Acessibilidade / Reportar erro

Ideias, práticas e instituições da medicina naval na origem da medicina tropical francesa

Ideas, practices, and institutions in the field of naval medicine at the beginnings of French tropical medicine

OSBORNE, Michael. The emergence of tropical medicine in France. 2014. University of Chicago Press, Chicago: 328.

O mais recente livro de Michael Osborne, professor da Oregon State University, se interroga sobre a gênese e as características da medicina tropical francesa. A análise cobre o longo século XIX, da queda de Napoleão, em 1815, ao fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918, período marcado pela constituição de um novo império colonial francês na Ásia e na África. O autor trabalha ao longo da obra com dois conjuntos de fontes. De um lado, aquelas provenientes da burocracia estatal, como as regulamentações que estruturaram e modificaram o ensino da medicina naval. De outro lado, as produzidas pelos médicos navais, como artigos, teses doutorais e manuais. O objetivo é, a partir da análise desses dois tipos de registros distintos, compreender as dinâmicas estabelecidas entre o sistema (system) e o ambiente diário (lifeworld) encontrado pelos médicos navais nas cidades portuárias. O autor defende que, contrariamente à teoria de Habermas, esses dois polos não estavam em conflito, no caso estudado no livro, mas em diálogo.

O argumento central da obra é que o “lugar” (place) desempenhou um papel preponderante na estruturação das ideias e das práticas da medicina tropical francesa. Osborne entende “lugar” para além do aspecto geográfico, como uma síntese entre o sistema e o ambiente diário, ressaltando, assim, seus aspectos simbólicos e sociais. Desse modo, o autor defende que a medicina tropical francesa é herdeira de uma tradição intelectual desenvolvida dentro de instituições da medicina naval situadas nas cidades portuárias de Brest, Rochefort-sur-mer, Bordeaux, Toulon e Marselha e, em menor escala, em Paris. Segundo Osborne, o sistema que estruturava essas instituições e o ambiente diário dessas cidades influenciaram e forneceram os meios para investigações originais dos médicos e das instituições de medicina naval ali baseadas. Dentre essas características locais, ressaltava-se a presença de prisioneiros (bagnes) – fontes para estudos psicológicos, raciais e anatômicos; navios – entendidos pelos médicos navais como espaços contingentes, com dinâmicas próprias na produção de doenças; marinheiros – que traziam em seus corpos doenças exóticas, como a malária e a febre amarela; e as relações comerciais dessas cidades com as colônias. Como exemplos das diversas controvérsias e pesquisas influenciadas por esse ambiente particular estavam a causa da cólica seca (dry collic), doença provocada pela presença de chumbo nos navios a vapor, e a existência, ou não, de efeitos energéticos advindos do consumo da noz-de-cola, produto importado da África.

A obra dialoga declaradamente com dois grupos de trabalhos historiográficos consagrados ao surgimento da medicina tropical na Europa. De maneira geral, com uma historiografia anglófona, quantitativamente maior, dedicada à medicina tropical inglesa e que demonstrou, sobretudo, que sua origem está relacionada a questões surgidas no Império Britânico, especialmente na Índia (Arnold, 1996ARNOLD, David (Org.). Warm climates and western medicine: the emergence of tropical medicine. Atlanta: Rodopi. 1996.; Harrison, 1994HARRISON, Mark. Public health in British India: Anglo-indian preventive medicine, 1859-1914. Cambridge: Cambridge University Press. 1994.). Embora não discorde da interpretação para o caso inglês, Osborne entende que esse quadro explicativo não se aplica totalmente à França, posto que questões mais localizadas também influenciaram a constituição da medicina tropical francesa. De maneira mais específica, o autor discute com uma historiografia francesa centrada em arquivos parisienses e no Instituto Pasteur de Paris. Graças à escolha de trabalhar com outros arquivos e outras fontes, o autor constrói um enfoque mais plural, posto que centrado em cidades, instituições e personagens diferentes de Paris e de suas instituições. Mesmo no capítulo dedicado à capital, a análise não está voltada para o Instituto Pasteur, mas para a Faculdade de Medicina e para o professor Raphaël Blanchard, responsável pela institucionalização da parasitologia no país.

Apesar do título, Osborne utiliza ao longo de praticamente todo o texto os termos “medicina colonial” ou “medicina naval” e, somente nas últimas páginas, “medicina tropical”, embora ressaltando que, no começo do século XX, os conceitos ainda se confundiam e que suas fronteiras eram pouco definidas (p.203). Ou seja, mais do que a emergência de uma entidade delimitada, a medicina tropical, o livro discute o surgimento e o desenvolvimento de uma medicina naval francesa interessada tanto nos assuntos comumente associados à medicina tropical, como as doenças encontradas no ultramar e transmitidas por vetores, quanto em problemas mais localizados. Entre eles, os citados exemplos de doenças surgidas nos navios e dos efeitos para a saúde do consumo de produtos advindos do império colonial francês.

Entretanto, uma questão pouco explorada no livro são as conexões entre a bacteriologia e a medicina naval. Conforme dito, no capítulo dedicado a Paris, o enfoque não está sobre o Instituto Pasteur. Todavia, diferentes médicos que assistiram ao curso de microbiologia do instituto e trabalharam em missões deste eram médicos navais, como Alexandre Yersin e Paul-Louis Simond (Brossolet, Mollaret, 1993BROSSOLET, Jacqueline; MOLLARET, Henri. Alexandre Yersin, 1863-1943: un pasteurien en Indochine. Paris: Belin. 1993.). Tendo isso em mente, e a partir da leitura do livro, seria possível questionar: de que forma a chamada, e contestada, “revolução pasteuriana” mudou ou influenciou as pesquisas da medicina naval? De que maneira a formação e a circulação de pesquisadores entre esses dois lugares, como no caso dos personagens citados acima, moldou as questões e a forma de realizarem suas investigações, tanto no aspecto teórico quanto na prática? O autor, por exemplo, destaca que Blanchard passou a maior parte da sua vida em Paris e que, por isso, necessitava do auxílio dos médicos navais para que coletassem e lhe enviassem espécimes de insetos, juntamente com observações sobre as doenças de climas tropicais. Porém, seria interessante ver discutida a outra face da moeda, isto é, como esses médicos que estavam na interseção da microbiologia e da medicina naval tiveram sua prática profissional nas colônias influenciada por esses dois espaços contingentes.

REFERÊNCIAS

  • ARNOLD, David (Org.). Warm climates and western medicine: the emergence of tropical medicine. Atlanta: Rodopi. 1996.
  • BROSSOLET, Jacqueline; MOLLARET, Henri. Alexandre Yersin, 1863-1943: un pasteurien en Indochine. Paris: Belin. 1993.
  • HARRISON, Mark. Public health in British India: Anglo-indian preventive medicine, 1859-1914. Cambridge: Cambridge University Press. 1994.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016
Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz Av. Brasil, 4365, 21040-900 , Tel: +55 (21) 3865-2208/2195/2196 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: hscience@fiocruz.br