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Now we are citizens: indigenous politics in post-multicultural Bolivia

RESENHAS

POSTERO, Nancy Gray. Now we are citizens: indigenous politics in post-multicultural Bolivia. Stanford: Stanford University Press, 2007. 294 p.

Ana Paula Pimentel Walker* * Doutoranda em Antropologia.

Universidade da Califórnia San Diego – Estados Unidos da América

A Bolívia, hoje, é um símbolo de resistência aos programas de ajustamento macroeconômicos conhecidos como o Consenso de Washington. O episódio da guerra da água boliviana tornou-se uma bandeira dos movimentos sociais de vários países por uma globalização mais justa. Descentralização governamental, acompanhada de mecanismos participativos, é outra importante característica da resistência ao modelo econômico neoliberal que se seguiu ao Consenso de Washington. A experiência da Bolívia, com a Lei de Participação Popular (LPP), de 1994, é fundamental para entendermos os limites e as possibilidades de uma política descentralizada e participativa. Essa experiência é relevante para o Brasil que, desde a Constituição de 1988, atravessa um processo de descentralização que tenta incluir a participação da sociedade civil em programas governamentais como são os casos do Programa Saúde da Família e do Plano Diretor Participativo. A Bolívia também é vanguarda na América Latina no que se refere às políticas de reconhecimento de diferenças. O livro Now We Are Citizens trata desses temas entre outros.

A autora, Nancy Postero, passou pelas carreiras de advocacia e jornalismo, antes de ser professora de antropologia na Universidade da Califórnia. Foi como jornalista, na produção de um documentário sobre o crescimento do mercado informal na Bolívia, que ela conheceu o então líder cocaleiro Evo Morales. Para a autora, a Bolívia é um lugar onde a cidadania, o multiculturalismo e o neoliberalismo estão relacionados através da questão indígena. Ela entende raça, etnicidade, indigenidade e tradição como construções culturais não estáticas, evitando a essencialização desses termos, mas ao mesmo tempo reconhecendo as suas forças sociais.

A primeira parte do livro, chamada "A Questão Indígena", recapitula a história dos regimes de cidadania racializados a que os povos indígenas da Bolívia foram submetidos e ofereceram resistência, desde a chegada dos espanhóis até o presente. A etnografia está baseada no trabalho de campo que a autora realizou junto ao movimento indígena das planícies do Oriente boliviano, principalmente com uma comunidade guarani, no Departamento de Santa Cruz, referida no livro como Bella Flor. Apesar da etnografia provir das experiências dos Guarani com o neoliberalismo multicultural, essas experiências são constantemente contrapostas a dos movimentos indígenas e sociais mais estabelecidos do Ocidente boliviano.

Na segunda parte do livro, chamada "Cidadania na Bolívia Neoliberal", a autora discute a Lei de Participação Popular (LLP), o papel das ONGs e da assistência internacional na formação do sujeito neoliberal e a contestação do regime de cidadania do neoliberalismo multicultural. Postero enfatiza, ainda, nessa parte do livro, o papel do Estado nesse novo regime de cidadania através de políticas públicas, que visam estabelecer a legalização das terras comunitárias indígenas, a inclusão das organizações territoriais indígenas na LPP e a implementação da educação bilíngüe. A principal questão discutida aqui é a cidadania do neoliberalismo multicultural e a transição para uma cidadania que a autora chama de pós-multicultural. Nesse sentido, ela apresenta a Bolívia como um exemplo da ineficiência das políticas de reconhecimento de diferenças que negligenciam as políticas igualitárias de redistribuição.

A autora identifica três regimes de cidadania racializados na Bolívia. Primeiramente, no período colonial, o regime da cidadania tributária em que os povos indígenas dos Andes pagavam tributos à coroa em troca de autonomia sobre suas terras comunitárias. Em segundo lugar, o regime da cidadania universal ou liberal, já no período republicano, que buscava a assimilação pelos indígenas dos valores da sociedade mestiça e crioula (branca). E, finalmente, a cidadania do neoliberalismo multicultural e a sua contestação, das quais o livro trata detalhadamente.

O relato do rápido crescimento do Departamento de Santa Cruz dá significado ao termo neoliberalismo, que se tornou um jargão no mundo acadêmico e político. Na década de 1960, as políticas do Estado de bem-estar social e de substituição de importações na área agrícola foram responsáveis não somente pelo rápido crescimento da cidade de Santa Cruz, atualmente a maior da Bolívia, mas também pela expulsão das comunidades indígenas de suas terras. A queda desse modelo socioeconômico e a subseqüente implementação dos pro-gramas de reajustes estruturais, que diminuíram o papel do Estado na economia agrícola e na área social de Santa Cruz, são acompanhados da emergência de um movimento indígena dos povos do Oriente boliviano, sob a influência dos movimentos internacionais dos direitos indígenas.

A Bolívia foi o primeiro Estado a adotar a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho de 1989, que reconhece o direito de autonomia dos povos indígenas. Na administração do presidente Sánchez de Lozada (19931997), a Constituição foi reformada para reconher a Bolívia como uma nação pluricultural e multiétnica. Mas essas garantias constitucionais não foram suficientes para evitar a desintegração da comunidade de Bella Flor através da suburbanização de suas terras comunitárias, vendidas como lotes urbanos na espraiada Santa Cruz. Devido a esse fato, os Guarani não puderam apresentar projetos para receberem recursos municipais porque a LPP apenas permite a inclusão de organizações indígenas com bases territoriais devidamente registradas. A autora relata, com sensibilidade, o nascimento e o desvanecimento da esperança dos Guarani de Bella Flor com as políticas de inclusão cultural.

O perfil de cidadania que permeia a LPP está entrelaçado com o ideal de cidadania estabelecido pelas organizações assistenciais e de desenvolvimento internacionais. Esse ideal de cidadania neoliberal está marcado por três princípios: a eficiência organizacional, a participação racional e a autogovernança. Várias ONGs receberam financiamento internacional para treinar os líderes indígenas na maneira correta de como apresentar propostas para incluir suas demandas no orçamento do município. Comunidades indígenas e não indígenas competem por recursos municipais e somente os projetos que estão de acordo com a lógica burocrática são incluídos no orçamento. O livro conta, com detalhes, o treinamento dos Guarani da Capitania de Santa Cruz pelas ONGs a fim de capacitá-los para gerir esses projetos. A autora ilustra, com dados, o espantoso crescimento do número de ONGs e da quantidade de assistência internacional. Nesse contexto, a incorporação de uma consciência cidadã passa a depender então da aquisição de financiamento, da gestão e das práticas associadas aos projetos.

A autora interpreta a internalização das habilidades do cidadão neoliberal pelos Guarani de Santa Cruz dentro da perspectiva foucaultiana da governabilidade. Uma das técnicas do ser, que fazem parte da criação do sujeito neoliberal, é a internalização da participação cidadã como responsabilidade individual, ou seja, a responsabilização do indivíduo pelo sucesso dos projetos de desenvolvimento e pela aquisição de recursos municipais. Na opinião dos Guarani jovens, a mais importante das "técnicas do ser" é a habilidade de falar em público e participar de discussões. No entanto, essa habilidade contradiz a educação guarani que requer que os jovens e as mulheres calem-se diante dos idosos e sábios. Em suma, o sentido do ser Guarani em que os interesses coletivos moldam as aspirações individuais está altamente comprometido pelas novas condutas cidadãs. No mesmo sentido, o livro narra como os modelos de liderança, propagados pelo neoliberalismo multicultural, invalidaram os modelos de liderança guarani e causam desconforto nessas comunidades. Ironicamente, para reivindicar seus direitos indígenas, nesse novo espaço multicultural, os Guarani tiveram que parcialmente abdicar de sua indigenidade.

O regime de cidadania do multiculturalismo neoliberal aprofundou a exclusão econômica. Os povos indígenas do Ocidente e do Oriente bolivianos se revoltaram contra o neoliberalismo multicultural, derrubando presidentes e impedindo privatizações. Eles revitalizaram as identidades camponesas e operárias impostas pelo regime de cidadania universal para fazer alianças com setores da sociedade que não se consideravam indígenas. A frustração dos bolivianos com as promessas e exclusões do neoliberalismo multicultural levaram à emergência do que a autora chama de cidadania pós-multicultural. Paradoxalmente, foi o poder simbólico, tanto da linguagem de cidadania introduzida pela LPP quanto dos discursos internacionais de participação responsável, que propiciou a negação do neoliberalismo multicultural e a emergência da cidadania pósmulticultural, que culminou com a vitória de Evo Morales nas últimas eleições presidenciais.

Esse livro é uma brilhante exposição das trajetórias políticas e de identidade da cidadania boliviana. A autora redimensiona os debates das políticas de reconhecimento e redistribuição e da cidadania multicultural e universal, sugerindo que se pense na cidadania como um discurso organizador da sociedade. Inspirada pelo conceito de "languages of contention" de William Roseberry, a autora nos convida a refletir sobre cidadania como disputas de quem é cidadão e dos significados dos seus direitos e deveres dentro de uma estrutura discursiva de negociações, permeadas de conflitos sociais e relações de poder.

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    Doutoranda em Antropologia.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Set 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2007
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