestão dos povos indígenas e à reconstituição de consciências étnicas e culturais” (Grünberg, 1995GRÜNBERG, G. Introducción. In: GRÜNBERG, G. (Coord.). Articulación de la diversidad. Quito: Abya-Yala, 1995. p. 5-8., p. 6, tradução minha).

Os assim chamados índios encontraram o caminho da unidade e da organização multiétnica que transpõem as fronteiras nacionais. Participam em congressos assim como em foros internacionais; se encontram hoje em Oslo e amanhã na Terra do Fogo, debatendo problemas comuns. Como também ressalta Stefano Varese (1995VARESE, S. Pueblos indígenas y globalización en el umbral del tercer milenio. In: GRÜNBERG, G. (Coord.). Articulación de la diversidad. Quito: Abya-Yala, 1995. p. 123-159., p. 133, tradução minha) no livro anteriormente citado, “os indígenas, membros historicamente marginalizados da sociedade civil latino­americana, estão participando ativamente nesta reconstituição de uma sociedade civil transnacional e estão, literalmente, tentando evitar a mediação dos estados e relocalizar o campo de autoridade em uma sociedade civil global, de caráter transnacional ainda que com lealdades étnico-culturais claramente afirmadas”.

Enfim, o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS, através de sua revista Horizontes Antropológicos, pretende dar conta deste ressurgimento dos povos indígenas e contribuir assim para um maior e melhor conhecimento do mesmo.

A ilustração da capa é uma foto de uma “chica joven Saragura” do Equador que pertence a Eric Lawrie. Não tivemos alternativa de escolha quando olhamos o frescor deste rosto infantil que mostra e simboliza a vitalidade quanto à emergência da vida original de América.

Finalmente, o organizador deste número de Horizontes Antropológicos manifesta seu profundo agradecimento ao mestrando em Antropologia Social na UFRGS, Rodrigo Allegretti Venzon, pela sua colaboração na tradução e correção de textos ao/em português.

Referências

  • GRÜNBERG, G. Introducción. In: GRÜNBERG, G. (Coord.). Articulación de la diversidad Quito: Abya-Yala, 1995. p. 5-8.
  • VARESE, S. Pueblos indígenas y globalización en el umbral del tercer milenio. In: GRÜNBERG, G. (Coord.). Articulación de la diversidad Quito: Abya-Yala, 1995. p. 123-159.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Out 1997
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