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Medicina neonatal baseada em evidência na América Latina: o que podemos aprender com o Estudo Internacional de Imunoterapia Neonatal e estudos clínicos de IgEV?

EDITORIAL

Medicina neonatal baseada em evidência na América Latina: o que podemos aprender com o Estudo Internacional de Imunoterapia Neonatal e estudos clínicos de IgEV?

William O. Tarnow-MordiI; Melinda CruzII

IMBChB, MRCP. Foundation Director, Winner Centre for Newborn Research, Professor of Neonatal Medicine, NHMRC Clinical Trials Centre, University of Sydney, Sydney, Austrália.

IIChief Executive Officer, Miracle Babies Foundation PO Box 95, Austrália.

Correspondência Correspondência: William O. Tarnow-Mordi Tel.: +61 (2) 9845.7375 E-mail: williamtm@med.usyd.edu.au

Embora ensaios clínicos randomizados confiáveis sejam essenciais para orientar as políticas e evitar despesas desnecessárias em tratamentos ineficazes, muito poucos bebês ou mulheres grávidas da América Latina e do resto do mundo são recrutados para ensaios clínicos multicêntricos perinatais. Há três estratégias para resolver isso: (i) estabelecer redes de pesquisa clínica para ensaios clínicos perinatais, (ii) fornecer hospitais com recursos para publicar os números de pacientes recrutados em ensaios clínicos multicêntricos perinatais como um indicador de desempenho e (iii) envolver os pais como parceiros e defensores dos ensaios clínicos perinatais.

É importante saber quando o tratamento é ineficaz

A recente revisão sistemática realizada por Franco et al.1 de sete ensaios clínicos randomizados sobre imunoglobulina endovenosa (IgEV) no tratamento de sepse neonatal suspeita ou confirmada em 3.765 bebês não encontrou nenhuma evidência de que a IgEV reduz a mortalidade. Essa revisão também descobriu que a IgEV produziu uma redução clinicamente insignificante de 1,24 dias no tempo de internação. Esses resultados confirmaram o conselho sensato, oferecido pelos autores de uma revisão anterior do banco de dados Cochrane2, de que não havia "evidências suficientes para apoiar a administração rotineira de IgEV para prevenir a mortalidade em bebês com infecção neonatal suspeita ou posteriormente confirmada".

As evidências estatisticamente significativas de uma meta-análise nem sempre são confiáveis

Embora a revisão Cochrane anterior de 10 ensaios clínicos em 378 bebês tenha mostrado que a IgEV estava associada a uma redução estatisticamente significativa da mortalidade (risco relativo 0,58; intervalo de confiança de 95% 0,38-0,89; p = 0,01)2, os autores prudentemente recomendaram que os profissionais de saúde esperassem os resultados do Estudo Internacional de Imunoterapia Neonatal (INIS), um ensaio clínico que recrutou 3.493 bebês em 113 unidades neonatais de nove países. É importante notar que 407 bebês do INIS foram recrutados de unidades neonatais da Argentina, coordenadas pelo Centro Rasarino de Estudios Perinatales (CREP), sob a direção do Dr. E. Abalos. O estudo INIS demonstrou claramente que a IgEV não alcançou as melhoras moderadas esperadas em termos de mortalidade ou deficiência significativa3. Quando o INIS foi incluído na meta-análise de Franco et al., a redução aparente2 na mortalidade desapareceu1.

Portanto, 23 anos depois que o primeiro ensaio clínico randomizado controlado de IgEV em recém-nascidos foi publicado em 19884, as evidências atuais indicam que esse produto caro não tem lugar no tratamento da infecção neonatal. A comunidade de profissionais de saúde que oferece cuidado neonatal da América Latina e do mundo merece crédito por ter resistido à introdução generalizada da IgEV até que mais evidências confiáveis estejam disponíveis. Globalmente, essa cautela tem impedido milhões de dólares de despesas em um tratamento ineficaz. Isso também ilustra por que outros grandes ensaios clínicos randomizados são necessários para orientar as políticas e assegurar o uso economicamente viável de recursos limitados.

Por que a meta-análise de 378 bebês da revisão Cochrane não é confiável?

Ensaios clínicos pequenos, como os da revisão Cochrane2, têm maior probabilidade de serem publicados se mostrarem um resultado positivo. Uma razão para esse "viés de publicação" é que os pesquisadores são menos propensos a escrever pequenos ensaios clínicos com resultados negativos ou submetê-los para publicação5,6. Entretanto, o viés de publicação não explica por que a revisão Cochrane anterior mostrou um resultado positivo, já que nenhum ensaio clínico individual foi estatisticamente significativo. A razão para esse resultado enganoso pode ser simplesmente o fato de que ensaios clínicos pequenos são mais vulneráveis ao erro aleatório. Para que os ensaios clínicos perinatais detectem efeitos moderados de forma confiável, eles precisam de milhares, e não centenas de sujeitos7. Por exemplo, para que um ensaio clínico mostre, com poder de 90%, que a IgEV reduziu a mortalidade da sepse neonatal de 20 para 15%, com um valor de p bicaudal de < 0,01, seria necessário um total de cerca de 4.500 crianças7.

Como podemos obter evidências confiáveis mais rapidamente no futuro?

Os ensaios clínicos perinatais, como o INIS3, são vitais para orientar os cuidados de saúde para mães e bebês e proteger os orçamentos de saúde das despesas inúteis. No entanto, apesar da necessidade premente de mais e até maiores ensaios clínicos, na maioria dos países, muito poucos bebês e mulheres grávidas – talvez menos de 1% – são atualmente recrutados para ensaios clínicos randomizados. O INIS levou mais de 14 anos para ser finalizado, desde a concepção inicial até a publicação final. Os autores concluíram que a sepse neonatal continua a ser uma prioridade global e que "há uma necessidade de intensificar os testes de intervenções promissoras em grandes ensaios clínicos internacionais"3. Como isso pode ser alcançado na América Latina?

Estabelecimento de redes de ensaios clínicos neonatais e perinatais

Uma estratégia-chave para garantir recrutamento mais abrangente e rápido para os ensaios clínicos é o estabelecimento de Redes de Pesquisa Clínica nacionais, como no Reino Unido8. Essas redes têm fornecido infraestrutura essencial para a criação e realização de ensaios clínicos de alta qualidade e outras pesquisas em uma variedade de especialidades ao utilizar equipes de coordenação centrais e periféricas. Como resultado, entre 2006 e 2011, o número de pacientes recrutados para ensaios clínicos e outros estudos na Inglaterra aumentou de cerca de 30.000 para mais de 550.000 por ano8. Uma dessas Redes de Pesquisa Clínica é a Medicines for Children Research Network (MCRN), que apoia ensaios clínicos em uma ampla gama de condições pediátricas e tratamentos, incluindo intervenções não-farmacêuticas, e que inclui uma Rede Neonatal8,9. A missão da MCRN inclui a priorização e o planejamento de estudos de alta qualidade sólidos, identificados em colaboração com as crianças, as famílias, os médicos e de financiadores de pesquisa8,9. Como um exemplo de seu potencial de recrutamento rápido, a MCRN recrutou cerca de 1.000 crianças para um ensaio clínico de uma vacina contra a gripe suína (H1N1) no prazo de 8 semanas8. Os governos latino-americanos, as agências voluntárias e filantrópicas poderiam considerar o estabelecimento de redes semelhantes para trabalhar conjuntamente com os centros coordenares existentes para garantir o recrutamento rápido de bebês e mulheres grávidas em ensaios clínicos perinatais.

Contagem do número de pacientes envolvidos em ensaios clínicos a cada ano: um indicador de desempenho

Outra estratégia para ajudar a estabelecer essas redes é transformar o número de bebês e mulheres grávidas incluídos em ensaios clínicos multicêntricos a cada ano em um indicador de desempenho e disponibilizar recursos para que os hospitais incluam esse dado em seus relatórios juntamente com os indicadores tradicionais, como taxas de infecção hospitalar e tempo de espera nos serviços de urgência ou de cirurgia eletiva10.

Pais e consumidores bem-informados: defensores potencialmente poderosos dos ensaios clínicos perinatais

Muitos pais respeitam a necessidade de pesquisa e entendem que os ensaios perinatais têm contribuído com avanços significativos no cuidado de recém-nascidos11,12. Muitos pais estão dispostos a deixar seu bebê participar de dois ou mais estudos ao mesmo tempo13. Alguns pais não acreditam que obter evidências confiáveis de ensaios clínicos e colocá-las em prática pode levar décadas. Pode-se acelerar o processo, dando aos pais e ao público em geral acesso a e informações sobre ensaios clínicos11,12. O apoio dos pais aos ensaios clínicos perinatais pode ser melhorado por meio de apoio de outros pais através da Internet e de mídia social14 e a possibilidade de discutir quaisquer dúvidas com outros pais.

Uma terceira estratégia é tornar pais, consumidores e médicos parceiros integrais na concepção, realização e implementação dos ensaios clínicos perinatais. Esse é um objetivo explícito da política governamental no Reino Unido, nos Estados Unidos e na Austrália11.15-17. Com parcerias sólidas baseadas em confiança, transparência e educação mútua, o maior envolvimento dos pais e consumidores na pesquisa de ensaios clínicos poderia ajudar a desenvolver um lobby de leigos bem informados que pressionaria a obtenção dos recursos necessários para resolver as muitas incertezas referentes à proteção da saúde de todos os recém-nascidos na América Latina e no mundo11,18. Isso pode ser uma prioridade para as redes médicas locais19.

Conflitos de interesse: Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste editorial.

Como citar este artigo: Tarnow-Mordi WO, Cruz M. Evidence-based neonatal medicine in Latin America: what can we learn from the International Neonatal Immunotherapy Study and trials of IVIg? J Pediatr (Rio J). 2012;88(5):369-71.

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    William O. Tarnow-Mordi
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Nov 2012
    • Data do Fascículo
      Out 2012
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