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Síndrome de Asperger e TOC: comorbidade ou unidade?

Asperger syndrome and OCD: comorbidity or unity?

Resumos

Comportamentos repetitivos, estereotipias e interesses restritos são alguns dos principais sintomas que compõem o transtorno de Asperger. Todavia, até que ponto é possível diferenciá-los de sintomas obsessivo-compulsivos que preencham critérios para transtorno obsessivo-compulsivo (TOC)? Muitas vezes, não é possível. Este trabalho relata o caso de um paciente com síndrome de Asperger e TOC. Abordamos até que ponto é realmente importante a distinção de um TOC como comorbidade distinta do Asperger, bem como nossa conduta terapêutica, na qual um inibidor seletivo da recaptura de serotonina (ISRS) em doses altas (fluoxetina) foi fundamental para melhor adaptação do paciente a suas funções socioocupacionais, melhorando significativamente sua qualidade de vida.

Síndrome de Asperger; transtorno obsessivo-compulsivo


Repetitive behavior, stereotypies and restricted interests are some of the main symptoms that compound the Asperger’s disorder. However, until what point is possible to differentiate them from obsessive-compulsive symptoms that meet criteria for obsessive-compulsive disorder (OCD)? Many times, that’s not possible. This work reports the case of a patient with Asperger syndrome and OCD. We bring up until what point is really important the distinction of OCD as a comorbidity different from Asperger, and also our therapeutic conduct, in which high doses of a selective serotonin reuptake inhibitor - SSRI - (fluoxetine) was fundamental to a better socio-occupational adjustment of the patient, significantly improving his quality of life.

Asperger syndrome; obsessive-compulsive disorder


CASO CLÍNICO

Síndrome de Asperger e TOC – comorbidade ou unidade?

Asperger syndrome and OCD – comorbidity or unity?

José Maria Aranha Fonseca; Ana Luiza Morais Campos; José Ramón Rodriguez Arras López

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Escola de Medicina e Cirurgia (EMC). Hospital Universitário Gaffrée e Guinle (HUGG). Departamento de Medicina Especializada. Disciplina de Psiquiatria. Serviço de Psiquiatria

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: José Maria Aranha Fonseca Rua Professor Gabiso, 210, apt. 503 20271-061 –Tijuca, Rio de Janeiro, RJ E-mail: josearanhaa@yahoo.com.br

RESUMO

Comportamentos repetitivos, estereotipias e interesses restritos são alguns dos principais sintomas que compõem o transtorno de Asperger. Todavia, até que ponto é possível diferenciá-los de sintomas obsessivo-compulsivos que preencham critérios para transtorno obsessivo-compulsivo (TOC)? Muitas vezes, não é possível. Este trabalho relata o caso de um paciente com síndrome de Asperger e TOC. Abordamos até que ponto é realmente importante a distinção de um TOC como comorbidade distinta do Asperger, bem como nossa conduta terapêutica, na qual um inibidor seletivo da recaptura de serotonina (ISRS) em doses altas (fluoxetina) foi fundamental para melhor adaptação do paciente a suas funções socioocupacionais, melhorando significativamente sua qualidade de vida.

Palavras-chave: Síndrome de Asperger, transtorno obsessivo-compulsivo.

ABSTRACT

Repetitive behavior, stereotypies and restricted interests are some of the main symptoms that compound the Asperger’s disorder. However, until what point is possible to differentiate them from obsessive-compulsive symptoms that meet criteria for obsessive-compulsive disorder (OCD)? Many times, that’s not possible. This work reports the case of a patient with Asperger syndrome and OCD. We bring up until what point is really important the distinction of OCD as a comorbidity different from Asperger, and also our therapeutic conduct, in which high doses of a selective serotonin reuptake inhibitor – SSRI – (fluoxetine) was fundamental to a better socio-occupational adjustment of the patient, significantly improving his quality of life.

Key-words: Asperger syndrome, obsessive-compulsive disorder.

INTRODUÇÃO

Embora Hans Asperger tenha descrito a psicopatia autista em 1944 (Asperger, 1944), a condição só foi receber o nome do médico austríaco em 1981, com Lorna Wing, quando publicou um estudo com 34 casos aos quais ela referiu como "síndrome de Asperger" (Wing, 1981). Sua prevalência é difícil de ser avaliada, visto que existem poucos estudos neste sentido, com resultados que variam de 2 a 56 casos por 10.000 habitantes (Suzuki e Saito, 2007). Tem se falado cada vez mais sobre os transtornos que compõem o "espectro autista", e desde que a(o) síndrome/transtorno de Asperger foi reconhecida(o) como uma entidade nosológica a parte, pela Organização Mundial de Saúde (1992) e pela Associação Americana de Psiquiatria (1994), tem surgido discussões acerca de suas diretrizes e critérios diagnósticos (Szatmari, 2000). Além de compartilhar características comuns a outros transtornos do "espectro autista", alguns de seus principais sintomas se sobrepõem a outras condições, tais como transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), dificultando o estabelecimento de uma fronteira entre o que seria uma manifestação da própria síndrome ou o que seria uma comorbidade (Blacher et al., 2003; Gillberg, 2002).

Descrição do caso

Escolar, masculino, oito anos, brasileiro, branco, natural do Rio de Janeiro, cursando terceira série do ensino fundamental, foi encaminhado ao ambulatório de Psiquiatria do Hospital Universitário Gaffrée e Guinle (HUGG) para "avaliação nesta instituição, pois a criança está apresentando movimentos estereotipados".

A mãe trazia uma queixa de que desde os 3 anos de idade "ele é muito inquieto, disperso". E acrescentou: "A cada época tem uma mania diferente". O pai referia que às vezes o paciente ficava muito agitado e impulsivo (por exemplo, cuspia). Algumas vezes durante a entrevista ele agitava repetidamente as mãos e os braços (compulsão), sempre demonstrava muita dificuldade em olhar diretamente para o entrevistador e quando ia pegar algum objeto fazia movimentos ondulantes com as mãos (maneirismos). O pai dizia que ele se sentia desconfortável em ambientes sociais e que tinha "dificuldade para encarar as pessoas", e sempre que ficava mais ansioso as compulsões aumentavam.

Em casa, os maneirismos, estereotipias (pequenos movimentos repetitivos com a cabeça) e rituais (tocar diversas vezes na geladeira) atrapalhavam muito suas atividades cotidianas. Às vezes, repetia incessantemente falas de personagens de desenhos animados. Tinha muita dificuldade para se vestir, escrever ou executar outras tarefas manuais.

Apesar de acentuado prejuízo na interação social, dificuldade de estabelecer relacionamento com seus pares, falta de uma reciprocidade social e estranhezas do comportamento, o paciente não apresentava qualquer comprometimento da linguagem verbal ou do desenvolvimento cognitivo, estando inclusive cursando ano letivo escolar compatível com a idade.

Foi medicado com risperidona, que teve de ser aumentada progressivamente até chegar a 2,0 mg/dia, para diminuir a agitação, reduzindo também os maneirismos. As compulsões passaram então a florir ainda mais o quadro, passando a ser o principal problema. Foi então adicionado fluoxetina, sendo progressivamente aumentada até 60 mg/dia, se seguindo redução considerável das compulsões e dos rituais. Esta abordagem promoveu melhora acentuada da qualidade de vida do paciente, que passou a adaptar-se melhor a suas funções, melhorando o relacionamento com seus pares.

DISCUSSÃO

De acordo com nossas pesquisas nas bases de dados Medline, Lilacs e Scielo, este trabalho é o segundo relato de caso na América Latina de um paciente com transtorno de Asperger e TOC. Destacamos ainda a boa resposta ao tratamento específico dos sintomas obsessivo-compulsivos com um ISRS, melhorando muito a qualidade de vida do paciente.

De acordo com o DSM-IV TR, os indivíduos com transtorno de Asperger têm um comprometimento importante da interação social, padrões repetitivos do comportamento e interesses restristos, sem haver atraso clinicamente significativo do desenvolvimento cognitivo e da linguagem (American Psychiatric Association, 2000). Em conceitos práticos, essas características resumem esta condição a um quadro semelhante ao transtorno autista, porém com a inteligência preservada, levando alguns autores a incluírem a síndrome de Asperger no "autismo de alto desempenho" (Gillberg, 2002).

Vários transtornos podem ainda associar-se a síndrome de Asperger, chegando ao ponto de alguns autores afirmarem que uma comorbidade provavelmente estará presente uma vez que o diagnóstico de Asperger esteja feito (Gillberg e Billstedt, 2000). Estas podem ser TDAH, depressão, TOC, entre outras (Blacher et al., 2003). E considerando que os sintomas principais de alguns desses transtornos também fazem parte da síndrome de Asperger, acaba se tornando difícil diferenciar o que seria uma manifestação desta de uma comorbidade.

Ao se falar especificamente da relação entre TOC e síndrome de Asperger, fica evidente o problema em distinguir a primeira da última (respectivamente) como um diagnóstico em separado (Blacher et al., 2003; Gillberg, 2002). Aceita-se que quando as obsessões, as compulsões e os rituais tornam-se graves e incapacitantes, o diagnóstico de TOC como uma comorbidade deve ser feito (Gillberg, 2002).

Indepentemente de se querer determinar as barreiras entre TOC e Asperger, é de suma importância identificar sintomas obsessivos-compulsivos graves que sejam passíveis de tratamento específico, como demonstrado no caso clínico descrito. Considerando esse fato, os ISRS são a melhor abordagem, sendo muitas vezes necessárias doses altas (Blacher et al., 2003; Gillberg, 2002).

Vale salientar que não existe tratamento específico para a síndrome de Asperger, mas os pacientes podem se beneficiar de um manejo adequado das comorbidades e de um bom tratamento sintomático. Freqüentemente se faz necessário o uso de antipsicóticos (especialmente os "atípicos") para redução da agitação, do comportamento agressivo e dos maneirismos (Blacher et al., 2003; Gillberg, 2002).

CONCLUSÃO

Ainda é escasso o número de estudos que avaliam a incidência e a prevalência do transtorno de Asperger, bem como de suas comorbidades. Entretanto, considera-se que a chance da presença de uma comorbidade ser alta, e por vezes traz maior prejuízo e sofrimento do que a própria síndrome de Asperger. Há ainda o fato de que muitas vezes o diagnóstico é dificultado pela interposição de sintomas. Em relação ao TOC, muitas vezes a distinção é feita pela intensidade dos sintomas. Foi o ocorrido com o paciente do caso clínico apresentado, no qual o diagnóstico de TOC comórbido foi estabelecido, necessitando tratamento específico, que obteve execelente resultado. Concluímos que a fluoxetina pode ser útil na abordagem do Asperger, visto que mais importante do que se discutir os limites entre esta síndrome e o TOC, é fundamental administrar a terapêutica específica para os sintomas obsessivos-compulsivos, que, por vezes, são o principal problema do paciente.

Recebido 8/12/2007

Aprovado 23/12/2007

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  • Blacher J, Kraemer B, Schalow M. Asperger syndrome and high functioning autism: research concerns and emerging foci. Curr Opin Psychiatry. 16(5):535-42, 2003.
  • Gillberg C. A Guide to Asperger syndrome. New York: Cambridge University Press, 2002.
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  • World Health Organization. The ICD-10 classification of mental and behavioral disorders: clinical descriptors and diagnostic guidelines. Geneve: World Health Organization, 1992.
  • Endereço para correspondência:

    José Maria Aranha Fonseca
    Rua Professor Gabiso, 210, apt. 503
    20271-061 –Tijuca, Rio de Janeiro, RJ
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Fev 2008
    • Data do Fascículo
      2007

    Histórico

    • Recebido
      08 Dez 2007
    • Aceito
      23 Dez 2007
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