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Fatores associados a amputações por pé diabético

Resumos

CONTEXTO:

O diabetes e especificamente o problema do pé diabético representam grave adversidade ao sistema de saúde pública. As amputações resultantes deste agravo ainda são frequentes em nosso meio, embora não se conheça ao certo a sua magnitude. A taxa de amputações de membros inferiores tem sido considerada um indicador da qualidade dos cuidados preventivos do pé diabético.

OBJETIVO:

Identificar a existência de associação entre amputações e fatores relacionados às pessoas, à morbidade e à atenção básica recebida.

MÉTODOS:

Estudo transversal que incluiu uma amostra de 137 portadores de pé diabético internados em hospital de grande porte da cidade do Recife. Realizou-se análise de regressão logística.

RESULTADOS:

Verificou-se associação para as variáveis: idade de 60 anos ou mais; procedência da Região metropolitana; renda de até três salários mínimos; presença de gangrena à admissão; glicemia de 126 mg/dL ou mais; tabagismo; não receber informação dos resultados da glicemia; não ter os pés examinados, e não receber orientação sobre cuidados com os pés nas consultas do ano anterior.

CONCLUSÕES:

Fatores relacionados à Atenção Básica, tais como o tempo de ocorrência da úlcera, a informação dos resultados do exame de glicemia e a falta de orientação sobre cuidados com os pés, estiveram associados com a ocorrência de amputações de membros inferiores.

pé diabético; amputação; atenção básica


BACKGROUND:

Diabetes and the problem of the diabetic foot specifically are a severe burden on the public healthcare system. Amputations caused by this condition are still common in our setting (Brazil), although the true magnitude of the problem is not known with certainty. Lower limb amputation rates have come to be seen as an indicator of the quality of preventative care of the diabetic foot.

OBJECTIVE:

To identify associations between amputations and factors related to people, to morbidities and to primary care received.

METHODS:

This was a cross-sectional study of a sample of 137 patients with diabetic feet admitted to a large hospital in the city of Recife, Pernambuco, Brazil. Logistic regression analysis was conducted.

RESULTS:

Associations with amputation were detected for the following variables: age over 60; resident of the Metro zone; income of three minimum salaries or less; presence of gangrene on admission; glycemia ≥ 126 mg/dL; smoking; not receiving information about results of glycemia testing; not having feet examined, and not being given guidance on caring for feet at consultations during the previous year.

CONCLUSIONS:

Factors related to Primary Care, such as time since onset of ulcers, information about results of glycemia testing and lack of guidance on how to care for their feet, were associated with occurrence of lower limb amputations.

diabetic foot; amputation; primary care


INTRODUÇÃO

As ulceras do pé diabético e as resultantes amputações de membros inferiores constituem complicações complexas, comuns, dispendiosas e incapacitantes do diabetes. Sua prevalência vem aumentando em todo o mundo e a incidência de úlceras do pé diabético está aumentando com uma taxa mais elevada do que a das outras complicações do diabetes 11. ArmstrongDG, CohenK, CourricS, BhararaM, MarstonW. Diabetic foot ulcers and vascular insufficiency: our population has changed, but our methods have not. J Diabetes Sci Tech. 2011;5(6):1591-5. , 22. Lee KM, Kim WH, Lee JH, Choi MSS. Risk factors of treatment failure in diabetic foot ulcer patients. Arch Plast Surg. 2013;40(2):123-8..

Nos Estados Unidos, os pacientes diabéticos correspondem a cerca de 3% da população total e mais de 50% deles são submetidos à amputação de membros inferiores. Cerca de 1 a 4% de pacientes diabéticos desenvolvem úlceras nos pés por ano e, em 15%, pelo menos uma vez na vida 22. Lee KM, Kim WH, Lee JH, Choi MSS. Risk factors of treatment failure in diabetic foot ulcer patients. Arch Plast Surg. 2013;40(2):123-8. , 33. BrechowA, SlesaczeckT, Münch D, et al. Improving major amputation rates in the multicomplex diabetic foot patient: focus on the severity of peripheral arterial disease. Ther Adv Endocrinol Metab. 2013;4(3):83-94..

Além disso, estima-se que 30 a 50% dos que realizaram uma amputação irão requerer amputações adicionais dentro de 1 a 3 anos e 50% morrerão dentro de 5 anos após a primeira amputação de nível maior11. ArmstrongDG, CohenK, CourricS, BhararaM, MarstonW. Diabetic foot ulcers and vascular insufficiency: our population has changed, but our methods have not. J Diabetes Sci Tech. 2011;5(6):1591-5..

O diabetes e especificamente o problema do pé diabético representam grave adversidade ao sistema de saúde pública. Vários países da Europa, além de organizações como a Organização Mundial de Saúde e a Federação Internacional de Diabetes, têm estabelecido metas para reduzir as taxas de amputações em até 50%44. KonstantikakiV. The role of primary care in the prevention of diabetic foot amputations. Int J Caring Sci. 2008;1(1):26-33..

Esta meta pode ser alcançada através da implementação de medidas simples de assistência preventiva, de diagnóstico precoce e de tratamento mais resolutivo nos estágios iniciais da doença 44. KonstantikakiV. The role of primary care in the prevention of diabetic foot amputations. Int J Caring Sci. 2008;1(1):26-33.

5. PrompersL, SchaperN, ApelqvistJ, et al. Prediction of outcome in individuals with diabetic foot ulcers: focus on the differences between individuals with and without peripheral arterial disease. The EURODIALE Study. Diabetologia. 2008;51(5):747-55.

6. Caiafa JS, Castro AA, Fidelis C, Santos VP, Silva ES,Sitrângulo CJ Jr. Atenção integral ao portador de pé diabético. J Vasc Bras. 2011;10(4, Supl 2):1-32 http://dx.doi.org/10.1590/S1677-54492011000600001. .
http://dx.doi.org/10.1590/S1677-54492011...
- 77. Weck M, Slesaczeck T, Paetzold H, et al.Structured health care for subjects with diabetic foot ulcers results in a reduction of major amputation rates. Cardiovasc Diabetol. 2013;12(1):45..

Embora polêmica, a taxa de amputações de membros inferiores tem sido considerada um indicador da qualidade dos cuidados do pé diabético. Dessa forma, o entendimento dos fatores associados à utilização de serviços hospitalares é fundamental para o acompanhamento da assistência preventiva, sobretudo no que diz respeito a agravos potencialmente evitáveis nesse nível de atenção88. AlvarssonA, SandgrenB, WendelC, AlvarssonM, BrismarK. A retrospective analysis of amputation rates in diabetic patients: can lower extremity amputations be further prevented?. Cardiovasc Diabetol. 2012;11(1):18..

Este estudo objetivou identificar a existência de associação entre amputações e fatores relacionados às pessoas, à morbidade e à atenção básica.

MÉTODOS

Estudo epidemiológico de corte transversal, em que, a partir do desfecho, ou seja, da ocorrência de amputações devido a pé diabético, busca-se identificar associações com fatores relacionados às pessoas, à morbidade e à Atenção Básica (preventiva) recebida, tendo em vista que este agravo pode ser evitado, de acordo com as ações preventivas realizadas.

Como local para o estudo, foi escolhido um dos maiores hospitais da rede de saúde pública de Pernambuco e, por constituir um dos três hospitais do Estado com especialidade em clínica vascular que recebe os pacientes com pé diabético.

A população do estudo correspondeu a todos os portadores de pé diabético internados para tratamento, totalizando 151 pacientes, dos quais, mediante aplicação dos critérios de inclusão - pacientes com diagnóstico de pé diabético isquêmico, neuropático ou infeccioso, atestado no prontuário, com lesões de grau 2 a 5, segundo sistema de classificação de Wagner - e de exclusão - não ter sido atendido previamente pela atenção básica e falta de condições físicas e/ou mentais para responder aos questionamentos, foram considerados válidos, para o estudo, 137 pacientes, ou seja, 90,7% da população internada com o agravo de interesse.

Foi utilizado um questionário construído a partir do Consenso Internacional sobre Pé Diabético99. International Working Group on the Diabetic Foot. International consensus on the diabetic foot and practical guidelines on the management and prevention of the diabetic foot [DVD]. Brussels: International Diabetes Federation (IDF); 2011. e do Manual de Hipertensão Arterial e Diabetes Mellitus1010. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Plano de reorganização da atenção à hipertensão arterial e diabetes mellitus: manual de hipertensão arterial e diabetes mellitus. Brasília: Ministério da Saúde;2002., instrumento normativo do Ministério da Saúde para reorganização da atenção básica a essas duas doenças.

O procedimento inicial consistiu na busca diária de internamentos de portadores de pé diabético na clínica vascular, utilizando-se, para tanto, o censo da referida clínica e os respectivos prontuários para seleção dos pacientes de interesse ao estudo; em seguida, realizou-se a aplicação do questionário, em entrevista com o paciente, após consentimento declarado pelo mesmo.

Foram consideradas, neste estudo, como amputações, tanto as de nível maior, ou seja, acima do nível do médio tarso, como as de nível menor (desarticulação do médio tarso ou abaixo dele)99. International Working Group on the Diabetic Foot. International consensus on the diabetic foot and practical guidelines on the management and prevention of the diabetic foot [DVD]. Brussels: International Diabetes Federation (IDF); 2011..

Além da variável dependente 'ocorrência de amputação', as variáveis independentes estudadas relacionaram-se às pessoas (idade, sexo, procedência, escolaridade e renda), à morbidade (tempo de diagnóstico de DM-TDM, momento do conhecimento do diagnóstico de DM, situação do diagnóstico de DM, tempo de ocorrência do problema atual, tempo de atendimento, presença de gangrena à admissão, glicemia à admissão, tabagismo e amputação anterior) e à Atenção Básica (preventiva) recebida (número de consultas, realização de exame de glicemia, informação a respeito dos resultados da glicemia, exame dos pés, orientação sobre cuidados com os pés, orientação nutricional e sobre atividade física, uso de medicamento para controle do DM e disponibilidade de medicamento, sendo todos os dados referentes ao último ano).

A análise estatística envolveu a construção de distribuições de frequências e, para avaliar a independência entre variáveis explanatórias e a variável 'amputação', foi utilizado o teste Qui-quadrado com correção de Yates.

Tanto na análise bivariada como na multivariada utilizou-se o odds ratio (OR) como estimador do risco relativo, com intervalo de 95% de confiança (IC 95%). Para o processo de modelagem, adotou-se a regressão logística com o objetivo de predizer a probabilidade da variável resposta (amputação), em função das variáveis explanatórias, segundo o modelo.

Todas as variáveis associadas a amputações (p≤0,20) na análise bivariada foram incluídas no modelo logístico inicial, exceto aquelas com frequência muito baixa e com odds elevado, sugerindo fator de confusão. A partir de então, as variáveis foram excluídas, uma a uma, pelo método de Backward Stepwise (Likelihood Ratio). Todas as análises foram realizadas com uma significância de 5%.

O software SPSS na versão 13.0 foi utilizado para digitação dos dados, com dupla entrada, e para as análises.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa segundo número de registro CAAE: 1025.0.000.095-06.

RESULTADOS

Dos 137 pacientes estudados, 85 haviam sido submetidos a alguma amputação, enquanto 52 se encontravam em curso de procedimentos conservadores (revascularizações ou procedimentos clínicos).

Amputações e fatores relacionados às pessoas

Dos pacientes que realizaram amputações (n=85), observa-se que a faixa etária de 60 ou mais anos foi a mais frequente (61,2%), conforme se apresenta na Tabela 1.

Tabela 1.
Amputaçõese variáveis relacionadas às pessoas.

Ao se testar a associação entre amputação e a variável 'sexo', se verificou que os pacientes de sexo masculino realizaram mais amputações quando comparados aos de sexo feminino; porém, não foi encontrada diferença significativa (p=0,751). Também se verifica maior ocorrência de amputações dentre os residentes na região metropolitana (58,8%).

A escolaridade e a renda apresentaram maior frequência para as classes de 0-4 anos de estudo (52,9%) e de até três salários mínimos (83,5%), respectivamente. Foram encontradas diferenças estatisticamente significativas para idade, procedência e renda, no nível de 5%.

Amputações e fatores relacionados à morbidade

O tempo decorrido do diagnóstico de diabetes mellitus (TDM) referido pelos pacientes submetidos à amputação foi superior a cinco anos, sendo que a maior parte deles (71,4%) referiu ter conhecimento do diagnóstico apenas após alguma internação e 54,1% deles só souberam ser diabético após desenvolver úlcera nos pés (Tabela 2).

Tabela 2.
Amputações e variáveis relacionadas à morbidade.

Os pacientes estudados referiram apresentar o problema atual com os pés havia mais de um mês (83,5%) e um tempo superior a um mês para receber atendimento (81,2%). Pela análise bivariada, esses pacientes apresentaram uma probabilidade de três vezes (IC 95%: 1,33-7,64) e 2,7 vezes (IC 95%: 1,15-6,33), respectivamente, de sofrerem uma amputação.

A presença de gangrena à admissão esteve presente em 85,9% dos pacientes submetidos à amputação e mostrou uma chance três vezes maior para aqueles que apresentavam esta complicação à admissão hospitalar de serem submetidos a uma amputação.

O estado glicêmico à admissão demonstra que 65,9% dos pacientes submetidos à amputação chegam ao hospital com valores superiores ao ponto de corte. A média encontrada foi 212 mg/dL, mediana de 183 mg/dL ± 86,7. Observou-se diferença estatisticamente significativa para esta variável e a ocorrência de amputação (p = 0,003).

Dentre os pacientes submetidos à amputação, 82,4% referiram ser tabagistas e a diferença encontrada entre os que fumam e os que não fumam em relação à ocorrência de amputação foi significante no nível de 1%, com uma probabilidade maior, de 6,4 vezes (IC 95%: 2,90-13,93), para ocorrência de amputação entre os que fumam.

A realização de amputação anterior mostrou uma alta prevalência dentre os submetidos à amputação no último internamento (92%). A análise desta variável mostrou diferença estatística significativa no nível de 5%, confirmando associação entre esta e a ocorrência de amputação atual. Aqueles que a haviam realizado apresentaram, segundo análise, uma chance maior, de 4 vezes (IC 95%: 1,53-11,01), para uma amputação no último internamento.

Amputações e fatores relacionados à Atenção Básica (preventiva) recebida

Pouco mais da metade dos pacientes submetidos à amputação (52,9%) afirmou ter realizado até três consultas no ano anterior e a diferença entre estes e os que realizaram mais consultas mostrou diferença estatística no nível de 5%, mostrando-se associada à ocorrência de amputação, segundo resultados da Tabela 3.

Tabela 3
Amputações e variáveis relacionadas à atenção básica (preventiva) recebida.

Analisando-se a realização de exame de glicemia plasmática no último ano, observa-se que 72,8% dos pacientes que realizaram amputação informaram não tê-lo feito, assim como 71,1% deles relataram não ter recebido informação sobre os resultados do referido exame. Estas duas variáveis apresentaram diferenças estatísticas significativas com uma chance maior da ocorrência de amputação de quase 3 vezes (IC 95%: 1,33-5,87 e 1,38-6,09), respectivamente, para que os pacientes que não realizaram exame de glicemia e que não receberam informação sobre seu resultado estejam expostos à ocorrência de uma amputação.

Sobre exame e orientações relativas ao cuidado com os pés, ambas as variáveis mostraram diferenças significantes. Dos pacientes submetidos à amputação, 81,2% negaram ter os pés examinados nas consultas realizadas (OR: 3,39; IC 95%: 1,45-7,97) e 74,1% deles referiram não ter recebido orientações sobre o cuidado com os pés (OR: 4,44; IC 95%: 1,98-10,02).

Quando analisado o desfecho de amputação em relação às orientações nutricional e sobre atividade física, verifica-se que não houve diferenças significativas.

Quanto às variáveis referentes à utilização de medicamentos para o controle da doença, 58,8% dos pacientes relataram não fazer uso de medicamentos (p=0,001), embora 78,8% deles tenham referido haver disponibilidade do medicamento na unidade de saúde. A diferença encontrada para esta última variável em relação às amputações não foi estatisticamente significativa. O não uso de medicamento para DM mostrou-se associado à ocorrência de amputação, com uma chance maior, de 3,5 vezes (IC 95%: 1,68-7,38).

O resultado da análise por regressão logística das variáveis relacionadas às pessoas, à morbidade e à atenção básica (preventiva) recebida é apresentado na Tabela 4.

Tabela 4.
Análise multivariada de variáveis associadas à ocorrência de amputações.

Conforme se verifica, o tempo de ocorrência do problema atual superior a um mês (OR= 4,419; IC95%: 1,502-13,007) e a falta de orientação sobre cuidados com os pés (OR=3,583; IC95%:1,243-10,328) estão fortemente associados à ocorrência de amputações. Também estão associados ao desfecho a não informação sobre os resultados dos exames de glicemia feitos (OR=3,341; IC95%: 1,254-8,899) e a presença de gangrena à admissão (OR=3,086; IC95%: 0,920-10,352).

DISCUSSÃO

Em vários estudos, a idade aparece como fator de risco para amputações por pé diabético 33. BrechowA, SlesaczeckT, Münch D, et al. Improving major amputation rates in the multicomplex diabetic foot patient: focus on the severity of peripheral arterial disease. Ther Adv Endocrinol Metab. 2013;4(3):83-94. , 88. AlvarssonA, SandgrenB, WendelC, AlvarssonM, BrismarK. A retrospective analysis of amputation rates in diabetic patients: can lower extremity amputations be further prevented?. Cardiovasc Diabetol. 2012;11(1):18. , 1111. AssumpçãoEC, PittaGB, MacedoACL, et al. Comparação dos fatores de risco para amputações maiores e menores em pacientes diabéticos de um Programa de Saúde da Família. J Vasc Bras. 2009;8(2):133-8. , 1212. VenermoM, ManderbackaK, Ikonen T, Keskimäki I, Winell K, Sund R.Amputations and socioeconomic position among persons with diabetes mellitus, a population-based register study. BMJ Open. 2013;3(4):e002395.. Especificamente, neste estudo, apesar de mostrar diferença estatística significativa pela análise bivariada, a mesma não permaneceu no modelo final de regressão.

Por outro lado, a procedência mostrou-se associada à ocorrência de amputações nas duas análises, observando-se maior frequência de residentes da Região Metropolitana dentre os pacientes submetidos à amputação. O conhecimento sobre a procedência dos pacientes em relação ao agravo pé diabético e à amputação propicia uma maior reflexão sobre as condições sociais da população em risco, ao mesmo tempo em que permite interrogar sobre a situação do referido agravo no interior do Estado, que necessita de maiores investigações.

O conhecimento da doença (DM) somente após o desenvolvimento de problemas nos pés atesta para existência, ainda, de dificuldades quanto ao diagnóstico e ao acompanhamento do diabetes mellitus. Sabendo-se que a ocorrência do pé diabético está associada à longa duração da doença e ao mau controle metabólico 44. KonstantikakiV. The role of primary care in the prevention of diabetic foot amputations. Int J Caring Sci. 2008;1(1):26-33. , 1212. VenermoM, ManderbackaK, Ikonen T, Keskimäki I, Winell K, Sund R.Amputations and socioeconomic position among persons with diabetes mellitus, a population-based register study. BMJ Open. 2013;3(4):e002395. , 1313. García-ÁlvarezY, Lázaro-MartínezJL, García-MoralesE, Cecilia-MatillaA, Aragón-SánchezJ, Carabantes-AlarcónD. Morphofunctional characteristics of the foot in patients with diabetes mellitus and diabetic neuropathy. Diabetes Metab Syndr. 2013;7(2):78-82., essas ações prestadas pela Atenção Básica têm relação direta com a prevalência de amputações por pé diabético.

Corroborando com isso, o tempo de ocorrência do problema atual é indicativo da ocorrência mais recente, seja a primeira ou a continuação de um processo de muitos anos, e pode expressar tanto a necessidade de assistência como as dificuldades de acesso e utilização do serviço de saúde.

Os resultados encontrados mostraram diferenças significativas para aqueles que apresentaram o problema com o pé havia mais de um mês. A análise multivariada mostrou que o grupo que apresentou úlcera no pé em período superior a um mês tem uma probabilidade três vezes maior de chegar a uma amputação do que aqueles que detectaram seu problema em menos tempo, constituindo-se, dessa forma, fator de risco para amputação; note-se que, quanto a isto, não se verificam na literatura parâmetros para comparação.

A variável 'gangrena à admissão' indica a gravidade do caso ao ser atendido por unidade de atenção à saúde de maior nível de complexidade, de modo que aqueles que apresentam gangrena à admissão hospitalar têm uma chance três vezes maior de serem submetidos a uma amputação quando comparados àqueles sem esta condição.

Este achado evidencia, a princípio, a falta de acesso ou adesão por parte destes pacientes à atenção básica e soma-se a outros fatores de risco para amputação, como tempo de conhecimento da doença e tempo de ocorrência do problema atual. Tendo em vista que o agravo do pé diabético é evitável através do diagnóstico precoce e de medidas preventivas, as altas frequências aqui encontradas para gangrena ao ser admitido no hospital, o conhecimento do DM somente após a ocorrência de um problema no pé e a evolução da úlcera do pé em tempo superior a um mês denunciam problemas na efetividade dessas ações.

As altas taxas de hiperglicemia à admissão encontradas neste estudo são concordantes com outras pesquisas 33. BrechowA, SlesaczeckT, Münch D, et al. Improving major amputation rates in the multicomplex diabetic foot patient: focus on the severity of peripheral arterial disease. Ther Adv Endocrinol Metab. 2013;4(3):83-94. , 1414. Vieira-SantosICR, SouzaWV, CarvalhoEF, MedeirosMCW, NóbregaMGL, LimaPMS. Prevalência de pé diabético e fatores associados nas unidades de saúde da família da cidade do Recife, Pernambuco, Brasil, em 2005. Cad Saude Publica. 2008;24(12):2861-70.. Embora se tenha verificado associação entre o grupo com valores de glicemia superior a 126 mg/dL e a ocorrência de amputações, tanto a análise através do Odds ratio como por regressão logística mostraram uma fraca associação entre esta variável e a ocorrência de amputações, provavelmente por influência do pequeno quantitativo de pacientes analisados.

Segundo vários estudos, o mau controle glicêmico favorece a instalação e o desenvolvimento das complicações crônicas, e aumenta o risco de neuropatia, um dos fatores preponderantes para o desencadeamento de lesão/ulceração nos pés; no entanto, não existem estudos que demonstrem relação direta entre hiperglicemia e a ocorrência de amputações 1111. AssumpçãoEC, PittaGB, MacedoACL, et al. Comparação dos fatores de risco para amputações maiores e menores em pacientes diabéticos de um Programa de Saúde da Família. J Vasc Bras. 2009;8(2):133-8. , 1313. García-ÁlvarezY, Lázaro-MartínezJL, García-MoralesE, Cecilia-MatillaA, Aragón-SánchezJ, Carabantes-AlarcónD. Morphofunctional characteristics of the foot in patients with diabetes mellitus and diabetic neuropathy. Diabetes Metab Syndr. 2013;7(2):78-82.

14. Vieira-SantosICR, SouzaWV, CarvalhoEF, MedeirosMCW, NóbregaMGL, LimaPMS. Prevalência de pé diabético e fatores associados nas unidades de saúde da família da cidade do Recife, Pernambuco, Brasil, em 2005. Cad Saude Publica. 2008;24(12):2861-70.
- 1515. Dos Santos Tavares DM, DiasFA, AraújoLR, PereiraGA. Perfil de clientes submetidos a amputações relacionadas ao diabetes mellitus. Rev Bras Enferm. 2009;62(6):825-30..

Existe evidência consistente de que qualquer melhora no controle da glicemia diminui o risco e a progressão das complicações microvasculares e neuropáticas 66. Caiafa JS, Castro AA, Fidelis C, Santos VP, Silva ES,Sitrângulo CJ Jr. Atenção integral ao portador de pé diabético. J Vasc Bras. 2011;10(4, Supl 2):1-32 http://dx.doi.org/10.1590/S1677-54492011000600001. .
http://dx.doi.org/10.1590/S1677-54492011...
, 99. International Working Group on the Diabetic Foot. International consensus on the diabetic foot and practical guidelines on the management and prevention of the diabetic foot [DVD]. Brussels: International Diabetes Federation (IDF); 2011..

No que se refere à informação sobre os resultados desse exame, o não conhecimento sobre o valor normal da glicemia apresentou-se associado à perda do membro na última internação com uma chance maior de ocorrência de três vezes.

O precário controle metabólico, assim como a não informação do resultado, são fatores que comprometem o manejo adequado do pé diabético, expondo o paciente a um desfecho desagradável.

O reconhecimento da corresponsabilização, assim como da necessidade de desenvolvimento de autonomia e protagonismo do indivíduo com Diabetes, a partir do estabelecimento de vínculos solidários entre profissionais da Atenção Básica e usuários, tem o potencial para melhorar o autocuidado, por causa do provável efeito positivo de satisfação do mesmo na adesão ao tratamento. Por outro lado, o paciente que não adere ao tratamento tem probabilidade 50 vezes maior de ulcerar o pé e 20 vezes maior de ser amputado do que aqueles que seguem corretamente as orientações 66. Caiafa JS, Castro AA, Fidelis C, Santos VP, Silva ES,Sitrângulo CJ Jr. Atenção integral ao portador de pé diabético. J Vasc Bras. 2011;10(4, Supl 2):1-32 http://dx.doi.org/10.1590/S1677-54492011000600001. .
http://dx.doi.org/10.1590/S1677-54492011...
, 1616. Kafaie P, Noorbala MT, Soheilikhah S, Rashidi M.Evaluation of patients' education on foot self-care status in diabetic patients. Iran Red Crescent Med J. 2012;14(12):829-32. , 1717. Santos L, Torres HC. Práticas educativas em Diabetes Mellitus: compreendendo as competências dos profissionais da saúde. Texto Contexto Enferm. 2012;21(3):574-80..

O número de consultas realizadas no último ano, de até três, quando comparado ao tempo de ocorrência do problema atual, aos altos valores de glicemia e à presença de gangrena à admissão, revela dificuldades no acompanhamento pela atenção básica e depõem para a carência de cobertura e rastreamento dessa complicação.

O instrumento de capacitação dos profissionais da atenção básica recomenda que, em face de complicações crônicas, em pacientes instáveis e com controle inadequado, as consultas devem ser feitas a cada dois ou três meses, equivalendo, portanto, a quatro ou seis vezes ao ano1010. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Plano de reorganização da atenção à hipertensão arterial e diabetes mellitus: manual de hipertensão arterial e diabetes mellitus. Brasília: Ministério da Saúde;2002.. O Consenso Internacional sobre Pé Diabético orienta que pacientes com história de amputação prévia devem realizar uma consulta entre um e três meses99. International Working Group on the Diabetic Foot. International consensus on the diabetic foot and practical guidelines on the management and prevention of the diabetic foot [DVD]. Brussels: International Diabetes Federation (IDF); 2011..

A não realização do exame dos pés no último ano com vistas à prevenção ou ao controle do pé diabético mostrou uma probabilidade de 3,39 vezes de estes pacientes serem submetidos a uma amputação, segundo análise bivariada; observe-se, ainda, que, acompanhando estes resultados, a falta de orientação quanto aos cuidados com os pés apresentou uma chance maior, de aproximadamente 3,6 vezes, dos pacientes que não receberam orientação necessitarem de uma amputação, segundo modelo final de regressão.

Vários estudos insistem na importância de uma intervenção proativa, com abordagem por equipe multidisciplinar, tendo como alvo de cuidados a população de alto risco 66. Caiafa JS, Castro AA, Fidelis C, Santos VP, Silva ES,Sitrângulo CJ Jr. Atenção integral ao portador de pé diabético. J Vasc Bras. 2011;10(4, Supl 2):1-32 http://dx.doi.org/10.1590/S1677-54492011000600001. .
http://dx.doi.org/10.1590/S1677-54492011...
, 88. AlvarssonA, SandgrenB, WendelC, AlvarssonM, BrismarK. A retrospective analysis of amputation rates in diabetic patients: can lower extremity amputations be further prevented?. Cardiovasc Diabetol. 2012;11(1):18. , 1717. Santos L, Torres HC. Práticas educativas em Diabetes Mellitus: compreendendo as competências dos profissionais da saúde. Texto Contexto Enferm. 2012;21(3):574-80. , 1818. BortolettoMSS, HaddadMCL, KarinoME. Pé diabético, uma avaliação sistematizada. Arq Ciênc Saúde Unipar. 2009;13(1):37-43..

Segundo o Consenso Internacional sobre Pé Diabético99. International Working Group on the Diabetic Foot. International consensus on the diabetic foot and practical guidelines on the management and prevention of the diabetic foot [DVD]. Brussels: International Diabetes Federation (IDF); 2011., as pessoas devem ter, no mínimo, um exame anual de seus pés (em maior número, se o risco de complicações for elevado)9. E assegura-se que este exame é o componente essencial para o manejo adequado desta complicação, mediante investigação da sensação protetora do pé, de sua estrutura, biomecânica, circulação e integridade da pele, através de testes simples e de baixo custo, concordando com vários estudos.

A maior parte dessas medidas está incluída no escopo das atribuições e competências dos profissionais da Atenção Básica, tanto no que se refere ao exame dos membros inferiores para identificação do pé em risco como no desenvolvimento de atividades educativas. Entretanto, apesar de esses profissionais reconhecerem a importância das práticas educativas - citando-as como estratégia eficaz no acompanhamento da doença, bem como alternativa para lidar com a crescente demanda de atendimentos -, alguns relatam dificuldades em relação ao planejamento, à condução e à avaliação desse processo1717. Santos L, Torres HC. Práticas educativas em Diabetes Mellitus: compreendendo as competências dos profissionais da saúde. Texto Contexto Enferm. 2012;21(3):574-80..

Os achados aqui encontrados quanto ao exame e às orientações referentes aos pés de pacientes diabéticos revelam que estas práticas ainda não foram incorporadas às ações cotidianas da Atenção Básica e se mostram como importantes fatores associados à ocorrência de amputações nestes pacientes, mesmo considerando as limitações metodológicas do estudo.

Uma limitação do estudo se relaciona a um possível viés de memória, uma vez que, a partir de pacientes hospitalizados por pé diabético, buscou-se resgatar os fatores relacionados à atenção preventiva previamente recebida. No entanto, acredita-se que tal viés foi minimizado, devido à sua relação com o problema atual.

Dentre os fatores associados à amputação de membros inferiores por pé diabético encontrados neste estudo, destacaram-se aqueles relacionados à Atenção Básica (preventiva) recebida, especialmente quanto ao maior tempo de ocorrência do problema com o pé, à falta de informação dos resultados dos exames de glicemia e à falta de orientação sobre cuidados com os pés.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    07 Jun 2014
  • Aceito
    08 Set 2014
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