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Tomsom. A Tale of Monstruous Extravagance: Imagining Multilingualism.

HIGHWAY, Tomsom. . A Tale of Monstruous Extravagance: Imagining Multilingualism. Alberta: The University of Alberta Press, 2015. 37p. ISBN978-1-77212-041-7.

A palestra de Tomson Highway, A Tale of Monstruous Extravagance: Imagining Multilingualism (2015), publicada pela The University of Alberta Press, oferece um panorama bastante particular e íntimo sobre os efeitos positivos da exposição aos mais diversos tipos de linguagens disponíveis no âmbito da produção humana. Highway é escritor de ficção, dramaturgo, pianista e também compositor, características que emergirão ao longo de sua fala como fundamentais para o entendimento de seu pensamento. Dentre as reflexões oferecidas por Highway, é central para o texto a ideia de que o aprendizado de novas línguas significa, diretamente, melhor capacidade de compreensão de novas culturas de uma maneira transformadora. Tal qual o oferecido por Highway ao longo de sua palestra, é justamente na possibilidade de reflexão acerca de nosso papel como sujeitos em um universo plural de linguagens e culturas que reside a abertura de uma grande janela para o reconhecimento e desconstrução das padronizações e tradições limitadoras do mundo ao nosso redor e, consecutivamente, de nós mesmos.

Como é comum nas falas de Highway, a irreverência e a pouca formalidade são a tônica de seu discurso nesta palestra. A primeira parte do texto é iniciada com a narração de sua gênese e com a explicação geográfica do local de seu nascimento. Four Corners é a parcela de território onde o autor explica ter nascido e crescido. Tal território - o encontro geográfico das províncias de Manitoba e Saskatchewan e dos territórios compreendidos como Noroeste e Nunavut - é uma criação, de acordo com Highway, bastante recente, especialmente por Nunavut ter passado a existir somente a partir de 1999. É a partir de uma geografia desafiadora que Highway sugere que um conceito íntimo e subjetivo de lugar pode ser utilizado para repensar as fronteiras que separam o mundo de acordo com as linhas imaginárias tradicionais. Fato é - e aqui o conceito do termo “fato” é algo Highwayniano, que beira satiricamente e de forma bem humorada o absurdo e o exagero na narrativa - que o escritor explica ter nascido em uma tenda montada sobre um banco de gelo em meio ao imenso espaço branco do Norte canadense. Nesse espaço que se desenvolve na fala de Highway, as línguas encontram-se como vizinhas de porta em longas distâncias. E cada vizinho é um sujeito dentro de um universo particular, mas que não se limita ao seu próprio lugar. Nessa relação de particularidades, a busca pela não existência de fronteiras se dá na necessidade de aprender a conviver e lidar com o Outro.

A presença da figura do pai nas terras ainda pouco exploradas do Norte canadense surge como uma mí(s)tica elucubração que recupera outra característica das falas de Highway: a conexão com a ancestralidade. Como herança das terras e dos povos nativos, o escritor explica ter nascido com a possibilidade de ser bilíngue, um bilinguismo diferente do popular francês-inglês comum nas terras do Canadá. Deste ponto em diante, Highway passa a explicar o quanto ser criado com a possibilidade de compreensão de mais de uma língua lhe favorece como sujeito plural e na sua relação com o mundo. A característica nômade de sua família lhe ofereceu não somente o acesso às duas línguas dos povos do território no qual nasceu, mas a possibilidade de transitar em territórios vizinhos de línguas tão distintas quanto, por exemplo, o inglês e as línguas árabes. E, como narra o próprio escritor, lá estava ele com seus irmãos, filhos privilegiados de mais de uma língua nativa, incluindo em seu léxico todo o conteúdo da relação direta com o Outro, o que significa bem mais do que apenas um traço fonético, mas, em última instância, uma postura política apontada para a compreensão da diferença e da cultura alheia. A história de Highway, de sua vida e de seu nascimento, é, de acordo com ele mesmo, extraordinária, exatamente como os sujeitos nascidos no Norte: uma gente extraordinária em uma terra extraordinária. O termo extraordinário percorre o geográfico, o mítico, o místico e o cultural, criando não apenas um sujeito igualmente fantástico, mas um conceito amplo para legitimar a tese elaborada por Highway de que é possível que exista sincretismo linguístico sem apagamento identitário.

O extraordinário também é relacionado com a característica sonora do Dene, uma língua que é parte da Terra, que emerge dela e que soa como tal, oferecendo uma espécie de comunhão com cada átomo ao seu redor, bem como é extraordinária a história do Cree, que é, para Highway, a língua mais engraçada do mundo por nascer do riso de um palhaço cósmico, de um trickster. De fato, como o autor explica novamente de uma maneira bem particular, o Cree pode ser uma língua perigosa, já que o potencial hilariante de seu som e de sua velocidade poderiam significar transtornos ao universo do não-nativo e para os poucos preparados para lidar com sua forma.

Além da forma, do som e de determinadas particularidades das línguas nativas, uma questão em especial chama a atenção de Highway no âmbito das grandes diferenças entre determinadas línguas indígenas e as línguas europeias: a questão do gênero. Em sua fala, Highway aponta haver uma espécie de obsessão das línguas europeias (e consecutivamente dos europeus) com a divisão entre o que é masculino e feminino. Entretanto, tal divisão não se dá da mesma forma nas línguas indígenas que o autor utiliza como exemplo. Neste trecho da palestra de Highway, a crítica ao binarismo de gênero fica bastante evidente, já que o escritor utiliza sua fala para desconstruir a ideia de uma deidade ou deus completamente masculino e, assim, oferecer aos signos contidos no feminino a autoridade, a legitimidade ou ainda a possibilidade de existência que os povos não-nativos costumam evitar ou mesmo extirpar com a utilização da linguagem.

Ao contrário do que é apresentado na dicotomia tradicional entre o masculino e o feminino, Highway explica haver nas línguas aborígenes com as quais ele possui alguma intimidade uma divisão balizada pela relação entre o que é animado e o que é inanimado. Neste caso, a hierarquia piramidal de gênero, na qual existe um deus masculino no topo, seguido pelo conceito de Masculino que define o próprio deus, um masculino humano e, somente então, o feminino e o neutro na base da linguagem e do pensamento, é contestada ao ser confrontada com a ideia de que existe uma estrutura iônica e circular que permite que a mulher, por estar no reino do que é animado - por possuir alma, assuma um papel de deidade. Considerando que todos os seres vivos possuem alma e que, assim, todos estão no mesmo patamar cósmico de importância, a superestrutura fálica dos modelos ocidentais é desconstruída para dar lugar ao espaço em que árvores, animais, masculino e feminino estão conectados. Neste sentido, a partir do modelo aceito na maneira como os povos nativos em questão organizam sua linguagem e seu pensamento, fica evidente a lacuna que concebe outras instâncias entre os dois opostos da trivial dualidade masculino e feminino. De acordo com Highway, quando há espaço para mais dúzias e dúzias de acepções de gênero entre um de seus extremos e o outro, torna-se possível evitar violências como a sofrida por Helen Betty Osborne, mulher Cree assassinada com cinquenta e seis golpes de chave de fenda em sua vagina.

Em termos linguísticos, como não há espaço para a partícula que define o gênero do sujeito e do objeto nas línguas nativas que Highway usa como exemplo, mas sim uma partícula (ana no exemplo utilizado na sua fala) para derivar animado e inanimado, o mundo é organizado entre o que está vivo ou morto, ou seja, com ou sem alma. E como a alma não encontra um céu ou inferno após deixar o corpo, há espaço para transformação, espaço para comunhão e comunicação com tudo que está ao seu redor, não deixando de pertencer nunca ao círculo atômico de equidade existencial. Ainda assim, Highway alerta para o fato - talvez aqui de maneira um pouco menos Highwayniana ou menos bem humorada e não tão exagerada - de que o Cree é uma língua que pode não durar tanto quanto o inglês e que esta segunda, língua franca e de expressão gigantesca, continuará a organizar o mundo de forma binária. A partir deste ponto de sua palestra, Highway discorre sobre a ideia de que falar apenas uma língua é algo como viver em uma casa com apenas uma janela, é algo como a resignação ao que é dado naturalmente sem importar-se com a necessidade de compreender o que existe em outras janelas e em centenas de possibilidades de outras perspectivas no universo conhecido.

De volta ao passado, Highway discorre sobre seu primeiro contato com outras línguas não-nativas, em especial o latim aprendido durante sua infância como coroinha nas missas das residential schools, escolas tipicamente católicas encontradas nas reservas indígenas canadenses. Se por um lado Highway faz parecer que o contato com o latim em um ambiente permeado pela colonização do catolicismo é algo negativo, por outro explica irreverentemente que as línguas latinas lhe dão muito prazer e que, por fim, foram responsáveis por algumas das janelas abertas para o entendimento de outros universos. Na reminiscência de sua jornada pelas línguas e linguagens, o escritor conta como se deu o aprendizado de inglês em uma comunidade onde tal língua não era materna. Neste caso, Highway narra o sentimento de humilhação ao ser exposto ao seio de uma comunidade na qual havia pouco espaço para o diferente e para qualquer marca linguística que destoasse do aspecto geral da fala dos sujeitos daquele contexto.

Todavia, não é no inglês que Highway descobre o que considera a verdadeira língua universal, mas sim na música. Como terceira geração de uma família de bons músicos, Highway descreve seu aprendizado musical como árduo, já que foi necessário muito esforço para que fosse possível tornar-se fluente. É justamente com a música, o autor explica, que suas peças podem ser compreendidas em qualquer lugar em que são apresentadas. Apesar de existirem determinadas formalidades para a maneira como a música pode ser lida, a existência de uma espécie de coloração (em um sentido sinestésico) em cada acorde e a sensação causada por uma determinada estrutura rítmica ou harmônica são fatores definitivos para que, mesmo que sem compreensão formal de uma música, qualquer sujeito possa dialogar com ela.

Assim como a música, todas as línguas possuem um sotaque peculiar e, de acordo com Highway, dominar tal sotaque não é tarefa fácil. Neste momento de seu discurso durante a palestra, o escritor tece uma crítica bastante sutil ao modo como algumas culturas são incapazes de aceitar a diferença dentro de uma mesma derivação linguística. O sotaque, nestes casos, pode ser visto com desprezo e tratado com rechaço. Em uma análise superficial, é possível compreender a crítica de Highway aos franceses e sua incapacidade de perceber que a maior parte das pessoas não-francesas dificilmente serão capazes de falar francês com o exato sotaque dos nativos franceses como uma denúncia da intolerância máxima entre os povos, que se dá através dos mínimos detalhes, e faz deles uma barreira para a possibilidade de compreensão e aceitação do Outro. Enquanto aprendiz e estudante de francês, tal qual como previamente comentado sobre a língua inglesa, Highway relata suas dificuldades e seus traumas e fala sobre o amor dos franceses por sua própria língua, o que, de alguma maneira, funciona negativamente como uma venda, uma espécie de cortina de fumaça que os separa de outras línguas e lhes confere uma característica unilíngue e solitária.

Por fim, ao concluir seu pensamento na palestra, Highway oferece a ideia de que, assim como todas outras línguas, música é som, sonoridade, vibração e frequências, bem como signos e símbolos que podem ser compartilhados. Desta maneira, compreendendo a importância do conhecimento de outras línguas e, consecutivamente, de outras perspectivas emergentes do ventre de cada uma delas, o escritor pede para que os pais ou cuidadores ofereçam aos seus filhos a possibilidade de conhecer a linguagem musical e a maior quantidade possível de outras línguas, não apenas como um exercício de entendimento do mundo, mas como forma de compreensão de si mesmo, de suas capacidades e de sua própria intimidade. Encerrando sua fala, Highway, servindo-se de seu próprio exemplo, explica que falar apenas uma língua é algo como uma prepotente imposição de um único universo. Desta forma, oferecer aos filhos e ao mundo o conhecimento de muitas línguas é o melhor presente possível em um contexto de necessidade de entendimento e de respeito de pluralidades.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2017

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2016
  • Aceito
    18 Out 2016
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