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Gliomatose leptomeníngea primária difusa: uma doença rara em pacientes pediátricos

CARTAS AO EDITOR

Gliomatose leptomeníngea primária difusa: uma doença rara em pacientes pediátricos

Francisco Helder Cavalcante FelixI

IPediatric hemato-oncologist, Pediatric Hemato-Oncology Service, Hospital Infantil Albert Sabin, Fortaleza, CE

Prezado Editor,

O recente relato de caso de Val Filho & Avelar1 sobre um raro tumor cerebral pediátrico é interessante e merece grande consideração no contexto da literatura publicada sobre esse assunto, já que representa um evento muito incomum. Em nome da precisão científica, devemos, portanto, fazer uma importante correção no que se refere ao diagnóstico.

Os autores fizeram uma revisão breve e adequada sobre a gliomatose cerebral; uma doença rara, classificada pela edição de 2007 da Organização Mundial da Saúde (OMS)2 como uma lesão de grau III com prognóstico reservado. A gliomatose cerebral foi inicialmente descrita por Nevin em 19382 e é definida como "um padrão de crescimento de glioma difuso que consiste em infiltração excepcionalmente extensa de uma grande região do sistema nervoso central, afetando pelo menos três lobos do cérebro, geralmente com envolvimento bilateral dos hemisférios cerebrais e/ou da matéria cinzenta profunda, ..."2. A principal teoria aceita para explicar sua origem é a de que a gliomatose cerebral represente um subtipo de glioma difuso comum, caracterizado por excepcional capacidade de infiltração e que tipicamente não forma uma lesão de massa tumoral2. É um tipo raro de lesão, com somente algumas centenas de casos descritos, menos de 30% deles em crianças. Embora 17% dos casos de gliomatose cerebral tenham sido relatados como tendo envolvimento leptomeníngeo adicional, este achado não é suficiente para estabelecer o diagnóstico quando ocorre isoladamente2. O texto da classificação da OMS define ainda que "a gliomatose cerebral deveria ser diferenciada de outros dois tipos de gliomatose, quais sejam: a gliomatose leptomeníngea e a gliomatose peritoneal. A gliomatose leptomeníngea é a infiltração extensiva do espaço subaracnóideo por um glioma difuso, mais comumente um glioma intra-axial que invadiu as leptomeninges (gliomatose leptomeníngea secundária), ou, raramente, a propagação leptomeníngea de um glioma originado de um ninho glial ou glioneuronal leptomeníngeo ectópico (gliomatose leptomeníngea primária)"2.

Essas características assemelham-se ao caso relatado por Val Filho & Avelar1, no qual, inicialmente, um diagnóstico de hidrocefalia obstrutiva foi estabelecido seguido do achado de "lesões disseminadas pelo espaço subaracnóideo, sobretudo em fossa posterior, envolvendo de forma difusa boa parte do encéfalo (...)"1. Infelizmente, a imagem apresentada não identifica o tipo de teste de imagem por ressonância magnética (IRM), mas provavelmente se trata de spin-eco ponderada em T1 com realce por contraste. Embora imagens ponderadas em T2/FLAIR sejam os estudos preferenciais para o diagnóstico de gliomatose cerebral2, pode-se ver facilmente na sequencia de imagens que não há um envolvimento extenso do parênquima cerebral1. Portanto, o relato de caso de Val Filho & Avelar não satisfaz os critérios publicados pela OMS para o diagnóstico de gliomatose cerebral, mas pode ser classificado mais adequadamente como um caso muito raro de gliomatose leptomeníngea primária difusa (GLPD) em uma criança pequena com sobrevida longa.

O primeiro relato de GLPD foi publicado em 1954 por Moore. A GLPD tem sido descrita mais frequentemente ao longo da medula espinhal e associada ao disrafismo congênito do sistema nervoso central (SNC)3. Deve ser diferenciada da gliomatose meníngea secundária, em que há invasão leptomeníngea pelas doenças neoplásicas do parênquima do SNC, especialmente o oligodendroglioma, o meduloblastoma e a gliomatose cerebral. O diagnóstico da verdadeira GLPD é excepcional. Um relato de Debono et al., de 2006, revisou a literatura até aquele momento e encontrou 30 casos publicados, somente nove desses casos foram detectados em crianças com idades entre 9 e 17 anos3. Revisando a partir de então, encontramos 10 outros casos, incluindo o de Val Filho & Avelar (Tabela 1) e sete outros casos relatados recentemente por Dörner et al.4 em sua revisão, não citados por Debono et al.3. Desses casos, cinco foram encontrados em crianças com idades entre 2 e 17 anos. Isso totaliza 47 casos relatados na literatura, dos quais 14 foram detectados em crianças. O diagnóstico definitivo da GLPD normalmente necessita de descrição postmortem detalhada3, e isso reduziria o número de casos relatados para 36.

Utilizando critérios menos rígidos (incluindo pacientes sem necropsia e casos relatados de pacientes vivos) e juntando os dados de Debono et al.3 e de Dörner et al.4 aos nossos, descobrimos que a apresentação inicial mais comum incluía sintomas e sinais de hipertensão intracraniana (HIC), como vômito e dor de cabeça (37/47 casos, 79%), paralisias múltiplas do nervo craniano (especialmente neuro-oftalmológicas) (25/47 casos, 53%) e convulsões (11/47 casos, 23%). Houve uma discreta predominância do sexo masculino (25/22 casos = razão de 1,13). Encontramos 14 tumores classificados como de baixo grau pela OMS (30%) e 23 tumores de alto grau (49%). O problema de se diagnosticar o grau histológico na GLPD é que a doença frequentemente recebe classificação equivocada2, fazendo com que esses números não sejam confiáveis. A sobrevida mediana calculada pelo método de Kaplan-Meyer, utilizando-se a taxa de sobrevida relatada deste grupo de pacientes, é de 5 meses, e a sobrevida aos 12 meses é de somente 30%. Essa taxa de sobrevida sofreu viés porque muitos desses relatos foram feitos com base em diagnóstico postmortem, e, portanto, os pacientes não receberam tratamento. Selecionando-se somente aqueles pacientes que receberam tratamento específico e os casos de sobrevida relatados (19 casos), a sobrevida mediana de Kaplan-Meyer é de 15 meses, e a sobrevida de 1 ano é de 52%. Houve somente quatro casos de pacientes vivos no momento da publicação dos relatos (1, 4, Tabela 1). Todos envolviam crianças, e três delas tinham menos de 3 anos de idade. Os pacientes receberam quimioterapia (QT) (três casos) ou radioterapia (RT) combinada com QT (um caso). Todos os pacientes que sobreviveram 24 meses ou mais neste grupo são crianças (exceto um paciente masculino de 21 anos), e todos receberam QT ou combinação de QT e RT. A medicação utilizada mais frequentemente foi a cisplatina. Em quatro casos relatou-se o uso de temozolomida (1, 5, Tabela 1). Todos esses casos tiveram taxas de sobrevida mais altas do que a mediana do grupo (variação de 15-96 meses). É interessante notar que o caso relatado por Gonçalves et al.5 teve uma sobrevida impressionante (somente equiparada a um outro caso, ver referências)3,4. Essa criança usou valproato, uma droga que teve seus efeitos antitumorais relatados recentemente e que poderia potencializar os efeitos da RT e da QT em pacientes com tumores cerebrais6. Val Filho & Avelar relataram que seu paciente teve convulsões, mas não informaram qual medicação anticonvulsiva a criança recebeu. Outros autores também não relataram o uso de medicação anticonvulsiva. Portanto, também não podemos afirmar se algum desses outros casos usou valproato.

Concluímos afirmando que o relato de Val Filho & Avelar pode ser reclassificado como um caso muito interessante de GLPD em uma criança pequena, com uma das taxas de sobrevida mais longas para essa doença rara e grave. Essa doença excepcionalmente incomum afeta todas as idades, sendo pouco frequente em crianças, nas quais parece apresentar um melhor prognóstico (há somente relatos de crianças que sobrevivem à doença), e apresenta resposta positiva à radioquimioterapia a base de cisplatina ou ao tratamento com temozolomida (que poderia ser usado como segunda opção de tratamento). Mesmo com um tratamento multimodal, essa doença tem um prognóstico muito reservado, com relato de taxa de sobrevida mediana curta (15 meses) comparando-se com outros tumores cerebrais de alto risco, tais como o glioblastoma multiforme e o glioma pontino difuso. Um relato impressionante diz respeito a um caso de sobrevida longa em uma criança que usou QT e valproato, sugerindo que a inibição epigenética pode exercer um papel importante no tratamento dessa doença no futuro.

Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação desta carta.

Resposta dos autores

José Aloysio da Costa Val FilhoI; Lucília Graciano Silva AvelarII

IOficial médico. Chefe, Serviço de Neurologia, Hospital da Polícia Militar, Belo Horizonte, MG. Coordenador, Serviço de Neurocirurgia Infantil, Biocor Instituto, Nova Lima, MG

IIOficial médica, Serviço de Pediatria, Hospital da Polícia Militar, Belo Horizonte, MG

Prezado Editor,

Gostaríamos de agradecer ao Dr. Francisco Helder Cavalcante Felix por seus comentários sobre nosso relato de caso "Gliomatose cerebral na infância com evolução favorável: relato de caso"1. O Dr. Felix realizou uma pesquisa extensa e apresentou uma discussão científica muito elegante sobre o assunto, o que nos ajudou a entender melhor essa doença rara.

Contudo, gostaríamos de esclarecer alguns de seus comentários.

Conforme mencionado em sua carta, a imagem apresentada é uma ressonância magnética (RM) T1 com realce de contraste. De acordo com o nosso ponto de vista (como cirurgião), este tempo de aquisição da imagem mostra de maneira mais adequada os achados no espaço subaracnóideo, assim como no parênquima, ao contrário do que foi afirmado na descrição2. De qualquer forma, a criança foi examinada exaustivamente através de testes de imagem por RM após o diagnóstico, em todas as sequências, com e sem uso de contraste, e as imagens foram analisadas por muitos radiologistas, que concordam com o diagnóstico.

Durante algum tempo, antes do tratamento oncológico, a paciente pareceu apresentar algum envolvimento dos lobos frontal e cerebelar, assim como do mesencéfalo, o que poderia explicar a hidrocefalia obstrutiva (Figura 1). Ela também apresenta, até o momento, um envolvimento cístico da medula espinhal (siringomielia), que se assemelha a uma regressão do tumor originalmente dentro do órgão (Figura 2).



Inicialmente, a paciente utilizou fenobarbital e carbamazepina para tratar as convulsões. Atualmente, ela não está usando nenhuma medicação. A paciente nunca foi tratada com valproato.

Portanto, concluímos que esta possa ser uma forma mista da doença, com características de gliomatose cerebral e gliomatose leptomeníngea primária difusa (GLPD), como foi perfeitamente mencionado pelo Dr. Felix. Em nossa prática clínica diária com os pacientes, observamos que as formas puras, como descritas em nossas fontes de referência, são menos comuns do que as apresentações mistas.

Agradecemos novamente ao Dr. Felix por sua contribuição para este assunto.

Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação desta carta.

Referências (Resposta dos autores)

  • 1. Val Filho JA, Avelar LG. Gliomatosis cerebri with favorable outcome in a child: a case report. J Pediatr (Rio J). 2008;84:463-6
  • 2. Fuller GN, Kros JM. Gliomatosis cerebri. In Louis DN, Ohgaki H, Wiestler OD, Cavenee WK, editors. WHO Classification of tumours of the central nervous system. Lyon: IARC; 2007. p. 50.
  • 3. Debono B, Derrey S, Rabehenoina C, Proust F, Freger P, Laquerričre A. Primary diffuse multinodular leptomeningeal gliomatosis: case report and review of the literature. Surg Neurol. 2006;65:273-82.
  • 4. Dörner L, Fritsch MJ, Hugo HH, Mehdorn HM. Primary diffuse leptomeningeal gliomatosis in a 2-year-old girl. Surg Neurol. No prelo 2008.
  • 5. Gonçalves AL, Masruha MR, Carrete Jr H, Stávale JN, Silva NS, Vilanova LC. Primary diffuse leptomeningeal gliomatosis. Arq Neuropsiquiatr. 2008;66:85-7.
  • 6. Wolff JE, Kramm C, Kortmann RD, Pietsch T, Rutkowski S, Jorch N, et al. Valproic acid was well tolerated in heavily pretreated pediatric patients with high-grade glioma. J Neurooncol. 2008;90:309-14.
  • 1. Val Filho JA, Avelar LG. Gliomatosis cerebri with favorable outcome in a child: a case report. J Pediatr (Rio J). 2008;84:463-6.
  • 2. Fuller GN, Kros JM. Gliomatosis cerebri. In: Louis DN, Ohgaki H, Wiestler OD, Cavenee WK, editors. WHO Classification of tumours of the central nervous system. Lyon: IARC; 2007. p. 50.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2009
  • Data do Fascículo
    Jun 2009
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