Acessibilidade / Reportar erro

Glomerulonefrite membranoproliferativa: classificação histopatológica atual, perfil clínico e desfechos renais

Resumo

Introdução:

Glomerulonefrite membranoproliferativa (GNMP) é uma doença glomerular rara com prognóstico variável. Recentemente, foi proposta uma nova classificação baseada na presença ou ausência de imunoglobulinas e depósitos de complemento na microscopia de imunofluorescência (IF) da biópsia renal. Os objetivos do estudo foram determinar e comparar as características clínicas, laboratoriais e histopatológicas daqueles com GNMP primária ou secundária, reclassificar as primárias com base em achados da IF e avaliar os desfechos renais.

Métodos:

Este foi um estudo de coorte observacional retrospectivo realizado em centro único (UNIFESP), com base nos dados coletados de prontuários de pacientes acompanhados de 1996 a 2019.

Resultados:

Dos 53 casos de GNMP, 36 (67,9%) foram classificados como GNMP primária e 17 (32,1%) como GNMP secundária. A maioria dos pacientes era hipertensa (84,9%) e apresentava edema (88,7%) e anemia (84,9%); 33 (91,7%) pacientes classificados como GNMP primária foram reclassificados como mediados por imunocomplexo e 3 (8,3%) como mediados por complemento. O grupo de GNMP secundária apresentou mais frequentemente hematúria (p <0,001) e maior prevalência de depósitos de IgG (p = 0,02) e C1q (p = 0,003). Com relação ao desfecho, 39% dos pacientes alcançaram remissão parcial ou completa. Albumina sérica inicial mais baixa e proteinúria de 24 horas inicial mais elevada foram fatores associados a pior prognóstico renal.

Conclusões:

De acordo com a nova classificação histológica, a grande maioria dos casos de GNMP foram classificados como sendo mediados por imunocomplexos. Houve poucas diferenças entre GNMP primária e secundária em relação às suas características clínicas e laboratoriais.

Descritores:
Patologia; Glomerulonefrite; Glomerulonefrite Membranoproliferativa; Lúpus Eritematoso Sistêmico; Hepatite C

Abstract

Introduction:

Membranoproliferative glomerulonephritis (MPGN) is a rare glomerular disease with a variable prognosis. A new classification based on the presence or absence of immunoglobulins and complement deposits in immunofluorescence microscopy (IF) of kidney biopsy has recently been proposed. The objectives of the study were to determine and compare the clinical, laboratory, and histopathological characteristics of those with primary or secondary MPGN, reclassify the primary ones based on IF findings, and evaluate kidney outcomes.

Methods:

This was an observational retrospective cohort study carried out in a single center (UNIFESP), based on the data collected from medical records of patients followed from 1996 to 2019.

Results:

Of 53 cases of MPGN, 36 (67.9%) were classified as primary and 17 (32.1%) as secondary MPGN. Most patients were hypertensive (84.9%) and had edema (88.7%) and anemia (84.9%); 33 (91.7%) patients classified as primary MPGN were reclassified as immune-complex-mediated and 3 (8.3%) as complement-mediated. The secondary MPGN group had hematuria more frequently (p <0.001) and a higher prevalence of deposits of IgG (p = 0.02) and C1q (p = 0.003). Regarding the outcome, 39% of the patients achieved partial or complete remission. Lower initial serum albumin and higher initial 24-hour proteinuria were factors associated with worst renal prognosis.

Conclusions:

According to the new histological classification, the vast majority of MPGN cases were classified as being mediated by immune complexes. There were few differences between primary and secondary MPGN in relation to their clinical and laboratory characteristics.

Keywords:
Pathology; Glomerulonephritis; Glomerulonephritis, Membranoproliferative; Lupus erythematosus; systemic; Hepatitis C

Introdução

A glomerulonefrite membranoproliferativa (GNMP) corresponde a aproximadamente 7-10% de todos os casos de glomerulonefrites biopsiadas11 Masani N, Jhaveri KD, Fishbane S. Update on membranoproliferative GN. Clin J Am Soc Nephrol. 2014 Mar;9(3):600-8.,22 Sethi S, Fervenza FC. Membranoproliferative glomerulonephritis - a new look at an old entity. N Engl J Med. 2012 Mar;366(12):1119-31.. No Brasil, de acordo com estudos prévios, essa prevalência foi de 3,4-9%. O maior estudo foi realizado em São Paulo com 9.617 biópsias renais provenientes de todo o país, com uma prevalência de 5,2% de GNMP entre as glomerulonefrites primárias33 Polito MG, Moura LA, Kirsztajn GM. An overview on frequency of renal biopsy diagnosis in Brasil: clinical and pathological patterns based on 9617 native kidney biopsies. Nephrol Dial Transplant. 2010 Fev;25(2):490-6.. Alguns estudos, nas últimas décadas, têm demonstrado redução da frequência de GNMP, principalmente em países desenvolvidos, e sugerem que esse declínio esteja relacionado a um melhor controle de doenças infecciosas44 Kirsztajn GM, Vieira Neto OM, Abreu PF, Sens W, Sens YAS. Tratamento das glomerulopatias primárias. J Bras Nefrol. 2005;27(2 Supl 1):S10-S8.,55 Lopes LMV. Evolução da função renal em pacientes com glomerolonefrite membranoproliferativa tipo I [tese]. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo (USP)..

Recentemente, uma nova classificação com base no processo patogênico subjacente foi proposta de acordo com os achados da microscopia de imunofluorescência (IF). A GNMP foi assim classificada como sendo mediada por imunocomplexos, desregulação do complemento ou mecanismos que não envolvem imunoglobulina ou deposição de complemento11 Masani N, Jhaveri KD, Fishbane S. Update on membranoproliferative GN. Clin J Am Soc Nephrol. 2014 Mar;9(3):600-8.,22 Sethi S, Fervenza FC. Membranoproliferative glomerulonephritis - a new look at an old entity. N Engl J Med. 2012 Mar;366(12):1119-31.. A condição foi dividida em três grupos: presença de imunoglobulinas e C3, presença de C3 sem imunoglobulinas, e ausência de C3 e imunoglobulinas66 Cook HT, Pickering MC. Histopathology of MPGN and C3 glomerulopahies. Nat Rev Nephrol. 2014 Dec;11:14-22..

A GNMP mediada por imunocomplexos ocorre em infecções crônicas, doenças autoimunes, gamopatias monoclonais, ou formas idiopáticas. Uma causa subjacente pode ser encontrada na maioria das vezes77 Zand L, Fervenza FC, Nasr SH, Sethi S. Membranoproliferative glomerulonephritis associated with autoimmune diseases. J Nephrol. 2014;27(2):165-71.

8 Sethi S, Zand L, Leung N, Smith RJ, Jevremonic D, Herrmann SS, et al. Membranoproliferative glomerulonephritis secondary to monoclonal gammopathy. Clin J Am Soc Nephrol. 2010 Mai;5(5):770-82.
-99 Yamabe H, Johnson RJ, Gretch DR, Fukushi K, Osawa H, Miyata M, et al. Hepatitis C virus infection and membranoproliferative glomerulonephritis in Japan. J Am Soc Nephrol. 1995 Ago;6(2):220-3.. Entre as infecções associadas, as mais frequentes são a hepatite B e a hepatite C, e entre as doenças autoimunes, a mais prevalente é o lúpus eritematoso sistêmico (LES)22 Sethi S, Fervenza FC. Membranoproliferative glomerulonephritis - a new look at an old entity. N Engl J Med. 2012 Mar;366(12):1119-31.,77 Zand L, Fervenza FC, Nasr SH, Sethi S. Membranoproliferative glomerulonephritis associated with autoimmune diseases. J Nephrol. 2014;27(2):165-71.

8 Sethi S, Zand L, Leung N, Smith RJ, Jevremonic D, Herrmann SS, et al. Membranoproliferative glomerulonephritis secondary to monoclonal gammopathy. Clin J Am Soc Nephrol. 2010 Mai;5(5):770-82.
-99 Yamabe H, Johnson RJ, Gretch DR, Fukushi K, Osawa H, Miyata M, et al. Hepatitis C virus infection and membranoproliferative glomerulonephritis in Japan. J Am Soc Nephrol. 1995 Ago;6(2):220-3..

A apresentação clínica da GNMP é bastante variável, podendo ser desde uma doença de curso lento e progressivo até uma glomerulonefrite rapidamente progressiva. Por se tratar de uma glomerulonefrite rara, há relativamente poucos estudos sobre desfechos e terapia, contribuindo para o difícil manejo clínico. Portanto, uma melhor caracterização do curso e do prognóstico pode fornecer uma razão para a investigação clínica e tratamentos específicos da doença.

Métodos

Um estudo de coorte observacional retrospectivo foi realizado em um centro único brasileiro, que é referência para a Nefrologia. O estudo foi baseado em dados dos prontuários de pacientes acompanhados na UNIFESP-São Paulo de 1996 a 2019 que foram diagnosticados com GNMP (por microscopia óptica e técnicas de imunofluorescência), e classificados como GNMP primária ou secundária.

O critério de inclusão foi o diagnóstico de GNMP (primária ou secundária) em rins nativos em pacientes com pelo menos seis meses de acompanhamento em nosso serviço. Os critérios de exclusão foram ausência de laudo de biópsia renal no prontuário, ausência de análise de IF, ou dados insuficientes para o propósito deste estudo.

Tanto na GNMP primária quanto na secundária, os parâmetros avaliados incluíram aspectos clínicos e epidemiológicos e dados laboratoriais no momento do diagnóstico (mostrados na Tabela 1) bem como testes de sorologia para hepatite B, hepatite C, HIV e sífilis. Além disso, ao final do acompanhamento, foram novamente analisados os níveis de proteinúria (g/24h), albumina (g/dL) e creatinina (mg/dL) séricas, hemoglobina (g/dL) e a TFG estimada. A TFG estimada foi calculada usando a equação CKD-EPI para pacientes maiores de 16 anos e a equação de Schwartz para pacientes menores de 16 anos.

Tabela 1
Características demográficas, clínicas e laboratoriais dos pacientes de acordo com o grupo de glomerulonefrite membranoproliferativa

Os achados de IF da biópsia renal de pacientes com GNMP primária também foram analisados para reclassificar as biópsias de acordo com os novos critérios de classificação.

Foi realizada inicialmente uma análise estatística descritiva. A comparação de proteinúria em diferentes regimes de tratamento entre GNMP primária e secundária foi feita utilizando o teste t de Student para amostras independentes, Mann-Whitney, teste Qui Quadrado e teste exato de Fisher, e os testes de Kruskall-Wallis e exato de Fisher. Um alfa de 5% foi usado para indicar significância.

Resultados

Foram identificados oitenta e dois casos diagnosticados com GNMP nos prontuários e, após a aplicação dos critérios de exclusão, a amostra selecionada nesta pesquisa foi de 53 casos de GNMP, dos quais 36 (67,9%) foram classificados como primária e 17 (32,1%) como secundária (Figura 1). A média de idade dos pacientes no início do acompanhamento foi de 38,8 anos. A maioria dos pacientes era hipertensa (84,9%), definida como pressão arterial sistólica de 140 mmHg ou mais, ou pressão arterial diastólica de 90 mm Hg ou mais, apresentou edema (88,7%), e anemia (84,9%), definida como hemoglobina < 13g/dL para homens ou <12g/dL para mulheres; 33 pacientes (91,7%) com GNMP primária foram reclassificados como com GNMP associada a imunocomplexo e 3 (8,3%) como associada à deposição de complemento.

Figura 1
Classificação dos pacientes do estudo.

O grupo GNMP secundária apresentou taxas mais elevadas de hematúria, definida como a presença de >10.000 eritrócitos/mL de urina (p <0,001) e uma maior prevalência de depósitos de IgG (p = 0,02) e C1q (p = 0,003) em comparação com o grupo GNMP primária. Em relação ao desfecho, a albumina sérica final <3g/dL e a proteinúria de 24 horas final >3,5g/24h foram associadas a pior prognóstico renal.

A causa mais comum de GNMP secundária foi o LES, que representou 47% dos casos, seguido por infecção pelo vírus da hepatite C (29,4%) e esquistossomose (17,6%).

Como resumido na Tabela 1, aproximadamente metade dos pacientes eram do sexo masculino (49,1%) e a idade média dos pacientes no início do acompanhamento foi de 38,8 anos, variando de 13,2 a 61,9 anos. A maioria dos pacientes era hipertensa (84,9%), apresentou edema (88,7%), anemia (84,9%), e hematúria (94,3%). Outras características do diagnóstico são mostradas na Tabela 1. A proteinúria média foi de 5,2 ± 4,6 g/dia, a albumina sérica média foi de 2,8 ± 0,7 g/dL, a TFGe média foi de 66,6 mL/min/1,73 m2, e a creatinina sérica média foi de 1,5 mg/dL. Baixos níveis séricos de C3 estiveram presentes em 49,0%, e baixos níveis de C4 em 46,9% dos pacientes.

Todas as biópsias renais foram avaliadas por microscopia de IF, e foram encontrados depósitos de C3 em 100% das biópsias. Observou-se também uma alta prevalência de depósitos de IgM (75%), IgG (66%), lambda (55,3%), kappa (55,3%), e C1q (50%). A IgA foi o depósito menos prevalente, sendo positivo em 28,3% das biópsias. Todos os pacientes do grupo com GNMP primária apresentaram resultados negativos nos testes para HCV, HBsAg, HIV e VDRL e 4 apresentaram resultado de FAN positivo isolado. Com base na nova classificação, 33 (91,7%) pacientes do grupo GNMP primária foram classificados como GNMP associada a imunocomplexo e 3 (8,3%) como associada apenas ao complemento. Após análise por microscopia eletrônica, os 3 últimos foram diagnosticados como glomerulonefrite do C3.

O grupo de GNMP secundária apresentou maior frequência de hematúria (p <0,001) e depósitos de IgG (p=0,02) e C1q (p=0,003). Como mostrado na Tabela 1, outras características não diferiram entre ambos os grupos.

Dos 51 pacientes dos quais foi possível avaliar a resposta ao tratamento, 10 apresentaram remissão completa (proteinúria de 24 horas final <0,3 g/24h, sem aumento dos níveis séricos de creatinina), 10 tiveram remissão parcial (pelo menos 50% de redução na proteinúria de 24 horas final em comparação com os valores iniciais sem aumento dos níveis séricos de creatinina), e 31 (60,8%) não apresentaram resposta. Em resumo, houve uma associação entre resposta ao tratamento e albumina sérica inicial mais elevada (p=0,03), proteinúria de 24 horas inicial mais baixa (p=0,03), e depósitos de IgM na IF (p=0,02). Também é importante destacar que o grupo que não apresentou remissão (completa ou parcial) apresentou com maior frequência o desfecho renal de “dobrar a creatinina sérica inicial (Cr 2x valor inicial)” (p = 0,001) e evolução para doença renal em estágio terminal (DRET) (p=0,004).

Discussão

As glomerulonefrites com um padrão histológico membranoproliferativo são condições raras e sua frequência vem diminuindo ao longo dos anos, principalmente em países desenvolvidos, e esse declínio pode estar relacionado a um melhor controle de doenças infecciosas44 Kirsztajn GM, Vieira Neto OM, Abreu PF, Sens W, Sens YAS. Tratamento das glomerulopatias primárias. J Bras Nefrol. 2005;27(2 Supl 1):S10-S8.,55 Lopes LMV. Evolução da função renal em pacientes com glomerolonefrite membranoproliferativa tipo I [tese]. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo (USP).. Em nosso centro, durante o período analisado, 82 pacientes foram diagnosticados com GNMP e 53 foram avaliados neste estudo.

A GNMP primária foi rotineiramente caracterizada por histórico médico e testes sorológicos negativos para sífilis, HCV, HBsAg e HIV, assim como FAN negativo ou FAN positivo isolado sem qualquer manifestação clínica de doença sistêmica. Observa-se que poucos pacientes foram avaliados por eletroforese de proteínas séricas e exames de imunofixação de proteínas urinárias para diagnóstico de gamopatias. Estes últimos exames não estavam disponíveis rotineiramente em nosso centro, sendo solicitados apenas em caso de suspeita clínica de paraproteinemia. É possível que a indisponibilidade de alguns exames tenha contribuído para o maior número de GNMP sem causa identificada.

A causa mais comum de GNMP secundária foi o LES, correspondente a 47% dos casos, seguido pelo vírus da hepatite C (29,4%) e esquistossomose (17,6%). Em outro estudo de Lopes et al.55 Lopes LMV. Evolução da função renal em pacientes com glomerolonefrite membranoproliferativa tipo I [tese]. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo (USP)., também na UNIFESP, com 17 pacientes com GNMP secundária, mas excluindo pacientes com LES, a principal causa foi a esquistossomose, encontrada em 64,7% dos casos. Vale ressaltar que este estudo foi realizado nos anos 90 e a menor prevalência de hepatite C pode ser justificada pelo fato de que nem todos os pacientes haviam sido testados para tal doença. Quando analisamos biópsias renais com base na nova classificação, a IF revelou que a grande maioria (94,3%) dos pacientes com GNMP apresentaram deposição de imunocomplexos, enquanto apenas 5,6% apresentaram deposição exclusivamente de C3, e não houve casos sem qualquer deposição de imunoglobulinas ou complemento. Apesar da falta de grandes estudos de pacientes com GNMP e da nova classificação, nossa amostra apresentou características semelhantes às do estudo de Woo et al.1010 Woo SA, Ju HY, Kwon SH, Lee JH, Choi SJ, Han DC, et al. Reanalysis of membranoproliferative glomerulonephritis patients according to the new classification: a multicenter study. Kidney Res Clin Pract. 2014 Dez;33(4):187-91., mostrando predominância de GNMP mediada por imunocomplexo. Em tal estudo, a GNMP mediada por complemento foi encontrada em 4,3% e a GNMP mediada por imunocomplexos em 95,7% dos 44 pacientes estudados.

Devido ao pequeno número de casos diagnosticados como GNMP com depósitos exclusivamente de complemento, não foi possível fazer análises comparativas entre os grupos com base em seus achados de IF.

Levin et al.1111 Levin A. Management of membranoproliferative glomerulonephritis: evidence-based recommendations. Kidney Int Suppl. 1999 Jun;70(Suppl 1):S41-S6. descreveram a GNMP acometendo principalmente crianças e adultos jovens. Nosso centro atende pacientes com 12 anos ou mais, o que explica, pelo menos em parte, porque nossa amostra teve uma média de idade mais alta (38,8 anos), variando de 16,7 a 66,2 anos. Brigani et al.1212 Briganti EM, Dowling J, Finlay M, Hill PA, Jones CL, Kincaid-Smith PS, et al. The incidence of biopsy-proven glomerulonephritis in Australia. Nephrol Dial Transplant. 2001 Jul;16(7):1364-7. também observaram, em um estudo realizado na Austrália em 2001, uma predominância da doença em adultos, com pico de incidência em indivíduos de 55-74 anos de idade.

Em outro estudo realizado por Lopes et al.5 com 41 pacientes com GNMP tipo I, observou-se uma alta taxa de prevalência de hipertensão (88%), assim como em nosso estudo, diferindo de estudos prévios que descreveram uma prevalência de hipertensão de 33% a 38%1313 Belgiojoso GB, Tarantina A, Colasanti G, Bazzi C, Guerra L, Durante A. The prognostic value of some clinical and histological parameters in membranoproliferative glomerulonephritis (MPGN): report of 112 cases. Nephron. 1977;19(5):250-8.,1414 Magil AB, Price JDE, Bower G, Rance CP, Huber J, Chase WH. Membranoproliferative glomerulonephritis type I: comparison of natural history in children and adults. Clin Nephrol.1979 Mai;11(5):239-44.. Este achado pode ser explicado pelo estágio supostamente mais avançado da doença por ocasião do diagnóstico de nossos pacientes, devido, por exemplo, à dificuldade de acesso ao sistema de saúde em nosso país, em comparação com outros estudos que foram realizados na Europa.

Há poucos dados disponíveis sobre GNMP em pacientes brasileiros. Em comparação com outro estudo realizado com 92 casos de GNMP no Brasil1515 Dias CB, Testagrossa L, Jorge L, Malheiros D, Woronik V. Características clínicas e histológicas de pacientes com glomerulonefrite membranoproliferativa classificadas por achados de imunofluorescência. J Bras Nefrol. 2017;39(4):447-53., houve dados semelhantes bem como dados conflitantes. Em nosso estudo, 49% eram do sexo masculino e a média de idade foi de 38,8 anos e no estudo anterior, 62% eram do sexo masculino e a média de idade foi de 44,3 anos. A creatinina sérica média também foi semelhante; enquanto a nossa foi ligeiramente melhor, 1,57 mg/dL (TFG estimada de 66,6 mL/min/1,73m2), a deles foi de 1,8 mg/dL (TFG estimada de 41,5 mL/min/1,73m2). Ambos apresentaram proteinúria elevada (nossa proteinúria média foi de 5,26 g/24h com uma albumina sérica de 2,84 g/dL e a deles foi de 6,2 g/24h com uma albumina sérica de 2,5 g/dL). Nossa população estudada apresentou maior frequência de hipertensão (84,9% vs. 55,4%) e hematúria ao diagnóstico (94,3% vs. 71,7%).

Um objetivo importante do presente estudo foi comparar as características clínicas e laboratoriais entre os grupos com GNMP primária e GNMP secundária. No entanto, poucas diferenças foram encontradas, chamando a atenção para a hematúria mais intensa e frequente no grupo com GNMP secundária, o mesmo acontecendo em relação aos depósitos de IgG e C1q na análise de IF. Assim, nossos resultados corroboram a ideia defendida por alguns de que a classificação por meio da IF pode ser a única capaz de diferenciar as GNMP primárias e secundárias1616 Fervenza FC, Sethi S, Glassock RJ. Idiopathic membranoproliferative glomerulonephritis: does it exist? Nephrol Dial Transplant. 2012;27(12):4288-94..

Ao avaliar os desfechos, observamos que a maioria dos pacientes (60,8%) não preencheu os critérios de remissão parcial ou completa. Apesar disso, a maioria também não apresentou um agravamento significativo da creatinina sérica no curso da doença (71,7% não dobraram os níveis séricos de creatinina) e apenas 13,2% evoluíram com TFG <15 mL/min/1,73m22 Sethi S, Fervenza FC. Membranoproliferative glomerulonephritis - a new look at an old entity. N Engl J Med. 2012 Mar;366(12):1119-31.. Isto pode ser justificado pelo fato de que a maioria desses pacientes apresentava uma TFG >60 mL/min/1,73m22 Sethi S, Fervenza FC. Membranoproliferative glomerulonephritis - a new look at an old entity. N Engl J Med. 2012 Mar;366(12):1119-31. no momento do diagnóstico, o que pode associar-se a um melhor prognóstico. Os pacientes tiveram períodos de acompanhamento diferentes com uma média de 6,3 anos.

Em nosso estudo, um prognóstico ruim foi associado à presença de síndrome nefrótica (definida como a presença de proteinúria de 24 horas igual ou > 3,5 g/24h com albumina < 3 g/dL e edema), proteinúria de 24 horas elevada (definida como a presença de proteinúria de 24 horas igual ou > 0,3 g/24h) e baixa albumina sérica inicial. Em estudos prévios, fatores associados a um prognóstico ruim incluíram síndrome nefrótica, creatinina sérica elevada e hipertensão. Por outro lado, pacientes com proteinúria não nefrótica e pressão arterial normal parecem ter um melhor prognóstico renal a longo prazo1717 Somers M, Kertesz S, Rosen S, Herrin J, Colvin R, Carreta NP, et al. Non-nephrotic children with membranoproliferative glomerulonephritis: are steroids indicated?. Pediatr Nephrol. 1995 Abr;9(2):140-4.. Não encontramos nenhuma associação com hipertensão, possivelmente devido à alta prevalência de hipertensão em nossa amostra. Além disso, os níveis de hematúria não foram associados a um prognóstico renal ruim. Na verdade, tem sido descrito que graus mais elevados de hematúria sugerem mais inflamação, mas não há evidência de um efeito independente no prognóstico1818 Cameron JS, Turner DR, Heaton J, Williams DG, Ogg CS, Chantler C, et al. Idiopathic mesangiocapillary glomerulonephritis. Comparison of types I and II in children and adults and long-term prognosis. Am J Med. 1983;74(2):175-92.,1919 D’Amico G, Ferrario F. Mesangiocapillary glomerulonephritis. J Am Soc Nephrol. 1992;2(Supl 10):S159-S66..

Relatos anteriores sugeriram um prognóstico renal relativamente ruim em pacientes com GNMP aparentemente idiopática1717 Somers M, Kertesz S, Rosen S, Herrin J, Colvin R, Carreta NP, et al. Non-nephrotic children with membranoproliferative glomerulonephritis: are steroids indicated?. Pediatr Nephrol. 1995 Abr;9(2):140-4.

18 Cameron JS, Turner DR, Heaton J, Williams DG, Ogg CS, Chantler C, et al. Idiopathic mesangiocapillary glomerulonephritis. Comparison of types I and II in children and adults and long-term prognosis. Am J Med. 1983;74(2):175-92.

19 D’Amico G, Ferrario F. Mesangiocapillary glomerulonephritis. J Am Soc Nephrol. 1992;2(Supl 10):S159-S66.
-2020 Donadio Junior JV, Offord KP. Reassessment of treatment results in membranoproliferative glomerulonephritis, with emphasis on life-table analysis. Am J Kidney Dis. 1989 Dez;14(6):445-51.. Entretanto, esses relatos devem ser interpretados com cautela, uma vez que refletem um momento diferente, quando alguns recursos diagnósticos não estavam disponíveis. Em nosso estudo, não houve diferença no prognóstico renal entre GNMP primária e secundária.

Por fim, com relação aos dados clínicos e laboratoriais, os grupos de GNMP distinguiram-se apenas por hematúria mais elevada no grupo das secundárias, o que na prática clínica pode auxiliar na suspeição diagnóstica, mas não permite o diagnóstico diferencial. Considerando a classificação com base em IF, houve uma maior frequência de depósitos de IgG e C1q na GNMP secundária. Nossos achados corroboram que a classificação por IF contribui para distinguir GNMP primária e secundária.

Conclusão

De acordo com a nova classificação com base nos achados de IF, a grande maioria dos casos de GNMP foi classificada como GNMP mediada por imunocomplexos. Houve poucas diferenças entre GNMP primária e secundária em relação ao prognóstico e suas características clínicas e laboratoriais, particularmente maior hematúria e prevalência mais elevada de depósitos de IgG e C1q no grupo da secundária, corroborando os benefícios de uma classificação baseada em achados de IF para distinguir os dois grupos.

Agradecimentos

Este estudo foi financiado em parte pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Dissertação apresentada à Universidade Federal de São Paulo para obtenção do diploma de Mestrado em São Paulo, 2020.

References

  • 1
    Masani N, Jhaveri KD, Fishbane S. Update on membranoproliferative GN. Clin J Am Soc Nephrol. 2014 Mar;9(3):600-8.
  • 2
    Sethi S, Fervenza FC. Membranoproliferative glomerulonephritis - a new look at an old entity. N Engl J Med. 2012 Mar;366(12):1119-31.
  • 3
    Polito MG, Moura LA, Kirsztajn GM. An overview on frequency of renal biopsy diagnosis in Brasil: clinical and pathological patterns based on 9617 native kidney biopsies. Nephrol Dial Transplant. 2010 Fev;25(2):490-6.
  • 4
    Kirsztajn GM, Vieira Neto OM, Abreu PF, Sens W, Sens YAS. Tratamento das glomerulopatias primárias. J Bras Nefrol. 2005;27(2 Supl 1):S10-S8.
  • 5
    Lopes LMV. Evolução da função renal em pacientes com glomerolonefrite membranoproliferativa tipo I [tese]. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo (USP).
  • 6
    Cook HT, Pickering MC. Histopathology of MPGN and C3 glomerulopahies. Nat Rev Nephrol. 2014 Dec;11:14-22.
  • 7
    Zand L, Fervenza FC, Nasr SH, Sethi S. Membranoproliferative glomerulonephritis associated with autoimmune diseases. J Nephrol. 2014;27(2):165-71.
  • 8
    Sethi S, Zand L, Leung N, Smith RJ, Jevremonic D, Herrmann SS, et al. Membranoproliferative glomerulonephritis secondary to monoclonal gammopathy. Clin J Am Soc Nephrol. 2010 Mai;5(5):770-82.
  • 9
    Yamabe H, Johnson RJ, Gretch DR, Fukushi K, Osawa H, Miyata M, et al. Hepatitis C virus infection and membranoproliferative glomerulonephritis in Japan. J Am Soc Nephrol. 1995 Ago;6(2):220-3.
  • 10
    Woo SA, Ju HY, Kwon SH, Lee JH, Choi SJ, Han DC, et al. Reanalysis of membranoproliferative glomerulonephritis patients according to the new classification: a multicenter study. Kidney Res Clin Pract. 2014 Dez;33(4):187-91.
  • 11
    Levin A. Management of membranoproliferative glomerulonephritis: evidence-based recommendations. Kidney Int Suppl. 1999 Jun;70(Suppl 1):S41-S6.
  • 12
    Briganti EM, Dowling J, Finlay M, Hill PA, Jones CL, Kincaid-Smith PS, et al. The incidence of biopsy-proven glomerulonephritis in Australia. Nephrol Dial Transplant. 2001 Jul;16(7):1364-7.
  • 13
    Belgiojoso GB, Tarantina A, Colasanti G, Bazzi C, Guerra L, Durante A. The prognostic value of some clinical and histological parameters in membranoproliferative glomerulonephritis (MPGN): report of 112 cases. Nephron. 1977;19(5):250-8.
  • 14
    Magil AB, Price JDE, Bower G, Rance CP, Huber J, Chase WH. Membranoproliferative glomerulonephritis type I: comparison of natural history in children and adults. Clin Nephrol.1979 Mai;11(5):239-44.
  • 15
    Dias CB, Testagrossa L, Jorge L, Malheiros D, Woronik V. Características clínicas e histológicas de pacientes com glomerulonefrite membranoproliferativa classificadas por achados de imunofluorescência. J Bras Nefrol. 2017;39(4):447-53.
  • 16
    Fervenza FC, Sethi S, Glassock RJ. Idiopathic membranoproliferative glomerulonephritis: does it exist? Nephrol Dial Transplant. 2012;27(12):4288-94.
  • 17
    Somers M, Kertesz S, Rosen S, Herrin J, Colvin R, Carreta NP, et al. Non-nephrotic children with membranoproliferative glomerulonephritis: are steroids indicated?. Pediatr Nephrol. 1995 Abr;9(2):140-4.
  • 18
    Cameron JS, Turner DR, Heaton J, Williams DG, Ogg CS, Chantler C, et al. Idiopathic mesangiocapillary glomerulonephritis. Comparison of types I and II in children and adults and long-term prognosis. Am J Med. 1983;74(2):175-92.
  • 19
    D’Amico G, Ferrario F. Mesangiocapillary glomerulonephritis. J Am Soc Nephrol. 1992;2(Supl 10):S159-S66.
  • 20
    Donadio Junior JV, Offord KP. Reassessment of treatment results in membranoproliferative glomerulonephritis, with emphasis on life-table analysis. Am J Kidney Dis. 1989 Dez;14(6):445-51.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2023

Histórico

  • Recebido
    28 Jan 2022
  • Aceito
    13 Abr 2022
Sociedade Brasileira de Nefrologia Rua Machado Bittencourt, 205 - 5ºandar - conj. 53 - Vila Clementino - CEP:04044-000 - São Paulo SP, Telefones: (11) 5579-1242/5579-6937, Fax (11) 5573-6000 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bjnephrology@gmail.com