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Análise cultural-midiática como protocolo teórico-metodológico de pesquisas em comunicação1

Análisis cultural-mediática como protocolo teórico-metodológico de investigaciones en comunicación

Resumo

O objetivo deste artigo é explorar as características e potencialidades da análise cultural-midiática como protocolo teórico-metodológico de pesquisas em comunicação. Para isso, recorremos aos Estudos Culturais, em especial à análise cultural, para demonstrar possíveis apropriações de estudos de comunicação. Elucidamos com aplicações e testagens metodológicas em dissertações de mestrado, as quais encontraram neste protocolo uma possibilidade de exercer pesquisas com profundidade crítica e densidade contextual. Como contribuição, este trabalho se propõe a elucidar um conceito de análise cultural-midiática a fim de que tal metodologia se torne ainda mais acessível e contribua para qualificar o processo investigativo na área da comunicação.

Palavras-chave
Comunicação; Estudos Culturais; Metodologia; Protocolo de pesquisa; Análise Cultural-Midiática

Resumen

El objetivo de este artículo es explorar las características y potencialidades del análisis cultural-mediática como protocolo teórico-metodológico de investigaciones en comunicación. Para eso, recurrimos a los Estudios Culturales, en especial al análisis cultural, para demostrar posibles apropiaciones de estudios de comunicación. Ejemplificamos con aplicaciones y testamentos metodológicos en disertaciones de maestría, las cuales encontraron en este protocolo una posibilidad de realizar investigaciones con profundidad crítica y densidad contextual. Como contribución, este trabajo se propone aclarar un concepto para el análisis cultural-mediática a fin de que tal metodología sea aún más accesible y contribuya a calificar el proceso investigativo en el área de la comunicación.

Palabras clave
Comunicación; Estudios Culturales; Metodología; Protocolo de búsqueda; Análisis Cultural-Mediática

Abstract

The purpose of this paper is to explore the characteristics and potentialities of the cultural-mediatic analysis as a theoretical-methodological protocol of communication researches. In order to do this, we turn to Cultural Studies, especially to cultural analysis, to demonstrate possible appropriations of communication studies. We elucidate with applications and methodological tests in master’s degree dissertations, which found in this protocol a possibility to carry out research with critical depth and contextual density. As a contribution, this paper proposes to clarify a concept for cultural-mediatic analysis in order that such methodology becomes even more accessible and contributes to qualify the investigative process in the area of communication.

Keywords
Communication; Cultural Studies; Methodology; Research protocol; Cultural-Mediatic Analysis

Considerações Iniciais

Explorar diferentes possibilidades metodológicas na área da Comunicação é uma forma de encontrar novos percursos, que permitam dar conta de objetos midiáticos cada vez mais complexos e heterogêneos. Essa diversidade demanda maior abertura teórica e profundidade crítica para que as análises não se tornem superficiais e repetitivas e contribuam, de fato, para o avanço na compreensão de como os variados meios de comunicação social e as mídias contemporâneas estão imersas e articulam-se ao cotidiano vivido.

Nesse sentido, o objetivo deste artigo é explorar as características e potencialidades da análise cultural-midiática como protocolo teórico-metodológico de pesquisas em comunicação. A partir dos pressupostos teóricos dos Estudos Culturais, buscamos evidenciar como a análise cultural, proposta por Raymond Williams, pode ser aplicada para os estudos de mídia. Com a gênese no conceito de materialismo cultural (WILLIAMS, 1979WILLIAMS, R. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.), tal protocolo permite uma rica investigação contextual, trazendo à tona aspectos políticos, econômicos e sociais do período de produção dos objetos em análise, os quais demonstram a influência e a interdependência da mídia em relação às demais instâncias da sociedade.

A fim de evidenciar como tal protocolo pode ser aplicado na prática, apresentamos cases de três dissertações de mestrado de autoria de membros do Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Audiovisualidades da Universidade Federal de Santa Maria, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação, as quais encontraram na análise cultural-midiática a possibilidade de exercer um estudo com criticidade e densidade contextual por meio do desenvolvimento de um percurso metodológico autoral. Como contribuição, este trabalho propõe, ainda, através de revisão bibliográfica e apresentação de protocolos teórico-metodológicos baseados em textos clássicos dos Estudos Culturais, elucidar um conceito para a metodologia, a fim de qualificar o desenvolvimento epistemológico do processo investigativo em estudo.

Os Estudos Culturais como perspectiva epistêmica

Os Estudos Culturais surgem em um período pós 2ª Guerra Mundial, de grande crise política e econômica, em que a Europa passava por profundas transformações e temas como cultura, indústria, arte e democracia começavam a permear os meios de comunicação, já que há uma grande ênfase na chamada indústria cultural. Nesse momento, emergem, na Inglaterra, os Estudos Culturais: com um viés político, tentando compreender a cultura através dos movimentos sociais da época, e sob um ponto de vista teórico, buscando construir uma nova perspectiva de caráter interdisciplinar.

Historicamente, a origem dos Estudos Culturais está entrelaçada com a trajetória da New Left, de movimentos sindicais, da educação de jovens e adultos, de publicações alinhadas com a militância política e do compromisso com mudanças sociais radicais. Segundo Escosteguy (2010)ESCOSTEGUY, A. C. Cartografia dos estudos culturais: uma versão latino-americana. Belo Horizonte: Autêntica, 2010., o eixo principal de pesquisa estava centrado nas relações entre a cultura contemporânea e a sociedade, com enfoque nas instituições, formas e práticas culturais. Para a autora, o ponto de partida dos estudos recai sobre as estruturas sociais e o contexto histórico como elementos essenciais para compreender a ação dos meios massivos e o deslocamento da ideia elitista de cultura em direção a suas práticas cotidianas. Assim, através da abertura e da interdisciplinaridade teórica, os Estudos Culturais tematizam e investigam a cultura popular, especialmente sob seu viés político. Nesse sentido, posiciona-se contrário a qualquer tentativa de institucionalização ou codificação, visto que suas reações poderiam ser paralisadas diante de estruturas rígidas e pré-definidas (ESCOSTEGUY, 2010ESCOSTEGUY, A. C. Cartografia dos estudos culturais: uma versão latino-americana. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.).

Dessa forma, por ser um grupo de intelectuais que se preocupavam com as classes populares e se contrapunham ao capitalismo e à dominação cultural, este movimento aproximou-se do marxismo. Entretanto, essa relação se desenvolve através da crítica cultural em relação ao reducionismo e economicismo marxista. Assim, para contrapor o materialismo econômico de Marx, Williams (1992)WILLIAMS, R. Cultura. Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. influencia de modo significativo o projeto dos Estudos Culturais ao cunhar o termo materialismo cultural. Para o autor, as práticas culturais devem ser entendidas como práticas reais, elementos de um processo social material, com intenções e condições específicas. Ou seja, através de uma revolução do marxismo clássico, os Estudos Culturais passam a defender que a cultura não é um campo autônomo nem externamente determinado, mas um local de diferenças e lutas sociais. Isso significa que não pode ser explicada e determinada apenas por uma dimensão econômica, já que a sociedade é um todo complexo e são vários os fatores que a compõem.

A partir desse princípio, Williams (1992)WILLIAMS, R. Cultura. Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. defendeu que a dominação em uma sociedade não se dá apenas a partir da propriedade e do poder. A cultura do vivido também exerce influência na nossa forma de pensar e sentir através de suas pressões e limites que promovem a (re)produção de uma ordem social profundamente arraigada. Dessa percepção, decorre a necessidade de se estudar a cultura não só como produto, mas, também, como produção material que articula de forma concreta a dinâmica da totalidade social. Por esse motivo, o referido autor criticou a proposição de Marx de que a sociedade seria composta por duas esferas fixas e separadas: a infraestrutura, que representaria a base social real, e a superestrutura, composta pelos processos intelectuais, políticos e sociais. Para o materialismo econômico, a economia determinaria a consciência dos homens, os quais estariam alienados do processo produtivo. Ao propor o materialismo cultural, Williams (1979)WILLIAMS, R. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. considera que a cultura também deve ser vista como uma prática social real e material com consequências concretas para os sujeitos, os quais passam a ser entendidos enquanto agentes sociais ativos, responsáveis pelas lutas sociais. Assim, a cultura não é determinada por uma base econômica, mas está em constante relação e tensionamento com as demais forças da sociedade.

Tal posição teórico-política via no estudo da cultura a porta de entrada para uma crítica comprometida, que visa entender o funcionamento da sociedade com o objetivo de transformá-la. A totalidade cultural, portanto, passa ser o objeto de análise, buscando evidenciar as complexas relações das instituições e formas culturais com as relações sociais estabelecidas entre os sujeitos. “O foco central recai sobre a cultura, pensada como força produtiva a partir do que é efetivamente vivido pelos sujeitos” (MORAES, 2015MORAES, A. L. C A análise cultural. In: 24º ENCONTRO DA COMPÓS, Brasília, 9 a 17 de junho de 2015. Disponível em: http://www.compos.org.br/biblioteca/compos-2015-4df33669-bb03-4c83-92ab-62fbe023bb30_2825.pdf. Acesso em: 26 jan. 2018. Anais....
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, p. 3).

Assim, rompe com as concepções passivas e indiferenciadas de público, partindo para a análise dos modos como as mensagens são decodificadas pelos diferentes receptores, conforme o contexto social e político (HALL, 2003aHALL, S. Estudos Culturais e seu Legado Teórico. In: HALL, S.; SOVIK, L. Da diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: Humanitas, 2003a.). Tal perspectiva passa a defender que, no âmbito popular, não existe somente submissão, mas, também, há espaço para resistência e intervenção social.

A própria visão sobre os meios de comunicação de massa sofre um deslocamento profundo, já que não são vistos como meros reprodutores da estabilidade social, uma vez que também se adaptam às pressões da sociedade, integrando-as ao próprio sistema cultural, constituindo-se como modos de produção. Desse modo, o massivo deixa de ser o lugar da manipulação para transformar-se em um espaço de conflito e negociação de formações sociais de poder, atravessadas por tensões relativas à classe, gênero, raça e sexualidade. Os Estudos Culturais compreendem os meios de comunicação de massa como produtores culturais, agindo de forma dinâmica e ativa na construção e consolidação de ideologias e hegemonias. A partir de suas estruturas, sustentam, atualizam e reproduzem a estabilidade social e cultural.

Levando em consideração tais pressupostos teóricos, iremos, no próximo tópico, percorrer os caminhos da análise cultural enquanto um procedimento que atenta para as conjunções estruturais e demandas localizadas, comprometendo-se com uma prática contextual, complexa e oposta a qualquer tipo de reducionismo (MORAES, 2015MORAES, A. L. C A análise cultural. In: 24º ENCONTRO DA COMPÓS, Brasília, 9 a 17 de junho de 2015. Disponível em: http://www.compos.org.br/biblioteca/compos-2015-4df33669-bb03-4c83-92ab-62fbe023bb30_2825.pdf. Acesso em: 26 jan. 2018. Anais....
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). A análise tem como objetivo descobrir a natureza da organização que constitui o complexo das relações sociais, revelando identidades e correspondências, bem como descontinuidades. Dessa forma, exploraremos como essa metodologia pode ser apropriada para o estudo da mídia, colocando-os, de forma crítica, imersos no todo social, em relação permanente com questões sociais, econômicas e políticas.

Análise cultural-midiática: um protocolo de análise para a comunicação

Na teoria cultural desenvolvida por Williams (1979)WILLIAMS, R. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979., alguns eixos centrais explicitam as bases epistemológicas sobre as quais são desenvolvidos os percursos metodológicos que têm na cultura seu ponto principal de investigação. Neste artigo, referenciamos a principalmente dois deles por serem os mais utilizados nos trabalhos desenvolvidos pelo Grupo de Pesquisa. A primeira noção, a de tradição seletiva, promove um deslocamento do conceito de tradição, como segmento inerte historicizado, para compreendê-lo como uma versão intencionalmente escolhida de um passado modelador, perpetuada pelas pressões e limites hegemônicos. O segundo conceito apresentado da teoria cultural é o de estrutura de sentimento, que torna claras as dimensões residuais, emergentes e dominantes que coexistem na sociedade, as quais conferem ao processo social um caráter dinâmico, contestatório e variável.

Nesse sentido, para compreender as aplicações teórico-metodológicas, torna-se fundamental analisar o conceito de cultura. De acordo com Williams (1992, p. 11), ela compreende sentidos diversos,

[...] desde um estado mental desenvolvido – como em “pessoa de cultura”, “pessoa culta”, passando pelos processos desse desenvolvimento – como em “interesses culturais”, “atividades culturais”, até os meios desses processos – como em cultura considerada como as artes e o trabalho intelectual do homem. Em nossa época é o sentido geral mais comum, embora todos eles sejam usuais. Ele coexiste com o uso antropológico e o amplo uso sociológico para indicar “modo de vida global” de determinado povo ou de algum outro grupo social.

Com base nesse entendimento, Williams (2003)WILLIAMS, R. La larga revolución. 1. ed. Buenos Aires: Nueva Visión, 2003. apresenta três níveis de cultura: Cultura vivida, que é presencial; Cultura registrada, que são as obras de arte, vídeos, documentos, entre outros; e, por último, a Cultura da tradição seletiva, que funciona como um mecanismo de resgate e incorporação de práticas do passado no presente. Com o passar dos anos e a morte das pessoas da geração passada, a cultura vivida, aos poucos, torna-se cultura registrada, deixando apenas alguns de seus resquícios na geração atual. A partir disso, a cultura da tradição seletiva estabelece uma cultura e também um registro histórico de uma sociedade específica, assim como cria a rejeição de “zonas consideráveis” da antiga geração. Esta seleção é determinada por diversos interesses, como, por exemplo, os de classe e gênero. Cabe destacar, então, que pensar apenas nas características de um grupo dominante de um determinado período pode ser um problema, já que se pode ignorar parte do processo histórico, caráter social do momento e atividade de diferentes classes, fatores não considerados ao observar o grupo dominante. O estudo dessa tradição exige um olhar crítico, já que envolve principalmente uma análise cognitiva a partir de tudo que se sabe sobre ela, ou seja, “no sólo es una selección sino también una interpretación” (WILLIAMS, 2003WILLIAMS, R. La larga revolución. 1. ed. Buenos Aires: Nueva Visión, 2003., p. 61).

A cultura de um determinado período é descrita por Williams (2003)WILLIAMS, R. La larga revolución. 1. ed. Buenos Aires: Nueva Visión, 2003. através do conceito de “estrutura de sentimento”, ou seja, o resultado de todos os elementos reunidos de uma organização geral. Antigas gerações podem repassar o “padrão de cultura” para as novas, mas a “estrutura de sentimento” será diferente, pois esta nova geração lidará com esses dados de uma maneira própria. De acordo com Brennen (2003)BRENNEN, B. Sweat not melodrama: reading the structure of feeling. All the President’s Men. Journalism: Theory, Practice and Criticism, London, v. 4, n. 1, p. 113–131, 2003., metodologicamente, estrutura de sentimento auxilia na compreensão de elementos materiais de uma geração específica, em um determinado período histórico, baseada em um processo de hegemonia. Nesse contexto, Williams (2003)WILLIAMS, R. La larga revolución. 1. ed. Buenos Aires: Nueva Visión, 2003. vislumbrou o conceito de estrutura de sentimento não apenas como uma construção teórica, mas, também, como um método de análise, cujas categorias seriam dominante, residual e emergente. Por dominante, entendem-se os elementos hegemônicos de uma cultura, a partir das relações que se estabelecem em seu interior e de como essas relações predominam umas sobre as outras. Já por residual entende-se que “ao longo do processo histórico, novas práticas sociais emergem, valores, costumes, normas e vivências são substituídos ou mesclados por novas experiências, mas permanecem resquícios e vestígios de características do passado” (MORAES, 2013MORAES, A. L. C. A visibilidade negra na coluna social do jornal Apalavra. Eptic Online, v. 25, n. 3, p. 101-116, set./dez. 2013., p. 105). O residual são aqueles elementos que, ao longo da história, resistiram à cultura dominante e ainda operam no presente, ou seja, são elementos que se formaram no passado, mas seguem ativos no processo cultural atual. Já o emergente resulta da tensão dos aspectos dominantes e residuais, que gradativamente perdem força diante de novas práticas sociais. Ocorre, então, uma fusão entre o novo e o velho, já que há aspectos dominantes e residuais que sobrevivem ao emergente.

Dessa forma, analisar a cultura deve considerar a totalidade social, pois deve objetivar descobrir a natureza da organização que compreende a complexidade das relações sociais (WILLIAMS, 2003WILLIAMS, R. La larga revolución. 1. ed. Buenos Aires: Nueva Visión, 2003.). A fim de analisar o todo social, entende-se, ainda, que as relações devem ser estudadas na sua dinamicidade, uma vez que sua organização mutável permite que sejam observados os diferentes sentidos produzidos entre as atividades sociais e suas inter-relações. Ou seja, a partir da análise cultural como instrumental analítico, é possível observar e descrever tais inter-relações que têm significado nas práticas sociais. Daí vem o sentido de cultura como ordinária, que, conforme Williams (2003)WILLIAMS, R. La larga revolución. 1. ed. Buenos Aires: Nueva Visión, 2003., remete a algo que é comum e está em toda parte. A cultura é sempre contextualizada, na medida em que é uma prática social que se dá entre pessoas em situações específicas, portanto, com significados específicos que podem variar em diferentes situações sócio-históricas. É, assim, um espaço de dominação, já que as decisões sociais sobre cultura afetam todo um modo de vida e funcionam como uma articulação dos valores que serão privilegiados e dos grupos que terão acesso à produção desses valores em função de seus interesses (CEVASCO, 2001CEVASCO, M. E. Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001.).

Ao ser direcionada para a esfera midiática, a análise cultural permite pensar as relações humanas no contexto de inter-relação com as mídias, as quais ocupam um importante lugar na concepção e ação cultural dos sujeitos. Para Kellner (2001)KELLNER, D. A cultura da mídia. Bauru, SP: EDUSC, 2001. os modelos teóricos e metodológicos dos Estudos Culturais se esforçam para a compreensão das relações mútuas entre economia, política, sociedade, cultura e vida diária. Esses componentes são indissociáveis da teoria social contemporânea, que problematiza as diversas dimensões do meio social frente aos ambientes e processos midiáticos que, ao mesmo tempo, agem como mediadores da cultura, mas também são mediados por ela, articulando assim “ideologias, valores e representações [...] e o modo com que esses fenômenos se inter-relacionam” (KELLNER, 2001KELLNER, D. A cultura da mídia. Bauru, SP: EDUSC, 2001., p. 39).

Levando-se em conta todas essas considerações, é possível partir para a elucidação de um conceito que evidencie, de forma clara e sucinta, as potencialidades da análise cultural-midiática como um protocolo teórico-metodológico de pesquisas na área da Comunicação. Colocando em relação as esferas da produção, circulação e recepção, tal análise compreende que os produtos não existem isoladamente e não devem ser pensados apenas a partir de suas características internas, mas que são, de fato, inteiramente dependentes dos contextos que os abrigam. Nesse sentido, tal metodologia insere os meios de comunicação em um contexto mais amplo, para além de si mesmos, incorporados na complexidade da cultura vivida do período em que foram produzidos, mostrando que o meio cultural em que se encontram é um campo de conflito e negociação de formações sociais de poder atravessado por tensões políticas, históricas, econômicas, sociais, entre outros. Em síntese, a análise cultural-midiática é uma estratégia teórico-metodológica que faz o contexto ganhar protagonismo, revelando bastidores que nem sempre estão explícitos e, por isso mesmo, evidenciam interesses e tensões sociais ocultos responsáveis, muitas vezes, por explicar modelos e padrões sociais vigentes que perpetuam desigualdades e preconceitos. Dessa forma, para que a análise atinja uma profundidade crítica e de caráter político maior, torna-se imprescindível uma visão detalhada e abrangente dos aspectos que compõem o meio social, exigindo que se analise a mídia como elemento integrante da cultura de um período, frutos das suas condições de produção e tensionamentos sociais.

No próximo tópico, como forma de elucidação, iremos explorar as potencialidades da análise cultural-midiática enquanto protocolo teórico-metodológico em pesquisas da comunicação, a partir de três aplicações realizadas em 2015 e 2016 em dissertações de mestrado desenvolvidas por membros do Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Audiovisualidades da Universidade Federal de Santa Maria - RS.

Aplicações do protocolo de análise cultural-midiática em pesquisas comunicacionais

Com bases epistêmicas nos Estudos Culturais e metodológicas no materialismo cultural, a análise cultural-midiática vem sendo utilizada, de forma sistemática, como um protocolo investigativo no Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Audiovisualidades da Universidade Federal de Santa Maria. Na maioria das vezes, os pesquisadores associam, ainda, procedimentos secundários para análise dos objetos investigados, como a análise textual, análise de conteúdo, entre outros, a fim de complementar ou aprofundar um aspecto em específico nas suas pesquisas.

O uso de tal metodologia possibilita a construção de um percurso metodológico autoral, de acordo com os objetivos da pesquisa e as demandas próprias de cada objeto. Cabe destacar, no entanto, que anteriormente alguns protocolos analíticos já foram desenvolvidos com base na análise da cultura e serviram de inspiração para os pesquisadores. Esse processo autoral se torna necessário, pois a simples aplicação de um circuito existente, muitas vezes, não dá conta de responder aos objetivos propostos na pesquisa ou apresenta elementos desnecessários para a questão a ser investigada. É por esse motivo que, para a realização de uma análise cultural-midiática mais aprofundada, opta-se por elaborar um diagrama síntese que reflete as escolhas das estratégias metodológicas próprias, mesmo que com inspiração nos circuitos já existentes, como os de Hall (2003b)HALL, S. Codificação/Decodificação. In: HALL, S.; SOVIK, L. (Orgs.). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG; Brasília: UNESCO, 2003b, p. 387-404., Johnson (2006)JOHNSON, R. O que é, afinal, Estudos Culturais? In: SILVA, T. T. (Org.) O que é, afinal, Estudos Culturais? Belo Horizonte: Autêntica, 2006. e Du Gay et al. (1999)DU GAY, P.; HALL, S.; JANES, L.; MACKAY, H.; NEGUS, K. Doing cultural studies: The story of Sony walkman. London: Sage, 1999.. Os referidos circuitos não valorizam apenas os aspectos de produção do produto, mas, também, o contexto em que está inserido e a sua recepção. Com base nessas propostas, realiza-se uma apropriação particular dos circuitos, selecionando os elementos necessários para a investigação, atentando sempre para a totalidade social presente no período de circulação dos produtos analisados. Considerando a importância dessas criações anteriores, traremos brevemente uma explicação sobre cada um dos mais utilizados pelo Grupo, a fim de elucidar as apropriações feitas.

O ensaio de Hall (2003b)HALL, S. Codificação/Decodificação. In: HALL, S.; SOVIK, L. (Orgs.). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG; Brasília: UNESCO, 2003b, p. 387-404., Encoding/Decoding, originalmente publicado em 1980, traz a ideia central de que um programa de televisão é um discurso significativo codificado no âmbito da produção e decodificado pelos receptores (Figura 1).

Figura 1
Modelo Codificação/Decodificação de Hall

No momento da codificação, atuam as estruturas institucionais dos produtores, incluindo sua infraestrutura técnica, seu conhecimento, suas práticas e rotinas profissionais e a formulação de hipóteses sobre as audiências. Na esfera da decodificação, as audiências também contribuem com a produção de sentidos, compreendendo as mensagens segundo seus referenciais culturais e experiências de vida. Assim, segundo Hall (2003b)HALL, S. Codificação/Decodificação. In: HALL, S.; SOVIK, L. (Orgs.). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG; Brasília: UNESCO, 2003b, p. 387-404., a decodificação da mensagem pode se dar através de três posições de leitura. A dominante, que está de acordo com o ponto de vista do emissor; a negociada, que reconhece as intenções comunicativas, mas não compartilha de todas as ideias propostas; e a leitura de oposição, que é contrária à mensagem emitida. Para o autor, o objetivo desse modelo é dar destaque para os processos de articulação que ocorrem em torno da mensagem, desde a sua origem, as expectativas criadas sobre ela, a interpretação dos leitores e a forma como essa interpretação pode impactar nas etapas de produção de novas mensagens.

Outro circuito utilizado como referência pelo Grupo é o de Johnson (2006)JOHNSON, R. O que é, afinal, Estudos Culturais? In: SILVA, T. T. (Org.) O que é, afinal, Estudos Culturais? Belo Horizonte: Autêntica, 2006., que o elaborou com base na relação entre formas textuais, condições de leitura, condições de produção e culturas vividas (Figura 2).

Figura 2
Circuito de Johnson

No circuito referido, em produção, estão centradas as preocupações com a organização das formas culturais, ou seja, as organizações políticas de cultura, as instituições. Deve ser relacionada com as culturas vividas, isto é, o contexto em que se insere, já que, “as condições de produção incluem não apenas os meios materiais [...], mas um estoque de elementos culturais já existentes, extraídos do reservatório da cultura vivida ou dos campos já públicos de discurso” (JOHNSON, 2006JOHNSON, R. O que é, afinal, Estudos Culturais? In: SILVA, T. T. (Org.) O que é, afinal, Estudos Culturais? Belo Horizonte: Autêntica, 2006., p. 56). Dessa forma, entende-se por cultura vivida o meio social em que se pautam a produção e as leituras. Ou seja, é o entorno do objeto estudado, o contexto em que se produz e se assiste. No texto, está o modo como as formas simbólicas são tratadas para produzir significado. Centram-se aqui as análises textuais, discursivas e outras relacionadas ao produto midiático em si. Estudar o texto, de acordo com Johnson (2006, p. 75)JOHNSON, R. O que é, afinal, Estudos Culturais? In: SILVA, T. T. (Org.) O que é, afinal, Estudos Culturais? Belo Horizonte: Autêntica, 2006., permite identificar os repertórios narrativos básicos que organizam a sociedade, sendo ele “apenas um meio [...], um material bruto a partir do qual certas formas podem ser abstraídas”. Por fim, nas leituras, estão relacionadas as práticas da audiência, é oespaço de produção de sentido. Dessa forma, é impossível desconsiderar suas relações com as estruturas de produção.

A proposta do circuito da cultura de Du Gay et al. (1999)DU GAY, P.; HALL, S.; JANES, L.; MACKAY, H.; NEGUS, K. Doing cultural studies: The story of Sony walkman. London: Sage, 1999. desenvolveu-se a partir do estudo do Walkman como artefato cultural, articulando consumo, produção, regulação, identidade e representação (Figura 3).

Figura 3
Circuito da Cultura de Du Gay et al.

Neste circuito, em produção, são relacionados os processos de concepção de um produto cultural, ou seja, as condições e os meios de produção, até a feitura final do material, incluindo as narrativas associadas a ele. Dessa forma, investigar a produção significa compreender também as crenças, valores e padrões que estão inseridos em um determinado produto. A instância do consumo associa-se diretamente à produção. Este momento está relacionado com a recepção e audiência, a partir das apropriações que o público irá fazer baseado no consumo dos produtos culturais. O grande diferencial deste circuito em relação ao de Johnson (2006)JOHNSON, R. O que é, afinal, Estudos Culturais? In: SILVA, T. T. (Org.) O que é, afinal, Estudos Culturais? Belo Horizonte: Autêntica, 2006. é a instância da regulação, que, corresponde às leis e normas através das quais as práticas sociais são ordenadas e as políticas culturais são implementadas, como legislações para os meios de comunicação. Na instância das representações, observam-se os sentidos produzidos através dos discursos pelos quais é possível construir significados. Esta representação tem por base e traz à tona o contexto social, cultural, político e econômico em que está inserida. É intimamente relacionada às questões de identidade que, por sua vez, é construída no interior das representações, já que é um processo de identificação com o que é exibido, uma vinculação consciente.

É possível perceber através dessa breve explanação a valorização do todo comunicacional nos três circuitos, que exploram elementos desde a produção até o consumo, permitindo com que se compreenda a sua complexidade cultural e inserção social. Entretanto, muitas vezes, ao longo de uma pesquisa, não é possível abarcar igualmente todas as instâncias, trazendo resultados ou análises superficiais quando não aprofundadas como necessário. Dessa forma, destacamos que nos estudos apresentados não há a intenção de abarcar igualmente todos os pontos expostos pelos autores referidos. Além disso, deve ficar claro o posicionamento do Grupo em relação à importância de se considerar as práticas da audiência ao se analisar produtos culturais televisivos, entretanto, reforçamos que a temática principal das pesquisas apresentadas se centra na produção. Com vista disso, trazemos a seguir o exemplo de três dissertações de mestrado2 2 odos os trabalhos elaborados pelo Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Audiovisualidades podem ser acessados na íntegra pelo link http://w3.ufsm.br/estudosculturais/. que buscaram na análise cultural-midiática a possibilidade de realizar um estudo amplo, com profundidade crítica e densidade contextual por meio de um percurso metodológico autoral.

Um dos primeiros trabalhos apresentados nessa perspectiva foi a dissertação intitulada “Análise cultural do telejornalismo local: representação e identidade na RBS TV Santa Rosa”, de autoria de Rossana Zott Enninger (2015)ENNINGER, R. Z. Análise cultural do telejornalismo local: representação e identidade na RBS TV Santa Rosa. 2015. 199p. Dissertação, Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2015., que teve como objetivo realizar uma análise cultural do Jornal do Almoço (JA)3 3 Telejornal exibido ao meio-dia pela RBS TV, emissora afiliada da Rede Globo no Rio Grande do Sul. da RBS TV Santa Rosa, identificando de que modo a identidade regional é construída no telejornalismo local. Para isso, tendo como base metodológica o circuito da cultura de Du Gay et al. (1999)DU GAY, P.; HALL, S.; JANES, L.; MACKAY, H.; NEGUS, K. Doing cultural studies: The story of Sony walkman. London: Sage, 1999., Enninger (2015)ENNINGER, R. Z. Análise cultural do telejornalismo local: representação e identidade na RBS TV Santa Rosa. 2015. 199p. Dissertação, Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2015. procurou contemplar as instâncias da produção, regulação, consumo, identidade e representação (Figura 4).

Figura 4
Protocolo analítico de Enninger

O detalhamento da produção foi feito através da análise de conteúdo e análise textual de cada uma das edições selecionadas. A análise de conteúdo teve como categorias: data de exibição, duração, formato, assunto, editoria e município de referência. Já a análise textual considerou os sujeitos e interações, textos verbais e as cenas do telejornal. Para a análise do consumo, o trabalho trouxe os resultados de dados de audiência do telejornal e realizou uma pesquisa com espectadores através do Google Forms, contendo 17 perguntas, abertas e fechadas, sobre o perfil do assistente e o modo como consome o JA. A dimensão da regulação foi estudada com base nas normas internas da RBS TV e do próprio Jornal do Almoço. Para dar conta dos eixos de identidade e representação, a autora buscou dados a partir do contexto enunciativo fundamentado por meio de ficha técnica documental, em que buscou conhecer o contexto dos municípios nos quais a programação é transmitida, através dos aspectos políticos, econômicos, sociais, culturais e históricos. Pela análise, a pesquisadora concluiu que o Jornal do Almoço prega a aproximação de uma identidade regional; contudo, as identidades individuais ou de grupos ainda não estão ali representadas de forma a caracterizar a região e os seus 69 municípios.

O que se observou, a partir das primeiras pesquisas, exemplificadas, aqui, através do estudo de Enninger (2015)ENNINGER, R. Z. Análise cultural do telejornalismo local: representação e identidade na RBS TV Santa Rosa. 2015. 199p. Dissertação, Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2015., foi que os circuitos, da forma como estavam postos, não dariam conta da efetiva complexidade dos estudos realizados e nem refletiriam a real proposta a ser desenvolvida. Essa percepção fez com que se repensasse as suas utilizações, para que servissem como uma inspiração para o desenvolvimento de processos mais autorais, que, de fato, demonstrassem as escolhas das estratégias metodológicas próprias. Com base nessas propostas, os trabalhos seguintes já irão realizar uma apropriação particular dos circuitos, selecionando os elementos necessários para a investigação, atentando para a totalidade social presente no período de circulação dos produtos analisados.

No ano de 2016, a dissertação intitulada “Identidade feminina gaúcha: representações de gênero nos programas regionais Bah!”, de autoria de Mariana Henriques (2016)HENRIQUES, M. N. Identidade feminina gaúcha: representações de gênero nos programas regionais Bah!. 2016. 139p. Dissertação, Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2016., buscou problematizar quais sentidos sobre a identidade da mulher gaúcha são mobilizados pela RBS TV, a partir dos especiais “Bah!”, uma série de programas comemorativos à Revolução Farroupilha. Para isso, por meio da elaboração de um modelo metodológico próprio, com inspiração nos circuitos de Johnson (2006)JOHNSON, R. O que é, afinal, Estudos Culturais? In: SILVA, T. T. (Org.) O que é, afinal, Estudos Culturais? Belo Horizonte: Autêntica, 2006. e Du Gay et al. (1999)DU GAY, P.; HALL, S.; JANES, L.; MACKAY, H.; NEGUS, K. Doing cultural studies: The story of Sony walkman. London: Sage, 1999., a autora realizou uma análise cultural-midiática para observar o objeto através de três grandes instâncias: o fazer televisivo, os produtos textuais e o contexto em que estava inserido (Figura 5).

Figura 5
Protocolo analítico de Henriques

Assim, para dar conta do fazer televisivo, buscou, através de pesquisa exploratória, informações sobre regulação televisiva, normas institucionais da RBS TV e o seu modus operandi, entendendo a submissão da referida emissora em relação à Rede Globo e seu histórico, desde a década de 1970, de produções que buscam fortalecer a regionalização e reforçar uma identidade gaúcha. As formas textuais foram contempladas através da análise textual de Casetti e Chio (1999)CASETTI, F.; CHIO, F. Análisis de la televisión: instrumentos, métodos y prácticas de investigación. Barcelona: Paidós, 1999., com base nas categorias história, cena, sujeito e texto verbal. O contexto foi observado com base nas estruturas de sentimento em relação a aspectos sociais, históricos, culturais e identitários. Junto a isso, foi incluída a dimensão política para dar visibilidade às questões de gênero, foram, então, apresentados dados demográficos, legislações, políticas públicas, indíces de violência, entre outros. Por fim, a pesquisadora realizou uma análise de conteúdo com base em Bardin (2002)BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2002., a fim de elencar os principais sentidos acionados pelo programa. Da pesquisa, Henriques (2016)HENRIQUES, M. N. Identidade feminina gaúcha: representações de gênero nos programas regionais Bah!. 2016. 139p. Dissertação, Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2016. inferiu que os três principais sentidos construídos pela emissora em relação à identidade feminina são ocultamento, objetificação e masculinização, características essas que formam uma identidade feminina estereotipada. Além disso, também destacou que os especiais atuam na intenção de perpetuar uma identidade hegemônica e masculina, transmitindo uma falsa ideia de empoderamento feminino, na busca por gerar audiência e reconhecimento.

Ao longo do desenvolvimento desta segunda fase de pesquisas, tornou-se evidente, também, a necessidade de tensionar as análises através de categorias mais amplas. Assim, os estudos mais atuais do GP retomam e aprofundam os elementos da teoria marxista, pelo viés de Williams (1979)WILLIAMS, R. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.. Esses conceitos começam a fazer parte dos estudos desenvolvidos como grandes categorias analíticas ou como tensionadores dos resultados obtidos, fazendo a intersecção do produto midiático com os aspectos da sociedade contemporânea. Desses eixos, cada pesquisador elenca aquele ou aqueles que se encaixam ao tema estudado, auxiliando no desenvolvimento do estudo e na obtenção de respostas para o problema de pesquisa.

A dissertação de Lauren Santos Steffen (2016)STEFFEN, L. S. Relações e tensões em campo: tipificações e cultura vivida na série especial do Jornal Nacional com os jogadores da Seleção Brasileira. 2016. 175p. Dissertação, Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2016. já se insere nessa lógica ao analisar a temática do telejornalismo esportivo a partir das categorias analíticas de cultura vivida e de tipificação. Com a pesquisa “Relações e tensões em campo: tipificações e cultura vivida na série especial do Jornal Nacional com os jogadores da Seleção Brasileira”, a autora objetivou problematizar as tensões e relações entre as tipificações dos jogadores de futebol, construídas através da série especial com os jogadores da Seleção no Jornal Nacional, e os elementos presentes na cultura vivida, a partir do contexto político, econômico e social. Para isso, Steffen (2016)STEFFEN, L. S. Relações e tensões em campo: tipificações e cultura vivida na série especial do Jornal Nacional com os jogadores da Seleção Brasileira. 2016. 175p. Dissertação, Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2016. elaborou uma proposta de análise cultural-midiática do telejornalismo esportivo, inspirada em Du Gay et al. (1999)DU GAY, P.; HALL, S.; JANES, L.; MACKAY, H.; NEGUS, K. Doing cultural studies: The story of Sony walkman. London: Sage, 1999. e Johnson (2006)JOHNSON, R. O que é, afinal, Estudos Culturais? In: SILVA, T. T. (Org.) O que é, afinal, Estudos Culturais? Belo Horizonte: Autêntica, 2006., dando foco a esferas dinâmicas e interdependentes da cultura vivida: a economia, a política, a sociedade e o telejornalismo esportivo. Essas esferas foram descritas na pesquisa a partir de informações obtidas na mídia, de resultados encontrados em pesquisas acadêmicas e de dados disponibilizados em sites de órgãos oficiais e entidades não-governamentais relacionados a telejornalismo esportivo e a futebol. Por fim, para mapear as tipificações construídas nas histórias de vida na série, a pesquisadora utilizou a análise textual de Casetti e Chio (1999)CASETTI, F.; CHIO, F. Análisis de la televisión: instrumentos, métodos y prácticas de investigación. Barcelona: Paidós, 1999., levando em conta as categorias de história e de sujeitos e interações (Figura 6). Como recorte, Steffen (2016)STEFFEN, L. S. Relações e tensões em campo: tipificações e cultura vivida na série especial do Jornal Nacional com os jogadores da Seleção Brasileira. 2016. 175p. Dissertação, Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2016. selecionou as histórias de vida de três jogadores de futebol retratadas na série para análise: Daniel Alves, Maxwell e Victor.

Figura 6
Protocolo analítico de Steffen

Como resultados, foi possível chegar a três tipificações de jogadores representadas na série: o tipo pobre, caracterizado como hegemônico e representativo da maioria desses atletas, o qual é destacado na série; o tipo graduado, representado na série unicamente através de um jogador, ao qual é feita uma concessão na série, e, por fim, o tipo rico, representado também por um único atleta, o qual é representado de forma atenuada. Os tipos graduado e rico, por se tratarem de casos raros no esporte, são tidos como representações contra-hegemônicas por desafiarem o padrão narrativo de tais histórias. Assim, a autora concluiu que, ao buscar evidenciar o protagonismo dos jogadores de futebol, colocando-os como personagens principais da série, a emissora e o telejornal cumpriram apenas com uma tarefa mercadológica, na tentativa de ganhar audiência e gerar identificação através de uma representação ilusória e homogênea. A pesquisa demonstra que esse falso protagonismo encobre inúmeras situações problemáticas, transmitindo a ideia de que se valoriza e representa todos os jogadores de futebol, sem levar em conta a diversidade e a pluralidade de suas histórias de vida. Logo, a série não coloca em discussão novas representações, que poderiam levar a construções mais complexas sobre a identidade do jogador de futebol no Brasil.

Considerações finais

A motivação principal desse artigo foi demonstrar como a análise cultural-midiática pode ser utilizada como possibilidade metodológica em pesquisas da área da Comunicação, a fim de que mais pesquisadores se apropriem de tal protocolo analítico e usufruam de sua flexibilidade e abrangência. Para isso, apresentamos as bases teóricas dos Estudos Culturais, alicerces de tal recurso analítico, sem as quais se torna infundado e superficial mergulhar em uma análise que tem na cultura seu ponto principal de investigação. A exploração do conceito de materialismo cultural, gênese desse tipo de análise, é imprescindível para que se evidencie a mídia enquanto instituição, processo e prática social material, interligada, mas não subordinada, às demais esferas do todo social.

Os cases de dissertações de mestrado, trazidos nesse artigo como exemplos de aplicações práticas já realizadas, permitem observar a forma como o Grupo se apropriou da metodologia ao longo do tempo. Inicialmente, os trabalhos trouxeram aplicações e adaptações mais diretas dos circuitos. Após essas primeiras aproximações, os pesquisadores passaram a desenvolver apropriações cada vez mais complexas, dinâmicas e autorais dos modelos existentes, conforme os objetivos de cada pesquisa e as necessidades suscitadas pelos objetos empíricos. Assim, é perceptível uma evolução gradual do uso da metodologia, na medida em que houve um contato maior com a teoria, o que trouxe aprofundamento e autonomia para a elaboração dos percursos de cada pesquisador.

Os trabalhos apresentados demonstram, ainda, a capacidade dessa estratégia metodológica em ser aplicada aos mais variados objetos, desde programas televisivos regionais a nacionais, adaptando-se ainda a uma gama diversa de temáticas, como o regionalismo e o telejornalismo esportivo. Tal versatilidade mostra o potencial de utilização aos mais diferentes contextos e suportes midiáticos, desde os meios tradicionais e hegemônicos, até as novas mídias e formatos alternativos, o que evidencia o quanto os limites de pesquisa ainda podem ser ampliados e explorados. A possibilidade de se elaborar um percurso próprio demonstra a autonomia do pesquisador para se apropriar dos protocolos já existentes, selecionando os elementos convenientes e aprofundando as esferas necessárias à investigação.

Por fim, a contribuição desse artigo também envolveu a elucidação de um conceito para a análise cultural-midiática, a fim de tornar a metodologia ainda mais acessível e consolidada na área da comunicação. Assim, esperamos que essa proposição, de base epistêmica nos Estudos Culturais, possa ser explorada em novas pesquisas e que outros grupos possam se voltar para seu estudo, explorando caminhos que levem, cada vez mais, à densidade contextual e ao aprofundamento crítico dos produtos midiáticos analisados.

  • 1
    Este trabalho foi apresentado ao Grupo de Trabalho Epistemologia da Comunicação do XXVII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte - MG, 5 a 8 de junho de 2018. Agradecemos as contribuições do professor José Luiz Braga, as quais foram contempladas na elaboração final deste artigo.
  • 2
    odos os trabalhos elaborados pelo Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Audiovisualidades podem ser acessados na íntegra pelo link http://w3.ufsm.br/estudosculturais/.
  • 3
    Telejornal exibido ao meio-dia pela RBS TV, emissora afiliada da Rede Globo no Rio Grande do Sul.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    15 Out 2018
  • Aceito
    03 Jun 2020
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