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Dessensibilização usando somente IgIV para transplante renal com doador vivo: impacto nos anticorpos específicos contra o doador

Resumo

Introdução:

Sensibilização HLA é uma barreira ao transplante em pacientes sensibilizados. Há poucos dados publicados sobre dessensibilização utilizando somente imunoglobulina intravenosa humana polivalente (IgIV).

Métodos:

Revisamos retrospectivamente prontuários de 45 pacientes com prova cruzada positiva por citotoxicidade dependente do complemento (CDCXM) ou citometria de fluxo (FCXM) contra doadores vivos, de Janeiro/2003-Dezembro/2014. Destes, excluímos 12. 33 pacientes receberam infusões mensais de IgIV (2 g/kg) apenas até apresentarem FCXM células T e B negativa.

Resultados:

Durante dessensibilização, 22 pacientes (66,7%) realizaram transplante renal com doador vivo, 7 (21,2%) receberam enxerto de doador falecido, 4 (12,1%) não realizaram transplante. A mediana do painel de reatividade de anticorpos classes I e II para estes pacientes foi 80,5% (intervalo 61%-95%) e 83,0% (intervalo 42%-94%), respectivamente. 18 pacientes (81,8%) apresentaram CDCXM célula T e/ou B positiva; 4 (18,2%) apresentaram FCXM célula T e/ou B positiva. Pacientes realizaram transplante após mediana de 6 (intervalo 3-16) infusões. A mediana da somatória da intensidade média de fluorescência do anticorpo específico contra o doador foi 5057 (intervalo 2246-11.691) antes e 1389 (intervalo 934-2492) após dessensibilização (p = 0,0001). O tempo médio de acompanhamento do paciente pós transplante foi 60,5 (DP, 36,8) meses. Nove pacientes (45,0%) não apresentaram rejeição e 6 (27,3%) apresentaram rejeição mediada por anticorpos. Sobrevida do enxerto censurada para óbito em 1, 3, 5 anos após transplante foi 86,4; 86,4; 79,2%, respectivamente, e sobrevida do paciente foi 95,5; 95,5; 83,7%, respectivamente.

Conclusões:

Dessensibilização utilizando apenas IgIV é uma estratégia eficaz, permitindo transplante bem-sucedido em 87,9% destes pacientes altamente sensibilizados.

Descritores:
Anticorpos; Antígenos HLA; Doadores Vivos; Rejeição de Enxerto; Teste de Histocompatibilidade; Transplante Renal

Abstract

Introduction:

Sensitization to human leukocyte antigen is a barrier to. Few data have been published on desensitization using polyvalent human intravenous immunoglobulin (IVIG) alone.

Methods:

We retrospectively reviewed the of 45 patients with a positive complement-dependent cytotoxicity crossmatch (CDCXM) or flow cytometry crossmatch (FCXM) against living donors from January 2003 to December 2014. Of these, 12 were excluded. Patients received monthly IVIG infusions (2 g/kg) only until they had a negative T-cell and B-cell FCXM.

Results:

During the 33 patients, 22 (66.7%) underwent living donor kidney transplantation, 7 (21.2%) received a deceased donor graft, and 4 (12.1%) did not undergo transplantation. The median class I and II panel reactive antibodies for these patients were 80.5% (range 61%-95%) and 83.0% (range 42%-94%), respectively. Patients (81.8%) had a positive T-cell and/or B-cell CDCXM and 4 (18.2%) had a positive T-cell and/or B-cell FCXM. Patients underwent transplantation after a median of 6 (range 3-16). The median donor-specific antibody mean fluorescence intensity sum was 5057 (range 2246-11,691) before and 1389 (range 934-2492) after desensitization (p = 0.0001). Mean patient follow-up time after transplantation was 60.5 (SD, 36.8) months. Nine patients (45.0%). Death-censored graft survival at 1, 3, and 5 years after transplant was 86.4, 86.4, and 79.2%, respectively and patient survival was 95.5, 95.5, and 83.7%, respectively.

Conclusions:

Desensitization using IVIG alone is an effective strategy, allowing successful transplantation in 87.9% of these highly sensitized patients.

Keywords:
Antibodies; HLA Antigens; Living Donors; Graft Rejection; Histocompatibility Testing; Kidney Transplantation

Introdução

Há um grupo de pacientes que permanece por um tempo mais longo na lista de espera por transplante renal: pacientes sensibilizados. Estes pacientes desenvolvem anticorpos anti-antígeno leucocitário humano (HLA) ao longo do tempo por meio de transfusões sanguíneas anteriores, gestações e/ou transplantes11 Heidt S, Claas FHJ. Transplantation in highly sensitized patients: challenges and recommendations. Expert Rev Clin Immunol. 2018 Aug;14(8):673-9.. Pacientes sensibilizados têm menor acesso ao transplante e são mais suscetíveis a complicações decorrentes da diálise de longo prazo, como morbidade e mortalidade cardiovascular e infecciosa, além da perda do acesso vascular e peritoneal para diálise. A dificuldade em encontrar doadores compatíveis para pacientes sensibilizados entre os doadores falecidos disponíveis torna o transplante com doador vivo uma opção para esses pacientes. Nos Estados Unidos, um terço dos transplantes são realizados com doadores vivos22 Montgomery RA. Renal transplantation across HLA and ABO antibody barriers: integrating paired donation into desensitization protocols. Am J Transplant. 2010 Mar;10(3):449-57..

O tratamento administrado a pacientes sensibilizados para melhorar seu acesso ao transplante é conhecido como dessensibilização. No entanto, os protocolos de dessensibilização variam de centro para centro33 Jawdeh BGA, Cuffy MC, Alloway RR, Shields AR, Woodle ES. Desensitization in kidney transplantation: review and future perspectives. Clin Transplant. 2014 Apr;28(4):494-507.. Geralmente, quando um doador vivo está disponível, a maioria dos centros utiliza altas doses de imunoglobulina intravenosa humana polivalente (IgIV) combinada com sessões de plasmaférese e drogas imunossupressoras que visam linfócitos B (rituximabe), células plasmáticas (bortezomibe), ou citocinas (tocilizumabe)33 Jawdeh BGA, Cuffy MC, Alloway RR, Shields AR, Woodle ES. Desensitization in kidney transplantation: review and future perspectives. Clin Transplant. 2014 Apr;28(4):494-507..

Poucos estudos têm utilizado apenas a IgIV para permitir o transplante renal com doadores vivos44 Glotz D, Antoine C, Julia P, Suberbielle-Boissel C, Boudjeltia S, Fraoui R, et al. Desensitization and subsequent kidney transplantation of patients using intravenous immunoglobulins (IVIg). Am J Transplant. 2002;2(8):758-60.. Nosso objetivo foi demonstrar que o uso exclusivo da IgIV é uma estratégia eficaz para a dessensibilização.

Pacientes e Métodos

Desenho do estudo

Todos os participantes elegíveis eram pacientes sensibilizados com idade ≥ 18 anos que contavam com um potencial doador vivo com uma prova cruzada por citotoxicidade dependente do complemento (CDCXM) ou por citometria de fluxo (FCXM) positiva. Revisamos retrospectivamente os prontuários de 45 pacientes sensibilizados atendidos no Serviço de Transplante Renal do Hospital das Clínicas (Universidade de São Paulo), de Janeiro de 2003 a Dezembro de 2014. Coletamos os dados até 30 de Dezembro de 2017.

Dos 45 pacientes, 12 foram excluídos. Um paciente foi a óbito antes de iniciar o protocolo de dessensibilização e 11 foram excluídos durante o tratamento: 4 pacientes decidiram abandonar o estudo, 4 mudaram para outro centro de transplante, 1 foi excluído devido à desistência do doador, 1 foi submetido a um protocolo que incluiu aférese e rituximabe, e 1 encontrou um doador idêntico após o início do tratamento.

Trinta e três pacientes permaneceram no estudo. Destes, 22 (66,7%) foram submetidos a um transplante com doador vivo, 7 (21,2%) foram submetidos a um transplante com doador falecido durante o tratamento, 3 (9,1%) não realizaram transplante até o final do período médio de acompanhamento de 60,5 (DP, 36,8) meses, e 1 (3,0%) foi a óbito durante o tratamento.

O protocolo de dessensibilização consistiu em terapia com IgIV a uma dose de 2 g/kg por mês. Para os testes, as amostras foram coletadas após 3 semanas de infusão de IgIV. Os testes foram repetidos a cada 3 meses, incluindo o teste de painel de reatividade de anticorpos (PRA). Os pacientes foram liberados para transplante quando apresentaram uma FCXM com célula T e B negativa ou limítrofe (diferença menor que 20 canais em relação ao controle negativo). Avaliamos o perfil de anticorpos anti-HLA antes e durante o tratamento com IgIV, a taxa de transplante de pacientes e os desfechos do paciente e do enxerto.

No momento do transplante, todos os pacientes receberam timoglobulina (6 mg/kg por 4-7 dias). Doze pacientes (54,5%) também receberam IgIV na dose de 2 g/kg nos dias 0 e 1 pós-operatório.

A imunossupressão de manutenção consistiu em prednisona e tacrolimus para 100% dos casos. Quatro pacientes (18,2%) usaram micofenolato de mofetila e 18 (81,8%) usaram metanossulfonato de metila como medicamentos antiproliferativos durante a manutenção.

Todos os pacientes receberam profilaxia para citomegalovírus com ganciclovir intravenoso ou valganciclovir ajustado para função renal durante 3 meses.

O acompanhamento médio dos pacientes foi de 60,5 (DP-36,8) meses após o transplante.

Pudemos avaliar o número de anticorpos específicos contra o doador (DSAs), a intensidade média de fluorescência (IMF) do DSA imunodominante (iDSA) e a somatória da IMF-DSA em 13 pacientes tratados a partir de 2010, uma vez que os ensaios Luminex tornaram-se disponíveis em nosso laboratório apenas em 2010.

De acordo com nosso protocolo institucional, todos os pacientes são submetidos à biópsia de enxerto nas 2 primeiras semanas após o transplante. Durante o acompanhamento, os pacientes são submetidos a uma segunda biópsia se houver piora da função do enxerto ou presença de proteinúria.

Classificamos todas as rejeições de acordo com a classificação de Banff 2009, que incluía a coloração C4d por técnicas de imunofluorescência ou imunoperoxidase.

Análise Estatística

Os dados quantitativos (PRA, número de DSAs e somatória da IMF-DSA) são expressos como mediana (intervalo), e utilizamos o teste não paramétrico de Wilcoxon para comparar os grupos. Estabelecemos o nível de significância estatística em p inferior a 0,05. Estimamos a sobrevida do paciente e do enxerto após o transplante utilizando o método de Kaplan-Meier.

Aprovação Ética

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa local (protocolo número 1.629.259/ 2016). Dada a natureza retrospectiva do estudo, o consentimento informado foi dispensado.

Resultados

Dos 45 pacientes inicialmente incluídos no estudo, a maioria foi do sexo feminino (n = 38; 84,4%), de cor branca (n = 35; 77,8%) e realizavam hemodiálise (n = 35; 77,8%). A taxa de retransplante foi de 31,1% (n = 14). A média de idade dos pacientes no atendimento inicial foi de 37,7 (DP, 10,3) anos.

Após o tratamento com IgIV, o tempo médio para o transplante foi de 12,1 (intervalo, 1-42) meses.

Os resultados para PRA, número de DSAs e somatória da IMF-DSA antes e depois da dessensibilização são apresentados na Tabela 1.

Tabela 1
Painel de reatividade de anticorpos (PRA) e intensidade média de fluorescência (IMF) dos anticorpos específicos contra o doador (DSA) antes e depois da dessensibilização

A Figura 1 mostra as alterações nos DSAs após a dessensibilização (20 anticorpos de 13 pacientes para os quais Luminex estava disponível no momento da análise). Observamos uma queda na IMF em todos os anticorpos analisados (p < 0,0001).

Figura 1
Alterações no anticorpo específico contra o doador (DSA) após dessensibilização (DS).

Até serem liberados para cirurgia, os pacientes que foram submetidos a um transplante receberam uma mediana de 6 (intervalo, 3-16) infusões mensais de IgIV.

Não observamos diferença no número de doses de IgIV de acordo com o número de DSAs (p = 0,2607), anticorpos de classe I ou classe II (p = 0,0514), ou somatória da IMF-DSA (p = 0,1241).

Dezoito pacientes (81,8%) apresentaram uma CDCXM positiva de célula T e/ou célula B, e 4 (18,2%) apresentaram apenas uma FCXM positiva de célula T e/ou célula B. Não foi observada nenhuma diferença entre FCXM+/CDCXM- vs FCXM+/CDCXM+ (6 vs 5; p = 0,0667) ao analisar a mediana do PRA de classe I (65% vs 85%; p = 0,5226) e classe II (58% vs 83%; p = 0,9317), o número de DSAs (1 vs 1,5; n = 0,5686), e a somatória da IMF-DSA antes da dessensibilização (4593 vs 6841; n = 0,6121).

Após a dessensibilização, observamos uma redução na mediana do iDSA de 5522 para 1301 (p = 0,0002) (Tabela 2).

Tabela 2
Anticorpo específico contra o doador imunodominante (iDSA) antes e depois da dessensibilização

Quatro pacientes foram considerados como falhas de tratamento pois não puderam ser submetidos a um transplante durante o período médio de acompanhamento de 24,8 (DP, 18,2) meses. Um paciente foi a óbito após 3 infusões de IgIV. Um paciente permaneceu em dessensibilização, mantendo uma CDCXM positiva. Outra paciente interrompeu o tratamento após 4 anos, ao ser diagnosticada com câncer de mama. A última paciente interrompeu o tratamento após 13 infusões de IgIV devido à uma gestação.

Os pacientes que não foram submetidos a um transplante renal (n = 4) apresentaram uma mediana do PRA de classe I de 72,0 (intervalo, 42,7-96,7) e do PRA de classe II de 81,5 (intervalo, 40,5-98,5); não foi observada diferença estatisticamente significativa nos receptores de transplante. O grupo não transplantado teve mais DSAs (n = 3) do que o grupo transplantado (n = 1), mas essa diferença não foi significativa (p = 0,1646).

A mediana da somatória da IMF-DSA em pacientes que não foram submetidos a um transplante foi de 14.764 (intervalo, 14.661-32.641), que foi maior que a dos receptores de transplante (média, 5522; intervalo, 3967-14.095), mas esta diferença não foi significativa (p = 0,0926).

A sobrevida dos pacientes após o transplante foi de 95,5% em 1 ano, 95,5% em 3 anos, e 83,7% em 5 anos (Figura 2). A sobrevida do enxerto censurada para óbito em 1, 3 e 5 anos após o transplante foi de 86,4, 86,4 e 79,2%, respectivamente (Figura 3).

Figura 2
Sobrevida de pacientes.

Figura 3
Sobrevida do enxerto.

Dez enxertos foram perdidos durante o acompanhamento, 4 (40,0%) devido à rejeição crônica mediada por anticorpos (RCMA). Um enxerto foi perdido no 9º dia pós-operatório devido a trombose arterial, e outro foi perdido no 70º dia pós-operatório após um episódio de rejeição mediada por células T Banff III. Três pacientes foram a óbito com um enxerto funcionante (choque séptico, gastroenterocolite e insuficiência respiratória), e um paciente perdeu o enxerto após 9 anos em outra instituição devido a razões desconhecidas.

A função renal média, censurada para perda de enxerto e estimada pela taxa de filtração glomerular (calculada pela equação Modificação da Dieta em Doença Renal), foi de 66,2 (DP, 14,2) mL/min/1,73 m2 em 1 ano, 60,4 (DP, 21,2) mL/min/1,73 m2 em 3 anos, e 60,6 (DP, 22,8) mL/min/1,73 m2 em 5 anos. A presença de proteinúria foi detectada em 36,8; 47,4 e 33,3% dos pacientes em 1, 3 e 5 anos após o transplante, respectivamente.

Dois pacientes desenvolveram tuberculose, 3 apresentaram infecções fúngicas e 2 tiveram diarreia prolongada crônica devido a germes oportunistas. Com relação às infecções virais, 1 paciente teve infecção por citomegalovírus e 2 tiveram infecção por poliomavírus. Um paciente apresentou cistite hemorrágica associada ao adenovírus e 3 apresentaram reativação cutânea não complicada pelo vírus da varicela-zoster. Um paciente teve infecção genital por papilomavírus humano. Dez pacientes (50,0%) não apresentaram complicações infecciosas significativas durante o acompanhamento. Dos pacientes com complicações infecciosas, 6 (60,0%) não apresentaram episódios de rejeição durante o acompanhamento.

Neoplasias foram incomuns neste grupo de pacientes submetidos a transplante renal após dessensibilização. Apenas 1 paciente teve um diagnóstico de mieloma múltiplo após 3,8 anos, quando ela já apresentava disfunção crônica avançada do enxerto.

Discussão

Aproximadamente 30% dos pacientes na lista de espera por um transplante renal nos Estados Unidos apresentam algum grau de sensibilização, dos quais quase 8000 são altamente sensibilizados, com um PRA acima de 80%55 Jordan SC, Vo AA. Desensitization offers hope to highly HLA-sensitized patients for a longer life expectancy after incompatible kidney transplant. Am J Kidney Dis. 2012 Jun;59(6):758-60.. No Brasil, em 2013, 250.621 pacientes estavam na lista de espera por um transplante renal com doador falecido, dos quais 3328 eram altamente sensibilizados (PRA > 80%), de acordo com dados fornecidos pelo Sistema Nacional de Transplantes. No mesmo ano, 4239 pacientes foram submetidos a um transplante, mas apenas 149 deles eram altamente sensibilizados, o que corresponde a uma taxa de transplante de apenas 3,5%66 Perosa M, Ferreira GF, Modelli LG, Medeiros MP, Neto SR, Moreira F, et al. Disparity in the acces to kidney transplantation for sensitized patients in the state of Sao Paulo-Brazil. Transpl Immunol. 2021 Oct;68:101441..

Dados os altos níveis de anticorpos anti-HLA, os pacientes sensibilizados têm menos probabilidade de se submeterem a um transplante com doador falecido e mais probabilidade de esperar por mais tempo do que os pacientes não sensibilizados. Segundo dados do banco de dados da Rede Unida para o Compartilhamento de Órgãos (UNOS), a taxa anual de transplante para pacientes sensibilizados é de 6,5% contra 18% a 20% para pacientes não sensibilizados22 Montgomery RA. Renal transplantation across HLA and ABO antibody barriers: integrating paired donation into desensitization protocols. Am J Transplant. 2010 Mar;10(3):449-57..

Glotz et al. publicaram em 2002 os resultados da primeira série de pacientes usando somente IgIV para dessensibilização, alcançando uma alta taxa de transplante: 86,7% (de um total de 15 pacientes tratados, 13 foram submetidos a um transplante)55 Jordan SC, Vo AA. Desensitization offers hope to highly HLA-sensitized patients for a longer life expectancy after incompatible kidney transplant. Am J Kidney Dis. 2012 Jun;59(6):758-60..Em nosso estudo, obtivemos uma taxa semelhante de acesso ao transplante: 88,7% (29 pacientes foram submetidos a um transplante após dessensibilização; 7 deles receberam um enxerto de doador falecido).

Orandi et al. publicaram em 2016 um estudo multicêntrico com um objetivo desafiador e sem precedentes: mostrar que pacientes que foram submetidos a um transplante com doador vivo após dessensibilização apresentaram sobrevida maior do que aqueles que não realizaram um transplante ou permaneceram na lista de espera por um doador falecido HLA compatível. Os pacientes foram divididos em 3 grupos: receptores de transplante após dessensibilização (n = 1025), pacientes que permaneceram na lista de espera ou receberam um transplante de um doador falecido (n = 5125), e pacientes que permaneceram em diálise e não foram submetidos a um transplante (n = 5125). Pacientes dessensibilizados sobreviveram por mais tempo do que aqueles que esperaram por um transplante com doador falecido e aqueles em diálise de longo prazo em 1 ano (95,0 vs 94,0 e 89,6%), 3 anos (91,7 vs 83,6 e 72,7%), 5 anos (86,0 vs 74,4 e 59,2%), e 8 anos (76,5 vs 62,9 e 43,9%) de acompanhamento (p < 0,001)77 Orandi BJ, Luo X, Massie AB, Graonzik-Wang JM, Lonze BE, Ahmed R, et al. Survival benefit with kidney transplants from HLA-incompatible live donors. N Engl J Med. 2016 Mar;374(10):940-50.. Em nosso estudo, utilizando um protocolo de dessensibilização com o uso isolado da IgIV, obtivemos taxas semelhantes de sobrevida de pacientes em 1 ano (95,5%), 3 anos (95,5%), e 5 anos (83,7%).

Kahwaji et al. realizaram um estudo retrospectivo de 177 transplantes com doador vivo, dos quais 66 eram de pacientes altamente sensibilizados submetidos a um protocolo de dessensibilização que incluiu rituximabe, IgIV e plasmaférese. Os demais pacientes apresentavam baixo risco imunológico. Ao final de 6 anos de acompanhamento, a sobrevida foi de 87,9% em pacientes sensibilizados e 88,3% em pacientes de baixo risco, mostrando bons resultados de dessensibilização a longo prazo. A incidência de rejeição foi de 30% em pacientes sensibilizados e 23% em pacientes de baixo risco88 Kahwaji J, Jordan SC, Najjar R, Wongsaroj P, Choi J, Peng A, et al. Six-year outcomes in broadly HLA-sensitized living donor transplant recipients desensitized with intravenous immunoglobulin and rituximab. Transpl Int. 2016 Dec;29(12):1276-85.. Em nosso estudo, não observamos RAMA em biópsias protocolares realizadas até o 7º dia de pós-operatório. Ao longo dos 5 anos de acompanhamento, a incidência de RAMA foi de 27,3%. Possíveis explicações para a baixa incidência de rejeição em nossa amostra incluem o fato de que os pacientes foram liberados para transplante somente após a obtenção de uma FCXM negativa, e o uso de IgIV como terapia de indução.

Não há consenso na literatura sobre se as características relacionadas ao DSA (número, intensidade ou classe) estariam associadas ao risco de rejeição99 Malheiro J, Tafulo S, Dias L, Martins S, Fonseca I, Beirão I, et al. Analysis of preformed donor-specific anti-HLA antibodies characteristics for prediction of antibody-mediated rejection in kidney transplantation. Transpl Immunol. 2015 Mar;32(2):66-71.. Phelan et al. publicaram em 2009 uma análise retrospectiva de 64 receptores de transplante com doador vivo, dos quais 12 apresentaram DSA no momento do transplante e não receberam terapia de indução com timoglobulina. Os pacientes com DSA não apresentaram episódios de RAMA, e as 2 perdas de enxerto neste grupo foram causadas por glomeruloesclerose segmentar focal recorrente aos 35 meses e óbito com um enxerto funcionante aos 32 meses. Independentemente das características do DSA, não foram observados episódios de rejeição1010 Phelan D, Mohanakumar T, Ramachandran S, Jendrisak MD. Living donor renal transplantation in the presence of donor-specific human leukocyte antigen antibody detected by solid-phase assay. Hum Immunol. 2009 May;70(8):584-8.. Nesta série de casos, nem o número nem a intensidade do DSA antes do transplante foram relacionados a um risco maior de RAMA.

Niederhaus et al. associaram a intensidade do iDSA a um risco maior de rejeição1111 Niederhaus SV, Muth B, Lorentzen DF, Wai P, Pirsch JD, Samaniego-Picota M, et al. Luminex-based desensitization protocols: the University of Wisconsin initial experience. Transplantation. 2011 Jul;92(1):12-7.. Em nossa análise, a dessensibilização reduziu o iDSA médio dos pacientes, que foi superior a 10.000 IMF em 3 pacientes. Destes, apenas 1 não apresentou uma redução significativa na intensidade (DQ5: 13.000 > 12.228), mas não ocorreu nenhuma RAMA neste paciente após o transplante.

Metade de nossos receptores de transplante não apresentou complicações infecciosas. Os episódios de infecção não pareceram estar relacionados ao uso de tratamento imunossupressor adicional, uma vez que 60% dos pacientes com infecção não apresentaram episódios anteriores de rejeição.

Em nosso protocolo de dessensibilização, o uso da IgIV isoladamente não aumentou o número de complicações infecciosas. Outros medicamentos comumente utilizados neste processo (rituximabe, bortezomibe e tocilizumabe) estão mais associados ao desenvolvimento de condições infecciosas graves. Curiosamente, a IgIV tem uma importante ação anti-infecciosa devido às altas taxas de imunoglobulina anti-citomegalovírus e anti-poliomavírus em seu preparado1212 Leroy F, Sechet A, Ayache RA, Thierry A, Belmouaz S, Desport E, et al. Cytomegalovirus prophylaxis with intravenous polyvalent immunoglobulin in high-risk renal transplant recipients. Transplant Proc. 2006 Sep;38(7):2324-6..

O uso da IgIV como medicamento exclusivo para dessensibilização é uma prática incomum e é necessário realizar mais estudos: nosso estudo teve um pequeno número de participantes e um curto tempo de observação, o que limita nossas conclusões.

Em resumo, podemos propor que, após dessensibilização somente com a IgIV, o transplante renal com doador vivo nestes pacientes altamente sensibilizados e de difícil compatibilidade é um tratamento seguro e eficaz com uma incidência aceitável de rejeição e infecção, resultando em boa sobrevida de longo prazo do paciente e do enxerto.

Abreviações

  • RAMA  rejeição mediada por anticorpos
  • CDCXM  prova cruzada por citotoxicidade dependente do complemento
  • DSA  anticorpo específico contra o doador
  • FCXM  prova cruzada por citometria de fluxo
  • HLA  antígeno leucocitário humano
  • iDSA  anticorpo específico contra o doador imunodominante
  • IgIV  imunoglobulina intravenosa humana polivalente
  • IMF  intensidade média de fluorescência
  • PRA  painel de reatividade de anticorpos
  • UNOS  Rede Unida para o Compartilhamento de Órgãos

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    13 Set 2021
  • Aceito
    08 Dez 2021
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