Acessibilidade / Reportar erro

Prevalência e fatores associados à tuberculose em pacientes soropositivos para o vírus da imunodeficiência humana em centro de referência para tratamento da síndrome da imunodeficiência adquirida na região sul do Rio Grande do Sul

Resumos

OBJETIVO: Considerando a relevância da co-infecção vírus da imunodeficiência humana/tuberculose, este estudo foi desenvolvido para determinar a prevalência e os fatores associados à tuberculose em pacientes residentes em uma zona de alta prevalência das duas infecções. MÉTODOS: Todos os pacientes atendidos no ano de 1999 no Serviço HIV/AIDS do Hospital Universitário da Universidade Federal do Rio Grande foram avaliados retrospectivamente desde o momento do diagnóstico da presença do vírus da imunodeficiência humana, em relação à ocorrência de tuberculose e sua associação com fatores sociodemográficos, comportamentais e imunológicos. RESULTADOS: A amostra incluiu 204 pacientes e a prevalência encontrada de tuberculose foi de 27%. A análise multivariada mostrou que existe uma associação significativa do desenvolvimento de tuberculose com a raça negra (razão de chance: 4,76; intervalo de confiança de 95%: 1,93 -11,72) e uma relação inversa com a contagem de linfócitos TCD4+ no momento do diagnóstico do vírus da imunodeficiência humana (razão de chance: 0,995; intervalo de confiança de 95%: 0,993-0,997). O sexo masculino (razão de chance: 2,49; intervalo de confiança de 95%: 1,15-5,39) e o uso de drogas (razão de chance: 2,1; intervalo de confiança: 95% de 1,02-4,31) podem também ser fatores de risco quando analisados separadamente. CONCLUSÃO: Os fatores responsáveis pelo desenvolvimento da tuberculose entre os pacientes soropositivos para o vírus da imunodeficiência humana incluem os aspectos imunitários e fatores socioeconômicos e demográficos. A alta taxa de tuberculose em pacientes soropositivos torna urgente implementar estratégias que combinem rápida identificação e tratamento dos casos, comunicantes e indivíduos com infecção latente.

Infecções por HIV; Infecções oportunistas relacionadas com a AIDS; Tuberculose; Tuberculose


OBJECTIVE: In view of the relevance of co-infection with tuberculosis and human immunodeficiency virus, this study was designed to determine tuberculosis prevalence and identify factors related to tuberculosis in patients residing in a region in which both infections are highly prevalent. METHODS: All patients treated during 1999 at the HIV/AIDS Clinic of the Universidade Federal do Rio Grande (Rio Grande Federal University) University Hospital were evaluated retrospectively, from the time of human immunodeficiency virus diagnosis, in terms of the incidence of tuberculosis and its relationship to sociodemographic, behavioral and immunological factors. RESULTS: The sample included 204 patients, and tuberculosis prevalence was found to be 27%. The multivariate analysis showed a significant correlation between the development of tuberculosis and being of African descent (odds ratio: 4.76; 95% confidence interval: 1.93-11.72) and an inverse correlation between the development of tuberculosis and the TCD4+ lymphocyte count at the time of human immunodeficiency virus diagnosis (odds ratio: 0.995; 95% confidence interval: 0.993-0.997). When analyzed separately, other variables were found to be potential risk factors: being of the male gender (odds ratio: 2.49; 95% confidence interval: 1.15-5.39); and using illicit drugs (odds ratio: 2.1; 95% confidence interval: 1.02-4.31). CONCLUSION: The factors responsible for the development of tuberculosis among patients who are human immunodeficiency virus seropositive include immunological, socioeconomic and demographic factors. The high rate of tuberculosis prevalence among the seropositive patients underscores the urgent need to implement strategies that combine rapid identification and prompt treatment of individuals with active or latent infection, as well as of those with whom they have been in contact.

HIV Infections; AIDS-related opportunistic infections; Tuberculosis; Tuberculosis


ARTIGO ORIGINAL

Prevalência e fatores associados à tuberculose em pacientes soropositivos para o vírus da imunodeficiência humana em centro de referência para tratamento da síndrome da imunodeficiência adquirida na região sul do Rio Grande do Sul* * Trabalho realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas da Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre, Hospital Universitário Dr. Miguel Riet Correa Jr. - Fundação Universidade do Rio Grande - FURG - Porto Alegre (RS) - Brasil

Jussara Maria SilveiraI; Raúl Andrés Mendoza SassiI; Isabel Cristina de Oliveira NettoI; Jorge Lima HetzelII

IProfessor Adjunto do Departamento de Medicina Interna da Fundação Universidade do Rio Grande - FURG - Porto Alegre (RS) - Brasil

IIProfessor Adjunto de Pneumologia da Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre - FFFCMPA - Porto Alegre (RS) Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Jussara Maria Silveira. Av. Buarque de Macedo, 485, bloco 8, apto 201 CEP: 96211-110, Rio Grande - RS, Brasil.

RESUMO

OBJETIVO: Considerando a relevância da co-infecção vírus da imunodeficiência humana/tuberculose, este estudo foi desenvolvido para determinar a prevalência e os fatores associados à tuberculose em pacientes residentes em uma zona de alta prevalência das duas infecções.

MÉTODOS: Todos os pacientes atendidos no ano de 1999 no Serviço HIV/AIDS do Hospital Universitário da Universidade Federal do Rio Grande foram avaliados retrospectivamente desde o momento do diagnóstico da presença do vírus da imunodeficiência humana, em relação à ocorrência de tuberculose e sua associação com fatores sociodemográficos, comportamentais e imunológicos.

RESULTADOS: A amostra incluiu 204 pacientes e a prevalência encontrada de tuberculose foi de 27%. A análise multivariada mostrou que existe uma associação significativa do desenvolvimento de tuberculose com a raça negra (razão de chance: 4,76; intervalo de confiança de 95%: 1,93 -11,72) e uma relação inversa com a contagem de linfócitos TCD4+ no momento do diagnóstico do vírus da imunodeficiência humana (razão de chance: 0,995; intervalo de confiança de 95%: 0,993-0,997). O sexo masculino (razão de chance: 2,49; intervalo de confiança de 95%: 1,15-5,39) e o uso de drogas (razão de chance: 2,1; intervalo de confiança: 95% de 1,02-4,31) podem também ser fatores de risco quando analisados separadamente.

CONCLUSÃO: Os fatores responsáveis pelo desenvolvimento da tuberculose entre os pacientes soropositivos para o vírus da imunodeficiência humana incluem os aspectos imunitários e fatores socioeconômicos e demográficos. A alta taxa de tuberculose em pacientes soropositivos torna urgente implementar estratégias que combinem rápida identificação e tratamento dos casos, comunicantes e indivíduos com infecção latente.

Descritores: Infecções por HIV/complicações; Infecções oportunistas relacionadas com a AIDS/complicações; Tuberculose/etiologia; Tuberculose/epidemiologia

INTRODUÇÃO

A incidência de tuberculose (TB) está aumentando globalmente e esse aumento é fortemente relacionado com a infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV). Atualmente cerca de 11 milhões de pessoas no mundo estão co-infectadas pelo M. tuberculosis e HIV.(1-3) A distribuição da TB no mundo relaciona-se diretamente com a condição socioeconômica da população.(1-3) O Brasil é o décimo terceiro país no mundo em número total de casos, integrando um grupo formado por 22 países que são responsáveis por 80% dos casos de TB em nível global.(2)

O Município de Rio Grande (RS) pertence à 3ª Coordenadoria Regional de Saúde, que é considerada, pelo Programa de Controle da Tuberculose no Rio Grande do Sul, zona de alta prevalência desta enfermidade.(4) A cidade de Rio Grande, portuária e universitária, é o 37º município com o maior número de casos de infecção pelo HIV no Brasil.(5) O Hospital Universitário Dr. Miguel Riet Corrêa Jr. é um centro de referência para o atendimento de indivíduos soropositivos para o HIV desde o início da epidemia e atende pacientes provenientes de 27 municípios da zona sul do Estado do Rio Grande do Sul. Neste hospital, são atendidos todos os pacientes HIV+ que residem na cidade de Rio Grande e nos municípios menores da região e não apenas os casos mais graves, como é habitual nos serviços de referência. Portanto, os dados epidemiológicos deste local refletem, com certa precisão, a prevalência regional. Em um estudo realizado neste hospital, com pacientes HIV+, a TB foi encontrada em 29% dos casos e foi a principal infecção oportunista que definiu a síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS).(6)

A TB é a infecção oportunista característica da AIDS predominante no planeta, tem predileção por grupos sociais menos favorecidos,(1-3) pode acelerar o curso da infecção pelo HIV(7) e o diagnóstico, freqüentemente, é difícil. Também tem sido demonstrada diminuição da sobrevida de pacientes com AIDS após o desenvolvimento de TB ativa, principalmente em pacientes com menor imunossupressão, com contagens de linfócitos T CD4+ maiores que 200/mm3.(8-9) No plano terapêutico existem importantes interações entre tuberculostáticos e anti-retrovirais e as formas resistentes são origem de dificuldades terapêuticas maiores.

O desenvolvimento da doença ativa no paciente HIV+ depende do grau de imunossupressão, do comportamento de risco, dos hábitos de vida, do contato com indivíduos bacilíferos e do uso de profilaxia específica e de terapia anti-retroviral.(10-15)

Estes fatores são bem estudados em países industrializados, onde é conhecida a maior vulnerabilidade dos usuários de drogas injetáveis e de álcool.(12,15-16) Nestes países, onde a prevalência de infecção latente pelo M. tuberculosis é baixa e existem boas condições de saúde, a população "geral" tem menor exposição ao M. tuberculosis e os usuários de drogas injetáveis apresentam hábitos de vida que os expõem mais ao bacilo. Em locais com alta prevalência da co-infecção TB e HIV e más condições de saúde, como os países africanos, o uso de drogas não faz parte do comportamento cultural.(17)

Após o advento da terapia anti-retroviral, tem sido observada uma diminuição da incidência de TB(18-20) nos países onde os anti-retrovirais são disponíveis.

Dessa forma, o Brasil é praticamente o único país com um grande número de indivíduos co-infectados e uma política de acesso universal à terapia anti-retroviral e, portanto, com condições para estabelecer estratégias que diminuam a morbimortalidade da TB associada ao HIV. A principal medida para o controle da epidemia é o diagnóstico precoce, o tratamento adequado dos indivíduos bacilíferos e a busca dos contatos.

O presente trabalho tem como objetivos verificar a prevalência de TB em indivíduos HIV+ atendidos neste serviço e identificar os fatores associados com seu desenvolvimento no momento do diagnóstico da infecção pelo HIV.

MÉTODOS

Todos os pacientes atendidos no ano de 1999 no Serviço HIV/AIDS do Hospital Universitário Dr. Miguel Riet Jr., da Fundação Universidade Federal do Rio Grande, foram avaliados retrospectivamente desde o momento do diagnóstico da doença até o momento da pesquisa, em relação à ocorrência de TB e eventos ou fatores anteriores a este diagnóstico.

O estudo foi aprovado pela comissão de ética do hospital. Foi esclarecido que nos casos de não consentimento não haveria prejuízo no acompanhamento médico do paciente. Os pacientes que concordaram em participar forneceram o consentimento por escrito.

Os critérios de inclusão para compor a amostra foram: estar infectado pelo HIV, ter idade maior que treze anos, fazer seguimento clínico no serviço ambulatorial especializado ou hospital-dia da instituição, e ter diagnóstico de TB posterior ao diagnóstico de infecção pelo HIV. Foram excluídas as gestantes, os pacientes com outra infecção oportunista em atividade no momento da pesquisa e aqueles com diagnóstico de TB anterior ao diagnóstico de HIV.

Os pacientes assim selecionados foram submetidos a um questionário e avaliados, mediante revisão dos seus registros médicos, com relação a sua condição imunológica no momento do diagnóstico de soropositividade para o HIV. O questionário estruturado para o estudo compreendia variáveis sociodemográficas e comportamentais, e foi aplicado por uma das pesquisadoras. As variáveis estudadas foram: idade, sexo, raça, escolaridade, uso de tabaco, de álcool e de drogas ilícitas até o momento da entrevista, e modo de contaminação pelo HIV. A raça foi categorizada como branca ou negra. A escolaridade foi categorizada em até quatro anos, cinco a oito anos, e mais de oito anos de estudo. Como fumantes foram definidos os indivíduos que fumavam pelo menos um cigarro por dia. Como ex-fumante foi definido quem havia abandonado o hábito havia pelo menos seis meses e como não fumantes os indivíduos que nunca tinham fumado ou que tinham fumado até 100 cigarros durante toda a vida, mas que no momento da pesquisa não fumavam havia pelo menos seis meses. Os pacientes foram questionados sobre o uso de drogas ilícitas e categorizados como usuários ou não, e como experimentadores se usaram drogas até cinco vezes durante toda a vida. Os usuários de álcool foram categorizados como uso diário, duas a três vezes semanais e eventual. Para fins de análise estatística os experimentadores de drogas ilícitas, tabaco e os usuários eventuais de álcool foram classificados como não usuários. Os indivíduos que apresentaram mais de uma categoria de exposição para o HIV foram questionados separadamente em todas as categorias a que pertenciam. Para fins de análise estatística, os dados foram reagrupados de acordo com a Classificação Hierarquizada das Categorias de Transmissão.(6)

O grau de imunossupressão foi determinado pela contagem das subpopulações linfocitárias T CD4+/CD8+ (LTCD4+) e classificação da Centers for Disease Control - 93. A contagem de LTCD4+ foi realizada pela técnica de citometria de fluxo (FACSCount do laboratório Becton & Dickinson®), no Laboratório de Apoio à AIDS do Departamento de Patologia da Fundação Universidade do Rio Grande, ligado à rede de Laboratórios de Carga Viral e LT CD4+ do Ministério da Saúde. Foi analisada a contagem de LT CD4+ do paciente no momento do diagnóstico no serviço.

O desfecho final foi o desenvolvimento de TB desde o momento do diagnóstico no Serviço de HIV/AIDS até o momento da entrevista em 1999. O diagnóstico de TB foi estabelecido pelo quadro clínico associado à baciloscopia positiva nos espécimes estudados e/ou cultura positiva para M. tuberculosis. Para os pacientes que tiveram TB após o diagnóstico de HIV, foi determinada a data, localização e forma de tratamento (regular ou irregular) da doença.

Foi criado um banco de dados no programa Excel, onde foram digitados os dados, com posterior tradução para o programa Stata 8.0. Procedeu-se à análise descritiva mediante o cálculo de médias e proporções. Para estudar a associação entre desfecho e cada um dos fatores de interesse foi realizada análise bivariada e foram calculadas as razões de chances (RC) e seus respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%). Com a finalidade de estudar o efeito independente dos diversos fatores, foi realizada uma análise multivariada, mediante a utilização da regressão logística não condicional, calculando-se desta forma as RC e os respectivos IC95%. Foi utilizado como critério de permanência no modelo um valor de p = 0,2 (confusão negativa). A qualidade dos modelos ajustados foi avaliada pelo teste de Hosmer-Lemeshow. Em todos os casos, para decisão estatística, foi adotado um p < 0,05 para um teste bicaudal. Para variáveis categóricas ordinais foi aplicado também um teste de tendência linear.

RESULTADOS

A amostra incluiu um total de 204 pacientes, sendo 122 do sexo masculino (60%). A média de idade do grupo foi de 34,04 (desvio padrão de 10,1) anos com amplitude de 16 a 68 anos. Conforme observado na Tabela 1, houve predomínio de pacientes da raça branca (171 - 84%), com baixa escolaridade (apenas 34 tinham primeiro grau completo - 17%). A principal forma de contaminação foi a sexual (150 pacientes - 74,6%), seguida pelo uso de drogas injetáveis (51 - 25%). No momento da pesquisa, aproximadamente metade do grupo preenchia os critérios de AIDS (111- 54,4%) e a média de LTCD4+ foi de 187,27 (desvio padrão de 20,63).

Entre os pacientes entrevistados, 98 tinham história de uso de substâncias ilícitas (48%), sendo que 53 eram usuários de drogas injetáveis (26%). O uso de tabaco foi observado em 150 pacientes (73,5%) e o consumo de álcool em 117 (57,8%).

Dos 204 pacientes estudados, 55 desenvolveram TB após a infecção pelo HIV (27%). Neste grupo, a média de idade foi de 35,5 (desvio padrão de 10,3) anos e houve maior prevalência em homens e em indivíduos com baixa escolaridade, conforme apresentado na Tabela 1.

Estudando as características associadas à TB (Tabela 2), a análise bivariada mostrou que foram mais acometidos os homens (RC: 2,17; IC95%: 1,10 - 4,28; p = 0,024), de raça negra (RC: 3,72; IC95%: 1,72 - 8,05; p = 0,001) e os com maior imunossupressão (LTCD4+ inicial RC: 0,996; IC95%: 0,994 - 0,998; p < 0,0001). A escolaridade teve uma associação inversa com o desfecho, mas esta diferença não atingiu o ponto de corte estipulado para significância. Da mesma forma, o uso de drogas determinaria um aumento do risco de TB, mas o valor de p não foi significativo, situando-se muito próximo do limite de significância (p = 0,08). As outras variáveis analisadas, uso de tabaco, de drogas ilícitas e de álcool não mostraram associação com o desenvolvimento de TB.

Entre os pacientes com TB, a forma extrapulmonar foi mais freqüente que a pulmonar, uma vez que 39 pacientes tiveram a forma extrapulmonar (70,9%) e 16 apresentaram a pulmonar (29,1%) (p = 0,003). Os pacientes com a forma extrapulmonar apresentaram contagem de LTCD4+ inferior à dos com a forma pulmonar. A média de LTCD4+ foi de 203 (desvio padrão de 30,7) na forma pulmonar, e de 180,7 (desvio padrão de 26,4) nas localizações extrapulmonares, mas esta diferença não foi significativa (p = 0,6).

Quando utilizada a análise multivariada, conforme se observa na Tabela 2, o modelo final ajustado mostrou associações significativas entre o desfecho e os fatores contagem de LTCD4+ e raça. Com respeito à primeira, pode-se observar que, quanto maior a contagem no momento do diagnóstico, menor o risco de o paciente apresentar TB (RC: 0,995; IC95%: 0,993 - 0,997). Por outro lado, aqueles pacientes de raça negra tiveram um risco aumentado para desenvolver TB (RC: 4,93; IC95%: 2,02 -12,02). Três variáveis permaneceram no modelo por apresentarem um p menor ou igual a 0,2: escolaridade, sexo masculino e uso de drogas. A escolaridade aumentou o efeito após o ajuste, mas o valor de p situou-se em 0,1. Com respeito ao sexo masculino, que na análise bruta teve uma associação significativa e uma RC maior que 2, após o ajuste com as outras variáveis, se bem manteve o efeito, o valor de p ficou no limite de significância (p = 0,053). Sobre o uso de drogas, esta variável manteve os valores observados antes do ajuste, sem grandes mudanças.

Uma análise mais detalhada mostrou que existia uma colinearidade entre uso de drogas e sexo masculino, de tal forma que a saída do modelo de um deles tornava significativo o outro. Assim, ao se retirar do modelo o fator uso de drogas, a RC de sexo masculino passava para 2,49 (IC95%: 1,15 - 5,39) com um p = 0,02. Já quando a variável retirada era sexo, a RC de uso de droga situava-se em 2,1 (IC95%: 1,02 - 4,31) e o valor de p era 0,44.

Embora o uso de cocaína injetável tenha aumentado o risco de TB, tal achado não alcançou significância estatística para permanecer no modelo final. O uso de drogas lícitas, como álcool ou tabaco, não teve nenhuma associação com o desfecho.

DISCUSSÃO

Este estudo mostrou que existe uma associação significativa entre o desenvolvimento de TB com a raça do paciente e a contagem de LTCD4+ no momento do diagnóstico da infecção pelo HIV, e que o sexo masculino e o uso de drogas podem também ser fatores de risco quando analisados em separado.

Entre as possíveis limitações que o estudo apresentou, a principal seria o estabelecimento da relação temporal entre infecção pelo HIV e o diagnóstico de TB. Este aspecto foi minimizado pela exclusão dos pacientes com diagnóstico de TBC anterior ao diagnóstico de infecção pelo HIV. Dos 55 pacientes com TB, 36 tiveram esta doença diagnosticada no momento do diagnóstico da infecção pelo HIV. Outra limitação foi a não realização da prova tuberculínica, que é um fator prognóstico muito importante. A relação entre o teste e o desenvolvimento da doença está bem estabelecida. Neste estudo, não foi possível analisar este fator por indisponibilidade de tuberculina no país, no momento da pesquisa.

Outro aspecto metodológico relevante em todo estudo que tenta identificar usuários de drogas lícitas ou ilícitas é a subestimação das respectivas prevalências por ocultação de informação: os valores poderiam ser ainda um pouco maiores que os encontrados. Mas a fidelidade das informações obtidas entre os pacientes HIV+ seguidos no serviço parece ser melhor que as obtidas em enquetes na população geral, de forma que este aspecto não deve ser relevante.

Deve-se salientar que, embora os serviços de referência recebam, habitualmente, os casos mais graves, complexos, com maiores dificuldades diagnósticas, isto não se aplica ao hospital em que foi desenvolvido este estudo, pois este participa da avaliação e acompanhamento de todos os casos soropositivos da cidade e de municípios menores da região, e não é apenas referência para os casos graves. Desta forma, a prevalência encontrada pode refletir a prevalência da região.

As características encontradas no grupo estudado com respeito às variáveis demográficas e socioeconômicas são semelhantes ao perfil dos pacientes soropositivos para o HIV no Brasil.(4)

Em relação ao consumo de tabaco (73,5%), em um estudo envolvendo a população geral do Rio Grande do Sul, foi encontrada uma prevalência de tabagismo de 27,4%.(21) Esta diferença entre indivíduos infectados pelo HIV e a população geral é vista em outros estudos que mostram prevalências de tabagismo em pacientes HIV+ variando de 31% a 88%.(22-24) Esta alta prevalência pode ser relacionada à grande proporção de pessoas com história de uso de drogas, atividade que é fortemente associada ao tabagismo.

O estudo encontrou que 26% dos pacientes com HIV desenvolveram TB. Estes valores estão de acordo com os achados de outros trabalhos. Como o desenvolvimento de TB está relacionado com as condições socioeconômicas da população, sua prevalência ou incidência varia de acordo com o grupo estudado. A análise das notificações de AIDS no Brasil, entre 1980 e março de 2000, mostrou que 24% dos casos tinham o diagnóstico de TB no momento da notificação.(25)

Outros estudos realizados em zonas com altas prevalências de TB e infecção pelo HIV também mostram prevalências semelhantes,(9,13,26) ao contrário do encontrado em países industrializados, onde a prevalência da co-infecção é muito menor.(1,3) Como a TB é a única infecção oportunista característica da AIDS que é transmissível para outros indivíduos, é de suma importância conhecer os fatores associados que possam predispor os pacientes a esta infecção, a fim de estabelecer o diagnóstico e o tratamento precocemente.

Com relação à localização, a forma pulmonar foi comprovadamente diagnosticada em um terço dos pacientes e a extrapulmonar foi responsável por 70% dos diagnósticos. Entre as formas extrapulmonares, a ganglionar foi a mais freqüente, o que está em consonância com a literatura para o grau de imunossupressão do grupo estudado.(7,22)

Os resultados do presente estudo mostram que, após ajuste com outras variáveis, a TBC foi mais freqüente nos indivíduos de raça negra, com menor contagem de LTCD4+. Com respeito ao nível de LTCD4+, embora o grau de imunossupressão seja o fator isolado mais importante para o desenvolvimento e forma de apresentação da TB,(7,26) o aumento do risco de TB em áreas endêmicas para esta infecção logo após a contaminação pelo HIV, quando o sistema imune ainda está preservado, pode ser maior do que o anteriormente suposto. Alguns autores encontraram o dobro da incidência de TB no primeiro ano após a infecção pelo HIV e quatro vezes maior nos dois anos seguintes.(28)

Sobre o maior risco observado no grupo de raça negra, os estudos mostram que a prevalência de TB em negros é maior do que em brancos.(29) Embora a relação deste dado com as condições socioeconômicas da África possa ser mais importante do que a etnia, estudos realizados nos EUA, em populações desprivilegiadas socialmente, também evidenciam maior prevalência de TB em indivíduos desta raça.(14,28)

O modelo final também incluiu sexo, uso de drogas e escolaridade, uma vez que cumpriram o critério de um p menor que 0,2. Sobre o sexo como fator de risco para desenvolvimento de TB entre pacientes HIV+, a análise mostrou que o valor de p ficou muito próximo do limite de significância (p = 0,052). E, conforme se explica nos próximos parágrafos, devido à colinearidade, a retirada da variável uso de drogas determinou que o sexo masculino passasse a ter uma RC de 2,49 (IC95%:1,15 - 5,39; p = 0,02), quando comparado com o sexo feminino. Em adultos, a taxa de notificação de TB mostra uma maior prevalência em homens do que em mulheres.(10,13,15,17,25-27,31) No entanto, não está claro se existe uma real disparidade na prevalência de TBC entre os sexos ou se estão implicados fatores de confusão como diferenças em relação a acesso a tratamento e estigmatização.(30)

Embora os usuários de drogas injetáveis tenham maior vulnerabilidade para a TB,(10-12,15-16) o atual estudo não encontrou associação com esta variável. A ausência de associação significativa no modelo ajustado pode ser explicada pela falta de poder da amostra em estudo, uma vez que o uso de droga injetável está associado ao sexo masculino(5) e no presente estudo somente duas mulheres apresentaram as duas condições associadas (TB e uso de droga injetável).

A associação entre sexo e uso de drogas com o desenvolvimento de TB no paciente HIV+ volta a aparecer ao se analisar o uso de drogas em geral. Como foi dito, o modelo final incluiu ambas as variáveis porque os respectivos valores de p estavam dentro do valor pre-fixado para permanecer no modelo (p < 0,2). Ao se retirar a variável sexo da análise, o fator uso de drogas passou a ter uma RC de 2,1 (IC95%: 1,03 - 4,27) com um p = 0,04, mostrando assim a colinearidade com sexo.

A associação entre escolaridade e TB está bem documentada na literatura.(14,17,25-26) Neste estudo, apesar de as RC encontradas evidenciarem uma relação inversa entre a freqüência de TB e o nível de escolaridade, esta associação não foi significativa. Novamente, o motivo para esta ausência de associa-ção parece ser a falta de poder da amostra em estudo, uma vez que apenas seis indivíduos dos 204 estudados tinham mais de oito anos de estudo e desenvolveram TB.

Os resultados do presente estudo mostram que, excluindo-se a diminuição de LTCD4+, os outros fatores envolvidos no desenvolvimento da TBC no paciente HIV+ reproduzem os fatores de risco observados na população geral brasileira (baixa escolaridade, negro, usuário de drogas). Desta forma, a imunossupressão produzida pelo HIV associa-se àquelas características sociodemográficas e de comportamento para aumentar o risco à doença. Por isso, em países como o Brasil, onde a presença desses fatores sociodemográficos já determinava uma prevalência elevada da doença, com o surgimento da epidemia do HIV houve o incremento do número de casos observados, justificando, assim, as diferenças epidemiológicas encontradas com relação aos países desenvolvidos.

Desta forma, as dificuldades no controle da epidemia de TB que já existiam antes do advento da epidemia do HIV vêem-se hoje aumentadas e potencializadas pela co-infecção com o vírus do HIV. Experiências bem sucedidas na política de controle e tratamento da infecção pelo HIV devem ser aplicadas no programa de controle à TB. Controlar a epidemia da co-infecção HIV/TB requer um maciço esforço global. É urgente implementar estratégias que combinem rápida identificação e tratamento dos casos, dos comunicantes e dos indivíduos com infecção latente.

REFERENCIAS

1. Who.int [homepage on the Internet]. New York: World Health Organization, [cited 2004 Sept 7] Available from: http://www.who.int/gtb/Country_info/index.htm

5. Bol Epidemiol AIDST [periódico na Internet]. 2004 [citado 2004 Nov 23];18(1: 01a a 26a Semanas Epidemiológicas, jan-jun. 2004):[cerca de 48p.]. Disponível em: http://www.aids.gov.br/final/dados/BOLETIM2.pdf

Recebido para publicação em 30/3/05. Aprovado, após revisão, em 22/6/05.

  • 2. Ruffino-Netto A. Tuberculose: a calamidade negligenciada. Rev Soc Bras Med Trop. 2002;35(1):51-8.
  • 3. Corbett EL, Watt CJ, Walker N, Maher D, Williams BG, Raviglione MC, et al. The growing burden of tuberculosis: global trends and interactions with the HIV epidemic. Arch Intern Med. 2003;163(9):1009-21.
  • 4. Rio Grande do Sul. Secretaria da Saúde. Número de casos das doenças de notificação compulsória por CRS, RS, 2000-2001. [citado 2004 Ago 15]. Disponível em: http://www.saude.rs.gov.br
  • 6. Barral-Martinez AM. Perfil epidemiológico dos pacientes com AIDS atendidos no Hospital Universitário da Fundação Universidade Federal do Rio Grande e caracterização dos subtipos de HIV-1 prevalentes [tese]. Belo Horizonte: Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal de Minas Gerais; 1999.
  • 7. Michon C, Mortier E. La tuberculose. In: Girard PM, Katlama C, Pialoux G, editors. HIV édition 2001. Paris: Doin; 2001. p. 207-14.
  • 8. Whalen CC, Nsubuga P, Okwera A, Johnson JL, Hom DL, Michael NL, et al. Impact of pulmonary tuberculosis on survival of HIV-infected adults: a prospective epidemiologic study in Uganda. AIDS. 2000;14(9):1219-28.
  • 9. Badri M, Ehrlich R, Wood R, Pulerwitz T, Maartens G. Association between tuberculosis and HIV disease progression in a high tuberculosis prevalence area. Int J Tuberc Lung Dis. 2001;5(3):225-32.
  • 10. Castilla J, Gutiérrez A, Guerra L, Pérez De La Paz J, Noguer I, Ruiz C, et al. Pulmonary and extra-pulmonary tuberculosis at AIDS diagnosis in Spain: epidemiological differences and implications for control. AIDS. 1997;11(13):1583-8.
  • 11. Selwyn PA, Pumerantz AS, Durante A, Alcabes PG, Gourevitch MN, Boiselle PM, et al. Clinical predictors of Pneumocystis carinii pneumonia, bacterial pneumonia and tuberculosis in HIV-infected patients. AIDS. 1998;12(8):885-93.
  • 12. Keizer ST, Langendam MM, Van Deutekom H, Coutinho RA, Van Ameijden E J. How does tuberculosis relate to HIV positive and HIV negative drug users? J Epidemiol Community Health. 2000;54(1):64-68.
  • 13. Boffo MMS, Mattos IG, Ribeiro MO, Netto ICO. Tuberculose associada à AIDS: características demográficas, clínicas e laboratoriais em pacientes atendidos em um serviço de referência do sul do Brasil. J Pneumol. 2004;30(2):140-6.
  • 14. Moss AR, Hahn JA, Tulsky JP, Daley CL, Small PM, Hopewell PC. Tuberculosis in the homeless. A prospective study. Am J Respir Crit Care Med. 2000;162(2 Pt 1):460-4.
  • 15. Godoy P, Domínguez A, Alcaide J, Camps N, Jansà JM, Minguell S, et al Working Group of the Multicentre Tuberculosis Research Project. Characteristics of tuberculosis patients with positive sputum smear in Catalonia, Spain. Eur J Public Health. 2004;14(1):71-5.
  • 16. O'Donnell AE. HIV in illicit drug users. Clin Chest Med. 1996;17(4):797-807.
  • 17. Bates I, Fenton C, Gruber J, Lalloo D, Medina Lara A, Squire SB, et al. Vulnerability to malaria, tuberculosis, and HIV/AIDS infection and disease. Part 1. Determinants operating at individual and household level. Lancet Infect Dis. 2004;4(5):267-77.
  • 18. Wolff AJ, O'Donnell AE. Pulmonary manifestations of HIV infection in the era of highly active antiretroviral therapy. Chest. 2001;120(6):1888-93.
  • 19. Jones JL, Hanson DL, Dworkin MS, Alderton DL, Fleming PL, Kaplan JE, et al. Surveillance for AIDS-defining opportunistic illnesses, 1992-1997. MMWR CDC Surveill Summ. 1999;48(2):1-22.
  • 20. Santoro-Lopes G, Pinho AM, Harrison LH, Schechter M. Reduced risk of tuberculosis among Brazilian patients with advanced human immunodeficiency virus infection treated with highly active antiretroviral therapy. Clin Infect Dis. 2002;34(4):543-6.
  • 21. Oliveira Netto IC. Epidemiologia do tabagismo no Rio Grande do Sul [tese]. Porto Alegre: Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 1998.
  • 22. Wallace JM, Rao AV, Glassroth J, Hansen NI, Rosen MJ, Arakaki C, et al. Respiratory illness in persons with human immunodeficiency virus infection. The Pulmonary Complications of HIV Infection Study Group. Am Rev Respir Dis. 1993;148(6 Pt 1):1523-9.
  • 23. Conley LJ, Bush TJ, Buchbinder SP, Penley KA, Judson FN, Holmberg SD. The association between cigarette smoking and selected HIV-related medical conditions. AIDS. 1996;10(10):1121-6.
  • 24. Wewers MD, Diaz PT, Wewers ME, Lowe M, Nagaraja HN, Clanton TL. Cigarette smoking in HIV infection induces a supressive inflammatory environment in the lung. Am J Respir Crit Care Med. 1998;158(5 Pt 1):1543-9.
  • 25. Laguardia J, Mérchan-Hamann E. Factores de riesgo para la enfermedad tuberculosa en los casos de SIDA notificados en Brasil, 1980 a 2000. Rev Esp Salud Publica. 2003;77(5):553-65.
  • 26. Song ATW, Schout D, Novaes HMD, Goldbaum M. Aspectos clínicos e epidemiológicos da comorbidade AIDS/tuberculose. Rev Hosp Clin Fac Med São Paulo. 2003;58(4):207-14.
  • 27. Brito RC, Gounder C, Lima DB, Siqueira H, Cavalcanti HR, Pereira MM, et al. Resistência aos medicamentos anti-tuberculose de cepas de Mycobacterium tuberculosis isoladas de pacientes atendidos em hospital geral de referência para tratamento de AIDS no Rio de Janeiro. J Bras Pneumol. 2004;30(4):335-42.
  • 28. Sonnenberg P, Glynn JR, Fielding K, Murray J, Godfrey-Fausset P, Shearer S. How soon after infection with HIV does the risk of tuberculosis start to increase? A retrospective cohort study in South African gold miners. J Infect Dis. 2005;191(2):150-8.
  • 29. Centers for Disease Control and Prevention (CDC). Racial disparities in tuberculosis-selected southeastern states, 1991-2002. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2004;53(25): 556-9.
  • 30. Holmes CB, Hausler H, Numm P. A review of sex differences in the epidemiology of tuberculosis. Int J Tuberc Lung Dis. 1998;2(2):96-104.
  • 31. Garcia GF, Corrêa PCRP, Melo MGT, Souza MB. Prevalência da infecção pelo HIV em pacientes internados por tuberculose. J Pneumol. 2000;26(4):189-93.
  • Endereço para correspondência:
    Jussara Maria Silveira.
    Av. Buarque de Macedo, 485, bloco 8, apto 201
    CEP: 96211-110, Rio Grande - RS, Brasil.
  • *
    Trabalho realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas da Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre, Hospital Universitário Dr. Miguel Riet Correa Jr. - Fundação Universidade do Rio Grande - FURG - Porto Alegre (RS) - Brasil
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Maio 2006
    • Data do Fascículo
      Fev 2006

    Histórico

    • Recebido
      30 Mar 2005
    • Aceito
      22 Jun 2005
    Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia SCS Quadra 1, Bl. K salas 203/204, 70398-900 - Brasília - DF - Brasil, Fone/Fax: 0800 61 6218 ramal 211, (55 61)3245-1030/6218 ramal 211 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: jbp@sbpt.org.br