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O julgamento simulado do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo: processo de ensino da ética médica

The simulated judgment of the São Paulo State Regional Council of Medicine: the process of teaching medical ethics

Resumos

O julgamento simulado reproduz a dinâmica de um julgamento em que os envolvidos são substituidos por representações da realidade, podendo tornar-se importante estratégia para o ensino da ética médica.

Ética médica; julgamento; ensino


Simulated judgment reproduces the dynamics of a judgment where those involved are replaced by representations of reality and they may become an important strategy to be used while teaching medical ethics

Medical ethics; judgment; teaching


ARTIGOS E RELATOS

O julgamento simulado do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo: processo de ensino da ética médica

The simulated judgment of the São Paulo State Regional Council of Medicine: the process of teaching medical ethics

Reinaldo Ayer de Oliveira

Docente do Departamento de Cirurgia e Ortopedia da Faculdade de Medicina da UNESP, campus de Botucatu; Conselheiro do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.

RESUMO

O julgamento simulado reproduz a dinâmica de um julgamento em que os envolvidos são substituidos por representações da realidade, podendo tornar-se importante estratégia para o ensino da ética médica.

Palavras-chave: Ética médica; julgamento; ensino.

ABSTRACT

Simulated judgment reproduces the dynamics of a judgment where those involved are replaced by representations of reality and they may become an important strategy to be used while teaching medical ethics

Key words: Medical ethics; judgment; teaching.

Para Cohen e Segre, o conceito de Ética está vinculado com: 1. a percepção dos conflitos - consciência; 2. autonomia - condição de posicionar-se entre a emoção e a razão; e 3. a coerência. (1995; p.17)

A eticidade — aptidão de exercer a função ética, segundo estes autores — estrutura-se com o desenvolvimento psicossocial do homem. Ninguém nasce ético. A interação entre a natureza do ser biológico com o processo de cultura do ser social carrega conflitos, que vão manter permanente a reflexão sobre o que é ser ético. Quando o homem age — o ato pode estar contido dentro de uma determinada profissão —, sua atividade supõe determinado preparo ou conhecimento técnico adquirido por meio do treinamento e da adesão ao conjunto de normas éticas do exercício profissional. No caso da Medicina, há uma ética profissional definida por um conjunto de normas, contidas no Código de Ética Médica que regulamenta o comportamento de cada um dos membros desta profissão.

Como o indivíduo tem uma dinâmica de desenvolvimento psicossocial em velocidade diferente daquela do conjunto dos indivíduos, um ato profissional seu pode entrar em conflito com as normas estabelecidas por meio do código no qual estão consolidados princípios assumidos pela sociedade como valores morais vigentes. Passa-se do plano do indivíduo para o plano do coletivo. No caso de um ato médico, um Conselho de Ética Médica julga este indivíduo dentro das normas estabelecidas pelo código profissional.

A Lei n° 3.268, de 30 de setembro de 1957, define que o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina são: "órgãos supervisores da ética profissional e ao mesmo tempo, julgadores e disciplinadores da classe médica, cabendo-lhes zelar e trabalhar por todos os meios ao seu alcance, pelo perfeito desempenho ético da medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exerçam legalmente". (1996; p.5)

Na prática, o exercício profissional dos médicos está regulamentado pelo Código de Ética Médica e pelo Código de Processo Ético-Profissional (1996).

Pereira Neto e Alves da Rocha, comparando os Códigos de Ética Médica de 1931 e 1988, concluem que: "além da norma, o código expressa como uma certa parcela da profissão, em um determinado momento histórico, constrói os meios legais para alcançar uma hegemonia formal sobre o conjunto da categoria". (1995; p.27)

Para Oselka, o Código de Ética Médica, em essência: "reflete as condições prevalentes do exercício profissional, no momento de sua elaboração." (1995; p.32)

O Código atual, resultado de ampla mobilização dos médicos na década de 80, procura codificar as condutas profissionais possíveis dentro de conceitos de moral e valores adotados pela maioria, naquele momento.

No caso do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo — CREMESP —, cabe-lhe o papel de julgar e estabelecer as penas pelas infrações éticas cometidas por médicos, dentro de um processo ético-disciplinar que resulta de denúncias formais protocoladas no Conselho do Estado de São Paulo.

No CREMESP, na maioria das vezes, a denúncia que vai gerar um processo trata da relação médico-paciente cujo vínculo foi se deteriorando ao longo do tempo.

Observa Constantino, que:

o profissional não sabe sequer o nome do paciente, nem o paciente o nome do médico, fazendo com que ocorram distorções, má interpretação a respeito do que está sendo feito e muitas vezes os denunciantes procuram o CREMESP para que sejam esclarecidos e não para formular denúncias, porque simplesmente não foram informados sobre o atendimento médico. (1996; p.4)

Este tipo de situação preocupa e evidencia a necessidade de se procurar métodos que estimulem a relação ensino/aprendizagem por meio da discussão de questões de ética junto ao conjunto dos médicos.

O processo ético-disciplinar é característico do dever judicante dos Conselhos de Ética Médica. Seguindo um ritual e forma de autos judiciais, qualquer suspeita de infração ética por parte do médico é transformada em um processo ético-profissional que, ao final, se conclui pela culpa ou não do denunciado. Em caso de culpa, são aplicadas penas que vão de advertência confidencial à cassação do exercício profissional.

Na instrução do processo, em que se preserva o sigilo, são garantidas às partes todas as condições de denúncia e defesa. Os depoimentos procuram caracterizar as circunstâncias da infração e as provas que confirmem a denúncia ou a defesa. Testemunhas podem ser arroladas e, quando existem, os relatórios e os prontuários médicos são requisitados como importantes peças do processo. Devidamente instruído, o processo será avaliado por um conselheiro-relator e um conselheiro-revisor que ficarão responsáveis pela elaboração de relatórios conclusivos sobre o caso em questão, sendo apresentados em uma sessão de julgamento para este fim convocada.

Após a apresentação dos relatórios, a manifestação das partes envolvidas e os esclarecimentos solicitados pelos conselheiros julgadores, encaminha-se o processo para a parte decisiva do julgamento, ou seja, a discussão do mérito.

O julgamento deve concluir pela condenação ou não do envolvido, por infração ao Código de Ética Médica e ser seguido da aplicação de uma pena.

Durante a discussão, em que são levados em consideração diferentes aspectos do processo, como: provas, análise do prontuário médico, perícias e, sobretudo, os depoimentos dos envolvidos, surge com toda força os conflitos éticos. De um lado, toda a discussão atual dos avanços no pensamento ético e a ética dos códigos e, de outro lado, a ética do cotidiano. Observa-se que os códigos de ética representam a consolidação dos princípios éticos estabelecidos por uma sociedade para um determinado período.

As discussões surgem "como fruto da necessidade de serem estabelecidos parâmetros referenciais no que diz respeito às novas descobertas decorrentes do acelerado desenvolvimento científico e tecnológico" (Garrafa, 1995; p.7) e em relação a um novo "pensar ético".

No julgamento, o que se observa, inicialmente, é a preocupação em discutir os aspectos técnicos e científicos dos fatos contidos nos autos do processo disciplinar, sob a luz dos conhecimentos adquiridos na escola médica e atualizados na literatura pertinente ao caso. É importante ressalvar que esta preocupação com a avaliação de ciência e técnica "é um dever do homem lúcido, mas a supervalorização implica em capitulações graves em relação à atitude humanística, posto que os avanços científicos e tecnológicos que vimos assistindo nas últimas décadas, vêem ocorrendo desnudos de qualquer reflexão ética." (Camargo, 1996; p.50)

De fato, quando se julga uma possível infração ao Código de Ética Médica, as provas e depoimentos podem confirmar, de maneira enfática, o ilícito e, então, a condenação se torna necessária para consolidação dos princípios fundamentais que sustentam a boa prática da medicina baseada nos aspectos não só técnicos e científicos, mas, sobretudo, humanísticos da atividade profissional. Entretanto, quando a caracterização do possível ilícito ético não se configura de forma clara, é fundamental a percepção da situação de conflito para que se estabeleçam as condições de um posicionamento ativo e autônomo dos julgadores. Nesta situação, o exercício do "pensar ético" passa pela relação entre emoção e razão. Cada julgador passa a refletir e discutir o caso em julgamento, com base nos seus conceitos de valores e moral dentro de uma ética do cotidiano. O julgador coloca-se na situação de denunciado da possível infração ao Código de Ética Médica. Esta prática enriquece o debate sobre o que é lícito ou ilícito no momento em que o ato, que está sendo julgado, ocorreu.

Evidencia-se, nesse momento, a necessidade não só de elaboração dos conceitos éticos relativos à atividade profissional, mas, sobretudo, de uma reflexão ampliada sobre ética. Na construção dos conceitos éticos, a percepção dos conflitos passa pelo exercício de uma prática social que emerge do respeito ao ser humano.

A reflexão sobre a experiência de julgadores nos leva à discussão sobre ensino de ética e à construção deste "pensar ético". A prática de um JULGAMENTO SIMULADO, que reproduz toda a dinâmica de um julgamento e no qual os envolvidos são substituídos por representações da realidade, pode se constituir um importante momento para recuperar o vivido, compartilhar dúvidas e vivenciar os conflitos da profissão médica.

Compreendendo-se que o processo de aprendizado da ética médica é permanente, passando por experiências individuais e compartilhadas, o JULGAMENTO SIMULADO pode-se tornar importante estratégia não só para o ensino da ética nas escolas médicas como, também, na educação pós-graduada e continuada do profissional médico.

  • CAMARGO, M. C. Z. A. O Ensino da Ética Médica e o Horizonte da Bioética. Bioética v.4 n.1, p. 47-51, 1996.
  • COHEN, C., SEGRE, M. Definiçăo de Valores, Moral, Eticidade e Ética. In: _______  Bioética Săo Paulo: Ed. da Universidade de Săo Paulo, 1995.
  • CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA . Resolução CFM n° 1246/88: Código de Ética Médica. Brasília: CFM, 1996.
  • GARRAFA, V. O retorno da discussão - Ética Prática. In: ______  Dimensão da ética em saúde pública. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública, 1995.
  • JORNAL DO CREMESP.  O CRM-SP é a entidade brasileira mais atuante na fiscalização do exercício de profissão. Entrevista com Dr. Clóvis Francisco Constantino. Conselheiro-Corregedor do CREMESP, Agosto de 1996. p.4.
  • OSELKA, G. O Código de Ética Médica. In: COHEN, C., SEGRE, M. (org). Bioética Săo Paulo: Ed. da Universidade de Săo Paulo, 1995.
  • PEREIRA NETO, A.F. e ALVES DA ROCHA, S.L. Além da norma: notas sobre dois códigos de ética médica brasileiros (1931-1988). Saúde em Debate v.46, 1995.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Ago 2009
  • Data do Fascículo
    Ago 1997
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