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Financiamento do transplante renal

O transplante renal, precursor dos demais transplantes de órgãos, iniciou no Brasil em meados dos anos 1960, pela determinação e o pioneirismo de nefrologistas, urologistas e cirurgiões gerais, sem a participação de órgãos governamentais por meio de controle ou financiamento. Essa fase heroica durou até 1987, quando o Ministério da Saúde, inicialmente pelo programa SIRC-Trans (Sistema integrado do paciente renal crônico e transplantado) e posteriormente, em 1993, pelo programa SIPAC-Rim (Sistema integrado de paciente de alta complexidade), passou a controlar e financiar parcialmente os transplantes renais. Após essa fase romântica, ingressamos, em 1998, na fase profissional dos transplantes, com o estabelecimento de uma política de transplantes no país. Foi então criado um modelo organizacional, baseado no modelo espanhol, (Sistema Nacional, Central Nacional, Centrais Estaduais e coordenadores hospitalares de transplante) e estabelecido um financiamento adequado para a época para todas as etapas dos transplantes, por meio do Fundo de Ações Estratégicas e Compensação (FAEC)11 Garcia VD, Werenicz A, Onzi G, Andreghetto PB, Pereira R. Situação atual dos transplantes no Brasil. In: Garcia CD, Pereira JD, Garcia VD, eds. Doação e transplante de órgãos e tecidos. 2ª ed. São Paulo (SP): Segmento Pharma; 2015. p. 43-60.,22 Garcia VD, Keitel E, Abbud Filho M. Avaliação econômica do transplante renal no Brasil. In: Silva Júnior GB, Oliveira JGR, Barros E, Martins CTB, eds. A nefrologia e o sistema de saúde do Brasil. São Paulo (SP): Livraria Balieiro; 2019. p. 175-200..

No ressarcimento do transplante renal, em 1998, o valor do transplante renal com doador falecido era 18% superior ao do transplante com doador vivo (R$ 10.013,00 e 8.473,24, respectivamente). Com os reajustes, essa diferença passou a ser de 30% em 2012 (R$ 27.622,67 e R$ 21.238,82, respectivamente). Nesse ano foi, também, concedido para alguns procedimentos de doação e transplante, incluindo o transplante renal, um incremento financeiro (IFTDO) de 30% a 60%, de acordo com o número, a modalidade e a complexidade dos transplantes que realizam22 Garcia VD, Keitel E, Abbud Filho M. Avaliação econômica do transplante renal no Brasil. In: Silva Júnior GB, Oliveira JGR, Barros E, Martins CTB, eds. A nefrologia e o sistema de saúde do Brasil. São Paulo (SP): Livraria Balieiro; 2019. p. 175-200.. Desde então não houve reajuste dos valores do transplante renal.

Há poucos estudos no Brasil analisando os custos do transplante renal, a maioria comparando o tratamento dialítico. Todos demonstram que o transplante apresenta melhor relação custo-benefício33 Sesso R, Eisenberg JM, Stabile C, Draibe S, Ajzen H, Ramos O. Cost-effectiveness analysis of the treatment of end-stage renal disease in Brazil. Int J Technol Assess Health Care. 1990;6(1):107-14.

4 Silva SB, Caulliraux HM, Araujo CAS, Rocha E. Uma comparação dos custos do transplante renal em relação às diálises no Brasil. Cad Saúde Pública. 2016 Jun;32(6):e00013515.
-55 Gouveia DSS, Bignelli AT, Hokazono SR, Danucalov I, Siemens TA, Meyer F, et al. Análise do impacto econômico entre as modalidades de terapia renal substitutiva. J Bras Nefrol. 2017;39(2):162-71.. Num estudo com 80 transplantes realizados na Santa Casa de Porto Alegre, entre 2012 e 2013, o custo médio do transplante renal com doador falecido foi de R$ 30.094,86 e com doador vivo, R$ 20.004,76, no entanto não houve análise mais detalhada dos transplantes, como a separação por doador falecido padrão ou com critério expandido66 Conrad AT. Análise do custo econômico do transplante renal [dissertação]. Porto Alegre (RS): Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS); 2014..

Num elegante estudo realizado no HC-USP, Quinino et al. (2021)77 Quinino RM, Agena F, Paula FJ, Nahas WC, David Neto E. Comparative analysis of kidney transplant costs related to recovery of renal function after the procedure. Braz J Nephrol [Internet]. 2021 May 18; [cited 2021 Apr 30]; [Epub ahead of print]. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-28002021005038301&lng=en DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2020-0172
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compararam os custos dos transplantes renais com doador falecido, em receptores com queda rápida (Grupo 1) ou lenta da creatinina sem necessidade de diálise (Grupo 2) e com necessidade de diálise na primeira semana (Grupo 3). Demonstraram que os valores do custo foram significativamente maiores nos grupos 2 (36%) e 3 (166%), quando comparados aos do Grupo 1. Baseados nesses resultados, sugerem solicitar às autoridades de saúde, que reembolsem os transplantes renais em receptores não sensibilizados, com valores diferenciados para esses três grupos77 Quinino RM, Agena F, Paula FJ, Nahas WC, David Neto E. Comparative analysis of kidney transplant costs related to recovery of renal function after the procedure. Braz J Nephrol [Internet]. 2021 May 18; [cited 2021 Apr 30]; [Epub ahead of print]. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-28002021005038301&lng=en DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2020-0172
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Nos parece plenamente justificada a reinvindicação de valores diferenciados para transplantes renais com maior complexidade ou morbidade, como já ocorre com o tipo de doador, se vivo ou falecido. Entretanto, ao invés de propor um acréscimo nos valores na dependência de um desfecho (percentagem de queda da creatinina ou necessidade de diálise), nos parece mais viável a proposição de pagamento diferenciado por risco, como já ocorre no transplante renal com doador vivo e falecido.

Uma forma alternativa e mais ampla para ser proposta às autoridades de saúde é o pagamento diferenciado (30% a 50% maior), previamente estabelecido, para grupos de receptores de transplante renal com doador falecido mais complexos, como:

  • receptores pediátricos com idade igual ou inferior a 12 anos, como já ocorre no pagamento de hemodiálise dessa população88 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Portaria no 1.331, de 27 de novembro de 2013. Altera valores de remuneração e inclui procedimentos de terapia renal substitutiva na tabela de procedimentos, medicamentos, órteses, próteses e materiais especiais do SUS. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2013.;

  • receptores de rins de doadores de maior risco (KDPI > 85% ou outro critério a ser adotado);

  • receptores com risco imunológico alto (presença de DSA > 2.000 e outras situações a serem discutidas).

A utilização da máquina de perfusão renal discutida por Quinino et al. (2021)77 Quinino RM, Agena F, Paula FJ, Nahas WC, David Neto E. Comparative analysis of kidney transplant costs related to recovery of renal function after the procedure. Braz J Nephrol [Internet]. 2021 May 18; [cited 2021 Apr 30]; [Epub ahead of print]. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-28002021005038301&lng=en DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2020-0172
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merece uma análise mais aprofundada de seu real valor no Brasil. Há estudos no país demonstrando menor incidência e duração da função retardada do enxerto e consequente menor tempo de internação hospitalar99 Matos ACC, Moura LRR, Borrelli M, Nogueira M, Clarizia G, Ongaro P, et al. Impact of machine perfusion after long static cold storage on delayed graft function incidence and duration and time to hospital discharge. Clin Transplant. 2018 Jan;32(1).,1010 Tedesco-Silva Junior H, Offerni JCM, Carneiro VA, Paula MI, David Neto E, Lemos FBC, et al. Randomized trial of machine perfusion versus cold storage in recipients of deceased donor kidney transplants with high incidence of delayed graft function. Transplant Direct. 2017 Apr;3(5):e155.; entretanto o custo é elevado. Como o rim é perfundido antes da alocação, diferentemente dos outros órgãos, em cada estado deve haver uma avaliação pela central de transplantes, assessorada pela Câmara Técnica do Rim, que deve ser a responsável, se houver a decisão, pela compra das máquinas e do material de consumo e pela perfusão. Caso se decida utilizar a perfusão por máquina, as indicações e o controle de resultados devem ficar com a câmara técnica de transplante renal do estado. Isso poderia evitar o que aconteceu em alguns estados, em que as máquinas de perfusão adquiridas foram utilizadas por um período de meses ou poucos anos, para então ser suspenso o uso por causa do alto custo do material de consumo e porque os resultados não puderam ser avaliados, visto que as indicações para o emprego da perfusão contínua não foram definidas adequadamente.

Ao analisar o financiamento do transplante renal, assim como o transplante de outros órgãos, após mais de 20 anos nessa fase profissional, observa-se que ainda não há o ressarcimento de alguns exames laboratoriais fundamentais para o acompanhamento de pacientes transplantados, como o PCR para CMV, EBV e BKV, que permitem o diagnóstico precoce dessas doenças, assim como também não é fornecido medicamento eficaz, por via oral, para o tratamento da doença por CMV. Essas medidas simples são custo-efetivas, pois diminuem a morbidade, a mortalidade e o tempo de internação. Também, numa análise mais ampla do financiamento dos transplantes, devem ser revistos os valores da investigação imunológica e do acompanhamento pós-transplante, há mais de 20 anos sem reajuste22 Garcia VD, Keitel E, Abbud Filho M. Avaliação econômica do transplante renal no Brasil. In: Silva Júnior GB, Oliveira JGR, Barros E, Martins CTB, eds. A nefrologia e o sistema de saúde do Brasil. São Paulo (SP): Livraria Balieiro; 2019. p. 175-200..

O artigo de Quinino et al. (2021)77 Quinino RM, Agena F, Paula FJ, Nahas WC, David Neto E. Comparative analysis of kidney transplant costs related to recovery of renal function after the procedure. Braz J Nephrol [Internet]. 2021 May 18; [cited 2021 Apr 30]; [Epub ahead of print]. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-28002021005038301&lng=en DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2020-0172
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do HC-USP tem o mérito de analisar os custos da internação do transplante renal em um grande número de pacientes e de propor modificações na forma de ressarcimento, aguardamos novos estudos nessa área, propondo alterações que possam aprimorar o sistema de financiamento dos transplantes no Brasil.

REFERENCES

  • 1
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    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-28002021005038301&lng=en» https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2020-0172
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    25 Abr 2021
  • Aceito
    27 Abr 2021
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