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A pesquisa educacional e a produção de saberes nos museus de ciência

Educational research and the production of knowledge at science museums

Resumos

Propõe-se uma reflexão sobre processos de socialização do conhecimento científico, com base nos conceitos de transposição didática/museográfica e recontextualização, no âmbito dos museus de ciências. Analisam-se formas de produção de conhecimento nos espaços de museus e discutem-se desafios e possibilidades do uso de conceitos indicados nas pesquisas sobre divulgação e educação nesses locais. Considerações sobre o impacto desses aspectos são esboçadas, no que contribuem para o desenvolvimento da prática pedagógica museal. Os processos de transformação do conhecimento científico com fins de ensino e divulgação não são meras simplificações, já que novos saberes são produzidos pelas relações que ocorrem no âmbito da cultura museal.

museus de ciências; divulgação da ciência; transposição didática; produção de saberes


The article examines the processes by which scientific knowledge is socialized, based on the concepts of museographic/didactical transposition and recontextualization within the realm of science museums. Ways of producing knowledge in museums are analyzed, alongside a discussion of the potential challenges and possibilities involved when applying these concepts to research on dissemination and education in a museum setting. Some considerations are advanced on how these may contribute to the development of pedagogical practice in museums. The processes by which scientific knowledge is transformed for the purpose of educating and disseminating knowledge do not merely simplify ideas and concepts, since new knowledge is constructed inside the realm of museum culture.

science museums; educational outreach in science; transposition didactique; museographic; production of knowledge


ANÁLISE

A pesquisa educacional e a produção de saberes nos museus de ciência

Educational research and the production of knowledge at science museums

Martha Marandino

Professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo Rua Harmonia, 681/82 05435-000 São Paulo – SP Brasil

marmaran@unisys.com.br

RESUMO

Propõe-se uma reflexão sobre processos de socialização do conhecimento científico, com base nos conceitos de transposição didática/museográfica e recontextualização, no âmbito dos museus de ciências. Analisam-se formas de produção de conhecimento nos espaços de museus e discutem-se desafios e possibilidades do uso de conceitos indicados nas pesquisas sobre divulgação e educação nesses locais. Considerações sobre o impacto desses aspectos são esboçadas, no que contribuem para o desenvolvimento da prática pedagógica museal. Os processos de transformação do conhecimento científico com fins de ensino e divulgação não são meras simplificações, já que novos saberes são produzidos pelas relações que ocorrem no âmbito da cultura museal.

Palavras-chave: museus de ciências, divulgação da ciência, transposição didática/museográfica, produção de saberes.

ABSTRACT

The article examines the processes by which scientific knowledge is socialized, based on the concepts of museographic/didactical transposition and recontextualization within the realm of science museums. Ways of producing knowledge in museums are analyzed, alongside a discussion of the potential challenges and possibilities involved when applying these concepts to research on dissemination and education in a museum setting. Some considerations are advanced on how these may contribute to the development of pedagogical practice in museums. The processes by which scientific knowledge is transformed for the purpose of educating and disseminating knowledge do not merely simplify ideas and concepts, since new knowledge is constructed inside the realm of museum culture.

Keywords: science museums, educational outreach in science, transposition didactique, museographic/didactical transposition, production of knowledge.

(...) por razões que não compreendo e que são realmente perversas, isto de escrever para os não cientistas se encontra cercado de censuras como 'adulteração', 'simplificação', 'distorção para causar efeito', 'desejo de impressionar o público, 'engano' (...).

Stephen Jay Gould

Segundo uma superstição amplamente difundida, todas as traduções traem os seus inigualáveis originais. Isso é expresso pelo conhecido trocadilho 'traduttore, traditore', que se julga irretorquível. Sendo esse trocadilho bastante popular, há de existir um núcleo de verdade, um âmago de verdade, oculto em seu interior.

Jorge Luis Borges

Introdução

O processo de socialização do conhecimento científico é cercado de desafios, posições polêmicas e embates. Por um lado, se assume como necessidade ética a importância de levar as informações produzidas pela ciência e tecnologia a um público cada vez mais amplo, como instrumento de cidadania. Por outro, há quem postule que a divulgação científica teria o papel de manter o status quo daqueles envolvidos na produção do conhecimento, ou mesmo que a complexidade da ciência impossibilitaria seu domínio pelo público 'não-iniciado' (Díaz, 1999). De qualquer modo, os processos e produtos da ciência e da técnica impregnam nosso cotidiano e, para além da discussão sobre as reais intenções da divulgação da ciência, é fundamental que se promova a apropriação desses conhecimentos pela população como forma de inclusão social.

A área de divulgação científica vem se afirmando, não sem resistências, sendo ainda temerário indicar a existência efetiva de um novo campo de conhecimento. Críticas às formas de transposição para saberes comuns, nas referências feitas à divulgação da ciência – com o uso de termos como 'distorção', 'simplificação' etc. – são também oriundas das relações de poder entre antigas e novas instituições de produção de conhecimento científico – como os museus, as universidades e os demais centros de pesquisa –, entre campos de conhecimentos antigos e em formação – como os de educação, comunicação, museologia – e entre antigas e recentes profissões, frutos das novas relações de trabalho que se originaram nas sociedades contemporâneas, centradas na informação e no consumo. Desse modo, entender as diferentes formas de produção de conhecimento que ocorrem nos espaços de museus contribui para a construção do novo campo da divulgação científica e da educação nesses locais, inseridas num amplo movimento social e cultural. Para tanto, consideramos que as reflexões teóricas oriundas da pesquisa em educação e de educação em ciência podem contribuir substancialmente.

Vários cientistas e divulgadores da ciência nacionais e internacionais têm discutido os principais desafios e limites desta atividade (Barros, 1992; Durant, 1996; Fayard, 1999; Díaz, 1999; Gouvêa, 2000, entre outros). Destacam a tendência, muitas vezes presente, de apresentar uma 'imagem espetáculo' e 'acrítica' da ciência, em detrimento de uma visão histórica e mais humanizada, que revele os embates na sua construção e as relações entre ciência, tecnologia e sociedade. Enfatizam também os desafios de divulgar ciência nas sociedades contemporâneas, marcadas por diferenças culturais, sociais, políticas e econômicas e, ao mesmo tempo, imersas em um mundo globalizado e fragmentado. O sujeito da divulgação é um outro tema que permeia as discussões, trazendo para o seio destas o próprio papel social dos cientistas e dos divulgadores frente às problemáticas sociais e ambientais que se colocam.

Um outro elemento evidenciado nessas discussões diz respeito à eficácia da divulgação científica, o que remete a temas como a necessidade da transposição do conhecimento científico; ao problema do 'erro'; a questão das ideologias, presente no processo de divulgação; a problemática da linguagem adequada; e às características do público-alvo da divulgação. Gvirtz e Palamidessi (1998) provocam tal discussão, quando recordam a expressão italiana traduttore, traditore, segundo a qual toda tradução é forçosamente infiel e trai o pensamento original. No caso da educação, a traição estaria calcada, por um lado, no processo inevitável de simplificação, de redução da complexidade do saber 'original' e, por outro, no fato de que toda mensagem educativa é sempre algo mais que transmissão de conhecimento, uma vez que é também uma mensagem política e moral.

Se entendermos o museu como um local de divulgação e educação, torna-se central a questão da transposição do conhecimento nele ocorrida. No que se refere a exposições dos museus de ciências, o processo relaciona-se tanto com a necessidade de tornar as informações apresentadas em textos, objetos e multimídias acessíveis ao público visitante, quanto a proporcionar momentos de prazer e deleite, ludicidade e contemplação. Além disso, a transformação do saber que ocorre no espaço expositivo é também determinada pelas especificidades do museu quanto aos seus aspectos de tempo, espaço e objeto e deve ser vista no contexto dessa cultura institucional particular.

Este texto procura apresentar, inicialmente, alguns estudos sobre processos de socialização do conhecimento científico, buscando o aprofundamento de trabalhos que abordam os conceitos de transposição didática e museográfica e de recontextualização. Em seguida, com base em resultados de pesquisas, discutem-se alguns aspectos relativos aos desafios e às possibilidades do uso desses conceitos como referencial teórico na pesquisa sobre divulgação e educação em museus. Ao final, serão esboçadas considerações sobre o impacto dos aspectos abordados na prática pedagógica desenvolvida nos museus de ciências.

A questão da transposição do saber científico em espaços de educação

A questão da transposição do conhecimento nos diferentes espaços sociais tem sido analisada por vários autores nos campos da educação e do ensino da ciência. Percebe-se um crescimento do número de estudos sobre os 'saberes' presentes nos processos educativos escolares, com o intuito de valorizar "saberes da experiência social e cultural, do senso comum e da prática, como elementos indispensáveis para o desenvolvimento de habilidades e competências necessárias à solução, tanto dos simples como dos complexos problemas da vida pessoal e profissional dos indivíduos" (Santos, 2000, p. 46). Pesquisas mais recentes tornaram os aspectos da cultura escolar – práticas, rituais e valores presentes no cotidiano desta – o tema central dos debates educacionais. Essas reflexões têm como pressuposto a concepção da escola como um espaço de produção de saberes e, nesse sentido, outra concepção de 'saber' se estrutura.

Para Tardif (2000, p. 11), algumas correntes de idéias que alimentaram as ciências sociais e humanas, nas décadas de 1970 e 80, tiveram um forte impacto no campo da educação e influenciaram o surgimento da noção de saber:

De maneira global, pode-se dizer que essas diversas correntes críticas, tanto na Europa quanto no mundo anglo-saxão, levam a questionar as visões positivistas e tradicionais de uma racionalidade por demais limitada e lógica, associada à ciência empírica da natureza e à sua tecnologia. Elas resultam, em vários casos, na busca de uma racionalidade mais ampla e mais flexível, capaz de dar conta da multiplicidade e da diversidade dos saberes humanos. Nesse sentido, a noção de 'saber', cada vez mais empregada a partir dos anos 1980, já é um sinal de que os conceitos clássicos de 'conhecimento' e de 'ciência' não bastam...

De acordo com Tardif (ibid., p. 11), tal noção denota, hoje, a busca por uma epistéme que ultrapasse os limites do conhecimento empírico da natureza e da racionalidade lógico-matemática, de modo a "englobar objetos epistêmicos tão 'estranhos e esquisitos' (em relação à visão positivista e ao racionalismo clássico) quanto as ciências humanas, a crítica literária, os saberes cotidianos, a comunicação, a linguagem natural, a crença, a consciência de si mesmo etc.". Várias pesquisas na área de educação têm defendido a idéia de que "o conhecimento escolar e o conhecimento científico são instâncias próprias de conhecimento e as disciplinas escolares possuem uma constituição epistemológica e sócio-histórica distinta das disciplinas científicas" (Lopes, 2000, p.150). Essas pesquisas valorizam, assim, os diferentes saberes existentes na escola, entendida como um local em que também se produz conhecimento.

Para a compreensão do processo de produção de saberes ocorrido na escola, é de fundamental importância entender os elementos que compõem a cultura escolar, já que eles irão determinar as relações entre conhecimentos, sujeitos, procedimentos, tempos e espaços na instituição. Forquin (1993, p. 16), ao analisar a educação como reflexo e transmissão de cultura, ressalta que a educação escolar não deve se limitar à seleção entre saberes e materiais culturais, mas garantir efetivamente sua transmissão e assimilação, que demandam "a elaboração de elementos dos saberes 'intermediários', que são tanto imagens artificiais quanto aproximações provisórias mas necessárias", as quais constituem, por sua vez, processos de seleção – inclusão e exclusão – e inserção de dispositivos intermediários que fazem com que parte da cultura seja transmitida.

Consideramos importante, a esta altura, afirmar a opção teórica assumida neste trabalho. Entendemos que os objetivos de ensino são diferentes dos objetivos de produção da ciência e que, portanto, não se pode exigir que a escola – ou qualquer outra instância de ensino e divulgação da ciência – tenha de reproduzir a lógica e a estrutura do conhecimento científico. A educação e a divulgação da ciência têm finalidades e princípios particulares. Como indica Chevallard (1991, p. 214), as transformações que os saberes sofrem no âmbito do ensino são fundamentais, e a valorização da pura produção de conhecimento, em detrimento das manipulações necessárias ao processo de socialização, sugere a impossibilidade do próprio funcionamento das sociedades. Segundo o autor, os processos transpositivos didáticos – e, mais genericamente, institucionais – são "a mola essencial da vida dos saberes, de sua disseminação e de sua funcionalidade adequada". Nesse sentido, "a manipulação transpositiva dos saberes é uma condição sine qua non do funcionamento das sociedades, cuja negligência – a proveito notadamente da pura produção do saber – pode ser criminosa".

Chevallard é um autor essencial para compreensão do processo de transformação do conhecimento científico. Principal responsável pela divulgação do conceito de transposição didática, para ele os objetos de conhecimento passam por transformações que os transformam em objetos de ensino. Tais transformações, realizadas pela transposição didática, tornam acessíveis os conhecimentos e são feitas por diferentes atores, pertencentes às diversas instâncias sociais relacionadas com a educação – órgãos oficiais de educação, universidades, pesquisadores, professores, divulgadores etc. Esses atores instituirão o que Chevallard denomina 'noosfera', onde ocorrem as transformações do conhecimento com finalidades de ensino.

Segundo Chevallard, o 'saber sábio', ao se transformar em 'saber ensinado', é descontextualizado, naturalizado, despersonalizado e descontemporaneizado. O saber científico é referência principal para o saber ensinado, entretanto, ao ser transposto, um novo saber é produzido, o que indica a existência de produção de conhecimento no espaço escolar.

Sob uma perspectiva diferente de Chevallard, Bernstein (1996a, 1996b), na área da sociologia da educação, propõe o conceito de recontextualização, a partir de sua teoria sobre o discurso pedagógico. Apesar de não existir um paralelo entre os conceitos de transposição didática e de recontextualização, ambos são instrumentos teóricos importantes para as análises aqui pretendidas, e acreditamos ser possível estabelecer algumas aproximações entre eles, de modo a minimizar a distância de suas origens e pressupostos.1 1 Gvirtz e Palamidessi (1998) utilizam os conceitos de transposição didática e recontextualização para discutir a transformação do conhecimento científico na escola, sem no entanto problematizar as diferenças entre esses conceitos.

Os conceitos de transposição didática e recontextualização dizem respeito às transformações que o saber sábio ou o discurso científico sofrem, ao passar para os contextos de ensino. Na teoria da transposição didática o foco de análise é a transposição dos conceitos científicos no processo de ensino, enquanto na perspectiva da recontextualização a ênfase é a transferência dos textos entre diferentes contextos de produção e reprodução. Desse modo, uma das principais diferenças entre esses conceitos, ao nosso ver, está no papel do processo social na transformação do conhecimento científico. Chevallard considera esses processos de transformação como sociais e originários da 'noosfera', onde diferentes atores e instituições participam da seleção dos objetos de ensino. No entanto não problematiza as relações de poder presentes na noosfera, sendo sua teoria fundamentada em pressupostos epistemológicos. Já o conceito de recontextualização, de Bernstein, deve ser visto em um quadro teórico, mais amplo, de críticas e debate em torno das teorias de reprodução,2 2 Discorrendo sobre a construção social do discurso pedagógico, Bernstein (1996b, p. 229) afirma que a sociologia da educação não tem dado atenção às características da forma especializada de comunicação do discurso pedagógico, e que as análises deste campo têm tomado como dado o próprio discurso que é objeto de sua análise. Segundo ele, as teorias da reprodução "vêem o discurso pedagógico como meio para outras vozes: classe, gênero, raça. Os discursos da educação são analisados por sua capacidade para reproduzir relações dominantes/dominados que, embora externas ao discurso, penetram as relações sociais, os meios de transmissão e a avaliação do discurso pedagógico. Considera-se, freqüentemente, que a voz da classe operária é a voz ausente dos discurso pedagógico, mas argumentaremos aqui que o que está ausente do discurso pedagógico é a sua própria voz". Bernstein discute intensamente as teorias da reprodução, afirmando estarem estas mais preocupadas "com uma análise do que é reproduzido na (e pela) educação do que com uma análise do meio de reprodução, com a natureza do discurso especializado". Em sua crítica às teorias da reprodução, preocupa-se em propugnar uma teoria da reprodução cultural que seja capaz de, entre outras coisas, "lidar com os problemas de tradução entre os níveis, utilizando a mesma linguagem" (ibid., p. 235). Além disso, essas teorias deveriam ser capazes de lidar com a produção, a transmissão e a aquisição da cultura pedagógica. Bernstein procura, então, indicar as relações fundamentais de uma teoria de comunicação pedagógica e, para tanto, analisa as condições de constituição do texto pedagógico. em que se destacam essencialmente a forma, as regras e os princípios de produção e reprodução do discurso pedagógico.

Para Bernstein (1996b), o discurso pedagógico relativo a toda prática de instrução é recontextualizador. Apropria-se de outros discursos e os coloca numa relação mútua especial, com vistas à sua transmissão e aquisição seletivas, tratando-se assim de um princípio "que tira (desloca) um discurso de sua prática e contexto substantivos e reloca aquele discurso de acordo com seu próprio princípio de focalização e reordenamentos seletivos" (ibid., p. 259).

A constituição do discurso pedagógico norteia-se por regras específicas. Para Bernstein, 'regras distributivas' são aquelas pelas quais o dispositivo pedagógico controla a relação entre poder, conhecimento, formas de consciência e prática no nível da produção do conhecimento. Por meio delas o dispositivo pedagógico domina a produção do conhecimento. Elas estabelecem quem pode transmitir o quê, a quem e sob que condições e, assim, tentam fixar limites interiores e exteriores ao discurso legítimo.

No que se refere às 'regras recontextualizadoras', Bernstein entende que o discurso pedagógico é construído com base em regras que embutem e relacionam dois discursos. Nesse processo, o discurso da competência, instrucional (relativo aos conteúdos científicos) é embutido no discurso regulador, de ordem social (concernente a disciplina, valores, concepções de mundo, de ciência, de educação etc.). A constituição do discurso pedagógico implica um princípio recontextualizador que age seletivamente sobre outros discursos, deles se apropriando, refocalizando-os e relacionando-os a partir de uma ordem e de ordenamentos próprios.

Quanto às 'regras de avaliação', o autor afirma que a chave da prática pedagógica é a avaliação contínua que se encontra na relação entre adquirir e transmitir conhecimentos. No universo das regras avaliativas, elementos referentes ao espaço e tempo são estabelecidos. No caso da escola, o tempo se transforma em idade (que corresponde à seriação da cultura escolar) e o espaço, em contexto/conteúdo (que se distribuem segundo esta mesma cultura escolar) (Bernstein, 1996a, p. 49). Assim, as regras distributivas estariam relacionadas ao nível de produção do discurso; as regras recontextualizadoras, ao nível da transmissão; e as regras de avaliação, ao nível da aquisição.

Por entendermos que as exposições de museus são unidades pedagógicas, acreditamos que os processos de constituição do discurso expositivo podem ser compreendidos a partir de analogias com a noção de discurso pedagógico em Bernstein. Do mesmo modo, pode ser um referencial teórico útil para o estudo dos mecanismos de recontextualização e produção de conhecimento, presentes em exposições e demais atividades educativas desenvolvidas nos museus de ciências.

As pesquisas sobre transposição didática e museográfica e sobre recontextualização

Neste item serão analisados alguns temas oriundos da pesquisa com os conceitos expostos anteriormente, no intuito de não só apresentar resultados de investigações, como também problematizar as questões que os conceitos de transposição didática/museográfica e recontextualização levantam para a pesquisa e prática da educação e divulgação científica em museus. Não temos a pretensão de um levantamento exaustivo sobre o tema, mas destacar elementos que possam contribuir para as investigações e a prática educativa nos museus de ciências. Alguns dados originários de trabalhos em transposição didática no contexto formal de ensino serão abordados, com o objetivo de auxiliar nossas reflexões. Organizamos esta etapa do texto a partir de temas escolhidos com o propósito de enfatizar as idéias fundamentais, que queremos discutir, e problematizar alguns desafios que os conceitos aqui tratados levantam.

Sobre o saber sábio

Ao desenvolver o conceito de transposição didática, Chevallard (1991) denominou 'saber sábio' os conhecimentos matemáticos que servem de referência para constituição do 'saber ensinar'. O autor procura analisar o percurso do conceito de distância, desde sua origem no saber sábio até seu ensino nos currículos e em sala de aula. Uma das críticas feitas a Chevallard diz respeito a essa concepção de saber sábio. Abordando os limites da teoria da transposição didática, Caillot (1996) salienta que, mesmo na instância de produção do conhecimento científico, há controvérsias, debates, correntes antagônicas, o que tornaria difícil a tarefa de selecionar o saber sábio em algumas áreas do conhecimento que não a matemática, como propõe Chevallard. Aponta problemas dessa noção quando transposta para o ensino da língua materna (no caso, o francês), disciplinas humanas, como a história, e da própria química, enfatizando que, além do saber sábio, outros elementos são importantes na definição do saber a ser ensinado, dentre eles as práticas sociais.

Develay (1987), focalizando o conceito de memória em sua pesquisa sobre a transposição didática em ciências biológicas, analisa o processo de escolha da referência para o estabelecimento do saber sábio. Afirma o autor que o saber sábio não é produto de um indivíduo isolado, mas de equipes alocadas em diferentes laboratórios, ou fruto de discussão em congressos e simpósios. Também acentua que a transposição didática varia de acordo com os diferentes níveis de ensino, havendo várias etapas de transposição de saberes.3 3 Develay opta, em seu trabalho, pelo estudo da transposição didática em livros didáticos de diferentes séries, porém publicados no mesmo ano que o manual científico utilizado como referência do conceito de memória no saber sábio.

Por analisar um conceito pertencente às ciências biológicas, Develay (ibid.) tece algumas considerações importantes para a nossa discussão. Na biologia, a transposição didática conduz a um processo de dogmatização que, segundo o autor, pode ser explicado por três razões: a de natureza sociopolítica, relativa à visão neutra e universal que a ciência assume em nossa sociedade; a de cunho institucional, relacionada aos processos de transposição que ocorrem na noosfera, os quais são determinados pelas instituições e pelos atores envolvidos na seleção dos conteúdos; e as razões epistemológicas, que dizem respeito às especificidades das ciências biológicas, no que tange à sua complexidade e à noção de causa. Ao sublinhar as influências políticas e sociais, o trabalho de Develay reforça a idéia apresentada em Caillot, sobre os aportes oriundos das práticas sociais, os quais, além do saber sábio, constituem referências importantes para a transposição didática. Este conceito, para Develay, mais do que promover uma modificação semiótica do discurso, gera uma alteração epistemológica, que originaria uma epistemologia escolar própria. Sublinhando os aspectos epistemológicos envolvidos na transposição didática, particularmente da biologia, o trabalho de Develay ajuda-nos a retrucar o saber sábio como referência única e hegemônica da produção do saber escolar.

Na pesquisa sobre a transposição museográfica realizada no Museu de Astronomia e Ciências Afins – Mast (Marandino et al., 2003), a questão sobre o saber sábio também foi objeto de reflexão. Foram estudadas duas exposições sobre os ciclos das estações do ano e dos dias e das noites. Em um primeiro momento, recorreu-se à apresentação dos conteúdos nos manuais do saber de referência, a astronomia. Contudo, a densidade histórico-social dos conceitos os tornam objeto de estudo de diversas áreas do conhecimento, o que determinou ampliarmos sua recuperação para áreas afins da astronomia, como geografia e biologia.

Da astronomia foram utilizados manuais de ensino superior, largamente difundidos e empregados na formação de astrônomos. Por serem manuais, já está implícita uma transposição didática. Os tópicos escolhidos – estações e dias e noites – são apresentados no capítulo referente à construção da equação de tempo, que significa medir a noção de tempo clássico e considerar as correções devido aos movimentos da Terra. Portanto, os conceitos não são apresentados sob uma perspectiva histórico-social da astronomia, mas pela matematização da idéia de tempo, não se discutindo a noção de claro e escuro.

Na biologia as referências adotadas, tanto para a elaboração da exposição como para a pesquisa, foram os textos de divulgação científica produzidos por especialistas em cronobiologia (ritmos biológicos), campo que aborda a relação entre os conceitos escolhidos e a vida na Terra. Ainda uma área recente da biologia, há poucos manuais brasileiros neste saber de referência que versam sobre ela,4 4 À época da pesquisa não foram encontrados manuais de cronobiologia. Entretanto, em levantamento posterior foi identificado o livro de Marques e Menna-Barreto (1997). sendo igualmente omitida em grande parte dos livros didáticos de ciências e biologia. Os textos de divulgação foram, então, os mais adotados como referência, encontrando-se embutidas neles também algumas transposições. No estudo dos ritmos biológicos considera-se que os organismos estão organizados no espaço-tempo e que, ao longo de seu processo evolutivo e a partir de modificações anatômicas e bioquímicas, passam por adaptações não somente relativas ao espaço mas também à dimensão temporal do ambiente.

As fontes de consulta sobre o saber de referência da geografia foram os manuais de formação de profissionais na área. Na geografia, os ciclos das estações do ano e dos dias e das noites também estão enquadrados na noção de tempo. Entretanto, a matematização, tão característica da astronomia, está ausente neste caso. Os conceitos envolvidos são: esfera celeste, pontos de solstícios e equinócios, eclíptica, ponto vernal, latitude e longitude. A medição de tempo, para a geografia, baseia-se em conceitos que lhe são característicos, como hora legal, fuso horário e tempo legal, aproximando-se mais de uma visão civil de tempo, ou seja, do resultado de uma necessidade social de organizar as horas de acordo com a longitude.

Portanto, a abordagem dos conceitos escolhidos nas exposições estudadas na pesquisa de Marandino et al. (2003) não se encontra de forma pura no saber de referência, sendo tema de diferentes áreas de conhecimento. Tampouco esses conceitos foram tratados, nas exposições, tal como o são no âmbito da produção do conhecimento científico, havendo inclusive, em alguns momentos, superposição de diferentes perspectivas ou mesmo elaboração de uma nova abordagem, adequada aos interesses das exposições. Seria importante um estudo sobre a origem da sua abordagem, já bastante comum nos livros didáticos. É muito provável que esses materiais escolares tenham, de alguma forma, servido de base para a escolha temática das exposições,5 5 A equipe que concebeu uma dessas exposições tomou como referência, para elaboração dos modelos pedagógicos expostos, resultados de pesquisa sobre concepções espontâneas de dias e noites e estações do ano, no ensino de ciências. o que reforça a idéia de que o saber sábio não é a única referência na constituição do saber ensinado ou, no caso das exposições, do saber exposto.

O fato de os conceitos escolhidos serem tratados por diferentes áreas da ciência aponta para a interdisciplinaridade de determinados conteúdos apresentados em exposições, tornando ainda mais difícil analisar a origem desses conceitos no saber sábio. Acrescentam-se a esta dificuldade mais outras duas: o tratamento particular que recebem, em cada área, os conteúdos trabalhados, impedindo a análise do processo de transposição de uma única forma, e os problemas para se definir o nível de transposição a ser considerado para análise, já que, em alguns casos, por serem temáticas recentes – como por exemplo a cronobiologia –, é difícil decidir sobre a fonte do saber sábio – manuais universitários, artigos científicos, textos de divulgação?

Por fim, vale destacar que a definição de saber sábio, nas pesquisas sobre transposição didática e museográfica, também implica escolhas, já que a ciência, como corpo de conhecimentos sobre o mundo, não é única. O mesmo vale para cada uma de suas áreas: em algumas épocas, especialmente no cenário contemporâneo, paradigmas hegemônicos podem conviver com outros, resultando em mais de uma explicação para determinados fenômenos. Neste sentido, a análise do saber sábio ou científico, durante a realização dos estudos sobre o processo de transposição didática, deve levar em conta aspectos relacionados à filosofia, sociologia e epistemologia da ciência.

Sobre a dinâmica e os contextos do processo de transposição

Um dos aspectos mais interessantes da teoria da transposição didática elaborada por Chevallard (1991) foi a determinação de alguns parâmetros que caracterizam este processo. Segundo o autor, na transformação do saber sábio para o saber ensinado ocorrem:

a) descontemporalização – o saber ensinado é exilado de sua origem e separado de sua produção histórica na esfera do saber sábio;

b) naturalização – o saber ensinado possui uma evidência incontestável das 'coisas naturais', no sentido de uma natureza dada;

c) descontextualização – o saber sábio é descontextualizado e, em seguida, recontextualizado em um discurso diferente; neste processo, algo neste novo discurso permanece descontextualizado, já que ele não se identifica com o texto do saber, com a rede de problemas e questões na qual o elemento encontrava-se originalmente, modificando assim seu uso e emprego, ou seja, seu sentido original;

d) despersonalização – em sua origem, o saber vincula-se a seu produtor e nele se encarna; ao ser compartilhado na academia ocorre uma certa despersonalização, comum no processo de produção social do conhecimento e requisito para sua publicidade.

Develay (1987), em seu trabalho sobre a transposição didática do conceito de memória, recorre aos parâmetros de Chevallard, mas chama a atenção para outros. Além da despersonalização, destaca a 'dessincretização' – relativa à burocratização que redunda na divisão entre a prática teórica e aquela ensinada, a qual não revela, por exemplo, a interdisciplinaridade existente na produção da ciência –, e a 'programação da aquisição do saber' – correspondente ao controle exercido pela seriação progressiva no ensino. Develay também sustenta que, no caso da transposição didática nas ciências biológicas, outro elemento estaria em jogo: a 'dogmatização' do saber sábio ao se tornar saber ensinado.

Os elementos indicados por Develay (1987) levam-nos a questionar se os parâmetros que determinam o processo de transposição didática seriam os mesmos para todas as ciências. Parece-nos que, além dos aspectos decisivos no processo de transposição de qualquer saber sábio para o saber a ser ensinado, outros estariam estritamente relacionados às especificidades de cada área da ciência, como o caso da dogmatização na biologia. Esta questão é relevante para os estudos sobre os processos de socialização do conhecimento científico, já que os conceitos devem ser analisados também a partir da estrutura filosófica e epistemológica de seu(s) campo(s), a qual pode oferecer novos elementos para a compreensão sobre as transformações desse saber. As críticas de Caillot (1996), apontadas anteriormente, são aqui retomadas por indicarem limites para a generalização da teoria da transposição didática para outros campos afora a matemática. Desta forma, a transposição didática deve ser estudada levando-se em conta as particularidades do saber de referência.

Contudo, ainda estamos trabalhando na esfera do conceito e de sua epistemologia e, como vimos, outros elementos e saberes estão presentes e determinam a elaboração do saber ensinado. Apesar de a noção de noosfera levar em conta os aspectos sociais da transposição, estes não são devidamente abordados no trabalho de Chevallard (1991), uma vez que não é explorada a influência dos contextos de produção e reprodução do conhecimento. Algumas perguntas afloram, quando observamos o processo de produção de saberes sob a perspectiva sociológica. Que elementos estariam presentes na constituição dos saberes oriundos dos processos de transformação do saber científico? Seriam iguais as transformações do conhecimento científico, nos diferentes espaços educativos? Que influências o contexto social – atores, instituições, forças de poder, legitimações – teria sobre o processo de produção?

Acreditamos que os estudos fundamentados numa perspectiva sociológica, sobre a produção de saberes nos vários espaços sociais, exigem um quadro teórico mais amplo do que o oferecido pela teoria da transposição didática. A mesma consideração vale para os museus de ciências. Alguns autores que trabalharam com esse conceito nas pesquisas em museus atentaram para as especificidades do processo de transposição ocorrido nesses locais. Para Simonneaux e Jacobi (1997), por exemplo, a transposição museográfica é uma operação delicada, em que elementos como espaço, linguagem, conceitos e texto estão em jogo. Os autores discutem algumas das escolhas feitas na elaboração de uma exposição sobre biotecnologia, durante a fase de transposição museográfica, baseados na idéia de uma aproximação epistemológica e em uma análise histórica da construção do conhecimento subjacente à seleção das informações a serem apresentadas.

Asensio e Pol (1999, p. 10), por outro lado, debatem os fundamentos da 'transposição expositiva' e afirmam que a adequação de um saber científico à exposição em museu e, portanto, para ser recebido pelo público "é um processo muito complexo" e várias considerações devem ser feitas para que as variáveis que influenciam o processo tenham um mínimo de êxito. Propõem, então, que a adequação e comunicabilidade do saber sábio em situações de ensino ou de exposição devem ter por base cinco fontes fundamentais de reflexão: a sociocultural, a disciplinar, a psicológica, a didática e a museológica.

Para Marandino et al. (2003, p. 182), a compreensão do processo de transposição museográfica significa "identificar as marcas de intencionalidade relevantes que deverão estar presentes na exposição, e ainda compreender o contexto no qual ele se desenvolve (o saber, a instituição, os idealizadores, os equipamentos e os visitantes)". Nesta investigação, os referenciais teóricos utilizados para compreensão desse processo, em duas exposições sobre os ciclos astronômicos, englobaram outros aspectos além daqueles em geral utilizados nas pesquisas de transposição didática. A escolha teve por base a idéia de que os museus possuem particularidades que determinam e existência de uma prática pedagógica particular. Recorreu-se, então, ao trabalho de Davallon (1999), para quem a compreensão da transformação de um saber de referência, numa exposição, deve partir do funcionamento semiótico da mesma, sendo mais simples seguir essa transformação até a visita feita pelo público. Dessa forma, o estudo de Marandino et al. (2003) partiu da concepção de exposição como linguagem e utilizou as três lógicas de linguagem existentes na produção das exposições, propostas por Davallon: a lógica do discurso, a do espaço e a do gesto, correspondentes a três momentos de transformação – a preparação da exposição, a execução e a visita –, sendo fundamental captar as fronteiras da passagem de uma lógica para outra.

Para Davallon (1999), a preparação da exposição corresponde à fronteira entre um dado saber e a estratégia para colocá-lo em exposição (procedimentos de expor), ou seja, a passagem da lógica do discurso para a do espaço. Esta passagem é a instalação do saber no espaço – o ato de criação da exposição como objeto cultural –, que, em certos casos, pode se dar quando a exposição é projetada e, em outros, quando a exposição é executada por trabalho conjunto de idealizador e realizadores, o que caracteriza o segundo momento. O terceiro momento é marcado pela chegada do visitante; nele, a compreensão da exposição é subordinada a uma atividade e uma lógica gestual (percurso, aproximação, olhar etc.). Esses momentos variam conforme o saber tratado, tipo de exposição, tamanho, a estrutura institucional de produção etc. A dinâmica da cadeia de operações é dada pela transformação (organizada) do discurso elaborado pelos cientistas em saber a ser exposto e sua instalação espacial por arquitetos, designers e realizadores, podendo dessa forma caracterizar fortemente o produto final.

Marandino et al. (2003) apresentam cada uma das lógicas presentes nas etapas da produção das duas exposições. Ressaltam que, em cada uma delas, as três lógicas se articulam de forma distinta, expressando diferentes processos de transposição museográfica. Com base na análise dos recursos museográficos disponibilizados na cenarização – pertencente à lógica do espaço (aparatos interativos, slides, painéis) –, afirmam a ocorrência de caminhos díspares no processo de transposição museográfica, nas duas exposições. A análise destas "mostra que a interpretação que o visitante faz é determinada pela interseção da intenção da exposição-texto e a intenção do visitante-leitor". Para os autores, este fato confirma que é a interação entre esses dois universos que define as margens de interpretação de uma exposição pelo visitante. Assim, apesar de a exposição-texto possuir inúmeras possibilidades de interpretação, "o visitante não pode interpretar qualquer coisa". É então indispensável que, na transposição museográfica, os aspectos relativos a lógicas da linguagem e suas transformações sejam considerados, para que não se comprometa a intenção da exposição (ibid., p. 182).

No que se refere à interação do público escolar com as exposições nos museus, Allard et al. (1996) indicam a necessidade da realização da transposição didática durante a visita de estudantes. Tal processo deve ser realizado pelos professores e/ou mediadores e compõe um modelo didático de apropriação do conhecimento apresentado nesses locais.6 6 Allard et al. (1996, p. 19) propõem um modelo de análise das relações pedagógicas nos espaços de museu, com base nas diferenças entre este local e a escola, composto por três eixos – aluno/visitante, temática e interventor –, entre os quais existiriam relações de apropriação, transposição e suporte. Para os autores, este universo constitui o programa educativo do museu.

É possível afirmar que os estudos sobre a transformação do conhecimento científico nos museus possuem complexidade e especificidade próprias e dessemelhantes daqueles desenvolvidos em outros espaços educativos, tal como a escola. As investigações sobre os processos de produção do conhecimento em espaços de museus devem ser desenvolvidas sob uma perspectiva mais ampla e considerar suas particularidades. Os trabalhos aqui apresentados apontam para outros elementos, além do próprio saber sábio, envolvidos na transformação do conhecimento nesses locais. A seguir aprofundaremos esses aspectos.

Sobre a produção de saberes no contexto dos museus de ciências

A produção de saberes ocorre em vários contextos sociais, sendo estes constituídos por diferentes culturas institucionais. A aplicação da noção de cultura institucional para a análise de instituições vem sendo adotada na pesquisa em educação. Nas últimas duas décadas, investigações neste campo têm demonstrando ser impossível isolar a ação pedagógica dos universos sociais que a envolvem (Nóvoa, 1992). Recentemente, surge com ênfase nos estudos em educação a chamada 'sociologia das organizações escolares', em que estas instituições adquirem uma dimensão própria como espaço organizacional, onde também se tomam importantes decisões educativas, curriculares e pedagógicas. Com efeito, para compreender os processos de mudança e inovação educacionais, é necessário o estudo da escola em sua complexidade técnica, científica e humana. Para Nóvoa (ibid., p.16), é fundamental a contextualização social e política das instituições escolares, seus mecanismos de tomada de decisões e suas relações de poder: "As escolas constituem uma territorialidade espacial e cultural, onde se exprime o jogo de atores educativos internos e externos; por isso, a sua análise só tem verdadeiro sentido se conseguir mobilizar todas as dimensões pessoais, simbólicas e políticas da vida escolar". O entendimento das organizações escolares como locais com relativa autonomia e dinâmica de produção e reprodução de conhecimentos – logo, que não se limita a reproduzi-los – leva a uma nova percepção do seu papel social. Seu funcionamento é fruto de compromissos da estrutura formal e das interações entre os diferentes grupos que a forma, sendo possível portanto afirmar a existência de uma cultura escolar.

A idéia atual de tratar as organizações como 'culturas' parece-nos promissora, já que implica percebê-las a partir de um "olhar mais plural e dinâmico, obrigando-nos a recorrer aos fatores políticos e ideológicos para compreender o cotidiano e os processos organizacionais" (ibid., p. 28). Há, assim, uma mudança no entendimento das organizações, que, de uma visão fundamentada na racionalidade técnica, passa a ser analisada com base numa racionalidade político-cultural. O conceito de cultura é, então, introduzido na área de educação, esta entendida como uma rede de movimentos composta por vários elementos, definidos a partir de uma perspectiva antropológica, os quais integram aspectos de "ordem histórica, ideológica, sociológica e psicológica" (ibid., p. 30).

Tais reflexões nos auxiliam a aprofundar a análise da produção de conhecimentos educacionais nos museus sob o viés sociológico. Os museus são espaços que possuem uma cultura própria. Herrero (1998, p. 151) propõe que o museu seja considerado uma casa da cultura científica, a englobar fatores como a história de criação do conhecimento científico, seu contexto acadêmico-político e a seleção e priorização do conteúdo científico por uma comunidade que tem um marco interpretativo particular, constituindo o discurso museográfico pelo qual o conhecimento científico é transmitido. Considera-se, desse modo, que o tratamento dos museus de ciências como organizações que possuem uma cultura particular nos fornece elementos para entender o seu funcionamento nos seus aspectos históricos, políticos, sociais e ideológicos.

Em pesquisa de doutorado recentemente realizada (Marandino, 2001), procuramos compreender a produção de saberes em museus de ciências, a partir do estudo do processo de constituição do discurso em exposições com temáticas na área da biologia. Adotamos o referencial teórico das pesquisas de transposição didática/museográfica e os conceitos de discurso pedagógico e de recontextualização. Nesse estudo, as exposições de museus são também entendidas como unidades pedagógicas, em que ocorrem processos de recontextualização do discurso científico. Entre outros aspectos, a investigação identificou vários elementos pertencentes à cultura museal que influenciam na produção do discurso expositivo. Assim, na constituição do discurso apresentado em bioexposições de museus de ciências, vários aspectos determinam o seu modo de produção e o próprio discurso final. Dentre eles citamos: a história dos museus; a história institucional; a existência ou não de acervo e a origem do mesmo; os tipos e a natureza dos objetos expostos; a proposta conceitual das exposições – sua concepção teórica, quem a define e/ou quem a financia –; a formação das equipes elaboradoras das exposições; e os vários discursos e tipos de textos utilizados. Além disso, o discurso científico, que no caso referia-se à biologia, também influencia a elaboração do discurso final, já que seus conteúdos, métodos, objetos de estudo, suas evidências materiais, sua estrutura epistemológica, entre outros fatores, concorrem na definição do discurso expositivo. Em alguns casos também saberes técnicos, como os dos taxidermistas, artistas plásticos, carpinteiros etc., participam de forma mais ou menos intensa na elaboração desse discurso.

Na pesquisa caracterizamos o processo de elaboração do discurso expositivo como uma espécie de 'jogo', no sentido lúdico do termo, mas também de diálogo, considerando as relações de poder presentes nas interações entre os diferentes discursos e saberes envolvidos. Assim, a elaboração do discurso expositivo foi entendida como um processo histórico-social, com seus embates, controvérsias, jogos de poder e legitimações. Em determinados momentos, em virtude das políticas estabelecidas pelos órgãos diretamente envolvidos na produção cultural (ministérios e secretarias de cultura, educação e de ciência e tecnologia), das propostas conceituais das exposições (científicas, museológicas, educacionais), da formação das equipes que as elaboram etc., determinados discursos e saberes se sobressaem e legitimam, enquanto outros podem ser ocultados no discurso expositivo final. Com efeito, em alguns momentos o discurso da ciência pode se sobrepor aos demais e ter hegemonia no discurso final, mas em outros, discursos como os da museologia ou educação, assim como os da comunidade local ou da escola poderão determinar as escolhas e seleções feitas.

Conforme mencionado anteriormente, o conceito de noosfera aplicado à escola (Chevallard, 1991) engloba os espaços e atores responsáveis pelas transformações do conhecimento com finalidades de ensino. Por conseguinte, é possível indicar que o universo citado no parágrafo anterior compõe a 'noosfera museal'. Na produção de saberes levada a efeito nos museus, processos de seleção estão implícitos e são determinados pelos diferentes atores envolvidos, como os organismos governamentais comprometidos com a produção cultural, científica e educacional e também – desde que legitimados – os organismos não-governamentais, as escolas, a comunidade etc.

Seria possível afirmar que a dinâmica de constituição do discurso pedagógico, característico do espaço escolar, é igual a do discurso expositivo dos museus? O processo de recontextualização seria o mesmo, nos dois casos? Os saberes que participam do jogo da construção das exposições são de diferentes naturezas. Dele fazem parte discursos de diversos campos do conhecimento – ciência, educação, comunicação, museologia etc. – e saberes técnicos – marcenaria, taxidermia, conservação, dentre outros. Ademais, os discursos e produtos de outros espaços sociais, como os da escola, dos professores e dos alunos podem também participar da elaboração das exposições. Constatou-se que o discurso expositivo se comporta de forma semelhante ao pedagógico segundo Bernstein, pois desloca outros discursos a partir de seus princípios e objetivos, assumindo as características de discurso recontextualizador. As finalidades de divulgação/comunicação/educação definem o modo de produção desse discurso.

No entanto, ressalta-se que o discurso expositivo possui especificidades que o diferencia do pedagógico escolar, resultantes das relações entre tempo, espaço e objetos nos museus, com implicações diretas sobre as regras avaliativas7 7 Os museus de ciências desenvolvem, geralmente, pesquisas de público que incluem o levantamento de perfil e expectativas bem como avaliações da exposição e de aprendizagem. Seus resultados são utilizados para análise, avaliação e reformulações da exposição e/ou das ações educativas desenvolvidas nesses espaços. Tais estudos procuram avaliar a efetividade dos mecanismos transpositivos e recontextualizadores de recursos e estratégias utilizados para que o público compreenda as narrativas propostas pela exposição. Avalia-se, assim, a efetividade das atividades e a forma de interação do público com as mesmas. Não se avalia o público e tampouco a avaliação tem implicações políticas e sociais na vida do visitante, como a promovida no âmbito escolar. Segundo Bernstein (1996b), as regras de avaliação do discurso pedagógico se relacionam com o 'nível da aquisição'. Nas pesquisas de público nos museus também está em jogo, de alguma forma, a 'aquisição' daquilo que é exposto, porém esta dimensão não se apresenta, para os visitantes dos museus, nos mesmos termos que para os alunos nas escolas. Além disso, o significado de aquisição, no âmbito dos museus, ainda não está bem compreendido e constitui tema de investigação na área. de sua constituição. Postula-se que o discurso expositivo é um discurso específico, mas que, por possuir objetivos próprios e recolocar outros discursos a partir de sua própria lógica, acaba por se comportar como o discurso pedagógico. A pesquisa (Marandino, 2001) constatou uma real transformação do discurso científico ao ser socializado e concluiu que, na elaboração do discurso expositivo, ocorre uma nova produção, decorrente dos processos recontextualizadores. Na concepção de exposições há uma dimensão de produção de conhecimentos, relacionada à transformação do discurso científico em mídia de espaço. Tal produção está intimamente ligada aos objetivos educativos e comunicativos que os museus de ciências possuem na atualidade.

Com base na pesquisa, foi possível afirmar que diferentes contextos determinam os diversos elementos implicados na produção e reprodução do saber. Nesse sentido, compreender a cultura museal é fundamental para os estudos em educação e divulgação da ciência nos museus. Acreditamos que o entendimento dos museus como organizações culturais podem auxiliar nesse aspecto, o que torna relevante a realização de estudos educacionais que possam elucidar as particularidades que os compõem.

Considerações finais

Com base nos trabalhos aqui apresentados, propõe-se que os processos de transformação do conhecimento científico com fins de ensino e divulgação não constituem meras simplificações. Na verdade, a necessidade ou não de realizar tais transformações tem sido tema de calorosos debates e, muitas vezes, profundos conflitos entre cientistas e diferentes divulgadores da ciência, sejam educadores, jornalistas, comunicadores ou museólogos. Por um lado, deve-se precaver contra o erro, a espetacularização, a imagem a-histórica, a-política e descontextualizada que o conhecimento pode adquirir. Por outro, não se pode desconsiderar a necessidade de disseminação da ciência e da realização de processos transpositivos do saber científico, para que este possa ser divulgado ou ensinado, uma condição para a existência das sociedades contemporâneas. Nesse processo, para além da reprodução de saberes, outros novos são produzidos, frutos das relações que se estabelecem no âmbito da cultura museal.

Os diferentes espaços sociais estabelecem uma relação própria com o conhecimento científico, no entanto em todos eles há algum nível de tradução ou transposição deste saber. Partimos do pressuposto de que este processo de transposição ocorre quando o conhecimento científico é divulgado nos museus. Para o desenvolvimento de práticas educativas e reflexões teóricas nesse campo, parece-nos importante tomar por base os referenciais advindos do campo da educação, em que se acumulam as pesquisas que entendem a escola não como uma mera reprodutora do conhecimento científico, mas como um espaço diferenciado de produção de saberes. Procurando trazer esse debate para o espaço dos museus, foram aprofundados estudos da museologia e da comunicação que podem auxiliar na compreensão das especificidades que esses locais em particular impõem ao processo de produção, penetrando assim na sua cultura institucional. Desse modo, entende-se que o museu é também um local de produção de saberes próprios.

Entretanto, para entender a produção museal de saberes é imprescindível que educadores de museus investiguem cada vez mais os elementos que compõem essa cultura, de modo a esclarecer os aspectos a serem considerados no estudo da produção de saberes nesses espaços. Hooper-Greenhill (1994), ao problematizar os estudos em educação e comunicação em museus, defende a necessidade do desenvolvimento de pesquisas que tenham por referenciais teóricos a perspectiva crítica da educação e os estudos culturais advindos da comunicação. A autora critica a ênfase dada às pesquisas de aprendizagem nesses espaços e reclama uma compreensão mais ampla do papel educacional dos museus. Apesar de consideramos relevantes as investigações sobre a aprendizagem em museus – processo ainda pouco compreendido –, acreditamos que os estudos que se dispõem a analisar a produção social do conhecimento nos museus contribuem para o entendimento do processo educativo nesses locais num sentido mais amplo, como sugere Hooper-Greenhill.

As considerações aqui feitas têm implicações diretas nas práticas educativas e de divulgação de museus. Seja na produção de exposições ou no processo de apropriação e interpretação, pelo público, das informações divulgadas nos museus, estão implícitos processos de transposição museográfica e didática. As equipes que elaboram as exposições devem estar atentas aos discursos em jogo e aos processos de transformação inerentes à socialização do saber científico. A seleção, a apresentação – por meio de textos e/ou objetos – e a organização das informações no espaço (cenarização) devem levar em consideração os visitantes, com o propósito de sensibilizá-los, diverti-los, levá-los à produção de sentido ou, ainda, promover a aprendizagem e reformulação de suas concepções anteriores. O ponto de partida é a realização de transposições do saber, por meio da introdução de dispositivos mediadores que favoreçam diferentes tipos de interações entre público e informação. A questão da proximidade entre o saber exposto e/ou produzido no museu e o saber sábio deve ser observada no âmbito das escolhas relacionadas às propostas conceituais da exposição e das atividades educativas desenvolvidas. É necessário, portanto, clareza sobre os princípios que fundamentam as ações educativas nos museus, pois é com base neles que as aproximações e distâncias entre saberes podem ser avaliadas.

Os saberes dos educadores, oriundos da prática pedagógica desenvolvida nos museus bem como das investigações educacionais realizadas fora e dentro do espaço museal, devem ser considerados fundamentais. Tais saberes são necessários, nos museus, não apenas para o desenvolvimento das atividades comumente denominadas 'educativas'– em geral aquelas dirigidas ao atendimento direto ao público, como monitoria, produção de materiais e atendimento à escola –, mas também para o cumprimento de outros papéis que surgem à medida que a função educativa desses espaços se amplia. Defende-se, assim, que os educadores façam parte dos processos de decisão nos museus, aqui considerados como organizações produtoras de diferentes saberes.

NOTAS

Recebido para publicação em setembro de 2002.

Aprovado para publicação em março de 2003.

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  • Tardif, M. 2000 O conhecimento dos professores Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. (Mimeo).
  • 1
    Gvirtz e Palamidessi (1998) utilizam os conceitos de transposição didática e recontextualização para discutir a transformação do conhecimento científico na escola, sem no entanto problematizar as diferenças entre esses conceitos.
  • 2
    Discorrendo sobre a construção social do discurso pedagógico, Bernstein (1996b, p. 229) afirma que a sociologia da educação não tem dado atenção às características da forma especializada de comunicação do discurso pedagógico, e que as análises deste campo têm tomado como dado o próprio discurso que é objeto de sua análise. Segundo ele, as teorias da reprodução "vêem o discurso pedagógico como meio para outras vozes: classe, gênero, raça. Os discursos da educação são analisados por sua capacidade para reproduzir relações dominantes/dominados que, embora externas ao discurso, penetram as relações sociais, os meios de transmissão e a avaliação do discurso pedagógico. Considera-se, freqüentemente, que a voz da classe operária é a voz ausente dos discurso pedagógico, mas argumentaremos aqui que o que está ausente do discurso pedagógico é a sua própria voz". Bernstein discute intensamente as teorias da reprodução, afirmando estarem estas mais preocupadas "com uma análise do que é reproduzido na (e pela) educação do que com uma análise do meio de reprodução, com a natureza do discurso especializado". Em sua crítica às teorias da reprodução, preocupa-se em propugnar uma teoria da reprodução cultural que seja capaz de, entre outras coisas, "lidar com os problemas de tradução entre os níveis, utilizando a mesma linguagem" (ibid., p. 235). Além disso, essas teorias deveriam ser capazes de lidar com a produção, a transmissão e a aquisição da cultura pedagógica. Bernstein procura, então, indicar as relações fundamentais de uma teoria de comunicação pedagógica e, para tanto, analisa as condições de constituição do texto pedagógico.
  • 3
    Develay opta, em seu trabalho, pelo estudo da transposição didática em livros didáticos de diferentes séries, porém publicados no mesmo ano que o manual científico utilizado como referência do conceito de memória no saber sábio.
  • 4
    À época da pesquisa não foram encontrados manuais de cronobiologia. Entretanto, em levantamento posterior foi identificado o livro de Marques e Menna-Barreto (1997).
  • 5
    A equipe que concebeu uma dessas exposições tomou como referência, para elaboração dos modelos pedagógicos expostos, resultados de pesquisa sobre concepções espontâneas de dias e noites e estações do ano, no ensino de ciências.
  • 6
    Allard et al. (1996, p. 19) propõem um modelo de análise das relações pedagógicas nos espaços de museu, com base nas diferenças entre este local e a escola, composto por três eixos – aluno/visitante, temática e interventor –, entre os quais existiriam relações de apropriação, transposição e suporte. Para os autores, este universo constitui o programa educativo do museu.
  • 7
    Os museus de ciências desenvolvem, geralmente, pesquisas de público que incluem o levantamento de perfil e expectativas bem como avaliações da exposição e de aprendizagem. Seus resultados são utilizados para análise, avaliação e reformulações da exposição e/ou das ações educativas desenvolvidas nesses espaços. Tais estudos procuram avaliar a efetividade dos mecanismos transpositivos e recontextualizadores de recursos e estratégias utilizados para que o público compreenda as narrativas propostas pela exposição. Avalia-se, assim, a efetividade das atividades e a forma de interação do público com as mesmas. Não se avalia o público e tampouco a avaliação tem implicações políticas e sociais na vida do visitante, como a promovida no âmbito escolar. Segundo Bernstein (1996b), as regras de avaliação do discurso pedagógico se relacionam com o 'nível da aquisição'. Nas pesquisas de público nos museus também está em jogo, de alguma forma, a 'aquisição' daquilo que é exposto, porém esta dimensão não se apresenta, para os visitantes dos museus, nos mesmos termos que para os alunos nas escolas. Além disso, o significado de aquisição, no âmbito dos museus, ainda não está bem compreendido e constitui tema de investigação na área.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Jan 2007
    • Data do Fascículo
      2005

    Histórico

    • Aceito
      Mar 2003
    • Recebido
      Set 2002
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