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GÉNESE EM PORTUGAL DOS MUSEUS DE ARTE DO ESTADO COMO LUGARES DE INSTRUÇÃO PÚBLICA E SUA SUBSTITUIÇÃO PELOS MUSEUS DE CONTEMPLAÇÃO (1833-1899)

GÉNESIS EN PORTUGAL DE LOS MUSEOS ESTATALES DE ARTE COMO LUGARES DE INSTRUCCIÓN PÚBLICA Y SU SUSTITUCIÓN POR LOS MUSEOS DE CONTEMPLACIÓN (1833-1899)

THE BIRTH OF ART MUSEUMS OF THE STATE IN PORTUGAL AS PLACES OF PUBLIC INSTRUCTION AND THEIR REPLACEMENT BY MUSEUMS OF CONTEMPLATION (1833-1899)

LA GENÈSE AU PORTUGAL DES MUSÉES D’ART D´ÉTAT COMME LIEUX D'INSTRUCTION PUBLIQUE ET LEUR REMPLACEMENT PAR LES MUSÉES DE CONTEMPLATION (1833-1899)

Resumo

Ao longo de quase todo o século XIX, o Estado português acompanha o movimento internacional de organização de museus públicos de arte como lugares de instrução para artistas, operários, alunos e público. As principais iniciativas museológicas valorizam acima de tudo o desígnio do ensinamento e os museus vivificam como espaços de coleção e experimentação. Esta tendência secular, revisitada através dos regulamentos de cinco casos modelares, sofre uma inflexão a partir dos anos 1880, quando se anuncia uma concepção museológica que exalta a contemplação e a fruição como valores fundamentais e menoriza a instrução e a pesquisa experimental.

Palavras-chave:
museología; museus industriais e comerciais; museu nacional de belas-artes; contemplação; entesouramento

Resumen

A lo largo de la mayor parte del siglo XIX, el Estado portugués sigue el movimiento internacional de la organización de los museos de arte públicos como lugares de educación para artistas, obreros, estudiantes y el público. Las principales iniciativas museológicas valoran por encima de todo la meta de la enseñanza y los museos vivifican como espacios de colección y experimentación. Esta tendencia secular, revisitada por medio de los reglamentos de cinco casos modelares, sufre una inflexión a partir de los años 1880, cuando se anuncia una concepción museológica que exalta la contemplación y la fruición como valores fundamentales y disminuye la instrucción y la investigación experimental.

Palabras clave:
museología; museos industriales y comerciales; Museo Nacional de Bellas Artes; contemplación; acumulación

Abstract

Throughout most of the nineteenth century, the Portuguese state follows the international movement for organizing public museums of art as places for the instruction of artists, workers, students and the public. The major museological initiatives value above all the purpose of teaching and the museums vivify as places of collection and experimentation. This secular tendency, revisited through the regulations of five model cases, suffered a reverse from the 1880s when a museological conception that exalts contemplation and enjoyment as fundamental values and mitigates instruction and experimental research is announced.

Keywords:
museology; industrial and commercial museums; National Museum of Fine Arts; contemplation; hoarding

Résumé

Au cours de la majeure partie du XIXe siècle, l'État portugais a suivi le mouvement international consistant à organiser des musées d'art publics en tant que lieux d'enseignement pour les artistes, les ouvriers, les étudiants et le public. Les principales initiatives muséologiques valorisent tout d’ abord la conception de l'enseignement et les musées s'animent comme des espaces de collection et d'expérimentation. Cette tendance séculaire, revue à travers les réglementations de cinq cas modèles, s'est manifestée depuis les années 1880, à l'époque de l'annonce du succès de la conception muséologique qui exaltait la contemplation et la jouissance en tant que valeurs fondamentales et diminue l'enseignement et la recherche expérimentale.

Mots-clés:
muséologie; musées industriels et commerciaux; Musée National des Beaux-Arts; contemplation; thésaurisation

Introdução

Questionando a ideia de que o século XIX prestou uma atenção redobrada à história humana, de que os homens teriam sucumbido a um plano contínuo do tempo e à ideia de um progresso ininterrupto, Michel Foucault vislumbrou os seres humanos de Oitocentos a contas com a descoberta da historicidade própria das coisas, construída não em função ou por comparação com a historicidade dos humanos, mas de plena forma autónoma, encontrando-se os humanos envolvidos em “histórias que não lhe são subordinadas nem homogéneas” (FOUCAULT, 2005FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. Lisboa: Edições 70, 2005., p. 404). Em vez de uma “grande história lisa”, que conduziria todos os homens e todas as coisas, todos os seres vivos ou inertes, para um mesmo movimento de queda ou ascensão, descobriam-se tantas evoluções quantas os assuntos a estudar, descrevendo-se as leis internas desses assuntos e esclarecendo a sua cronologia própria. A consciência da história e o interesse inegável pelos documentos e rastros antigos, a descoberta de uma “espessura histórica” no conteúdo de todos os assuntos suscetíveis da curiosidade humana, remeteria para a condição ontológica de um homem “vazio de história”, confiado à tarefa de reencontrar o seu lugar (FOUCAULT, 2005, p. 404-405).

Preocupados com a manutenção do brilho dos objetos memoráveis tanto quanto com os objetos de família que simbolizavam a sua própria condição de seres excecionais, os homens distintos, poderosos ou superiores, ergueram nos institutos que simbolizavam o seu poder, como os museus, um desejo de permanência. Nos museus, em vez de as classes dominantes contemplarem a sua própria extinção, fizeram alastrar a todas as classes o sentimento de posse dos objetos de prestígio, sobretudo através da causa da instrução. A reunião de coleções prestava-se ao estudo comparativo e cada observação e descrição era uma prova da capacidade de essas coleções auxiliarem a realização de trabalhos cada vez mais completos.

Os lugares de acumulação de obras de arte não eram uma inovação mas a multiplicação de disciplinas de estudo ou o seu desenvolvimento (arqueologia, geologia, história natural, etnologia, etc.) e um certo fervor das elites intelectuais pelo infinito do saber conduziu o conhecimento a reunir-se em lugares de clausura. Num contexto de reconhecimento da história e das tradições, o século XIX afirmou-se como produtor de lugares reais de acumulação que revelariam uma espécie de contraposição ao real, como sublinha Michel Foucault, ao falar de lugares em que o Homem se encontrava em rotura com o seu próprio tempo, nos quais as camadas históricas se sedimentariam sem cessar.

A ideia de tudo acumular, a ideia de constituir uma espécie de arquivo geral, a vontade de encerrar em um lugar todos os tempos, todas as épocas, todas as formas, todos os gostos, a ideia de constituir um lugar de todos os tempos que esteja ele próprio fora do tempo e inacessível à sua agressão, o projeto de organizar assim uma espécie de acumulação perpétua e infinita do tempo em um lugar que não mudaria, pois bem, tudo isso pertence à nossa modernidade (FOUCAULT, 2009FOUCAULT, Michel, Outros Espaços In: MOTTA, Manuel Barros da (Org.). Ditos & Escritos III. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p.411-422. , p. 419)

As experiências museais observadas neste artigo têm em comum serem acervos de belas-artes e serem projetados por instituições do Estado. Elas informam-nos sobre a vontade dos poderes instituídos em conceder aos povos o conhecimentos das belas-artes e da historicidade de objetos artísticos para a formação de alunos e artistas. O movimento de abertura culmina num recuo, marcado em Portugal por dois grandes fatores estruturantes: a abertura do Museu Nacional de Belas-Artes e a reconfiguração do ensino industrial, com a extinção de dois importantes museus.

Proponho como limite temporal inicial o advento do primeiro museu de iniciativa do Estado (1833) e como limites temporais finais a abertura do primeiro grande museu de belas-artes (1884) e o termo de uma experiência museal no contexto do ensino industrial (1899). A pertinência de aglutinar os cinco casos advém do fato de que, para pensar o aparecimento da moderna museologia, é necessário entrelaçar alguns aspetos do que aparentemente parece cindido: as belas-artes e as artes industriais; os artistas e os alunos; a coleção orgânica e a justaposição constituída pelo simples entesouramento; a experimentação e a contemplação. Como se pudéssemos afirmar que, na nebulosa constituinte dos museus se misturaram vontades que adivinhavam futuros bastante diferentes dos atuais.

I. Museu Portuense (1833)

Em 29 de outubro de 1832, D. Pedro IV de Portugal (então regente em nome da rainha) mandou chamar o pintor, gravador, desenhador e lente de desenho João Baptista Ribeiro. Indagou-o sobre o estado da instrução do reino e sobre a Academia Real de Marinha e Comércio do Porto, onde o artista tinha iniciado a vida profissional. Poucos meses depois, o primeiro imperador do Brasil tornou oficial através de uma portaria o desejo de criar um museu de pinturas e estampas. Baptista Ribeiro foi encarregado de palmilhar os conventos abandonados e as casas entretanto sequestradas a partidários do seu irmão mais novo, D. Miguel (que tinha liderado uma revolta contra o Parlamento, dissolvido as Cortes e instaurado um regime absolutista em Portugal), em busca de obras de arte que pudessem integrar o museu. Em pleno cerco à cidade do Porto pelas tropas de D. Miguel, Baptista Ribeiro apresentou o primeiro projeto de um museu moderno com uma feição pública no Portugal de Oitocentos, isto era, um lugar de reunião de pintura, gravura, escultura e arquitetura civil, aberto aos artistas, aos alunos e a toda a nação e patrocinado pelo governo como forma de inscrição nas nações civilizadas (RIBEIRO, 1836RIBEIRO, João Baptista. Exposição histórica da criação do Museu Portuense. Com documentos oficiais para servir à história das belas-artes em Portugal e à do Cerco do Porto. Porto, Imprensa de Coutinho, 1836., p.15).

O Museu era dedicado aos artistas e ao público. A figura do diretor do Museu Portuense, segundo o regulamento de Baptista Ribeiro, era o de fomentador da instrução pública e de amigo das artes, obrigando-se a que o acervo museológico fosse franqueado aos estudiosos e artistas e a que estes pudessem desenvolver livremente o seu trabalho, sem diretivas. Papel, pincéis, tintas, panos, cavaletes, compassos e outros instrumentos deviam ser facultados a estudiosos sem meios, provando a vontade de tornar acessível a prática artística. Previa-se um fundo para enriquecer as coleções museológicas e o diretor respondia ao governo pela boa gestão das contas e pela expansão do museu, manifestando-se desta forma uma tutela que não se limitava ao momento instituidor. Criavam-se prémios para os artistas que, com os seus trabalhos originais, enaltecessem a pátria, denotando a íntima ligação entre produção cultural e incitação dos poderes.

O Museu era, por sua vez, aberto ao público duas vezes por semana e devia organizar uma exposição bienal de desenho, escultura, pintura, litografia, arquitetura civil e obras escritas sobre belas-artes, prevendo também prémios para os melhores (RIBEIRO, 1836RIBEIRO, João Baptista. Exposição histórica da criação do Museu Portuense. Com documentos oficiais para servir à história das belas-artes em Portugal e à do Cerco do Porto. Porto, Imprensa de Coutinho, 1836., p. 16-18). A composição heteróclita das espécies guardadas invalidaria que o Museu Portuense se afirmasse como moderno mas o desígnio de ser instrutivo, a abertura à esfera pública e a tutela governamental inscreviam-no num movimento novo, simultaneamente de vontade de saber e de impulso pela descoberta, de crença na instrução como progresso dos povos, de classificação organizada de espécies, da compreensão totalizante do mundo (tudo podia ser conhecido e descrito) e de afirmação de poder do Estado - desde logo, pela apropriação e rapina de bens (às famílias nobres, às corporações religiosas).

II. Museu Allen (1852)

Na cidade do Porto outrora sitiada, o município adquiriu em 1850 um museu particular a uma das numerosas famílias inglesas de negociantes aí radicadas. O museu tinha sido fundado pelo militar, viajante, colecionador e continuador de um negócio familiar ligado ao vinho do Porto, John Francis Allen. Ao reconstruir a casa afetada pelos ataques dos sitiantes de D. Miguel, criou no quintal uma galeria para guardar milhares de obras de arte (FERREIRA, 2001FERREIRA, Maria Emília de Oliveira (2001). História dos museus públicos de arte no Portugal de Oitocentos: 1833-1884. Dissertação (Mestrado em História da Arte Contemporânea). Volume I. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa., p.127-128), que abria a artistas e estudiosos em dias de semana e a visitantes ao domingo. A morte do fundador (1848) esteve na origem da vontade de avaliar e alienar a coleção, pelo que um grupo de notáveis portuenses escreveu à Câmara para que negociasse a compra com a família. “Constava o museu, à data da sua aquisição pelo município, de 600 quadros. Destes foram colocados 430 (são os que constam do catálogo de 1853) no edifício da Restauração, sede do museu: os 170 restantes, na sua maioria insignificantes, foram rechaçados para a casa da Câmara” (RAMOS, 1897RAMOS, Manuel [pseud. Mosar]. As nossas galerias de arte. O Museu Allen ou Novo Museu Portuense. Branco e Negro. Semanário Ilustrado, Lisboa, Tipografia e Estereotipia Moderna, ano II, n. 65, p. 193-200, 27 de junho, 1897. , p.196).

A alienação não significou a mudança de instalações pois o museu ficou a funcionar no mesmo local. Perante o desinteresse da Câmara após a compra, também não significou o afastamento da família, já que o filho do fundador, Eduardo Augusto Allen, viria a reanimar o museu municipal. Foi dele a redação do regulamento que fixava as condições de acesso a uma coleção enciclopédica de moedas, conchas, minerais, lavas do Vesúvio, pedras preciosas, esculturas, peças de ourivesaria e de escultura, além das pinturas. O museu, finalmente aberto em 1853, destinava-se ao recreio dos habitantes do Porto e à instrução de todos os habitantes do país em belas-artes, ciências naturais e artes industriais. “Seu fim é tornar-se um estabelecimento verdadeiramente civilizador: seu objeto será, portanto, enciclopédico” (RIBEIRO, 1879RIBEIRO, José Silvestre. História dos estabelecimentos científicos, literários e artísticos de Portugal nos sucessivos reinados da monarquia. Tomo VIII. Lisboa: Tipografia da Academia Real das Ciências, 1879. , p. 183).

Franqueava as portas aos artistas e estudiosos às terças, quartas, sextas e sábados durante a manhã, bem como a gente de fora do Porto; e ao público às quintas e domingos, assumindo a primazia da função pedagógica sobre a fruição simples. Naqueles dias, de resto, o regulamento referia que os professores e os alunos que os acompanhassem tinham entrada franca e os bilhetes de admissão para eles podiam valer até um mês. “O diretor concederá os referidos bilhetes a todas as pessoas que justificarem ser o estudo e não o recreio ou simples curiosidade a sua intenção na visita ao museu” (RIBEIRO, 1879RIBEIRO, José Silvestre. História dos estabelecimentos científicos, literários e artísticos de Portugal nos sucessivos reinados da monarquia. Tomo VIII. Lisboa: Tipografia da Academia Real das Ciências, 1879. , p. 186).

Nos dias de trabalho, concorriam ao museu estudantes de pintura e artistas, sobretudo para copiarem quadros, e estudantes de ciências naturais, interessados nas coleções classificadas (RIBEIRO, 1879RIBEIRO, José Silvestre. História dos estabelecimentos científicos, literários e artísticos de Portugal nos sucessivos reinados da monarquia. Tomo VIII. Lisboa: Tipografia da Academia Real das Ciências, 1879. , p. 180). A disposição metódica dos objetos, de acordo com o regulamento, devia permitir serem “gozados pelo público em suas vistas” e “estudados com comodidade e fruto pelos particulares e com vantagem para a ciência e artes em geral” (RIBEIRO, 1879, p. 183).

A ideia germinante do museu público, para além da versatilidade das coleções (que ambicionava aumentar e diversificar, invocando a necessidade de constituir conjuntos de escultura; de botânica; de máquinas agrícolas; de máquinas industriais; de produtos naturais e transformados do reino e das possessões ultramarinas), parecia abandonar um fundo aristocrático de diletantismo fruidor (oferecendo-se embora à fruição do povo indistinto num horário mitigado) para beneficiar o acesso à informação e à instrução pelas populações, como fonte de progresso social e material.

E a consequência maior de uma tal tendência era a evidente ausência de uma sacralização que pudesse atribuir-se às peças, expostas para serem aprendidas, dominadas e reproduzidas (além das cópias de peças poderem ser trocadas de acordo com regras internacionais). Mais: o regulamento explicava que as peças originais do museu podiam ser vendidas ou trocadas, com autorização da Câmara do Porto e sob proposta do diretor, baseada num conselho de peritos. O entesouramento das peças pressupunha, também, a sua alienação.

Eduardo Allen, nomeado diretor interino, tinha deixado escrita a necessidade de estudar as coleções e de aumentar a sua riqueza e diversidade mas não houve recursos para criar um gabinete de estudos nem para enriquecer as coleções, nem para organizar um serviço de permutas com outros estabelecimentos ou fundos para estabelecer uma oficina de reproduções (VASCONCELOS, 1889VASCONCELOS, Joaquim de. O Museu Municipal do Porto. O seu estado presente e o seu futuro. Relatório apresentado ao Ill.mo e Exmo. Snr. Luiz Ignacio Woodhouse, presidente da comissão encarregada de estudar a reorganização do museu. Porto: Tipografia de A. J. da Silva Teixeira, 1889., p.9). Só já depois de rebatizado como Museu Soares dos Reis, viria a mudar de instalações em pleno século XX (1937), para integrar, desta vez, um museu nacional. Do regulamento inicial constava a obrigação de publicar catálogos de todas coleções, para prestar apoio a peritos, amadores e visitantes e Eduardo Allen organizou e publicou o catálogo provisório das pinturas logo em 1853, tornando o Museu Municipal o primeiro a produzir catálogos em Portugal.

III. Galeria de Pintura da Academia de Belas-Artes (1868)

Dois anos depois da abertura ao público do Museu Portuense, tinha sido criada uma galeria de pinturas (1836), também beneficiária dos salvados dos conventos extintos em Portugal e da nacionalização dos seus bens. Subsidiária da Academia de Belas-Artes de Lisboa, a Galeria Nacional de Pintura constituiu o embrião de um museu nacional de arte português. Aquando da abertura pública (em 1868, mais de 30 anos após a fundação), a Galeria Nacional de Pintura detinha 540 quadros considerados por uma comissão como tesouros nacionais, depois de uma limpeza maioritariamente involuntária pela deterioração devida a condições de transporte das pinturas à mercê dos elementos atmosféricos, pela acomodação em sítios húmidos, por restauros defeituosos, por simples desaparecimento das obras depois de arroladas ou por extravio para o estrangeiro, muitas delas após séculos contemplando das paredes a vida dos religiosos (ACADEMIA REAL DAS BELAS-ARTES DE LISBOA, 1868, pp. 6-7).

Tal como o Museu Portuense, a Galeria Nacional de Pintura abria-se aos estudantes (todos os dias em horário escolar) e ao público (aos domingos), atribuindo-se às obras expostas uma função mais de estudo do que de contemplação. O objetivo pedagógico e a feição nacionalista das coleções regulava as propostas do vice-presidente da Academia das Belas-Artes e principal propugnador da Galeria, Sousa Holstein, para fundar num museu nacional núcleos de pintura, de escultura, de desenhos, de gravuras, de arquitetura, de artes industriais e de arqueologia, como referiu num opúsculo de 1875: a Galeria de Pintura poderia ter uma secção de cópias, “obras dos nossos pensionários1 1 Pensionários ou pensionistas: indivíduos subsidiados pelo Estado para estudar no estrangeiro e se aperfeiçoarem no estudo das belas artes e reproduzindo os mais notáveis trabalhos dos grandes artistas existentes nos grandes museus da Europa” e uma secção histórica que “seria como um grande livro em cujas páginas os mais ignorantes poderiam ler as admiráveis lições que tanto abundam na história do nosso Portugal”; no museu ou secção de escultura “aprenderia o aluno artista, estudaria o arqueólogo e deleitar-se-iam os visitantes”; o museu de gravuras deveria conter não só as produções dos gravadores mas “retratos de personagens portugueses”; o museu de arquitetura reuniria os trabalhos mandados fazer pelo Estado, incluindo os dos pensionários e os dos artistas, obtendo alçados e plantas dos mais notáveis monumentos e de novos edifícios; o museu de arte industrial deveria ser “indispensável complemento das aulas de desenho aplicadas à indústria” e “o mais público possível e de fácil acesso, aberto até de noite para cómodo das classes operárias”; o museu de arqueologia, por definição a reunião dos vestígios anteriores à nacionalidade, deveria “ter uma feição especialmente nacional” reunindo todas as antiguidades subsolares (HOLSTEIN, 1875[HOLSTEIN, Marquês de Sousa]. Observações sobre o atual estado do ensino das artes em Portugal, a organização dos museus e o serviço dos monumentos históricos e da arqueologia oferecidas à comissão nomeada por decreto de 10 de novembro de 1875 por um vogal da mesma comissão. Lisboa: Imprensa Nacional, 1875., p. 29-35). O esforço doutrinador corria a par da vontade de estender aos operários a possibilidade de se formarem, pelo menos em parte, a partir de espaços museais dotados de uma componente didática intensa, antevendo-se que os professores podiam ser os conservadores destes museus locais. “O que sobretudo é necessário organizar são os museus de arte industrial junto às escolas em que se ensina o desenho às classes operárias” (HOLSTEIN, 1875, p. 38).

IV. Museus industriais e comerciais (1883)

O desenvolvimento de museus estatais centrados na instrução, com uma forte componente de aprendizagem experimental também presente no Museu Portuense, Museu Municipal do Porto e Galeria de Pinturas, teve o máximo alcance no ensino industrial destinado às artes e aos ofícios. A primeira reforma deste ensino profissional (1852) instituía um museu da indústria a criar no Instituto Industrial de Lisboa, dividido num depósito de máquinas e num arquivo de coleções tecnológicas e comerciais. Neste arquivo deviam ser depositados os modelos, desenhos e objetos industriais pertencentes ao Estado bem como os modelos de um instituto que era extinto (Conservatório de Artes e Ofícios).

A reforma de 1852 criou a Escola Industrial do Porto, sem menção a qualquer museu, situação remendada na reorganização de 1864 deste ensino técnico-profissional, que remodelava os institutos e criava três escolas industriais (em Guimarães, Covilhã e Portalegre), prescrevendo museus tecnológicos nos dois institutos industriais, com modelos, desenhos e instrumentos para ilustrar o ensino. A Inglaterra apresentava-se como exemplo e o ensino do desenho era central.

Embora a fundação dos museus fosse atirada para as calendas2 2 “Ninguém também hoje põe em dúvida ou contesta a grande conveniência, diremos mesmo a necessidade absoluta e imperiosa, de se estabelecerem nos centros industriais museus tecnológicos, onde se reúnam exemplares das máquinas mais perfeitas, modelos industriais de diferente ordem, coleções de matérias-primas e tudo quanto possa contribuir para facilitar a instrução e apurar o bom gosto das classes industriais. Assim como o culto do belo não existe senão nos países onde em museus e galerias especiais se podem observar as preciosas produções dos mais altos engenhos em belas-artes; também, sem bons exemplares para o trabalho industrial, nenhum povo poderá atingir a grande perfeição nesta importantíssima e utilíssima província do trabalho humano. No projeto de reforma dos institutos de Lisboa e Porto propõe-se que em cada um destes dois estabelecimentos se forme, em galeria especial, uma coleção tecnológica, que auxilie os que se destinam aos variados trabalhos da indústria manufactora.O que neste sentido agora tentamos não pode deixar de ser modesto e apenas rudimental. Nos primeiros anos só poderão formar-se coleções de modelos, elemento indispensável de todo o ensino industrial; mas logo que circunstâncias mais prósperas o permitam, será necessário atender à conveniência de organizar museus industriais por modo semelhante ao que hoje se pratica em todos os países adiantados.”(PORTUGAL, 1865, p. 958). , as coleções de modelos eram imprescindíveis nas belas-artes como nas artes decorativas, para desenvolver o espírito e a capacidade de imaginação produtiva. Havia uma convergência protagonizada pela necessidade de instrução, presença de mestres e alunos e demanda de objetivos comuns, que unia museus de arte e museus de artes e ofícios, como demonstrava Sousa Holstein no relatório de 1875[HOLSTEIN, Marquês de Sousa]. Observações sobre o atual estado do ensino das artes em Portugal, a organização dos museus e o serviço dos monumentos históricos e da arqueologia oferecidas à comissão nomeada por decreto de 10 de novembro de 1875 por um vogal da mesma comissão. Lisboa: Imprensa Nacional, 1875.. Se não analisava diretamente os institutos industriais de Lisboa e do Porto por serem “estabelecimentos de uma índole especial” (HOLSTEIN, 1875[HOLSTEIN, Marquês de Sousa]. Observações sobre o atual estado do ensino das artes em Portugal, a organização dos museus e o serviço dos monumentos históricos e da arqueologia oferecidas à comissão nomeada por decreto de 10 de novembro de 1875 por um vogal da mesma comissão. Lisboa: Imprensa Nacional, 1875., p. 8), interessava-lhe o diagnóstico do ensino das artes com vista à produção de bens industriais e afirmava que os operários especializados (canteiros, entalhadores, ourives, estucadores e muitos outros) beneficiariam de uma educação artística, da instrução em desenho, de regras de composição ou da história das artes para tornar as suas produções modelares.

Dizia que todos os objetos de uso quotidiano (e não apenas os provenientes da arquitetura, da pintura e da escultura) se podiam incluir no domínio da arte. Aquele ensino das artes era professado nas academias de belas-artes e em vários estabelecimentos no país no horário pós-laboral. Deveria ser replicado pela criação de museus de arte industrial, seguindo o grande farol que um museu austríaco e um museu inglês projetavam.

As escolas e os museus industriais e comerciais “têm por fim lançar os primeiros lineamentos de uma instituição análoga ao real-imperial museu austríaco de Arte e Indústria em Viena e ao museu inglês de South Kensington, promovendo a restauração do ensino industrial” (PORTUGAL, 1885a, p. 127), lia-se no preâmbulo do regulamento geral das escolas industriais e de desenho industrial que finalmente se criavam na década de 80. Destinados a prestar serviço aos fabricantes, consumidores e público (estavam abertos todos os dias da semana, gratuitamente, e podiam abrir à noite), os museus industriais e comerciais de Lisboa e Porto tinham um caráter de exposição permanente organizada em três divisões: produtos venais, regionais e históricos.

Os primeiros estavam em trânsito. Constituíam uma atualização dos produtos industriais e comerciais através de amostras fornecidas pelos negociantes que os podiam recolher após exposição e a direção dos museus podia vendê-los em hasta pública, caso os fabricantes os não recolhessem. Estas amostras deviam ser acompanhadas por séries de objetos que mostrassem os processos de fabricação nos seus vários momentos; os produtos regionais faziam parte de uma secção especial regional que cada um dos museus dispunha para exibir matérias-primas e produtos dos vários distritos da nação; finalmente, os museus deviam recolher os objetos necessários (originais ou reproduções) para se construir a coleção retrospetiva ou histórica de ferramentas, utensílios e objetos notáveis das indústrias e da arte industrial (PORTUGAL, 1885b, p. 125). Os pedidos e instruções das direções dos museus para reunir coleções de produtos da pequena indústria e das indústrias caseiras gozavam de facilidades na aquisição, por ordem do governo, junto de organismos estatais e os objetos reunidos pelos museus tinham o estatuto de “objetos do Estado” para beneficiarem de vantagens no transporte.

Para além de fabricantes e público, os museus industriais e comerciais de Lisboa e Porto tinham uma evidente função de instrução, já que as escolas de desenho deviam ser criadas no recinto dos museus e os cursos por elas ministrados inspirar-se em “modelos e formas artísticas dos objetos da indústria tradicional popular” (PORTUGAL, 1885b, p. 126) e, por essa razão, esses cursos deviam relacionar-se com as coleções museológicas. “Os novos museus assumiam-se como verdadeiros núcleos dinamizadores do próprio ensino industrial elementar em que se incluíam” (LISBOA, 2007LISBOA, Maria Helena. As academias e escolas de belas artes e o ensino artístico (1836-1910). Lisboa: Edições Colibri - IHA/Estudos de Arte Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2007., p. 385).

O Estado não só não era alheio a esta opção museal, como a conduzia procurando no melhoramento das condições produtivas ligadas ao desenvolvimento industrial uma feição nacionalista nas artes tradicionais, que era urgente recuperar e pôr a render. As direções dos museus, além de serem responsáveis pelo ensino do desenho nas escolas, deviam criar cursos industriais, convidando especialistas e aliciando expositores, e subsidiar cursos relacionados com o ensino industrial e comercial. Aos museus que tutelavam as escolas acrescentavam-se bibliotecas especializadas em obras de tecnologia, almanaques comerciais, catálogos, coleções de modelos, desenhos e mapas, abertas quando estivessem abertos os museus, ou seja, todos os dias da semana.

A criação dos museus industriais e comerciais do Porto (1886) e Lisboa (1887) significou o auge de uma concepção em que estes estabelecimentos eram centrais no seu papel educador, experimental e de abertura ao público, subordinados à lógica da promoção e defesa da tradição portuguesa. Os museus não eram anexos a escolas, eram as escolas de desenho que estavam sob jurisdição dos museus e era nessa condição que se previa, futuramente, a sua transformação em escolas de formação de professores nas áreas do ensino do desenho e das artes industriais. Na rede escolar que contava com as escolas de desenho e com as escolas industriais, os museus, locais por definição de entesouramento, constituíam o ponto medial e um lugar de troca e venda.

O entesouramento não significava um movimento tendente somente à fruição, pois o que estava em causa era o aperfeiçoamento das artes através de uma permuta entre o legado e a novidade. Era difícil imaginar responsáveis de museus com mais competências, simultaneamente museológicas e de instrução pública. Os programas dos cursos do ensino de desenho elementar e industrial (especial de desenho) eram submetidos por inspetores3 3 A legislação de 1884 consagrava a existência de dois inspetores, um para as escolas que compreendiam a circunscrição norte do país, outro para as escolas da circunscrição sul. “Esta função [inspeção] ultrapassa em muito o simples controlo do sistema, espraiando-se por áreas de intervenção e melhoramento da leccionação e até dos próprios conteúdos. O recrutamento dos inspetores, sobretudo nos Institutos, e a sua nomeação da responsabilidade do governo, conferiam-lhe uma auréola de competência e de intervenção política capaz de se repercutir na legislação subsequente.” (ALVES, 1998, p. 150) à aprovação das direções dos museus e se houvesse divergências entre inspetores e diretores de museus, o governo faria prevalecer a opinião dos últimos (PORTUGAL, 1885a, p. 129).

O desempenho dos museus industriais e comerciais de Lisboa e Porto cruzou-se com a criação de outros núcleos museológicos ligados ao mesmo ensino técnico e profissional, os museus anexados aos institutos industriais e comerciais das duas principais cidades de Portugal. Foi criado em Lisboa o Museu da Indústria do Instituto Industrial de Lisboa (1852), depois chamado Museu Tecnológico (1864) e no Porto o Museu Tecnológico (1864), com relevantes papéis pedagógico e de fornecimento de coleções)4 4 Conforme se podia ler no plano de organização do ensino industrial e comercial de 1886: “o museu (…) é destinado não só a fornecer o material necessário para o ensino das disciplinas professadas no instituto mas também a ensaiar, por ordem do governo ou a pedido dos particulares, os aparelhos, materiais e processos susceptíveis de emprego na indústria” (PORTUGAL, 1887, p. 958) , o mesmo se aplicando aos museus anexados às escolas industriais do ensino médio5 5 Conforme se podia ler no regulamento das escolas industriais e de desenho industrial de 1888: “Em cada uma das escolas industriais haverá (…) um museu, compreendendo: a) O material necessário para o ensino das disciplinas professadas em cada uma das cadeiras; b) Os modelos, ferramentas, aparelhos, desenhos, amostras, materiais e produtos necessários para divulgar os aperfeiçoamentos que possam ser introduzidos nos métodos de trabalho das indústrias locais; ensaiar os processos fabris susceptíveis de mais vantajoso emprego nas mesmas indústrias; tornar conhecidos os produtos similares dos que se fabricam na localidade, susceptíveis de consumo importante; patentear a história dos progressos da indústria local.” (PORTUGAL, 1889a, p. 89) . Estes últimos expunham, além de desenhos e modelos, objetos e produtos fabricados pelos alunos, testemunhos públicos de demonstração do estado da arte do ensino prático (PORTUGAL, 1889, p. 87).

Em 1888, os museus industriais e comerciais de Lisboa e Porto, abertos ao público em seis dos sete dias da semana, cumpriam o papel de prestadores de uma instrução prática, nomeadamente através de exposições permanentes de coleções de matérias-primas, de produtos e de modelos, que refletissem os melhores modelos internacionais de artes industriais e o que havia de mais original e precioso nas tradições artísticas portuguesas.

Deviam, ainda, apresentar uma panorâmica da história das indústrias e das artes industriais, centrada nas origens, progressos e processos de trabalhos das indústrias nacionais, através de “coleções retrospetivas de ferramentas, utensílios, maquinismos e produtos (originais ou reproduções)” (PORTUGAL, 1888b, p. 534), elementos que asseguravam uma íntima conexão entre objetos modernos e históricos e entre artes industriais e belas-artes. Os diretores dos museus tinham a tarefa específica de colecionar “os objetos necessários para constituir gradualmente a coleção retrospetiva ou histórica, tanto de maquinismos, ferramentas e utensílios da indústria nacional como dos objetos notáveis da indústria e arte industrial portuguesa” (PORTUGAL, 1888b, p. 535).

O auxílio ao estudo prático dos negócios (incluindo as transações comerciais com países estrangeiros), o conhecimento para que produtores e comerciantes pudessem inteirar-se das formas de concorrência e sobre o estado industrial do país estavam igualmente no campo dos serviços que os museus prestavam. Eram especialmente franqueados a industriais, fabricantes e particulares que quisessem expor os seus produtos e amostras de matérias-primas.

As iniciativas legislativas de final do século ligaram-se a razões de instabilidade política, a limitações financeiras e a uma tentativa de redefinição deste ensino, nomeadamente através da realização de inquéritos (ALVES, 1998ALVES, Luís Alberto Marques. Contributos para o estudo do ensino industrial em Portugal (1851-1910). Tese (Doutorado em História Moderna e Contemporânea) - Especialidade de História Moderna e Contemporânea, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1998., p. 163). Em 1891, o governo reconhecia que os museus industriais e comerciais tinham sido dotados com pouco pessoal e, por entre a extinção de escolas e de disciplinas, anunciava, sem recurso a mais verbas, a criação de uma oficina junto do Museu do Porto para fornecimento de peças artísticas às escolas industriais.

Tendo frequentemente recorrido a oficinas estrangeiras para importar peças para o ensino das artes industriais, afirmava-se que não se deveria viver do empréstimo de modelos estrangeiros e implicava-se a produção de peças no desígnio de “de novo radicar a tradição e o tipo característico da arte portuguesa” (PORTUGAL, 1892, p. 598), junto das oficinas e dos operários portugueses. Em 1899, apesar de uma efetiva adesão ao ensino industrial que, entre 1853 e 1910, levou ao Instituto Industrial e Comercial do Porto cerca de 20 mil alunos e ao Instituto Industrial e Comercial de Lisboa 25 mil, com uma taxa de aprovação de 90 por cento nos cerca de 40 mil exames realizados (ALVES, 1998ALVES, Luís Alberto Marques. Contributos para o estudo do ensino industrial em Portugal (1851-1910). Tese (Doutorado em História Moderna e Contemporânea) - Especialidade de História Moderna e Contemporânea, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1998., p. 246), o governo extinguiu os museus industriais e comerciais de Lisboa e Porto.

Relatava um insucesso pedagógico a toda a linha, com a justificação de que estavam longe de “satisfazer aos intuitos a que visavam, quer como exposições permanentes de artigos industriais e correspondentes matérias-primas, quer como subsídio prestado ao ensino das escolas industriais” (PORTUGAL, 1900, p. 817). Os museus permanentes deviam ser substituídos por organizações periódicas de exposições agrícolas e industriais, criando-se uma comissão para tal efeito que nunca chegou a funcionar.

A medida aconteceu um ano após a aprovação de um inquérito às indústrias, às condições do operariado e às necessidades da economia, em que se relatava o alarme pela “desnacionalização das indústrias da arte” (PORTUGAL, 1899a, p. 820), que tinha pontos de grande comunidade com a vontade de criação de um Museu Nacional de Belas-Artes (1884), no sentido da procura e confecção de uma identidade nacional. Os argumentos usados para a extinção diminuíam o papel dos dois museus industriais, como se só tivessem servido para exibir periodicamente os trabalhos dos alunos e como o foco devesse estar na criação de museus tecnológicos subordinados às instituições de ensino e à relevância do material pedagógico de origem nacional que deviam possuir. Nenhuma palavra era concedida à dinâmica que floresceu no ensino industrial, ligada à experimentação, troca e venda dos objetos e ao seu papel pedagógico.

V. Museu Nacional das Belas-Artes (1884)

O estabelecimento de um museu central de belas-artes foi uma aspiração de alguma elite portuguesa durante o século XIX, até à sua instalação nos anos 80, com origem numa vontade real. Desde cedo que o rei D. Pedro IV tinha manifestado a vontade de criar um tal equipamento, que o novo poder formado nos inícios do século (o Parlamento) só a muito custo cumpriria.

No seu opúsculo sobre o ensino das artes, dos monumentos e dos museus, o marquês de Sousa Holstein, vice-inspetor da Academia de Belas-Artes de Lisboa, referia em 1875[HOLSTEIN, Marquês de Sousa]. Observações sobre o atual estado do ensino das artes em Portugal, a organização dos museus e o serviço dos monumentos históricos e da arqueologia oferecidas à comissão nomeada por decreto de 10 de novembro de 1875 por um vogal da mesma comissão. Lisboa: Imprensa Nacional, 1875. que o país possuía diversas coleções, e Lisboa em particular, para organizar um museu central. Essas coleções estavam em depósito, com exceção das obras de arte da Galeria Nacional de Pintura. As secções em que o Museu se deveria desdobrar, que teriam uma parte substancial de cópias, seriam endereçadas aos alunos, estudiosos e visitantes, seguindo a lógica de que a nação devia organizar museus que não fossem sumptuosos mas úteis e decentes.

Institucionalmente, a Academia de Belas-Artes prosseguiu o objetivo de fundar um museu nacional, no qual a tentativa de parar a degradação do acervo de pinturas à sua guarda era central. Tinha-lhe sido confiada fundar “um museu dos objetos de arte pertencentes ao Estado” e contribuir para a formação de “um museu de belas artes” (PORTUGAL, 1882, p. 41), na altura de uma reforma do ensino artístico que separou a Academia em duas instituições, Academia e Escola de Belas Artes, em 1881.

As atribuições sobre o ensino artístico passavam para a Escola e, entre os cursos especiais que ali se podiam seguir, dois eram novos, embora nunca regulamentados ou adequados às necessidades profissionais: um curso industrial ou de belas-artes com aplicação às artes industriais e um curso noturno para operários (LISBOA, 2007LISBOA, Maria Helena. As academias e escolas de belas artes e o ensino artístico (1836-1910). Lisboa: Edições Colibri - IHA/Estudos de Arte Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2007., p. 66). Apesar da cisão das instituições, elas continuaram a conviver no apertado espaço da Academia, o Convento de São Francisco da Cidade.

Os objetivos de instrução do museu a cargo da Academia eram cristalinos quando se dizia que os tesouros acumulados na Academia deviam formar o museu “para instrução dos artistas e do público” (PORTUGAL, 1882, p. 45). E quando os membros da Academia interpelaram o governo para que se inaugurasse o museu, argumentaram com os estudos escolares, a formação dos artistas, o desvendamento dos objetos de arte em depósito e o público6 6 Cf. Ata da Conferência Geral da Academia Real de Belas-Artes de Lisboa de 21 de fevereiro de 1884, documento não paginado . “De há muito que se trabalha em realizar a criação de um museu nacional de belas-artes, mas têm surgido sempre obstáculos a contrariar uma ideia que tendia a salvar o país da vergonha de não possuir um estabelecimento artístico”7 7 Ata da Conferência Geral da Academia Real de Belas-Artes de Lisboa de 23 de fevereiro de 1884, documento não paginado .

O governo tinha arrendado um espaço para o futuro Museu Nacional (1879) e comprou-o depois (1901). Antes da inauguração, o Museu Nacional de Belas-Artes acolheu aExposição Retrospetiva de Arte Ornamental Portuguesa e Espanhola(1882), dedicada à arte ornamental e decorativa (ou às indústrias e artes, como também era dito) desde os tempos remotos até ao século XVIII, impulsionando a criação formal do Museu. Mais de dois anos depois da exposição, os membros da Academia asseguravam que apenas faltava desbloquear uma verba para pagar aos elementos que velassem pela conservação e segurança dos objetos e, mostrando-se incrédulos pela inação, escreviam ao governo.

No momento em que se trata de divulgar o ensino artístico e industrial pelo país, seria deplorável inconsequência que se não expusessem ao público as mais importantes coleções artísticas que possuímos. (Ata da Conferência Geral da Academia Real de Belas-Artes de Lisboa de 23 de fevereiro de 1884, documento não paginado).

Como a conservação dos tesouros artísticos da nação incumbia à Academia, a missiva destinava-se, também, a assegurar que a instituição cumpria o seu papel (“ressalvando a sua responsabilidade”, como se escreveu) de guardadora das relíquias. Para tão grande espera e expectativa, a inauguração do Museu em maio de 1884, foi narrada como discreta e com pouco entusiasmo popular. “Os quadros estão bem dispostos e acham-se ali alguns de grande valor. Também ainda encontrámos no palácio alguns objetos que estiveram na Exposição de Arte Ornamental. Foi pequeno o número de pessoas que visitou a exposição” (MUSEU DE BELAS-ARTES, 1884, documento não paginado). Inaugurado num domingo (11 de maio), registou 513 visitantes e esteve aberto no dia seguinte a título excecional, comparecendo mil visitantes. Passou a abrir à quinta-feira e domingo, registando na primeira quinta-feira 52 pessoas e no primeiro domingo a seguir à abertura 6098 8 Cf. Mapa das pessoas que frequentaram o Museu no ano de 1884, documento não paginado .

Delfim Guedes, figura central na organização da Exposição de Arte Ornamental e no arrendamento do espaço para o museu, relembrava, no primeiro catálogo, a junção de coleções antes dispersas como muito relevante para a educação artística, a necessidade de desenvolver o ensino artístico-industrial para operários e as exposições de belas artes e artes industriais das academias como “poderoso e profícuo elemento para a obra da educação artística do povo” (MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES, 1883, p. V- VI). Referia-se, pois, ao papel instrutivo central do Museu, afirmando uma distância à ideia de museu como depósito para a fruição de alguns: “Não são os museus de belas artes simples ostentação ou mero passatempo das classes abastadas e dos que procuram ocupar aprazivelmente as horas ociosas” (MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES, 1883, p. IV).

A imprensa deu conta de que o museu estaria aberto ao público duas vezes por semana, quinta-feira e domingo, das 11h às 17h, havendo lugar ao pagamento de uma entrada num desses dias (MACHADO, 1954MACHADO, Alda de Guimarães Guedes Pinto (Compil.). O conde de Almedina e a arte em Portugal no século XIX. Elementos coligidos por Alda de Guimarães Guedes Pinto Machado. Lisboa, 1954. , p. 205) (FERREIRA, 2001FERREIRA, Maria Emília de Oliveira (2001). História dos museus públicos de arte no Portugal de Oitocentos: 1833-1884. Dissertação (Mestrado em História da Arte Contemporânea). Volume I. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa., p. 301 e 304), embora os membros da Academia tenham ponderado, antes da inauguração, abrir o Museu todos os dias, recuando em face das despesas que implicaria9 9 Cf. Ata da Conferência Geral da Academia Real de Belas-Artes de Lisboa de 23 de fevereiro de 1884, documento não paginado . A consolidação do regulamento do museu implicou uma orientação para o estudo das coleções, embora o público não fosse esquecido. De acordo com um regulamento de 1902, os alunos dos cursos especiais (arquitetura civil, pintura histórica e decorativa, escultura e estatuária, pintura de paisagem, gravura a talho-doce) da Escola de Belas Artes de Lisboa podiam ir ao Museu todos os dias da semana a partir das 10h (com exceção dos fechos obrigatórios em feriados religiosos), desde que os seus professores requisitassem ingressos ao diretor.

Outros visitantes que desejassem estudar poderiam entrar no Museu, no mesmo horário dos alunos e mediante bilhetes de admissão também previamente solicitados ao diretor. Contudo, só podia concedê-los se os visitantes provassem estar habilitados a aproveitar o estudo - “desde que os impetrantes [requerentes] provem achar-se habilitados a aproveitar do estudo a que vão dedicar-se” (PORTUGAL, 1903, p. 1368) - o que deixava nas suas mãos a arbitrariedade de decidir e exigia que os requerentes provassem um interesse insofismável.

O direito ao estudo dos objetos de arte das coleções do Museu só seria concedido a quem não se ausentasse por mais de três dias consecutivos. O museu continuava aberto ao público ao domingo e à quinta-feira (das 11h às 16h), pagando-se uma importância ao domingo. Nos restantes dias da semana poderia ser facultado o acesso a visitantes entre as 12h e as 16h, desde que o requisitassem ao diretor e sendo acompanhados por um guarda. Havia ainda a regra de que estrangeiros só seriam admitidos mediante a sua apresentação por representantes dos respetivos países.

Se era verdade que nem o país tinha abandonado a ideia do “papel fundamental educativo que a arte desempenha na orientação e na vida moral de um povo” (PORTUGAL, 1902, p. 889) nem o museu tinha perdido a sua feição educativa, algo estava em movimento nesta circulação entre objetos de arte, alunos, artistas e público. Pode falar-se de três grande fatores de mudança.

O primeiro era óbvio. A ida de obras de arte da Academia para o Museu separava-as do lugar de instrução de que provinham. “Ainda que a Academia continuasse na posse da gerência desta nova instituição [o Museu], o seu acervo estava agora afastado das aulas, do ensino, e dos alunos da Escola de Belas Artes. Ganhava, deste modo, o público em geral, que passava a ter um acesso mais direto e em melhores condições de observação” (LISBOA, 2007LISBOA, Maria Helena. As academias e escolas de belas artes e o ensino artístico (1836-1910). Lisboa: Edições Colibri - IHA/Estudos de Arte Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2007., p. 295).

O segundo grande fator que contribuiu para cindir o Museu do desígnio da instrução era a forma como a elite olhava para a reunião das coleções que formava o espólio. O embrião do Museu (a Galeria Nacional de Pintura) expunha, à data da sua abertura em 1868, uma história da pintura portuguesa cheia de hiatos, mas com a ambição de expor uma totalidade (as riquezas da nação): “Na Galeria Nacional de Pinturas deveria estar a história da nossa arte; deveriam achar-se ali quadros de todos os nossos pintores, cronologicamente dispostos, de modo que fosse possível ir acompanhando a arte nas fases por que passou na nossa terra” (ACADEMIA REAL DAS BELAS-ARTES DE LISBOA, 1868, p. 19).

A questão foi sendo alimentada com argumentos que defendiam o princípio da instrução e com outros que ampliavam as ambições do museu a inaugurar. Por exemplo, a legislação que criava em 1875 uma comissão nomeada pelo governo para propor uma reforma do ensino artístico, dos serviços dos museus e monumentos, e o relatório dessa comissão, pressupunham a criação de um grande museu nacional, “de provada conveniência para os estudos respetivos” mas também para “crédito da civilização do país” e para trazer “grande vantagem a diferentes investigações relativas à história da pátria” (HOSLTEIN, 1875, p. III). Isto era, um museu que não estivesse apenas ao serviço do ensino e dos alunos, inscrevendo-o num movimento civilizacional regulador da identidade nacional.

Quando o Museu Nacional abriu ao público, o historiador Gabriel Pereira resumiu o seu património como uma mistura convulsiva entre pinturas históricas e objetos das indústrias caseiras, entre objetos de culto que exibiam o brilho nos expositores e as variedades de reproduções aptas para a instrução dos alunos e dos artistas. Como a Academia já tinha na sua posse grande número de objetos de arte e de arqueologia, sublinhava que “a todos se evidenciou o encanto e a utilidade de expor ao público tantos elementos de educação” (PEREIRA, 1904PEREIRA, Gabriel. Museu Nacional de Belas-Artes. Aspeto geral. Lisboa: Oficina Tipográfica, 1904. , p. 3). O Museu Nacional abria-se à curiosidade e à instrução, ao público e aos artistas, à contemplação e à necessidade de experimentação que fazia parte da formação do artista.

O terceiro grande fator era a concepção depatrimónio culturalque se ia consolidando. Entre 1894 e 1901 o governo português publicou três documentos essenciais para a entender10 10 Regulamento para a Comissão dos Monumentos Nacionais (1894); Plano orgânico dos serviços de monumentos nacionais (1898); Bases para a classificação dos imóveis que devam ser considerados monumentos nacionais, bem assim dos objetos mobiliários de reconhecido valor intrínseco ou extrínseco pertencentes ao Estado, a corporações administrativas ou a quaisquer estabelecimentos públicos (1901). Cf. Ministério das Obras Públicas. Decreto de 27 de fevereiro de 1894 aprovando o regulamento para a comissão dos monumentos nacionais, Coleção oficial de legislação portuguesa, Ano de 1894. Lisboa: Imprensa Nacional, 1895, p. 101-102; Ministério das Obras Públicas. Decreto de 9 de dezembro de 1898 aprovando o plano orgânico dos serviços destinados à classificação, conservação e restauração dos monumentos nacionais, Coleção oficial de legislação portuguesa, Ano de 1898. Lisboa: Imprensa Nacional, 1899, p.923-925; Ministério das Obras Públicas. Decreto de 30 de dezembro de 1901 aprovando as bases para a classificação dos monumentos nacionais e bens mobiliários de valor, as quais vão apensas ao presente decreto, Coleção oficial de legislação portuguesa, ano de 1902. Lisboa: Imprensa Nacional, 1903, Suplemento à coleção de legislação portuguesa, Ano de 1901, p.1436-1437 , na qual sobressaía uma política de conservação que desenhava um poderoso interesse nacional, simbolizada no espírito e no trabalho populares. Culminando um século em que monumentos e objetos de antiguidade eram difusamente valorizados pelo Parlamento, os legisladores faziam agora brilhar o que do passado podia constituir “as faculdades estéticas nacionais” e faziam coincidir com a identidade popular os velhos objetos de prestígio das classes nobres mostrados em museus, embrulhando-as numa atmosfera gloriosa coletiva, da qual todos deviam participar.

Quer, pois, os monumentos nacionais ofereçam simples valor de antiguidade, sendo coevos dos antepassados extintos, quer representem tradições e fatos históricos, recordando glórias de passadas epopeias, quer, enfim, manifestem caracteres artísticos, demonstrando as faculdades estéticas nacionais, é dever impreterível das nações civilizadas conservar com amor e zelo, resguardadas da ação do tempo e da ignorância dos homens, esses padrões eloquentes, que simbolizam o espírito e o trabalho populares em diferentes períodos da história pátria (PORTUGAL, 1899b, p. 923)

A inauguração do Museu de Belas-Artes indicou uma viragem dos espaços museológicos no sentido de se tornarem lugares preferenciais para a contemplação, fazendo recuar quer uma componente de experimentação quer toda a tradição popular que sustentava os museus (e que estava ligada às grandes exposições) de Oitocentos. Walter Benjamin observava nas exposições industriais um “esquema secreto de construção dos museus” e a arte como “produtos industriais projetados no passado” (BENJAMIN, 2009BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora Universidade Federal de Minas Gerais / São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. , p. 212), evocando a ligação primitiva entre as grandes exposições e a edificação de museus. Seria necessário recuar à organização dessas feiras destinadas às massas para entrever a íntima conexão, desde finais do século XVIII, a um caráter marcadamente popular, como fez Benjamin citando um texto de 1864 do autor Sigmund Engländer.

No ano de 1798 foi anunciada uma exposição geral da indústria a realizar-se no Campo de Marte. O Diretório incumbira o ministro François de Neufchâteau de organizar uma festa popular em comemoração à proclamação da República. O ministro consultou várias pessoas que lhe sugeriram o pau-de-sebo e outros jogos. Uma delas falou em organizar uma grande feira à moda das quermesses de aldeia, mas em escala bem maior. Finalmente alguém sugeriu que se acrescentasse uma exposição de quadros. Estas duas últimas sugestões inspiraram François de Neufchâteau a anunciar uma exposição industrial em comemoração à festa popular. Assim, esta primeira exposição industrial nasce do desejo de divertir as classes operárias, tornando-se para elas uma festa de emancipação… (ApudBENJAMIN, 2009BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora Universidade Federal de Minas Gerais / São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. , p. 216)

As mostras de produtos e objetos em grandes feiras estiveram ligadas a uma óbvia lógica de troca (que também encontramos nos museus industriais e comerciais) tanto quanto à fruição popular, que o poder político transformava em festas nacionais. A procura de um espírito popular tinha estado, igualmente, na raiz da organização de muitos museus ou, pelo menos, na idealização em que eles se inscreviam pensando nos operários e na necessidade da sua instrução.

No início do século XX, sem rejeitar o apelo popular e educativo, os museus estavam também a lidar com a necessidade de fazer coincidir os despojos dos poderosos com os desejos de fruição das classes operárias e trabalhadoras, em direção a um movimento de reconhecimento de um património cultural comum. Centrados na fruição como elemento aglutinador, os museus estavam a desalinhar-se do seu papel de instrução e de experimentação.

Conclusão

A partir da instauração do Liberalismo em Portugal (1820), a concepção pública dos museus integrou as necessidades do estudo e do inventário, como consequência histórica de a ideia de museu se formar a partir do “tesouro” e da “coleção” (COELHO, 1996COELHO, Maria da Conceição Pires. Da origem dos museus, do seu conteúdo, arquitetura e livre acesso. Brotéria, Braga, Oficinas gráficas de Barbosa & Xavier, Lda., v. 142, n. 3, p. 365-371, março 1996., p. 365), ambos necessitando de uma disciplina e de uma organização. Os regulamentos dos museus de iniciativa estatal traduziram a clara preferência pela necessidade de instrução e por uma pedagogia dirigida a artistas, operários e visitantes, que impulsionaram as instituições museológicas durante quase todo o século XIX.

Nos anos 80 do século XIX, Portugal observou uma tendência de mudança na idealização dos museus de arte do Estado como espaços de partilha, de experimentação e de transformação do conhecimento, fazendo recuar as funções didáticas como centro da sua organização interna. A abertura do Museu Nacional das Belas-Artes (1884), apesar das intenções relativas à instrução pública, e as mudanças no ensino técnico-profissional, com especial destaque para a reorganização de final do século (1899), marcaram os casos maiores dessa mudança, enunciando o caminho para o recuo da ideia do museu facilmente franqueado aos aprendizes e aos alunos, aos fabricantes e aos negociantes e só depois ao público diletante. Construía-se, com uma modernizadora exuberância, o direito à fruição e à contemplação dos visitantes indistintos, o direito do público curioso e distante da essência das coleções, para o qual nenhum mergulho em redor de peças expostas poderia ser instrutivo se não radicasse, prematuramente, num interesse específico.

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  • PORTUGAL. MINISTÉRIO DAS OBRAS PÚBLICAS. Portaria de 6 de maio de 1884 aprovando o regulamento dos museus industriais e comerciais. Coleção oficial da legislação portuguesa, Ano de 1884. Lisboa: Imprensa Nacional, 1885b, p. 125-127.
  • PORTUGAL. MINISTÉRIO DAS OBRAS PÚBLICAS. Decreto de 30 de dezembro de 1886 aprovando o plano de organização do ensino industrial e comercial. Coleção oficial da legislação portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1887, p. 952-962.
  • PORTUGAL. MINISTÉRIO DAS OBRAS PÚBLICAS. Decreto de 23 de fevereiro de 1888 aprovando o regulamento das escolas industriais e de desenho industrial. Coleção oficial de legislação portuguesa, Ano de 1888. Lisboa, Imprensa Nacional, 1889a, p. 83-93.
  • PORTUGAL. MINISTÉRIO DAS OBRAS PÚBLICAS. Decreto de 19 de dezembro de 1888 aprovando o regulamento dos museus industriais e comerciais. Coleção oficial de legislação portuguesa, Ano de 1888. Lisboa, Imprensa Nacional, 1889b, p. 534-538.
  • PORTUGAL. MINISTÉRIO DA FAZENDA. Decreto de 8 de agosto de 1889 mandando que sejam entregues provisoriamente ao Ministério do Reino o edifício e cerca do convento de Santo Alberto, situado às Janelas Verdes em Lisboa. Suplemento à coleção de legislação portuguesa, Ano de 1889, Lisboa, Imprensa Nacional, 1889c., p. 588.
  • PORTUGAL. MINISTÉRIO DAS OBRAS PÚBLICAS. Decreto de 8 de outubro de 1891 reorganizando o ensino industrial e comercial. Coleção oficial de legislação portuguesa, Ano de 1891. Lisboa, Imprensa Nacional, 1892, p. 595-617.
  • PORTUGAL. MINISTÉRIO DAS OBRAS PÚBLICAS. Decreto de 24 de novembro aprovando o plano de inquérito técnico e económico para a remodelação do ensino industrial e comercial no país. Coleção oficial de legislação portuguesa, Ano de 1898, Lisboa: Imprensa Nacional, 1899a, p. 819-824.
  • PORTUGAL. MINISTÉRIO DAS OBRAS PÚBLICAS. Decreto de 9 de dezembro de 1898 aprovando o plano orgânico dos serviços destinados à classificação, conservação e restauração dos monumentos nacionais. Coleção oficial de legislação portuguesa, Ano de 1898. Lisboa: Imprensa Nacional, 1899b, p.923-925.
  • PORTUGAL. MINISTÉRIO DAS OBRAS PÚBLICAS. Decreto de 23 de dezembro de 1899 criando junto da Secretaria de Estado das Obras Públicas, Comércio e Indústria uma comissão permanente denominada comissão superior de exposições. Coleção oficial de legislação portuguesa, Ano de 1899, Lisboa: Imprensa Nacional 1900, p. 817-818.
  • PORTUGAL. MINISTÉRIO DO REINO. Decreto de 14 de novembro de 1901 reorganizando a Academia Real de Belas Artes de Lisboa e a Escola e o Museu de Belas Artes. Coleção oficial de legislação portuguesa, Ano de 1902, Lisboa, Imprensa Nacional, 1902, p. 889-895.
  • PORTUGAL. MINISTÉRIO DO REINO. Decreto de 18 de dezembro aprovando o regulamento da Academia de Belas Artes e do Museu Nacional de Lisboa. Coleção oficial de legislação portuguesa, Ano de 1902. Lisboa, Imprensa Nacional, 1903, p. 1348-1368.
  • RAMOS, Manuel [pseud. Mosar]. As nossas galerias de arte. O Museu Allen ou Novo Museu Portuense. Branco e Negro. Semanário Ilustrado, Lisboa, Tipografia e Estereotipia Moderna, ano II, n. 65, p. 193-200, 27 de junho, 1897.
  • RIBEIRO, João Baptista. Exposição histórica da criação do Museu Portuense. Com documentos oficiais para servir à história das belas-artes em Portugal e à do Cerco do Porto. Porto, Imprensa de Coutinho, 1836.
  • RIBEIRO, José Silvestre. História dos estabelecimentos científicos, literários e artísticos de Portugal nos sucessivos reinados da monarquia. Tomo VIII. Lisboa: Tipografia da Academia Real das Ciências, 1879.
  • VASCONCELOS, Joaquim de. O Museu Municipal do Porto. O seu estado presente e o seu futuro. Relatório apresentado ao Ill.mo e Exmo. Snr. Luiz Ignacio Woodhouse, presidente da comissão encarregada de estudar a reorganização do museu. Porto: Tipografia de A. J. da Silva Teixeira, 1889.
  • 1
    Pensionários ou pensionistas: indivíduos subsidiados pelo Estado para estudar no estrangeiro e se aperfeiçoarem no estudo das belas artes
  • 2
    “Ninguém também hoje põe em dúvida ou contesta a grande conveniência, diremos mesmo a necessidade absoluta e imperiosa, de se estabelecerem nos centros industriais museus tecnológicos, onde se reúnam exemplares das máquinas mais perfeitas, modelos industriais de diferente ordem, coleções de matérias-primas e tudo quanto possa contribuir para facilitar a instrução e apurar o bom gosto das classes industriais. Assim como o culto do belo não existe senão nos países onde em museus e galerias especiais se podem observar as preciosas produções dos mais altos engenhos em belas-artes; também, sem bons exemplares para o trabalho industrial, nenhum povo poderá atingir a grande perfeição nesta importantíssima e utilíssima província do trabalho humano. No projeto de reforma dos institutos de Lisboa e Porto propõe-se que em cada um destes dois estabelecimentos se forme, em galeria especial, uma coleção tecnológica, que auxilie os que se destinam aos variados trabalhos da indústria manufactora.O que neste sentido agora tentamos não pode deixar de ser modesto e apenas rudimental. Nos primeiros anos só poderão formar-se coleções de modelos, elemento indispensável de todo o ensino industrial; mas logo que circunstâncias mais prósperas o permitam, será necessário atender à conveniência de organizar museus industriais por modo semelhante ao que hoje se pratica em todos os países adiantados.”(PORTUGAL, 1865, p. 958).
  • 3
    A legislação de 1884 consagrava a existência de dois inspetores, um para as escolas que compreendiam a circunscrição norte do país, outro para as escolas da circunscrição sul. “Esta função [inspeção] ultrapassa em muito o simples controlo do sistema, espraiando-se por áreas de intervenção e melhoramento da leccionação e até dos próprios conteúdos. O recrutamento dos inspetores, sobretudo nos Institutos, e a sua nomeação da responsabilidade do governo, conferiam-lhe uma auréola de competência e de intervenção política capaz de se repercutir na legislação subsequente.” (ALVES, 1998, p. 150)
  • 4
    Conforme se podia ler no plano de organização do ensino industrial e comercial de 1886: “o museu (…) é destinado não só a fornecer o material necessário para o ensino das disciplinas professadas no instituto mas também a ensaiar, por ordem do governo ou a pedido dos particulares, os aparelhos, materiais e processos susceptíveis de emprego na indústria” (PORTUGAL, 1887, p. 958)
  • 5
    Conforme se podia ler no regulamento das escolas industriais e de desenho industrial de 1888: “Em cada uma das escolas industriais haverá (…) um museu, compreendendo: a) O material necessário para o ensino das disciplinas professadas em cada uma das cadeiras; b) Os modelos, ferramentas, aparelhos, desenhos, amostras, materiais e produtos necessários para divulgar os aperfeiçoamentos que possam ser introduzidos nos métodos de trabalho das indústrias locais; ensaiar os processos fabris susceptíveis de mais vantajoso emprego nas mesmas indústrias; tornar conhecidos os produtos similares dos que se fabricam na localidade, susceptíveis de consumo importante; patentear a história dos progressos da indústria local.” (PORTUGAL, 1889a, p. 89)
  • 6
    Cf. Ata da Conferência Geral da Academia Real de Belas-Artes de Lisboa de 21 de fevereiro de 1884, documento não paginado
  • 7
    Ata da Conferência Geral da Academia Real de Belas-Artes de Lisboa de 23 de fevereiro de 1884, documento não paginado
  • 8
    Cf. Mapa das pessoas que frequentaram o Museu no ano de 1884, documento não paginado
  • 9
    Cf. Ata da Conferência Geral da Academia Real de Belas-Artes de Lisboa de 23 de fevereiro de 1884, documento não paginado
  • 10
    Regulamento para a Comissão dos Monumentos Nacionais (1894); Plano orgânico dos serviços de monumentos nacionais (1898); Bases para a classificação dos imóveis que devam ser considerados monumentos nacionais, bem assim dos objetos mobiliários de reconhecido valor intrínseco ou extrínseco pertencentes ao Estado, a corporações administrativas ou a quaisquer estabelecimentos públicos (1901). Cf. Ministério das Obras Públicas. Decreto de 27 de fevereiro de 1894 aprovando o regulamento para a comissão dos monumentos nacionais, Coleção oficial de legislação portuguesa, Ano de 1894. Lisboa: Imprensa Nacional, 1895, p. 101-102; Ministério das Obras Públicas. Decreto de 9 de dezembro de 1898 aprovando o plano orgânico dos serviços destinados à classificação, conservação e restauração dos monumentos nacionais, Coleção oficial de legislação portuguesa, Ano de 1898. Lisboa: Imprensa Nacional, 1899, p.923-925; Ministério das Obras Públicas. Decreto de 30 de dezembro de 1901 aprovando as bases para a classificação dos monumentos nacionais e bens mobiliários de valor, as quais vão apensas ao presente decreto, Coleção oficial de legislação portuguesa, ano de 1902. Lisboa: Imprensa Nacional, 1903, Suplemento à coleção de legislação portuguesa, Ano de 1901, p.1436-1437

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    10 Jan 2019
  • Aceito
    09 Maio 2019
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