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Reabrindo a 'caixa-preta': rupturas e continuidades no discurso sobre Aids nos Estados Unidos (1987-98)

Reopening the 'black box': discontinuity and continuity in the discourse on Aids in the USA (1997-98)

Resumos

O artigo pretende examinar o ideário e as práticas do Aids Coalition to Unleash Power (ACT UP/NY). Busca, de modo mais amplo, problematizar questões relativas à constituição de pensamento e práticas científicas relativas à Aids nos Estados Unidos. Foram pesquisados documentos impressos e eletrônicos do grupo. Concluiu-se que, após um período de maior radicalização, o ACT UP assumiu uma postura menos confrontacional.Para tanto contribuíram, entre outros fatores, mudanças na conjuntura política norte-americana no início da década de 1990 e dissensões internas. Os dados analisados permitem afirmar que o grupo obteve significativas vitórias na esfera da produção e acesso a medicamentos para o tratamento da Aids. Permitem, outrossim, indicar mudanças parciais na disputa pelo monopólio das 'verdades' sobre a doença.

Aids; novos movimentos sociais; ACT UP; Nova York; mudanças paradigmáticas; história da ciência


The present article has the specific goal of examining Aids Coalition to Unleash Power's ideas and actions. In a broader scope, it tries to discuss issues related to scientific theory and practice concerning Aids in the United States. The sources used for the present study consist of printed and electronic documents produced by Aids Coalition to Unleash Power (ACT UP/NY). After a period of great radicalization, ACT UP developed a less confronting position. Among other factors, this was brought about by the changes that took place in the North American political scenario in the beginning of the 1990's, as well as by internal dissent. The analyzed data allow us to say that the group has been quite successful in relation to the production and the distribution of medicines for the treatment of Aids. They also indicate partial changes in the competitive game for the monopoly of 'truths' about the disease.

Aids; new social trends; ACT UP; New York; paradigmatic changes; history of science


Reabrindo a 'caixa-preta': rupturas e continuidades no discurso sobre Aids nos Estados Unidos (1987-98)

Reopening the 'black box': discontinuity and continuity in the discourse on Aids in the USA (1997-98)

João Bôsco Hora Góis

Professor adjunto da Escola de serviço Social da

Universidade Federal Fluminense (UFF)

Rua Lopes Trovão, 32/1104

22240-077 Niterói — RJ

jbhg@uol.com.br.

GÓIS, J. B. H.: 'Reabrindo a caixa-preta: rupturas e continuidades no discurso sobre Aids nos Estados Unidos (1987-98)'. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. 9(3): 515-33, set.-dez. 2002.

O artigo pretende examinar o ideário e as práticas do Aids Coalition to Unleash Power (ACT UP/NY). Busca, de modo mais amplo, problematizar questões relativas à constituição de pensamento e práticas científicas relativas à Aids nos Estados Unidos. Foram pesquisados documentos impressos e eletrônicos do grupo. Concluiu-se que, após um período de maior radicalização, o ACT UP assumiu uma postura menos confrontacional.Para tanto contribuíram, entre outros fatores, mudanças na conjuntura política norte-americana no início da década de 1990 e dissensões internas. Os dados analisados permitem afirmar que o grupo obteve significativas vitórias na esfera da produção e acesso a medicamentos para o tratamento da Aids. Permitem, outrossim, indicar mudanças parciais na disputa pelo monopólio das 'verdades' sobre a doença.

PALAVRAS-CHAVE: Aids, novos movimentos sociais, ACT UP, Nova York, mudanças paradigmáticas, história da ciência.

GÓIS, J. B. H.: 'Reopening the black box: discontinuity and continuity in the discourse on Aids in the USA (1997-98)'. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. 9(3): 515-33, Sept.-Dec. 2002.

The present article has the specific goal of examining Aids Coalition to Unleash Power's ideas and actions. In a broader scope, it tries to discuss issues related to scientific theory and practice concerning Aids in the United States. The sources used for the present study consist of printed and electronic documents produced by Aids Coalition to Unleash Power (ACT UP/NY). After a period of great radicalization, ACT UP developed a less confronting position. Among other factors, this was brought about by the changes that took place in the North American political scenario in the beginning of the 1990's, as well as by internal dissent. The analyzed data allow us to say that the group has been quite successful in relation to the production and the distribution of medicines for the treatment of Aids. They also indicate partial changes in the competitive game for the monopoly of 'truths' about the disease.

KEYWORDS: Aids, new social trends, ACT UP, New York, paradigmatic changes, history of science.

Introdução

Após os inúmeros debates que se deram a respeito da epidemia de Aids nos Estados Unidos no início da década de 1980 — sua origem, causalidade, grupos atingidos etc. — logo se construiu em torno dela um conjunto de idéias que assumiu o estatuto de 'verdade'. Este conjunto, em torno de 1984, dada a descoberta do HIV e dos testes para a sua detecção, mostrava-se consolidado e, conseqüentemente, constituía um 'campo científico' conforme a acepção dada a esse termo por Pierre Bourdieu.1 1 Os campos científico, cultural, político, religioso etc. podem ser definidos como arenas nas quais se dão disputas em torno de recursos e posições específicas, as quais modelam o devir das interações que neles ocorrem e a ação dos agentes que neles habitam. Tais agentes são os maiores legitimadores das suas regras, mesmo quando com elas não concordam. Em função disso, a estrutura do campo cria um vasto espaço de disputas, mas também de enorme auto-reprodução. Questionar a possibilidade de mudança na dinâmica interna dos campos nos remete a uma discussão sobre um tópico essencial no pensamento de Bourdieu: os tipos fundamentais de 'capital'. O primeiro tipo, o capital econômico, é constituído dos meios de produção e dos processos de apropriação daquela mesma produção; o capital social é constituído da soma de recursos detidos por indivíduos ou grupos em função das ligações mais ou menos duráveis que estabeleceram com outros indivíduos ou grupos; já o capital cultural compreende o acervo de conhecimento técnico-científico socialmente reconhecido como legítimo. Um quarto tipo de capital é o simbólico, o qual pode ser definido menos como um capital específico e mais como um elemento de legitimação das outras formas de poder — uma legitimação que faz com que o subordinado, aquele em condição mais desvantajosa dentro do campo, internalize, aceite e contribua para a sua dominação. É a partir da posse, em maior ou menor grau, dessas formas de capital que a ação social se dá e que se definem relações e posições de dominância e subordinação (Bourdieu, 1996, 1991). Tal campo tanto definiu os procedimentos biomédicos a serem adotados quanto demarcou as dinâmicas sociocomportamentais que em tese respondiam pela expansão do HIV entre diversas populações. Isto orientou a escolha dos mecanismos assistenciais a serem implementados para sua superação, reafirmou que a epidemia poderia ser controlada por atividades educacionais e acendeu esperanças de que a Aids se tornaria em breve uma doença crônica passível de controle. A partir de1986, contudo, este edifício perceptivo foi permanentemente tensionado pelas indicações claras de que se elevava o número de infectados pelo HIV, aumentavam os óbitos por complicações relacionadas à Aids e expandia-se esta epidemia entre os segmentos sociais mais pauperizados. A forma acirrada com que este tensionamento ocorreu indica que naquele momento uma grande disputa pelo monopólio da verdade sobre a Aids estava de novo em curso, envolvendo, além dos órgãos governamentais e das Aids Service Organizations (ASOs)2 2 Traduzível como Organização de Serviços para Aids, as ASOs americanas podem ser vistas como equivalentes das nossas Ongs/Aids, senão no que diz respeito às fontes de financiamento e recrutamento, ao menos no que toca aos aspectos mais centrais dos seus ideários. (ambos detentores de boa parte do monopólio de verdades sobre o tema), o então chamado 'novo ativismo' em Aids.

Neste artigo examino os ideários e práticas de um dos atores mais significativos deste processo, o Aids Coalition to Unleash Power (ACT UP/NY).3 3 Os dados utilizados para a elaboração deste trabalho foram majoritariamente coletados na webpage do grupo e nos seus arquivos localizados no setor de manuscritos e obras raras da New York Public Library. Uma descrição mais detalhada dessas fontes e de outras referências correlatas pode ser encontrada em Góis (1999). Ao fazê-lo, busco falar de processos culturais relevantes: o forjar de identidades coletivas e a circularidade de saberes. Busco também reafirmar dois princípios analíticos. O primeiro diz respeito ao fato de que mesmo configurações de poder as mais herméticas estão sujeitas a conflitos internos e a um tipo de influência externa que podem alterar o seu formato. O segundo princípio refere-se à natureza e extensão dessa mudança e, com Bourdieu (1991), afirma que, na particularidade histórica em questão, ela se deu dentro de linhas de continuidade que, embora tenha nos colocado em patamares diferentes, não nos fez necessariamente avançar das estruturas e dinâmicas de poder então vigentes para outras diferentes.

Representação e auto-representação: construindo auto-imagens e imagens dos 'outros'

A fundação do ACT UP/NY, em 1987, esteve diretamente ligada à nova onda de ativismo anti-Aids surgida no final da década de 1980 nos Estados Unidos. Tal onda gerou uma série de experiências inovadoras no âmbito do movimento social atuando junto à pesquisa científica e construiu um diagnóstico no qual se criticava vigorosamente a inexistência de um plano global governamental de combate à epidemia e a existência de ações legislativas discriminatórias que impediam a implementação de programas educativos eficazes. O ACT UP/NY, especificamente, retomou uma explicação sobre a origem e expansão da epidemia corrente nos primeiros anos da década de 1980. Tal explicação remetia a origem da Aids ao esforço de, espalhando-se intencional e seletivamente o HIV entre homossexuais, erradicá-los do solo americano. Já em meados daquela década, em vez de um genocídio fundado em um tipo de ataque bacteriológico, dizia o grupo, destacava-se o caráter político da ação dizimadora, expresso na falta de vontade governamental e das autoridades médicas em oferecer respostas adequadas àquele crescente problema de saúde.4 4 Essa percepção justificava também o uso de um dos símbolos visuais mais conhecidos do grupo: o triângulo rosa invertido. Desta representação do massacre de homossexuais dos campos de concentração nazista depreendia-se um slogan igualmente importante e que ecoaria anos a fio na trajetória do ACT UP/NY: "O governo americano tem sangue em suas mãos!" O tema da destruição seletiva em massa — o genocídio — passou então a constituir um dos principais elementos justificadores da existência do grupo e fez com que muitos dos seus discursos apontassem a ira, a fúria e a raiva como recursos estratégicos a serem utilizados pelos seus membros no combate às instituições e fenômenos culturais que estivessem impedindo uma abordagem mais consistente da epidemia. Falava-se então da necessidade de combinar táticas disruptivas — invasões de prédios, por exemplo — com um tipo de 'arte engajada' capaz de produzir imagens e símbolos desordenadores dos valores vigentes. Este esforço artístico foi com freqüência desdobrado em material propagandístico marcado por uma sinceridade chocante. Foi também seguido por uma versão agressiva do nosso 'teatro do oprimido' tendo como mote central a equação 'silêncio = morte', posto que fazer-se ouvir de qualquer maneira era essencial ao ideário do grupo.

A existência e a dinâmica do grupo eram definidas também pelas percepções que ele produzia a respeito dos agentes com os quais tinha que interagir cotidianamente, em especial daqueles considerados inimigos. Em outros termos, o ACT UP/NY se estruturava a partir de uma fórmula polarizante na qual a sua existência assumia relevância a partir da construção de um 'outro-diferente', neste caso um antagonista político. Tal questão se coloca como central, embora o desenvolvimento deste grupo dependesse de um forte senso de 'pertencimento' a sua causa, que se obtinha na medida direta da dedicação aos seus projetos e da vilificação dos intentos dos seus opositores. Isto, ao seu turno, levava à criação da distinção entre o 'eles' e o 'nós' numa conjuntura e num projeto político no qual a demarcação da diferença era vista como essencial. Parte do sucesso do ACT UP/NY, ao menos nos seus anos iniciais, foi conseqüência da forma eficaz com que ele conseguiu lidar com esse processo, assim reservando para si um papel relevante entre os diferentes porta-vozes das diferentes leituras da epidemia vigentes na passagem dos anos 1980 para os anos 1990.

Se, como afirmei antes, o governo norte-americano constituía um dos principais alvos de sua ação e uma referência essencial na reafirmação da necessidade de sua existência, as organizações comunitárias de combate à Aids (ASOs) e a comunidade gay não ficaram fora do alcance das suas críticas.

ASOs: a crítica à assistência

A crítica mais importante dirigida contra as ASOs centrava-se no privilégio crescente de uma política assistencial em detrimento de uma política reivindicativa. Isto, dizia o ACT UP/NY, teria levado a duas outras situações. A primeira delas era uma maior dependência de fundos governamentais e a conseqüente redução do seu poder confrontacional e de barganha. Já a segunda referia-se ao crescente estabelecimento de rígidas estruturas hierárquicas dentro delas, levando a um desequilíbrio na distribuição de poder ao separar voluntários com pouca capacidade decisória de técnicos remunerados capazes de influir na formação de políticas e ambos dos grupos de direção que superintendiam todas as atividades. Obedecendo a regras de mercado para contratação e sempre negociando de forma submissa com as agências governamentais, aquelas organizações estariam traindo seus compromissos fundamentais com as populações atingidas pela Aids. O ACT UP/NY chamou para si a tarefa de lembrá-las da persistência desses problemas. Todavia, na chegada dos anos 1990, na percepção do grupo, poucas mudanças de fundo tinham ocorrido nas rotas seguidas pelas ASOs. Dizia um dos seus ativistas que

Nossas organizações prestadoras de serviço são uma piada. Gay Men's Health in Crisis: com todo seu dinheiro e poder, tudo o que você consegue lá é um lanche gratuito, terapia em grupo e aconselhamento de graça feito através da minha questão favorita, 'Você já fez o seu testamento?'. AMFAR? Esta não financia testes clínicos já há dois anos e, quando o fez, os estudos foram patéticos. AMFAIL é o que ela mais se parece. E que tal o Aids Inaction Council? (ACT UP/NY, 1999c).5 5 'AMFAIL', aqui, é uma ironia que parte do significado do verbo to fail ('fracassar' em português). Já Inaction ('sem ação' em nossa língua) foi uma derivação do nome verdadeiro da entidade, Aids Action Council.

Em comentários como este o que realmente estava em questão era a fixação da natureza e extensão dos serviços sociais a serem prestados às pessoas afetadas pelo HIV/Aids e, especialmente, o papel a ser desempenhado neste processo pelas ASOs. Discussões deste tipo refletiam o clima de instabilidade e dúvida quanto aos rumos do estado de bem-estar social nas economias avançadas, postos em causa desde os início dos anos 1970 pelos claros sinais de desequilíbrio fiscal que apresentaram. Tal desequilíbrio deu bases para a incrementação dos discursos sobre a necessidade de revisão da magnitude das responsabilidades estatais na prestação de serviços sociais (Viana, 1998). Uma das soluções mais sublinhadas, à direita e à esquerda, ainda que por razões diferentes, apontava para a necessidade de uma crescente transferência de poder para as comunidades assistidas. Naquele contexto, as organizações não-governamentais eram vistas como ferramentas de grande importância para a implementação de programas sociais eficazes e eficientes. Isto, contudo, levantou a essencial questão de como reduzir o controle social exercido pelo Estado e assegurar o seu equilíbrio financeiro sem diminuir as responsabilidades governamentais. O mapeamento das respostas a essa questão foge ao escopo deste trabalho. Por ora vale apenas ressaltar que para o ACT UP/NY, na esfera específica da atenção a Aids, a única resposta aceitável residia em uma forte e clara separação entre ação política a ser desenvolvida pelas ASOs e uma ampla rede de serviços sociais a ser financiada pelo Estado.

Foi mantendo esta postura que o grupo construiu a sua identidade e reforçou para o mundo externo a necessidade de sua existência. Já nos anos 1990, com o surgimento de novos cenários onde a epidemia se desenrolava, esta estratégia contrastiva começou a ceder espaço a discursos mais conciliatórios. Contudo, àquela altura, o reconhecimento social do ACT UP/NY já estava fortemente conectado às suas propostas radicais e sua ira voltada tanto para os seus inimigos tradicionais como para seus parceiros potenciais. Outro desses parceiros era a comunidade gay e suas organizações.

Reavaliando a agenda do movimento gay em relação à Aids

As características culturais da comunidade gay dos grandes centros urbanos eram apresentadas no discurso do ACT UP/NY como impeditivas do seu próprio empowerment e de uma luta mais efetiva contra a Aids. Outrossim, o grupo sugeria que a falta de coesão interna a impedia de obter direitos mais amplos e de consolidar aqueles já obtidos. O ACT UP/NY denunciava, especialmente na chegada dos anos 1990, a promiscuidade — ainda que inscrita na rubrica do safer-sex —, a persistência de um padrão de vida baseado na beleza física e no hedonismo e a crescente dissociação entre prazer e política, ou, mais precisamente, a precedência do primeiro sobre a segunda. O grupo buscou também salientar as contradições internas da comunidade gay: as hipocrisias, os preconceitos e a mesma dominação branco-masculina que caracteriza a sociedade norte-americana como um todo. Principalmente, buscou mostrar que relativamente aos 'compromissos' com o fim da epidemia, a comunidade gay se comportava como a sua contraparte heterossexual: criando o 'cidadão compassivo', aqui entendido como o indivíduo pronto a doar tempo e dinheiro para o auxílio às vítimas da doença, mas incapaz de subscrever ações políticas 'mais efetivas' que pudessem alterar significativamente os rumos da epidemia. Ao agirem dessa forma, tais pessoas contribuíam para a difusão da idéia de que Aids era um 'dado da realidade' em vias de ser 'controlado'. Para o ACT UP/NY, ao contrário, a epidemia não estava declinando ou sequer teria atingido seu pico. Ela estava apenas começando. Se ela estava se tornando uma dimensão aceitável e 'normal' do cotidiano gay era porque os próprios afetados teriam permitido. E, na sua visão, este tipo de normalidade não era algo a ser perseguido.

Se por um lado, as críticas do ACT UP/NY tocavam corretamente em questões cruciais que afetavam o mundo gay, por outro, muitas das suas afirmações padeciam de um maior rigor analítico. Muito disso decorria da noção de comunidade subjacente aos seus discursos. Em tais discursos, 'comunidade' aparecia como uma entidade desprovida de contradições internas e como um espaço apropriado para a incorporação de um projeto definido por vanguardas políticas. Este conceito instrumental de comunidade não levava em conta a questão das diversidades humanas sempre prontas a bloquear o processo homogeneizador, seja por inação seja por oposição. O problema do manuseio da idéia de comunidade no discurso do ACT UP/NY passava também pela percepção de que a emergência de movimentos sociais dependia apenas da existência de 'problemas concretos' e de estruturas materiais que permitissem a busca de sua solução, como se entre o fato e a percepção não se localizassem filtros individuais que hierarquizam a relevância, precedência e mesmo necessidade de determinadas ações. Outrossim, o ACT UP/NY não dava importância ao impacto que as sucessivas perdas exerciam na capacidade de mobilização dos membros da comunidade gay norte-americana, impacto este que não podia ser superado apenas pelos incrementos emocionais trazidos pelo surgimento de um novo discurso político. Assim, o ACT UP/NY também desconsiderava o fato essencial de que viver sob as pressões de uma epidemia como a da Aids conduzia a um processo de tentativa de preservação da vida através da utilização de mecanismos de negação. E era essa a questão. Para o grupo, 'negação' era aceitável. Mas somente como um processo individual. Nunca como um processo coletivo. Esta segunda possibilidade era vista como perda de compromissos com as preocupações primárias da comunidade gay e sinal de aliança, mesmo que involuntária, com os próprios inimigos. A solução e o papel assumido pelo grupo neste processo? Balançar as imagens estabilizadas, protestar e chocar. Colocar a discussão sobre morte e finitude humana provocada pela Aids de volta ao centro do debate. Apresentar o desgaste do corpo que ela provoca e lembrar que a dor e a perda devem ser medidas menos a partir de uma lógica espiritualizante e mais a partir de dados bem concretos. Daí porque se asseverava que a Aids significava "duzentos mil mortos. Que significam 14.580 toneladas de ossos e carne humana; 63 mil libras de matéria cerebral; 197 mil galões de sangue e 84.929.300 anos de vida que nunca serão vividos" (ACT UP/NY, 1994).

A avaliação de que a epidemia estava apenas começando, que os grupos afetados por ela estavam em um gradativo processo de aceitá-la como um fato incorporado ao cotidiano, e que o Estado estava desenvolvendo uma ação genocida contra as pessoas vivendo com Aids, deu ao ACT UP/NY parâmetros para a construção da sua identidade grupal e forneceu muitas das fronteiras que modelaram as suas ações. Dentro dessas fronteiras ele apresentou demandas e tentou construir modelos de intervenção que recolocassem a Aids e a sua tragicidade no centro das agendas das organizações comunitárias gays e não-gays, das agências científicas e dos órgãos que compunham o sistema de proteção social americano.Para atingir tais objetivos o grupo trabalhou insistentemente na redefinição das idéias de participação e senso de 'compromisso', assim como buscou remodelar a figura de voluntário, agora tornado ativista.6 6 Intervir nesse conjunto de questões requereu do ACT UP/NY um enorme esforço de formar ativistas habilitados técnica e politicamente. Inúmeros treinamentos e cursos forneceram elementos essenciais para essa formação. Muito do sucesso dessa empreitada, contudo, deve ser procurado nos capitais cultural e social (Bourdieu, 1996, 1991) que estes ativistas já detinham. Essa afirmação parte do fato de que o ACT UP/NY era composto por um número significativo de pessoas detentoras de um tipo de conhecimento que as ajudavam a penetrar com maior facilidade nas diferentes áreas de atuação do grupo (Elbaz, 1992). Mas talvez o mais importante fosse que uma grande parcela dos membros do ACT UP/NY era composta de homens gays jovens vivendo em um dos centros mais atingidos pela epidemia. Para eles, a luta contra a Aids representava tanto a possibilidade de obtenção da cura como também uma razão, face à expectativa da morte trazidas pela doença, de sobreviver emocionalmente. Com esse perfil de um 'novo ativista' — bem-informado, corajoso, solidário, irônico, criativo, seguro, persistente, comprometido e agressivo — o ACT UP/NY construiu uma ampla agenda de demandas. A seção que segue discute essas questões a partir do exame de uma das áreas de maior investimento do grupo: a do desenvolvimento e acessibilidade a medicamentos profiláticos e curativos.

Lidando com o estabelecimento científico

Duas demandas apresentadas pelo ACT UP/NY neste campo podem ser consideradas centrais: a quantidade de tempo requerida para que novas drogas fossem aprovadas pelos órgãos federais; e as questões políticas e humanitárias envolvidas na formatação dos testes clínicos, particularmente o uso de placebos e a exclusão deles de mulheres grávidas, de minorias étnicas e de usuários de drogas injetáveis.

Os prazos de liberação de novos medicamentos

Em relação à primeira demanda, a situação era bastante complexa, pois até 1987 somente o AZT era considerado um tratamento efetivo para pessoas com Aids. A droga, produzida pelo setor privado, trazia implicações desastrosas para os pacientes devido ao seu alto custo. Além disso, muitos que a tomavam padeciam de fortes efeitos colaterais, enquanto outros dela pouco se beneficiavam após um dado período de uso. Em função disso e porque muitas sugestões terapêuticas sobre as formas de combate às manifestações da infecção pelo HIV (não-aderentes ao modelo clássico de interpretação dos impactos do vírus sobre o organismo humano) foram descartadas pelas autoridades médicas americanas (Dauesberg, 1996), criou-se um vasto underground de terapias alternativas. Este underground já começara a se constituir no início da década de 1980, à medida que as investigações de cunho epidemiológico do Center For The Disease Control (CDC) buscaram distanciar-se do conhecimento mais 'prático' produzido por médicos atuando na linha de frente de combate à então mal definida doença (Kwitny, 1992). Tal distanciamento aprofundou-se na medida em que o conhecimento sobre o HIV se consolidou e fez com que, de um lado, surgissem teorias oficiais sobre mecanismos causativos da Aids que não se fizeram acompanhar de um aumento na oferta de agentes medicamentosos capazes de controlá-la e; de outro, proliferassem estratégias terapêuticas fundadas na experimentação e observação clínica direta daqueles mesmos médicos dos quais os produtores de 'ciência pura' de órgãos como o CDC e o The National Institutes of Health (NIH) procuraram diferenciar-se.

A consolidação desse underground, de certo ponto de vista, pode ser entendido como a protoforma da profissionalização da pesquisa comunitária sobre Aids, a qual, acima de tudo, simbolizava a ruptura com a rigidez de certos valores técnico-científicos. A partir dela e dos seus pressupostos foram geradas experiências essenciais. Tais experiências mostraram que ciência também poderia ser realizada fora dos círculos acadêmicos consagrados e que, assim sendo, era possível o exercício de um tipo de controle popular sobre a produção do conhecimento científico. Com isso se estabelecia um princípio que deixaria sua marca até hoje e que constituiria um dos elementos centrais do novo ativismo anti-Aids nos Estados Unidos: as condições e estruturas de busca de terapias devem ser decididas pelo doente, ainda que em posição contrária à das autoridades científicas e mesmo à lei.

A realização de muitas destas experiências só foi possível devido ao novo tipo de alinhamento de muitos médicos que atuavam na linha de frente do combate à Aids. Ao invés da tradicional e mais provável adesão aos núcleos centrais oficiais de informação, formação e legitimação de saberes, muitos deles assumiram uma postura mais contestatória e contribuíram intelectualmente para que se montassem estruturas de pesquisa que operaram dentro de lógicas menos tradicionais. Ao encontro deles veio a impaciência de segmentos da indústria farmacêutica com os morosos processos de aprovação de novas drogas pela Food and Drug Administration (FDA), o que levou, a título de apoio, a uma injeção de recursos na estrutura de pesquisa comunitária em desenvolvimento. Mas, acima de tudo, a experiência aqui discutida foi conseqüência do esgotamento de um dado modelo clássico de pesquisa no campo das doenças infecciosas. Tradicionalmente bem-sucedido, esse modelo na era da Aids não conseguia dar conta das expectativas e, principalmente, do desejo da população afetada em correr riscos em trabalhos experimentais, mesmo que diante de possibilidades bastante pequenas de ganhos.

Dentro desse processo estruturaram-se alguns modelos de pesquisa comunitária. O modelo constituído em Nova York, por exemplo, deu origem à Community Research Initiative (CRI).7 7 As informações sobre esse movimento encontram-se dispersas em diversas fontes. É de especial interesse para um conhecimento das proposições do ativismo anti-Aids neste campo os números das revistas Aids Treatment News e POZ. Para uma aproximação esclarecedora, ver também Mueller (1995). Para uma ampla discussão teórica sobre os dilemas da prática científica e a observação não-técnica, ver Latour (1983). A participação das pessoas com Aids nas iniciativas desta organização ia da escolha dos tipos de testes a serem desenvolvidos, os seus formatos, a utilização de placebos até a definição dos grupos sociais a serem englobados. A 'inauguração' dessas possibilidades, mais do que produtos finais, foi o que de mais importante ali se gerou.

No que pesem os avanços contidos na experiência da CRI, a situação estava longe do quadro ideal desejado pelo ACT UP/NY. Permanecia um caos encoberto pela 'caixa-preta' à qual Bruno Latour se refere.8 8 Latour (1987) explica que a idéia de uma caixa-preta como instrumento de análise dos processos de produção do conhecimento é oriunda do campo cibernético. Ali, em algumas circunstâncias, uma vez afastada a necessidade de uma explicação mais ampliada sobre processos técnicos, se faz a representação de um dado conhecimento na figura de uma caixa onde são apontados os elementos de entrada e produtos obtidos na saída, mas são omitidos os complexos e às vezes obscuros processos internos que separam um momento do outro. A produção de fatos científicos e das certezas sobre a Aids segue uma rota similar. Após um período de disputas públicas, médicos, cientistas e ativistas lutam para fechar a 'caixa-preta', ou seja, transformar raciocínios e afirmações em fatos e, em um segundo momento, em verdade indiscutível e senso comum. Ao fazê-lo, eliminam as divergências e controvérsias, transformando um complexo processo de produção em algo simples e de aceitação universal e escondendo as incertezas nele contidas. Contudo, objetos em movimento dentro da caixa (as drogas DDI, DDC, Ampligen e AL 721, entre outras) prenunciavam sua abertura não pelo movimento interno provocado pela irrupção de uma novidade científica capaz de estabelecer um novo ciclo de conhecimento em relação ao objeto em foco, mas pelo ataque vindo de fora sob a forma da seguinte questão: por que tanta demora na liberação de tais drogas para uso comercial, numa conjuntura na qual o único medicamento disponível indicava claros sinais de fracasso? Uma possível resposta a esta indagação pode ser obtida através do exame da estrutura de pesquisa norte-americana, suas relações com o setor privado e, principalmente, seus mecanismos de financiamento e recompensa dos pesquisadores e pesquisas julgadas bem-sucedidas. No processo de premiar começam os problemas. Como lembra Bourdieu (1996), os mecanismos de organização dos campos científicos são qualquer coisa menos operações intelectuais puras nas quais saber e premiação são definidos por critérios objetivos. Ao contrário, a estruturação da premiação acadêmica é determinada por estruturas de poder que tendem a se reproduzir e a se proteger de inovações técnicas e de novos quadros humanos. Dessa forma, o ingresso neste círculo é regido menos pelos níveis de conquista e avanço de conhecimentos pessoais e mais por mecanismos menos claros de incorporação.

No caso norte-americano a situação não tem sido muito diferente. A epidemia de Aids forneceu um cenário no qual as mesmas lógicas de ingresso e expulsão do campo científico foram ali explicitadas e em boa medida aprimoradas. A testagem do AZT e a sua aprovação para comercialização, por exemplo, envolveram diversas articulações que, se por um lado, eram regulares e consistentes com a tradição de relação entre setor público e privado na área de fármacos nos Estados Unidos, por outro, introduziam novidades político-administrativas vistas por muitos como ilícitas: membros da equipe da FDA e NIH — organismos reguladores governamentais —, mas que também eram cientistas financiados pela Burroughs Wellcome, tiveram uma grande participação no processo oficial de aprovação da comercialização do AZT e, com isso, aceitando dados daquela companhia, ajudaram a consolidar o valor de mercado que a ele foi atribuído e permitiram àquela empresa receber outras compensações pelo seu suposto vasto investimento no processo de seu desenvolvimento (Nusbaum, 1990). Dessa relação, há sugestões, originava-se também o problema da demora na liberação de outros medicamentos para comercialização ampliada. Sob a justificativa de atender a critérios técnicos de verificação de efetividade e a rituais administrativos, escondiam-se estratégias que prolongavam a existência do AZT como única medicação legalmente disponível, o que permitiu uma lucratividade para o seu fabricante ainda sem paralelo na história da medicina. Rever tal demora, explicitar o interesse financeiro nela presente e inserir a lógica e os valores da pesquisa comunitária neste domínio passaram a constituir objetivos centrais do ACT UP/NY.

Por experimentos mais humanos

A segunda demanda referia-se à distribuição de placebos e à exclusão de diferentes grupos sociais dos testes clínicos. Tais testes, majoritariamente, tinham como objeto de estudo a resposta de homossexuais brancos masculinos a medicamentos experimentais, deixando de fora hispânicos, negros e usuários de drogas. Mulheres eram também excluídas, sob a alegação de que potenciais prejuízos causados ao feto daquelas grávidas ou com possibilidade de engravidar poderiam desencadear ações legais de reparação com custos milionários. Por outro lado, a situação daqueles que conseguiam participar dos testes não era vista com mais otimismo, notadamente pela ausência de mecanismos que possibilitassem a eles exercer alguma influência no desenvolvimento dos testes.

Em termos mais gerais, a questão que se colocava era a de como problematizar um paradigma científico — o da prevalência do saber formal e da dominância dos métodos clássicos de aferição da validade — que repunha todo o tempo a antinomia entre sujeito/objeto e agente/paciente, tão cara às nossas instituições médicas. O que mais dizia tal paradigma: a eficácia de uma determinada droga deve ser demonstrada a partir de resultados obtidos através de testes do tipo double-blind, nos quais se verifica os seus impactos reais através da diferenciação de evolução/ocorrência da doença entre os que receberam uma substância ativa e os que receberam um placebo. No caso da pesquisa de medicamentos e de uma vacina contra a Aids, a indagação ética central era a de como manter os critérios clássicos de validação sem que não se estimulasse — bizarro como possa parecer — a adoção de comportamentos de risco que em alguma medida expusessem os indivíduos à infecção ou, inversamente, à não-infecção, assim demonstrando a eficácia do produto? Ao mesmo tempo, ainda no domínio ético e levando-se em consideração as requisições técnicas dos modelos clássicos, o que fazer com aqueles que estimulados (ou não fortemente desencorajados) a assumir práticas de risco, que estivessem recebendo apenas uma pílula de açúcar? Colocava-se ali um claro confronto entre respeito humano e a tradição das formas de legitimação do conhecimento científico. Qual desses elementos passaria a dar o tom dos testes, era a pergunta cuja resposta os ativistas tentaram impor.

Outras questões relevantes neste domínio se apresentavam. Longe de ser um dilema teórico ou mesmo um problema de princípios políticos, o caráter não-democrático da testagem das drogas anti-Aids tinha impacto direto na saúde dos pacientes: a estes não eram fornecidas maiores explicações sobre origem, natureza e funcionamento dos produtos; não se discutiam os seus efeitos colaterais; não se lhes garantiam acesso aos medicamentos uma vez terminados os experimentos; e, por fim, não se problematizava o fato de que muitos estavam recebendo, ao tomar um placebo, absolutamente nada de eficaz.

Concebendo os formatos dos testes e o demorado processo de aprovação das novas drogas como formas de homicídio, o ACT UP/NY concebeu o conceito de 'ciência assassina'. A ação do grupo deveria, assim, levar tal ciência a modificar os seus procedimentos técnicos, rever seus compromissos políticos e renovar seus valores humanos. Dever-se-ia fazê-la avançar na democratização das regras do jogo, acelerar o processo de aprovação, aumentar o acesso das pessoas às drogas experimentais9 9 Foi relativamente simples para os ativistas estabelecer uma linha de análise concorrente à da pureza da ciência. Eles afirmavam que os mecanismos de exclusão e o uso de placebos em uma comunidade com um alto grau de informação e educação estavam fazendo com que muitos pacientes, uma vez 'descoberta' a sua condição de usuário de placebo, ou mesmo antecipadamente, se apresentassem para testes em diferentes lugares, dividissem entre si as pílulas de modo que todos recebessem alguma coisa, abandonassem os testes ou simplesmente mentissem quanto à sua adequação aos regimes propostos. Ao fim e ao cabo, os mecanismos de controle que garantiriam a 'certeza' da cientificidade eram os mesmos que estariam levando à imprecisão dos seus resultados (Delaney, 1989). e permiti-las ser, pela posse da informação, sujeitos dos seus corpos e vidas.10 10 Apesar da enorme simpatia que esta postura possa despertar, não é desprezível a contra-argumentação apresentada pelos cientistas menos sintonizados com a dimensão política do problema. A disponibilização ampla e irrestrita das drogas experimentais, mesmo em uma situação emergencial e de extrema gravidade, diziam eles, deixava sem resposta a fundamental questão de saber 'quem' iria participar dos testes clínicos que pudessem, com algum controle científico, determinar o grau de eficácia do produto. Em outras palavras, eles afirmavam que, uma vez aprovada aquela disponibilização, se punha em risco toda a estrutura de pesquisa científica que permitiria, a despeito da morte de alguns, garantir a biossegurança de muitos no futuro (Cooper, 1989). Dever-se-ia também redefinir os objetivos das organizações públicas de pesquisa científica: ao invés de agências voltadas a proteger o público de terapias e alimentos ineficazes e danosos, elas deveriam tomar um papel mais ativo, ao permitir um amplo uso de produtos experimentais, na salvaguarda da existência de uma multidão que, com Aids, morria sem esperanças.

Foi com essas preocupações que o grupo organizou protestos contra a FDA e os NIH, ambos considerados agentes centrais das ações genocidas. Mas não foi sem razão que o primeiro destes protestos se deu fora de Bethesda ou Rockville, onde ficam as direções desses órgãos. Como descrito em um dos documentos do grupo,

Ultrajados pelo mau gerenciamento da Aids pelo governo, cidadãos uniram-se para formar o Aids Coalition To Unleash Power. Nosso primeiro protesto ocorreu em março em Wall Street, o centro financeiro do mundo, para denunciar o alto lucro da indústria farmacêutica (especialmente Burroughs Welcome, produtor do AZT). Dezessete pessoas foram presas naquela situação. Logo após o protesto a FDA anunciou que iria encurtar o processo de aprovação de novas drogas em dois anos (ACT UP/NY, 1999).

A marcha em Wall Street significou protestar contra um amplo segmento das instituições de pesquisa médico-científica. Mas também trazia implícita a denúncia das ligações perigosas entre ciência e interesse econômico. A partir desse pressuposto o grupo desenvolveu outras ações com formas e alvos semelhantes, sempre reafirmando a necessidade de que ele e a população pudessem ter acesso ao que se produzisse e intervir na agenda — mesmo técnica — de pesquisa a ser definida. O raciocínio era simples, mas com grande apelo social. E certamente por isso funcionou, ao menos parcialmente. A partir dali muitos militantes ganharam acesso a importantes comitês científicos responsáveis pela elaboração da pauta de investigações sobre a Aids. Uma vez tomando assento nestes comitês, tornou-se menos complicada a tentativa de cruzar valores científicos com valores humanos e comunitários.

Esta inserção iria levar a conquistas concretas por parte dos ativistas. Em 1989, após examinar os dados da pesquisa desenvolvida pela Community Research Initiative de Nova York sobre a pentadamina aerosolizada para fins profiláticos, a FDA manifestou-se favoravelmente à expansão do seu uso (Arno e Feiden, 1992). Ao fazê-lo, esta agência reconheceu que, mesmo fora das grandes organizações produtoras de conhecimento, a 'ciência pura' estava sendo realizada e, por conseguinte, conferiu ao domínio comunitário a credibilidade que iria, de uma vez por todas, dar-lhe a legitimidade tão desejada.11 11 Para uma listagem de outros ganhos e um resumo deste, ver ACT UP/Golden Gate (s. d.).

Lidando com a indústria farmacêutica

Se conquistas importantes foram obtidas nas formas como se produziam novas drogas, o acesso a essas mesmas drogas permanecia uma preocupação central. A um custo estimado de dez mil dólares por ano, o AZT — único medicamento disponível em 1987 — era inacessível para muitos pacientes já sobrecarregados pela perda das suas fontes de renda principais. De um lado, o governo era considerado responsável por este quadro; de outro lado, a indústria farmacêutica não era vista com melhores olhos. Setor de alta lucratividade, tal indústria era impiedosamente atacada pelo alto preço do medicamento, repetida e corretamente descrito como o mais caro da história da medicina. Este cenário, mais uma vez, determinou o modo como o ACT UP/NY desenvolveu suas ações e elaborou seus discursos. Se em relação às instituições de pesquisa médico-científica o foco dos ataques estava na relação entre poder e conhecimento, aqui há um deslocamento em direção à idéia de 'ganância'. "Curb the greed!" "Controle a ganância!" era a palavra de ordem.12 12 Isto, ao evidenciar facetas do processo de privatização de fundos públicos, ajudou a reforçar a percepção do grupo de que o Estado norte-americano agia em benefício dos interesses da indústria farmacêutica. Isto porque o AZT já havia sido desenvolvido no contexto da luta contra o câncer nos anos 1960, tendo sido sua experimentação em larga escala abandonada devido a sua ineficácia aparente. A própria Burroughs Wellcome já o testara como uma droga antibacteriana, cujo insucesso levou a empresa a tentar a sua utilização no campo veterinário. Quando aquela companhia reproduziu a droga para o tratamento da Aids, a quantidade de investimento necessária foi reduzida à medida que muito da pesquisa básica já havia sido desenvolvida, gratuitamente, com fundos federais, tornando injustificável os argumentos em defesa do preço de comercialização vigente (Nusbaum, 1990). Este quadro conduziu o ACT UP/NY para ações mais agressivas e ousadas. Não por acaso o protesto contra a Burroughs Wellcome, em 1988, foi um dos mais celebrados pelo grupo: pelo seu significado simbólico — o de invadir um centro de poder — e por seus resultados práticos — o da redução do preço do medicamento. Relembrando o episódio, o grupo nos leva de volta a Wall Street, dizendo que fez história

Ao parar a comercialização na bolsa de valores . Sete membros do ACT UP/NY infiltraram-se na bolsa de valores de Nova York e amarraram-se ao balcão VIP. O sino de abertura do pregão foi acionado e uma faixa desenrolou-se acima da área de trocas demandando "SELL WELLCOME". Outros membros do ACT UP/NY tiraram fotos as quais foram mandadas para as agências de notícias. Quatro dias depois, a Burroughs Wellcome baixa o preço do AZT em 20%, passando o seu custo a ser de 6.400 dólares por ano (ACT UP/NY, 1999a).

Nos anos seguintes, apesar de pequenas mudanças, o ACT UP/NY manteve uma demanda central neste campo: AZT gratuito para todos. Menos do que isso era considerado genocídio.

A pressão ideológica contida nas demandas do ACT UP/NY pela distribuição gratuita de AZT constituía um esforço de introduzir no mercado princípios e critérios geralmente estranhos a este campo: aqueles em torno da noção de 'utilidade ao ser humano'. Neste ponto muito das suas energias foram postas e algumas conquistas obtidas, mas, ao mesmo tempo, o grupo gradativamente reduziu o seu caráter confrontacional e procurou um lugar no mundo das negociações. Esta virada provavelmente esteve relacionada à percepção de quão improvável era que a administração federal norte-americana, nos marcos do 'reaganismo', se prontificasse a dispensar tal beneficio, algo tornado ainda mais difícil pelas características do tratamento anti-Aids: enquanto na maioria das doenças a disponibilização de novas terapias incide na redução das suas taxas de prevalência e reduz os custos dos serviços, na epidemia de Aids o fato de que tais drogas eram e ainda são capazes de prolongar o tempo de vida das pessoas infectadas pelo HIV sem que curem definitivamente ou impeçam no todo o desenvolvimento de infecções oportunistas, resulta no aumento dos recursos financeiros necessários à manutenção delas.

Dado o alto custo e os freqüentemente complexos sistemas de administração, tais drogas têm ampliado as diferenças sociais entre os que podem e os que não podem arcar com as despesas da sua aquisição e manuseio dos esquemas terapêuticos. Os esforços de estreitamento dessas diferenças têm implicado uma crescente sobrecarga financeira nos sistemas de saúde pública, cujas lista de prioridades não incluem necessariamente a epidemia de Aids.13 13 Este problema é, por razões óbvias, mais acentuado em países cujas histórias epidemiológicas recentes são marcadas por endemias de letalidade comparável ou superior à da Aids. Tal fato é essencial para uma apreciação mais justa da intervenção estatal na epidemia: não na justificação do imobilismo, mas para a compreensão de determinantes globais que levaram a atrasos e negligências nas ações dos governos federais. Nos anos 1990, com a introdução de terapias combinadas, tais problemas apenas aumentaram. Àquela altura, entretanto, o ACT UP/NY já reconhecia novos aliados trabalhando juntos no enfrentamento do "espectro de disfunções no sistema de atenção à saúde pública norte-americano", o qual "tem conspirado para fazer essas novas terapias e a atenção necessária à sua administração adequada inacessível para um crescente número de pessoas com doenças associadas à infecção pelo HIV". Entre esses novos aliados estavam "membros do congresso e autoridades legislativas federais, estaduais e municipais, defensores da causa" e, surpreendentemente, "a indústria farmacêutica" (ACT UP/NY, 1999b). A inclusão da indústria farmacêutica neste grupo não se relacionava com mudanças de fundo no modo como o grupo a percebia, pois, com efeito, persistia a análise de que eram os seus preços astronômicos que tornavam as drogas inacessíveis. O que mudou foram os cenários políticos e alguns comportamentos de atores sociais ali presentes, muito particularmente a ampliação dos programas de distribuição gratuita ou a preços reduzidos de medicamentos feita — algo feito sob a bandeira do humanitarismo e da filantropia — por aquele segmento industrial.

Embora uma investigação mais específica certamente possa mostrar diferentes nuanças desse processo, é claro, de um lado, que mudanças nas formas de mercantilização das drogas anti-Aids atenderam a demandas culturais de uma sociedade marcada pelos signos da punição, culpa e medo da injustiça. Representaram também, possivelmente, o temor de uma tradição recente bem-sucedida de boicotes e o impacto negativo deles nas taxas de lucro. Outrossim, obedeceram a tendências econômico-políticas regulatórias do capitalismo norte-americano, no qual é habitual a concessão de benefícios sociais como forma de evitar tensões e conflitos de maior monta. Nesta linha de análise, tais benefícios não seriam mais do que meios de consolidar a dominação de uma classe sobre outra. Concebendo esse processo de outra maneira, contudo, é também possível dizer que ao incorporar gradualmente pequenas demandas como aquelas apresentadas pelas pessoas vivendo com HIV e Aids e grupos como o ACT UP/NY, Estado e companhias privadas foram forçadas ao longo do tempo a reconceituar benefícios sociais como direitos de cidadania.

Assimilação e declínio: o fim de um ciclo?

Embora o ACT UP/NY mantenha presença marcante nos cenários da política anti-Aids nos Estados Unidos nos dias de hoje, significativas diferenças em relação ao seu início podem ser apontadas tanto nas suas ações e discursos como na percepção do grupo pela imprensa — ator essencial na formulação de sua imagem —, pelos agentes governamentais, pela comunidade gay e por seus próprios membros. Se nos anos de 1987 e 1988 a imprensa norte-americana descrevia o ACT UP/NY como um herdeiro maior das tradições contestatórias dos movimentos pelos direitos civis dos anos 1960, em 1997, no seu décimo aniversário, esta mesma imprensa falava de um grupo em declínio, distante da sua formação ideológica original e 'assimilado'.

A questão que se deve colocar inicialmente para se entender as transformações pelas quais o grupo passou diz respeito aos tipos de mudanças ocorridas no cenário mais amplo onde ele se inscrevia, particularmente a (re)ascensão de tendências políticas mais liberais na sociedade norte-americana pós-1992. O dado de maior relevância neste contexto foi o retorno do Partido Democrata à Casa Branca depois de 12 anos de reaganismo e a maior disponibilidade do presidente Bill Clinton em lidar com assuntos relacionados à epidemia e seu objeto-irmão, a homossexualidade. Isto fomentou e ampliou canais de discussão entre as milhares de agências do movimento anti-Aids e o governo federal.

A coincidência da simultaneidade da ocorrência destas mudanças e do declínio do então 'novo ativismo' em geral, e do ACT UP/NY em particular, confirma a hipótese desenvolvida por Duyvendak (1996, p. 245) sobre a relação entre tradições políticas baseadas no consensus approach, acesso a poder político das minorias, constituição de elites representativas e redução/eliminação da participação coletiva. Examinando políticas de prevenção à Aids, ele indica que não existiram diferenças significativas entre os resultados obtidos na Holanda e nos Estados Unidos. Ele sublinha, contudo, que neste segundo país, na década de 1980, o movimento gay manteve uma postura de maior confronto em relação às administrações federais, enquanto que na Holanda esse mesmo movimento, pela ampla liberdade que teve em formular a política federal de combate à Aids através da presença de inúmeros dos seus representantes nos órgãos de planejamento e implementação, se viu inabilitado a avançar uma agenda mais agressiva. Daí porque ele conclui que "está claro que movimentos sociais os quais são absorvidos pelo Estado, através da participação deles em organismos consultivos, encontram dificuldades em retornar a uma estratégia de mobilização mais agressiva". Processo similar ocorreu nos Estados Unidos nos anos 1990.

Aos resultados da conquista de espaço político juntaram-se os efeitos dos avanços nos direitos sociais. Ainda que de modo instável, assistiu-se, a partir do primeiro mandato de Clinton, a uma efetiva ampliação na quantidade de recursos para assistência à Aids, assim como a estruturação de programas nacionais melhor coordenados. Neles, avançou-se na participação mais democrática das comunidades gays e étnicas na gestão dos recursos, assim como se conseguiu eliminar parte dos impedimentos legais que dificultavam a execução de uma política educacional mais liberal. Isto nos permite dizer que um cenário de maior provisão de serviços e maior participação popular — que em tese sugeriria um ambiente mais propício à ampliação de bases sociais de protesto — roubou do ACT UP/NY os elementos-chave do seu discurso — a idéia de ação genocida desenvolvida pelo Estado, por exemplo — e, junto a outros fatores, contribuiu para a sua desmobilização. Neste e em processos semelhantes estão contidas questões práticas e teóricas importantes relativas aos rumos da história do pensar e agir diante da Aids e dos movimentos sociais em geral ainda por serem melhor examinadas.

Da sua aproximação com um diversificado conjunto de instituições veio um outro fator que muito contribuiu para a modificação das feições do ACT UP/NY. Como sublinhei quando da análise da intervenção do grupo junto às organizações de pesquisa e produção de medicamentos, a necessidade de conhecimento e a própria elaboração de demandas exigiram uma interseção complexa de vocabulários e símbolos orientadores do seu pensar e do seu agir. Neste movimento, de um lado, o grupo possibilitou a emergência de uma reflexão científica mais atenta às implicações humanitárias do seu trabalho. De outro lado, aquele mesmo movimento requereu dele a agregação de dimensões científicas ao seu discurso, o que, em última análise — porque seus membros tornaram-se insiders e experts — o deixou atrelado a um universo vocabular e a um tipo de raciocínio do qual não poderia se livrar no futuro próximo e que iria redefinir a sua identidade. O que equivale dizer que a apropriação de alguns valores do ACT UP/NY e do ativismo anti-Aids em geral pelo meio científico se deu à custa da aceitação, pelos primeiros, das idéias e linguagem que, mesmo quando desafiadas, continuavam, agora mais fortemente, a demarcar as fronteiras do 'campo' onde todos se movimentavam. O processo de aprendizagem da linguagem de outros domínios parece, portanto, evidenciar as dificuldades de mudança na estrutura do campo salientadas freqüentemente por Pierre Bourdieu. Isso também corresponde a afirmar que o processo de qualificação e, mais amplamente, de educação, independententemente dos signos políticos a ele agregados, trazem sempre em si, ainda que diferentemente, ainda que qualitativamente melhor, ainda que em um patamar mais elevado de consistência, a possibilidade de reprodução do seu predecessor.

Um outro elemento que parece ter exercido papel decisivo no declínio do ACT UP/NY foi o crescente surgimento de subgrupos no seu interior, os quais representavam tanto dissensões de classe, etnia, gênero e geração, quanto as tensões contidas no dilema entre uma abordagem que enfatizava mais os assuntos estritamente ligados à Aids versus uma outra abordagem que privilegiava o conjunto de questões mais amplas do mundo gay. Este tipo de fragmentação tanto permitiu um trato mais consistente de questões particulares quanto diminuiu sua capacidade de pressão e limitou o número de segmentos sociais por ele representado, algo grave para um grupo com pretensões de ser portador de um discurso tão totalizante.

Esse conjunto de fatores determinou sem dúvida, numa periodização rígida, o fim de um conjunto de práticas e o fim de um ciclo de 'conhecimentos e verdades' sobre a Aids. Mas numa perspectiva mais maleável, tal ciclo de conhecimento se transformou para permanecer atual e registrado no interior das suas conquistas. Certamente foram conquistas parciais, temporárias às vezes, sem mencionar os fracassos. Da intervenção do ACT UP/NY no estabelecimento médico, por exemplo, não se pode inferir que o processo de produção de conhecimento sobre Aids nos Estados Unidos tenha mudado completamente, nem que tenha se estabelecido uma relação permanentemente mais cooperativa entre agentes técnicos e atores políticos leigos. De fato, como é demonstrável por qualquer exame preliminar, o poder médico-científico permanece como uma questão a ser debatida, desafiando mesmo a própria democracia nos Estados Unidos. Mas, de outro lado, a experiência do ACT UP/NY forneceu novas perspectivas para este debate e sugeriu que, se ações políticas algumas vezes não são traduzidas em resultados práticos, ao menos ajudam a viabilizar futuras reivindicações e fornecem bases para futuros movimentos sociais. Os protestos do ACT UP/NY ajudaram em ambos os sentidos.

NOTAS

Recebido para publicação em dezembro de 2001.

Aprovado para publicação em março de 2002.

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  • ACT UP/NY/NY 1999 Web Page. ACT UP/NY/NY Chronology 1987. http://www.actupny.org/, acesso em janeiro de 1999.
  • ACT UP/NY/NY 1999a Web Page. ACT UP/NY/NY Chronology 1988. http://www.actupny.org/, acesso em janeiro de 1999.
  • ACT UP/NY/NY 1999b Web Page. ACT UP/NY/NY Chronology 1993. http://www.actupny.org/, acesso em janeiro de 1999.
  • ACT UP/NY/NY 1999c Web Page. By any necessary means — Kiki Mason. 1994. http://www.actupny.org/, acesso em janeiro de 1999.
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  • Bourdieu, P. 1991 Language and symbolic power Cambridge, MA, Harvard University Press.
  • Cooper, E. Apr. 1989 'Controlled clinical trials of Aids drugs: the best hope'. Journal of The American Medical Association, 261.
  • Delaney, M. Mar. 1989 'The case for patient access to experimental drugs'. Journal of Infectious Diseases, 159.
  • Duesberg, P. 1996 Inventing the Aids virus Washington, D. C., Regnery.
  • Duyvendak, J. 1996 'The depoliticization of the Dutch gay identity, or why Dutch gays aren't queer'. Em S. Seidman (org.), Queer theory/sociology Cambridge, MA, Blackwell Publishers.
  • Elbaz, G. 1992 'The sociology of Aids activism. The case of ACT UP/NY/New York'. Tese de doutoramento, Nova York, CUNY.
  • Góis, J. B. H. 1999 'Vestígios da força das palavras: escritos sobre a Aids'. Tese de doutoramento, São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
  • Kramer, L. 1989 'Reports from the Holocaust. The making of an Aids activist'. Nova York, St. Martin's Press.
  • Kwitny, J. 1992 Acceptable risks Nova York, Poseidon Press.
  • Latour, B. 1987 Science in action Cambridge, Harvard University Press.
  • Latour, B. 1983 'Give me a laboratory and I will raise the world'. Em K. D. Knorr-Cetina e M. Mulkay, Science observed: perspectives on the social study of science Londres, Sage.
  • Mueller, R. M. 1995 'Science in the community: the redistribution of medical authority in federally sponsored treatment research for Aids'. Tese de doutoramento, San Diego, University of California at San Diego.
  • Nusbaum, B. 1990 Good intentions. How big business and the medical establishment are corrupting the fight against Aids Nova York, The Atlantic Monthly Press.
  • Viana, M. L. T. W. 1998 A americanização (perversa) da seguridade social no Brasil Rio de Janeiro, Revan.
  • 1
    Os campos científico, cultural, político, religioso etc. podem ser definidos como arenas nas quais se dão disputas em torno de recursos e posições específicas, as quais modelam o devir das interações que neles ocorrem e a ação dos agentes que neles habitam. Tais agentes são os maiores legitimadores das suas regras, mesmo quando com elas não concordam. Em função disso, a estrutura do campo cria um vasto espaço de disputas, mas também de enorme auto-reprodução. Questionar a possibilidade de mudança na dinâmica interna dos campos nos remete a uma discussão sobre um tópico essencial no pensamento de Bourdieu: os tipos fundamentais de 'capital'. O primeiro tipo, o capital econômico, é constituído dos meios de produção e dos processos de apropriação daquela mesma produção; o capital social é constituído da soma de recursos detidos por indivíduos ou grupos em função das ligações mais ou menos duráveis que estabeleceram com outros indivíduos ou grupos; já o capital cultural compreende o acervo de conhecimento técnico-científico socialmente reconhecido como legítimo. Um quarto tipo de capital é o simbólico, o qual pode ser definido menos como um capital específico e mais como um elemento de legitimação das outras formas de poder — uma legitimação que faz com que o subordinado, aquele em condição mais desvantajosa dentro do campo, internalize, aceite e contribua para a sua dominação. É a partir da posse, em maior ou menor grau, dessas formas de capital que a ação social se dá e que se definem relações e posições de dominância e subordinação (Bourdieu, 1996, 1991).
  • 2
    Traduzível como Organização de Serviços para Aids, as ASOs americanas podem ser vistas como equivalentes das nossas Ongs/Aids, senão no que diz respeito às fontes de financiamento e recrutamento, ao menos no que toca aos aspectos mais centrais dos seus ideários.
  • 3
    Os dados utilizados para a elaboração deste trabalho foram majoritariamente coletados na
    webpage do grupo e nos seus arquivos localizados no setor de manuscritos e obras raras da New York Public Library. Uma descrição mais detalhada dessas fontes e de outras referências correlatas pode ser encontrada em Góis (1999).
  • 4
    Essa percepção justificava também o uso de um dos símbolos visuais mais conhecidos do grupo: o triângulo rosa invertido. Desta representação do massacre de homossexuais dos campos de concentração nazista depreendia-se um
    slogan igualmente importante e que ecoaria anos a fio na trajetória do ACT UP/NY: "O governo americano tem sangue em suas mãos!"
  • 5
    'AMFAIL', aqui, é uma ironia que parte do significado do verbo
    to fail ('fracassar' em português). Já
    Inaction ('sem ação' em nossa língua) foi uma derivação do nome verdadeiro da entidade, Aids Action Council.
  • 6
    Intervir nesse conjunto de questões requereu do ACT UP/NY um enorme esforço de formar ativistas habilitados técnica e politicamente. Inúmeros treinamentos e cursos forneceram elementos essenciais para essa formação. Muito do sucesso dessa empreitada, contudo, deve ser procurado nos capitais cultural e social (Bourdieu, 1996, 1991) que estes ativistas já detinham. Essa afirmação parte do fato de que o ACT UP/NY era composto por um número significativo de pessoas detentoras de um tipo de conhecimento que as ajudavam a penetrar com maior facilidade nas diferentes áreas de atuação do grupo (Elbaz, 1992). Mas talvez o mais importante fosse que uma grande parcela dos membros do ACT UP/NY era composta de homens gays jovens vivendo em um dos centros mais atingidos pela epidemia. Para eles, a luta contra a Aids representava tanto a possibilidade de obtenção da cura como também uma razão, face à expectativa da morte trazidas pela doença, de sobreviver emocionalmente. Com esse perfil de um 'novo ativista' — bem-informado, corajoso, solidário, irônico, criativo, seguro, persistente, comprometido e agressivo — o ACT UP/NY construiu uma ampla agenda de demandas.
  • 7
    As informações sobre esse movimento encontram-se dispersas em diversas fontes. É de especial interesse para um conhecimento das proposições do ativismo anti-Aids neste campo os números das revistas
    Aids Treatment News e
    POZ. Para uma aproximação esclarecedora, ver também Mueller (1995). Para uma ampla discussão teórica sobre os dilemas da prática científica e a observação não-técnica, ver Latour (1983).
  • 8
    Latour (1987) explica que a idéia de uma caixa-preta como instrumento de análise dos processos de produção do conhecimento é oriunda do campo cibernético. Ali, em algumas circunstâncias, uma vez afastada a necessidade de uma explicação mais ampliada sobre processos técnicos, se faz a representação de um dado conhecimento na figura de uma caixa onde são apontados os elementos de entrada e produtos obtidos na saída, mas são omitidos os complexos e às vezes obscuros processos internos que separam um momento do outro. A produção de fatos científicos e das certezas sobre a Aids segue uma rota similar. Após um período de disputas públicas, médicos, cientistas e ativistas lutam para fechar a 'caixa-preta', ou seja, transformar raciocínios e afirmações em fatos e, em um segundo momento, em verdade indiscutível e senso comum. Ao fazê-lo, eliminam as divergências e controvérsias, transformando um complexo processo de produção em algo simples e de aceitação universal e escondendo as incertezas nele contidas.
  • 9
    Foi relativamente simples para os ativistas estabelecer uma linha de análise concorrente à da pureza da ciência. Eles afirmavam que os mecanismos de exclusão e o uso de placebos em uma comunidade com um alto grau de informação e educação estavam fazendo com que muitos pacientes, uma vez 'descoberta' a sua condição de usuário de placebo, ou mesmo antecipadamente, se apresentassem para testes em diferentes lugares, dividissem entre si as pílulas de modo que todos recebessem alguma coisa, abandonassem os testes ou simplesmente mentissem quanto à sua adequação aos regimes propostos. Ao fim e ao cabo, os mecanismos de controle que garantiriam a 'certeza' da cientificidade eram os mesmos que estariam levando à imprecisão dos seus resultados (Delaney, 1989).
  • 10
    Apesar da enorme simpatia que esta postura possa despertar, não é desprezível a contra-argumentação apresentada pelos cientistas menos sintonizados com a dimensão política do problema. A disponibilização ampla e irrestrita das drogas experimentais, mesmo em uma situação emergencial e de extrema gravidade, diziam eles, deixava sem resposta a fundamental questão de saber 'quem' iria participar dos testes clínicos que pudessem, com algum controle científico, determinar o grau de eficácia do produto. Em outras palavras, eles afirmavam que, uma vez aprovada aquela disponibilização, se punha em risco toda a estrutura de pesquisa científica que permitiria, a despeito da morte de alguns, garantir a biossegurança de muitos no futuro (Cooper, 1989).
  • 11
    Para uma listagem de outros ganhos e um resumo deste, ver ACT UP/Golden Gate (s. d.).
  • 12
    Isto, ao evidenciar facetas do processo de privatização de fundos públicos, ajudou a reforçar a percepção do grupo de que o Estado norte-americano agia em benefício dos interesses da indústria farmacêutica. Isto porque o AZT já havia sido desenvolvido no contexto da luta contra o câncer nos anos 1960, tendo sido sua experimentação em larga escala abandonada devido a sua ineficácia aparente. A própria Burroughs Wellcome já o testara como uma droga antibacteriana, cujo insucesso levou a empresa a tentar a sua utilização no campo veterinário. Quando aquela companhia reproduziu a droga para o tratamento da Aids, a quantidade de investimento necessária foi reduzida à medida que muito da pesquisa básica já havia sido desenvolvida, gratuitamente, com fundos federais, tornando injustificável os argumentos em defesa do preço de comercialização vigente (Nusbaum, 1990).
  • 13
    Este problema é, por razões óbvias, mais acentuado em países cujas histórias epidemiológicas recentes são marcadas por endemias de letalidade comparável ou superior à da Aids. Tal fato é essencial para uma apreciação mais justa da intervenção estatal na epidemia: não na justificação do imobilismo, mas para a compreensão de determinantes globais que levaram a atrasos e negligências nas ações dos governos federais.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Jan 2004
    • Data do Fascículo
      Dez 2002

    Histórico

    • Aceito
      Mar 2002
    • Recebido
      Dez 2001
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