Acessibilidade / Reportar erro

ERIC WEIL E O INTERESSE FILOSÓFICO PELA HISTÓRIA

RESUMO

O artigo apresenta a proposta de Eric Weil para a leitura filosófica de um evento histórico. Trata-se de um exercício de filosofia da história, destacando os termos essenciais da relação entre filosofia e história, o que assume traços precisos na reflexão de Weil sobre o avanço histórico. Para tanto, acompanha a reflexão de Weil sobre as recepções britânica e alemã da Revolução francesa, isto é, do pano de fundo a partir do qual podemos compreender os contornos modernos da moral, da política, da filosofia e da história. Em outras palavras, ao pensar a Revolução, o filósofo lida com Breakthrough que funda o novo quadro referencial no qual são recolocadas as questões da tradição, do sentido e do fim da história.

Palavras-chave
Eric Weil; Revolução francesa; Avanço histórico; Fim da história

ABSTRACT

This paper presents Eric Weil’s proposal for the philosophical reading of a historical event. It is an exercise in the philosophy of history, highlighting the essential terms of the relationship between philosophy and history. These same terms assume precise features in Weil’s reflection on historic Breakthrough. To do this, the article follows Weil’s reflection on the British and German reception of the French Revolution, that is, from the background from which we can understand the modern contours of morality, politics, philosophy and history. In other words, when thinking about the Revolution, the philosopher deals with the framework that founds the new references of the questions of tradition, meaning and the end of history.

Keywords
Eric Weil; French Revolution; Breakthrough in History; End of History

1. Introdução

Neste artigo apresentamos a proposta de Eric Weil para a leitura filosófica de um evento histórico. Em outras palavras, tratamos de um exercício de filosofia da história, destacando os termos essenciais da relação entre filosofia e história.1 1 Sobre outras leituras dessa relação em Weil, cf. Niel, 1954 e 1961; e Canivez, 1996. Esses mesmos termos assumem traços precisos na reflexão de Weil sobre o avanço histórico. Dito isso, o nosso objetivo se dá em dois níveis diferentes. Um primeiro escopo é sublinhar os traços originais da filosofia da história no pensamento weiliano, enquanto um segundo e mais imediato consiste em acompanhar a leitura propriamente filosófica que o autor faz das diferentes reações à Revolução francesa.2 2 Observamos que, mesmo tomando a Revolução francesa como objeto particular do nosso discurso, não se trata de uma análise histórica deste evento, tipo de análise ao qual, aliás, não temos simplesmente nada a acrescentar neste artigo. Antes, esforçamo-nos para acompanhar Eric Weil na leitura propriamente filosófica de um determinado acontecimento histórico. O mesmo poderia ser feito, por exemplo, com os textos de Weil sobre os fatos em torno da Segunda Guerra Mundial, reunidos, na Itália, no volume “Questioni Tedesche”, de 1982. Mas justamente porque ali Giuseppe Bevilacqua (1982, pp. 5-14) já propõe uma análise bastante aprofundada dessas questões, voltamos nossa atenção aqui ao evento que, segundo o nosso filósofo, funda nosso mundo político atual, justamente a revolução que se dá na França na segunda metade do século XVIII e a sua recepção no resto do Ocidente, mais especificamente na Inglaterra e na Alemanha. Para alcançá-los, recorremos primeiramente a “What is a Breakthrough in History?”, publicado em 1975 e, depois, a “L’influence de la Révolution française sur la pensée européenne”, provavelmente redigido na mesma época da redação de “Hegel et l’État”, mas que veio a público somente em 1999. O pano de fundo é o reconhecimento da Revolução francesa como passagem definitiva à política moderna, e a partir da sua leitura esperamos sublinhar os problemas fundamentais colocados para quem reflete filosoficamente sobre a história, nas perguntas acerca da tradição, do sentido da história e do seu possível fim.3 3 Para a caracterização da modernidade em Eric Weil, cf. Kirscher, 1982 e Castelo Branco, 2014.

Está em jogo o nosso modo de estar no mundo, de interpretá-lo e de agir sobre ele. Com efeito, a reflexão filosófica sobre a história compreende, por um lado, o problema da ação tanto moral quanto política e, de outro, tornar evidente a natureza e a tarefa da filosofia entendida como busca de compreensão, quer dizer, enquanto tentativa de “prender juntas as contradições na unidade do sentido” (Weil, 1996______. “Logique de la philosophie”. Paris: Vrin, 1996. , p. 425, grifo seu).4 4 “Prender juntas as contradições na unidade do sentido, num discurso que o concilia com aquilo que é como seu outro, e que só se torna mundo no discurso” (Weil, 1996, p. 425). É justamente a tentativa de tomar ao mesmo tempo os elementos que se contradizem na realidade que caracteriza a leitura weiliana da história e dos seus eventos em geral, incluindo a Revolução francesa, tratada aqui como evento que levanta uma série de problemas tornados fundamentais à filosofia política contemporânea.

Para alcançar nossos objetivos, o texto divide-se em duas partes. Na primeira, acompanhamos a análise weiliana das reações ao evento revolucionário francês, sobretudo na leitura de Edmund Burke e Thomas Paine, na Grã-Bretanha, e de Christoph Wieland e Immanuel Kant, na Alemanha. Na segunda, procuramos, sempre em Weil, os traços distintivos do interesse filosófico pelo avanço histórico.

2. O avanço da história moderna: o interesse pela Revolução francesa

O artigo “What is a Breakthrough in History?” parte da proposta de Jaspers de uma “era axial”. Para Weil (1975, p. 21)______. “What is a Breakthrough in History?”. Daedalus, 104/2, 1975, pp. 21-36., no entanto, devemos fazer duas considerações fundamentais: em primeiro lugar, diante da afirmação de uma “mudança decisiva” na história, devemos colocar a pergunta: “decisiva para quem?”; e, em segundo lugar, “se a história se revela como história do que aconteceu, torna-se essencial distinguir entre diferentes tipos de eventos”, ou seja, entre os que são essenciais e aqueles “incidentes excitantes”, distinção feita repetindo a pergunta “para quem isto importa?”, e avançando a resposta: “a nós” (Weil, 1975______. “What is a Breakthrough in History?”. Daedalus, 104/2, 1975, pp. 21-36., p. 22).

“No fundo, a história que escrevemos é sempre nossa própria autobiografia intelectual e política, uma tentativa de alcançar uma compreensão genética de nosso próprio modo de viver, de agir e de sentir” (Weil, 1975______. “What is a Breakthrough in History?”. Daedalus, 104/2, 1975, pp. 21-36., p. 22). Na modernidade, essa compreensão parte da consideração da Revolução francesa como ponto de virada da nossa história intelectual e política. Em outros termos, ela é, ao mesmo tempo, a abertura de um “novo período na história e da política e do pensamento” e “o ponto que nós podemos pensar e a partir do qual devemos pensar e que, tendo acontecido, nos formou” (Weil, 1991a______. “Essais et conférences 1”. Philosophie. Paris: Vrin, 1991a. , p. 129).5 5 Sobre o significado da transformação que a Revolução francesa representa para o Ocidente, podemos ler, por exemplo, a sua descrição, nas palavras de Weil, como um momento realmente axial no texto “Hegel et le concpet de la révolution”, publicado em 1976: “A história em sua totalidade, percorrendo os estágios sucessivos dos mundos grego, romano, cristão-germânico, chegou a uma reviravolta ou, mais exatamente, se encontra depois de uma reviravolta que, até nova ordem, será a última: o cetro está nas mãos do direito e da razão, os antigos poderes da injustiça, mesmo que ainda possam existir de algum forma nos rincões do mundo empírico, caíram para sempre: incipit vita nova”. Ou seja, trata-se do evento que, historicamente, incorporou todos os valores essenciais do que veio a ser plenamente a nossa condição presente, isto é, um edifício sustentado pelas noções propriamente modernas de justiça e razão.

Está em questão a compreensão da origem do nosso próprio modo de viver, de agir e de sentir. A Revolução francesa abre “o nosso tempo”, pois só a partir dela podemos perguntar “pelas marcas do caminho que nos trouxe a nós mesmos, ao que consideramos essencial em nosso caráter, moral, sentimentos e estilo de vida; eles são as peças de nossa (re)coleção” (Weil, 1975______. “What is a Breakthrough in History?”. Daedalus, 104/2, 1975, pp. 21-36., p. 23). Em última instância, trata-se da pergunta “o que nós somos?”; ao que só uma resposta satisfaz: “somos o que nos tornamos graças a certos eventos” (Weil, 1975______. “What is a Breakthrough in History?”. Daedalus, 104/2, 1975, pp. 21-36., p. 23). Logo, a história é a nossa autobiografia, enquanto aponta os marcos que constituem os nossos sistemas de valores e a nossa própria civilização (cf. Weil, 1975______. “What is a Breakthrough in History?”. Daedalus, 104/2, 1975, pp. 21-36., p. 26). A tarefa do filósofo que reflete sobre um acontecimento passado é indicar as formas pelas quais ele está atualmente presente como elemento constitutivo do nosso modo de estar no mundo, de interpretá-lo e de agir sobre ele.

A relação do presente com o passado sugere que por trás de um avanço repousa uma ruptura. A percepção do “nosso tempo” só se dá em comparação com outro tempo que já não é nosso e que chamamos “tradicional”. De um lado, “chamamos as antigas formas de ser de ‘tradicionais’, porque consideramos a história e a mudança como onipresentes; as pessoas que viviam daquela maneira, entretanto, não a achavam ‘tradicional’: ela lhes parecia inteiramente natural e autoevidente” (Weil, 1975______. “What is a Breakthrough in History?”. Daedalus, 104/2, 1975, pp. 21-36., p. 26); e só então a ideia de um avanço parece ter sentido para nós, pois só ao confrontarmos a nossa forma de ser no mundo com as “tradicionais” podemos identificar a ruptura entre o antigo e o moderno. Na Revolução francesa, a cisão com o passado forma o seu núcleo; nela

nada deve ser refeito, tudo está para ser feito. Um Estado, uma administração, uma sociedade devem ser demolidos, a fim de que um novo Estado, uma nova sociedade, uma nova administração, novas leis possam encontrar lugar claro, implantar-se e prosperar sobre uma terra livre de suas ervas daninhas (Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 116).

Trata-se, portanto, em cada novo passo do avanço histórico, da relação entre o “tradicional” e uma “novidade”. Porém, não se trata só do confronto entre duas formas de viver, mas também de compreender a realidade, isto é, a proposta do abandono de um determinado imaginário social pela promessa de um novo sentido em uma nova situação na qual os costumes antigos, se não impraticáveis, tornam-se ao menos insensatos (cf. Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 117). Aqui se situa o eixo da análise weiliana sobre a virada que representa o movimento revolucionário francês. De um lado, o filósofo não se interessa pelas condições gerais que levaram à Revolução, antes deseja saber o que os acontecimentos franceses significaram e geraram para os pensamentos inglês e alemão, e, de outro lado, sublinha que a Revolução criou uma espécie de aliança europeia contra a França revolucionária, bem como uma comunidade de pensamento.

2.1 A Revolução francesa na política inglesa

Weil (1999, p. 123)WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. parte da compreensão da Revolução francesa como evento decisivo na história do espírito inglês; com efeito, esse evento obrigou “o pensamento político inglês a se tornar consciente de seus próprios princípios”. O evento francês leva a considerar a possibilidade da revolução como uma constante no campo político e, por conseguinte, a afirmar o que de fato importa na constituição tradicional e a sublinhar a distinção, no ordenamento social, entre o que se pode modificar e o que não se pode tocar.

Os primeiros efeitos da Revolução francesa na Grã-Bretanha se dão no plano da reflexão, na “luta de ideias” (Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 118) instaurada na revisão de seus princípios. “Na realidade, em nenhuma outra parte do mundo a discussão política foi tão profunda” (Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 122), discussão cuja questão central era “saber o que é a verdadeira liberdade política” (Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 118), o que obriga os pensadores e os políticos ingleses a retomarem a própria forma de compreender as relações entre a razão e a história, de um lado, e entre a organização do Estado e os direitos individuais, de outro. Para sua análise, Eric Weil escolhe as obras de Edmund Burke, “Reflections on the Revolution in France”, e as duas partes de “Rights of Man”, de Thomas Paine. Dois políticos, não filósofos, justamente por considerar que o pensamento britânico não foi essencial ou imediatamente transformado pelos ideais revolucionários.

O cerne da questão, em Burke, é a contraposição entre os ideais revolucionários e o papel da Assembleia nacional. Ao fazê-lo, torna-se capital à compreensão da reação inglesa à Revolução, pois “exprime [...] a crítica mais pertinente e mais decisiva do espírito da Revolução” (Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 135). Em suas “Reflections on the Revolution in France”, aponta as fragilidades do raciocínio revolucionário, fragilidades que provêm do desconhecimento da história e da recusa de toda organização que se interponha entre o indivíduo isolado e a totalidade dos indivíduos (cf. Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 135).

Está em jogo o significado da liberdade, quando, por uma parte, se afirma que “o homem é livre, [...] o único ser que se faz; mas que se faz em condições determinadas e é desrazoável querer negar essas condições que são históricas”, e, por outra, que “a liberdade está nas leis, [que] ela não está no bel-prazer dos indivíduos. Se a palavra tem um sentido preciso, é aquele da segurança - e sobretudo da segurança da propriedade e das pessoas” (Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 132). Para a leitura conservadora, essa segurança será garantida pelos justos representantes da razão, isto é, pelos defensores dos interesses da nobreza, da propriedade de terra, da igreja e da coroa (cf. Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 133).

A compreensão da recepção inglesa exige ainda a tomada da perspectiva de Thomas Paine. Como Burke, Paine põe-se como legítimo representante do século XVIII: para eles, a razão é a instância definitiva; o direito natural, o fundamento do direito positivo e o fim do Estado, a felicidade dos cidadãos e a paz interna. Paine, no entanto, em relação a Burke, representa uma posição alternativa, outra via para pensar a sociedade e o Estado; para ele, com efeito, a história é orientada por três diferentes forças: a razão, o interesse e a humanidade. Desde o início, então, as diferenças se põem, pois “a razão [...] é o único guia e não o prejuízo [a tradição] do qual fala Burke e sobre o qual ele funda todo o seu sistema” (Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 136). A razão, o interesse e a humanidade estão presentes como fundamento, eixo e finalidade dos ordenamentos sociais, a concretização da razão na forma de superação dos sinais de atraso das comunidades primitivas.6 6 “É preciso fazer desaparecer os últimos traços do direito de conquista, libertar os homens, introduzir a democracia representativa, renunciar às superstições do passado, emancipar o comércio e a indústria, os grandes meios do entendimento entre os povos, esses grandes poderes pacificadores, é preciso aniquilar a influência dos grupos e das instituições que exigem prerrogativas. É preciso fazer uma boa constituição. Pois a Inglaterra não tem uma constituição ruim, ela não tem nenhuma” (Weil, 1999, p. 137).

Para Paine, é preciso submeter o governo à lei, entendendo esta última como ponto de intercessão de todas as partes da sociedade, garantia dos direitos fundamentais à liberdade de expressão, de comércio e de convicções religiosas. Logo, no alicerce do seu pensamento, “o sujeito da história não é o Estado, nem mesmo a nação, mas a sociedade. O fim não é nem a grandeza, nem a força das nações ou do Estado: o fim é a felicidade dos indivíduos” (cf. Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 137). Consequentemente, não surpreende que se ache, em Paine, um programa de justiça social, marcado tanto por uma ideologia humanitária de perfil capitalista, quanto por um individualismo burguês.

No entanto, nem Burke nem Paine formulam o que os opõe, pois ambos falam tanto sobre a oposição entre propriedade territorial e a fortuna móvel, como acerca daquela entre a tradição e o construtivismo racionalista, mas o que os separa é a interpretação da relação entre Estado e sociedade. As distinções, em parte, justificam-se pelos problemas enfrentados pelos dois personagens. Enquanto Paine pensa a sociedade colonial, Burke, “antirrevolucionário declarado” (Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 141), volta-se às questões da Inglaterra anteriores à Revolução industrial.

Os dois não tematizam a oposição que existe entre eles porquanto, para cada um, o próprio modo de ver o problema é a única forma válida. Radicalizando as próprias posições, colocam-se nos lados opostos de uma única trincheira e

isto distingue o seu diálogo de muitos dos diálogos contemporâneos, pois ao menos compartilham a trincheira: eles falam verdadeiramente sobre a mesma coisa. Ambos tratam de constituição, história, felicidade do homem, Estado, razão, organização, e o que os separa é a diferença de valor relativo que atribuem a esses conceitos (Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 131).

Homens do século XVIII recusam-se a aceitar princípios transcendentes, isto é, a intervenção da vontade divina ou de leis religiosas nos assuntos políticos; não se interessam por planos ou direitos divinos, tanto quanto não procuram nenhum sentido para a história. Homens de ação ocupam-se com a aplicação das próprias ideias mais do que com as suas nuances teóricas. Em termos definitivos, o fundo da oposição entre eles é designado a partir da liberdade entendida não tanto no seu sentido filosófico, mas sobretudo no seu significado político.

2.2 A Revolução francesa no pensamento alemão

No caso alemão, a análise é assumida a partir de outro extremo.7 7 “Nenhuma unidade nacional, nem unidade administrativa nem unidade legislativa; nenhuma tradição revolucionária; nenhuma lembrança de uma tradição comum; nenhum sentimento de poder ou de grandeza política, cultural, militar; nenhuma participação da nação nos negócios políticos, por mais restrito que seja; [administrativamente, tem-se] o paternalismo mais absoluto nos Estados mais avançados como a Prússia, um sistema feudal deteriorado em muitos outros e um absolutismo sem escrúpulos nos demais, chegando a ponto de se vender sentenças para encher os cofres, não dos principados, mas dos tribunais; [socialmente não há] nem nobreza consciente de seu poder e de sua independência, nem burguesia orgulhosa de sua riqueza e de suas prerrogativas comuns: a Alemanha é uma expressão geográfica; não é nem um Estado, nem uma sociedade” (Weil, 1999, p. 123). Logicamente, na Alemanha, não se pode esperar algo como a reação inglesa. Não surpreende, portanto, que na Alemanha a Revolução encontre um imenso eco assinalado pelo entusiasmo com que é saudada pelos seus intelectuais. Esta observação é o pano de fundo da análise da reação alemã pois, diferentemente do que se passou entre os ingleses, foram os intelectuais, e não os políticos, a se interessarem pela Revolução francesa.

Se a Revolução não representou um acréscimo fundamental ao pensamento inglês, porquanto ingleses já refletiam sobre os direitos do homem e sobre a igualdade civil, bem como já contavam com o controle parlamentar das finanças e gozavam de unidade territorial nacional; na Alemanha, representou o surgimento de uma “reflexão mais profunda sobre a natureza da nação, do Estado, do que [...] se pode chamar o espírito de uma nação” (Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , 124). A maior diferença, porém, é que, em geral, os teóricos alemães não refletem sobre uma constituição ideal, mas partem do sujeito que aspira à liberdade, da precedência dos interesses individuais sobre os do cidadão (cf. Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 124).

A Alemanha reage à Revolução na sua condição de país que, pelas fragilidades do seu regime, se aproxima de muitos aspectos da França prérevolucionária, mas com um pensamento que se caracteriza, no campo da discussão popular, pelo “nacionalismo” (cf. Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 126). Como a França antes da Revolução, a Alemanha também “não é sujeito da história e da política” (Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 125). Quando se compreendem as semelhanças das debilidades da Alemanha que reage à Revolução com a situação francesa anterior à queda da Bastilha, é que se entende o significado das palavras de Weil ao afirmar que a “Revolução criou a Alemanha por suas repercussões militares” (Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 125). As transformações subjacentes à “criação” da Alemanha, no entanto, acontecem numa direção diferente das mudanças da França revolucionária. Enquanto esta última se transforma, a Alemanha é transformada, não em vista dos ideais da Revolução, mas pelas demandas políticas características do nascente Estado moderno. A Revolução cria a Alemanha porque lhe impõe, tornando-lhe consciente, necessidades políticas modernas:

é por que o governo quer aumentar o potencial econômico e militar do Estado que a Prússia, não se reforma, mas é reformada - é significativo, é reformada por homens que não são prussianos de nascimento. Um Estado se moderniza, porque uma outra nação se deu [...] um Estado moderno (Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 126).

O traço distintivo do nacionalismo revela ainda o sentimento alemão de inferioridade.8 8 “Para um grande povo é preciso um grande chefe que lhe devolva o lugar que é o seu, que ele perdeu por suas próprias faltas e por suas lutas internas, pela intrigas de seus vizinhos e pela fraqueza e pelo egoísmo de seus príncipes. O nacionalismo alemão pode lutar contra as autoridades existentes; mas é para obter uma outra autoridade, melhor, mais poderosa, mais gloriosa. Um sentimento de inferioridade se declara e busca encontrar uma compensação” (Weil, 1999, p. 126). Manifesta-se no pensamento alemão uma dupla compreensão do seu nacionalismo: de um lado, trata-se da superação do seu sentimento de inferioridade histórica e de incompreensão, que se mostra na tendência de buscarem as causas dos seus próprios problemas em crimes alheios e não nos próprios erros e nas próprias faltas e, de outro, a forte lembrança das antigas glórias, a resistência para reconhecer as novas condições (cf. Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 127). Esses dois traços esclarecem tanto a forma própria da retomada alemã dos ideais revolucionários quanto o paradoxo que a distingue da reação britânica. Os termos do paradoxo alemão estão, como já pudemos antecipar, no fato de que foram os intelectuais, literatos, poetas e filósofos que se interessaram pelos eventos da Revolução na França. Em parte, isso explica por que, na Alemanha, as reações limitadas aos domínios da atividade intelectual alcançaram pouca repercussão na sensibilidade popular. O distanciamento entre as reações dos pensadores e as da população em geral é acentuado quando se reconhece a originalidade e a profundidade da filosofia alemã do período da Aufklärung, o que, para Eric Weil, é o que justifica falar do paradoxo da história alemã.9 9 “Aqui se mostra um paradoxo fundamental da história da Alemanha. Os pensadores deste país, em particular um dos maiores entre eles, Hegel, determinaram o pensamento do mundo inteiro; mas não tiveram nenhuma influência sobre a sensibilidade alemã. A filosofia das Luzes carrega em todas as línguas um nome alemão: o de Aufklärung, e em parte alguma do humanismo da época, a grandiosa ideia de uma educação da humanidade para a liberdade e para a razão foi formulada com mais clareza do que em Kant, ou expressada com maior convicção, serenidade e grandeza humana do que por Lessing: e em nenhum lugar, essa ideia foi menos influente sobre o espírito dos governantes e sobre a sensibilidade popular [do que na Alemanha]” (Weil, 1999, p. 127).

Essa ideia é reforçada quando se reconhecem como igualmente válidas a afirmação de que nessa época ninguém poderia estar mais interessado pela Bildung do indivíduo e pelo desenvolvimento de suas forças do que os pensadores alemães, como Goethe, Schiller, Weiland e Wilhelm von Humboldt; e a de que em nenhum outro país ocidental se mostrou menos respeito pela independência individual que na Alemanha (cf. Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 127). Esse quadro serve ainda como chave para a compreensão do fato de que “em nenhuma parte se colocou tão incisivamente em questão o valor do poder nu: e nenhuma nação dos séculos XIX e XX o buscou com tanta obstinação” (Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 127). A razão de ser desse “paradoxo” Weil encontra, em parte, num conjunto de fatores que envolve o pequeno papel da nobreza alemã, a fragilidade da sua economia e, consequentemente, da sua burguesia, o desenvolvimento tardio das suas riquezas naturais, assim como nas consequências da Guerra dos Trinta Anos, na excentricidade de seus príncipes e, finalmente, na sua evolução religiosa.

Os limites das condições sociais e políticas alemãs mostram-se com mais força na potência da sua reflexão. O maior mérito da filosofia alemã foi buscar

precisamente na vontade de não refutar nenhuma das ideias-matrizes, [de compreender] a razão e o sentimento, o individualismo e a unidade orgânica, o direito natural e a história, o universalismo e as heranças nacionais, as exigências do pensamento técnico e as do homem que busca a sua felicidade e defende a sua dignidade, a sociedade e o Estado (Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 129).

Com efeito, o pensamento alemão não refuta nenhuma dessas ideias, mas, do mesmo modo, não se contenta em justapô-las, antes procura uni-las num conjunto no qual cada uma possa ser reconhecida como parte que só se compreende no papel que ocupa na vida do todo e que não pode pretender representar, sozinha, esse todo, nem ser, sozinha, o impulso principal do seu movimento.10 10 A proximidade temática deste texto com “Hegel et l’État” torna-se patente à medida que Weil se volta a Hegel, mais precisamente, à análise da “Filosofia do direito”: “É em Hegel que essa organização do pensamento político moderno se completa, e é dele que parte toda reflexão política moderna, tanto aquela do socialismo quanto a do estatismo, tanto a interpretação unilateralmente sociológica da comunidade humana como a interpretação puramente política, e os pensadores mais radicalmente opostos encontraram nele os textos que parecem dar razão às suas teses particulares. Segundo o seus pretensos herdeiros, seu pensamento é falso precisamente na medida em que tanto uns quanto outros quiseram tirar dela a sua parte, contribuíram a desfazer a unidade desse pensamento. Mas é a prova de sua grandeza: ele não exagera ao dizer que a sua Filosofia do direito, o pequeno livro publicado em 1821, termina o período da Revolução e que está ali o resultado, como interseção dessas ideias, todas as vias anteriores como todas as vias ulteriores partem” (Weil, 1999, p. 129).

No entanto, o ponto de partida de Weil (1999, p. 129)WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. não será simplesmente a consideração dos grandes filósofos do período do “pensamento puro”, mas a análise das questões e do modo “como elas são colocadas pelos homens da época”. Deve-se ter em conta que a Aufklärung alemã foi, antes de tudo, o protesto contra o feudalismo deteriorado e contra o paternalismo; fatores que sufocavam a vida moral, civil e intelectual da Alemanha. É nesse contexto que reações como a de Christoph Wieland, “o único alemão verdadeiramente europeu em toda a história da Alemanha” (Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 140), assumem um caráter paradigmático.

Aposição de Wieland é significativa porquanto representa tanto a consciência geral da insuficiência do antigo regime alemão quanto a necessidade de reforma por um verdadeiro espírito da Restauração, vale dizer, a rejeição de uma pura e simples assimilação do fenômeno revolucionário. Seu caráter paradigmático está no fato de ele incorporar seja a oposição liberal ao despotismo alemão, seja a crítica dos horrores dos massacres que seguiram a Revolução. É no espaço criado entre a insuficiência do antigo regime e dos horrores que cercaram a Revolução que Wieland assume a questão da liberdade e da responsabilidade. Logo, a sua preocupação confirma o fato de que “os filósofos alemães, como todos os filósofos das épocas de grande filosofia, têm um interesse apaixonado pela política” (Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 141).11 11 Embora uma peculiaridade chame especialmente a atenção: “Tranquilos em suas universidades e em seus gabinetes, raramente incomodados pela censura, ainda não perturbados pelas guerras que, bem cedo, vão tocar o solo alemão; eles podem pensar pela Europa, e precisamente porque não podem criticar as condições da Alemanha, porque [...] sobre estas condições tudo está dito há muito tempo e vem sendo continuamente repetido por ótimos propagadores e divulgadores, e, por fim, porque têm uma consciência muito clara de que a Alemanha realmente não é parte neste grande debate, eles realmente pensam: tentam ver o problema antes de propor soluções” (Weil, 1999, p. 141).

As condições gerais dos pensadores alemães expõem a situação em que Kant reflete sobre a reviravolta histórica provocada pela Revolução.12 12 Há muitos textos sobre a recepção da Revolução francesa por Kant, no entanto, podemos recordar aqui, pelo valor da síntese, as palavras de Arendt, para quem, “a sua [de Kant] posição final a respeito da Revolução francesa, um evento que teve papel decisivo em sua velhice, fazendo-o esperar com impaciência pelos jornais, foi decidida por sua atitude do mero espectador, daqueles ‘que não estão engajados no jogo’, mas apenas acompanham-nos com participação apaixonada nas aspirações; certamente não significava, e menos ainda para Kant, que eles agora queiram fazer a revolução; sua simpatia se originava do mero ‘prazer contemplativo e da satisfação inativa’” (Arendt, 1992, p. 15). O seu interesse pela Revolução francesa é um dos poucos pontos controversos da sua biografia.13 13 “De maneira muito surpreendente, esse sujeito pacato se torna em um defensor, um propagandista da Revolução francesa, e isso no momento em que o regime de terror jacobino, em que a execução de Luís XVI reduziu ao silêncio não apenas os governantes, mas também os principais porta-vozes da opinião pública”. O que, por seu turno, “não quer dizer que Kant tenha aprovado todos os atos dos revolucionários” (Weil, 2003b, p. 142). Com efeito, a princípio, não é fácil compreender que “Kant, o filósofo da moral, foi um dos mais raros fiéis, se não dos dirigentes da Revolução, pelo menos à ideia dessa Revolução” (Weil, 2003b______. “Philosophie et réalité II”. Paris: Beauchesne, 2003b. , p. 149). A questão é tomada diretamente em “Kant und die Revolution in Frankreich”.

A tomada de posição [de Kant] é clara. Mas pode ser filosoficamente justificada? Toda a moral de Kant repousa sobre a inadmissível liberdade do homem, a única fonte de todo valor ético. O que é que tal moral pode esperar dos acontecimentos históricos? Resta mostrar que existe um laço entre moral e revolução (Weil, 2003b______. “Philosophie et réalité II”. Paris: Beauchesne, 2003b. , p. 143).

Nesse trecho, Weil, de um lado, aponta a liberdade como o fundo e o

fundamento de toda filosofia kantiana,14 14 Resta aplicar ao pensamento moral kantiano o que ele mesmo afirma valer para todo edifício de sistema de razão pura: “O conceito de liberdade, na medida em que a sua realidade é demonstrada por uma lei apodítica da razão prática, constitui a pedra angular de todo o edifício de um sistema da razão pura, mesmo da razão especulativa e todos os outros conceitos (os de Deus e da imortalidade) que, enquanto simples ideias, permanecem nesta sem apoio, conectam-se com este [conceito] e adquirem com ele e através dele consistência e realidade objectiva, isto é, a sua possibilidade é provada pelo facto de a liberdade ser efectiva; com efeito, esta ideia revela-se mediante a lei moral” (Kant, 2008a, p. 13). e, de outro, revela tanto a indissociável ligação entre moral e política como o laço escondido entre moral e história (cf. Weil, 2003b______. “Philosophie et réalité II”. Paris: Beauchesne, 2003b. , pp. 146-147). Do que se conclui que, em Kant, a razão é a liberdade, vale dizer, “que toda ação que não se justifique diante da razão é, por isso mesmo, arbitrária, inspirada por um espírito diametralmente oposto àquele da liberdade” (Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 141).15 15 Em “O conflito das faculdades”, o autor sublinha o laço entre a moral e a história na Revolução: “A revolução de um povo espiritual, que vimos ter lugar nos nossos dias, pode ter êxito ou fracassar; pode estar repleta de miséria e de atrocidades de tal modo que um homem bem pensante, se pudesse esperar, empreendendo-a uma segunda vez, levá-la a cabo com êxito, jamais se resolveria, no entanto, a realizar o experimento com semelhantes custos - mas esta revolução, afirmo, depara nos ânimos de todos os espectadores (que não se encontram enredados neste jogo), com uma participação segundo o desejo, na fronteira do entusiasmo, e cuja manifestação estava, inclusive, ligada ao perigo, que não pode, pois, ter nenhuma outra causa a não ser uma disposição moral no género humano” (Kant, 2008b, p. 105). Ao acrescentar algumas páginas depois, “Se, porém, não se alcançasse também agora a meta intentada neste acontecimento, se a revolução, ou a reforma, da constituição de um povo viesse por fim a fracassar ou se, após outorgada por algum tempo, tudo retornasse de novo à senda anterior (como agora alguns políticos vaticinam), aquela predição filosófica nada perde, apesar de tudo, da sua força. - De facto, tal acontecimento é demasiado grande, demasiado entretecido com o interesse da humanidade e, segundo a sua influência, demasiado propalado no mundo em todas as suas partes para, entre os povos, não ter de ser despertado na memória e na repetição de novos intentos desta índole, em qualquer ocasião de circunstâncias favoráveis; porque então, num assunto tão importante para o género humano, a constituição intentada deve finalmente, numa época qualquer, alcançar a solidez que a instrução mediante a múltipla experiência não deixaria de operar nos ânimos de todos” (Kant, 2008b, p. 108). Esses dois trechos são citados por Weil (2003b, pp. 142-143).

Kant compartilha a ideia de que com a Revolução surge uma nova época, um novo tempo do progresso moral, no qual a humanidade, ou pelo menos uma parte dela, entra na maioridade. Torna-se maior, porque, doravante, cada homem concebe a si mesmo como responsável diante da própria consciência; finalmente, ele é capaz “com um mínimo de ajuda socrática, de encontrar em si mesmo o imperativo categórico e de compreender que ele o obriga absolutamente: não, a humanidade em sua unidade é agora maior, e isso no campo da política, da constituição do Estado, do direito” (Weil, 2003b______. “Philosophie et réalité II”. Paris: Beauchesne, 2003b. , p. 143).

Finalmente, a relação entre moral e história, cujo laço se desvela na Revolução, deve ser compreendida em duas diferentes perspectivas. Em primeiro lugar, com a Revolução aparece “o que em si é invisível, invisível a partir do qual nós inferimos a ação a partir de sua aparição” (Weil, 2003b______. “Philosophie et réalité II”. Paris: Beauchesne, 2003b. , p. 143). Com efeito, é o fato histórico a partir do qual se atingiu uma concepção mais clara, mais profunda e mais verdadeira da moral. Abre-se, no cenário histórico-político, a demanda por um Estado e por uma constituição que respeitem a liberdade de todos, a reivindicação da criação de um contexto no qual todos estejam aptos para reconhecer a liberdade dos outros e a admitir e mesmo a exigir leis que limitem a liberdade apenas em função do respeito da liberdade de todos os demais. Logo, a Revolução apresenta-se moralmente justificada na história, enquanto busca o direito da liberdade. Nesse primeiro sentido, o reconhecimento do valor moral da Revolução pode ser compreendido numa ordem psicológica, expressão de preferências pessoais em contradição com o pensamento do moralista (cf. Weil, 2003b______. “Philosophie et réalité II”. Paris: Beauchesne, 2003b. , p. 145).

Em segundo lugar, devemos nos voltar ao imperativo categórico. Porquanto serve de valor de direito e obrigação de consciência, o imperativo não constrói uma moral concreta, pois, se possibilita a exclusão de máximas moralmente inadmissíveis, “não pode inventar sequer a mais modesta das máximas” (Weil, 2003b______. “Philosophie et réalité II”. Paris: Beauchesne, 2003b. , p. 145). Ele está “inscrito nos corações com letras inapagáveis”, mas só encontra aplicação na vida ativa; ele é a razão que age e se atesta no homem, mas o homem não é razão, é tão somente razoável; tem pulsões, desejos e paixões. Ele vive sob a lei moral, sob um mandamento, porque é também imoral, em vias de moralização (Cf. Perine, 2004, pp. 35-70). Se o homem é também um ser movido por pulsões, finito e necessitado, ele continua, enquanto razoável, eminentemente acima de suas necessidades e pulsões. Encontra-se obrigado a entrar com todos os concernidos na comunidade moral numa relação que assegure a cada um uma existência passível de moralização.16 16 Esse aspecto foi desenvolvido a partir da questão da unidade do homem moral como elemento para a relação entre Weil e Schiller cf. Vestrucci, 2014, pp. 49-69. O que se mostra é o animal no homem, obrigado a se reconhecer animal-homem, mas que concebe a si mesmo mais do que simples animal, mais do que o ser vivo finito e necessitado. O homem jamais se tornará um anjo, mas não é possível considerá-lo como um demônio depois de conhecê-lo em sua liberdade (cf. Weil, 2003b______. “Philosophie et réalité II”. Paris: Beauchesne, 2003b. , p. 147). Disso resulta que é na “aparição da consciência de si da razão que reside, para Kant, a verdadeira significação da Revolução” (Weil, 2003b______. “Philosophie et réalité II”. Paris: Beauchesne, 2003b. , p. 148).

Agora se pode afirmar que interessa a Kant a vontade de edificar um Estado razoável que supere, na história, o que é meramente histórico. Com a Revolução francesa, “toda a humanidade se tornou expectadora de uma peça de teatro que revela o sentido da história passada, porque o passado permitiu pôr a questão de seu sentido” (Weil, 2003b______. “Philosophie et réalité II”. Paris: Beauchesne, 2003b. , p. 148).17 17 “A humanidade despertou no seio da história para a consciência de seu direito supra-histórico, e o homem que percebeu sua humanidade não repousará antes de ter, como quis a Revolução, tornado a mundo razoável e humano. Doravante, com a Revolução francesa, o homem tomou seu destino nas mãos. A Revolução colocou o mundo na cabeça, quer dizer, no pensamento, e o pensamento jamais será reduzido ao silêncio. Doravante, o homem sozinho, os povos procurarão eles mesmos a sua felicidade, eles terão, antes de tudo, que aprender a usar a liberdade, mas livremente, independentemente da boa ou da má vontade de senhores ou de príncipes autocráticos. Com a Revolução, a humanidade se libertou para a liberdade; sem dúvida ela quer a própria felicidade material e a satisfação das suas necessidades; mas agora ela quer infinitamente mais: ela só quer alcançar sua felicidade pela decisão própria e responsável” (Weil, 2003b, pp. 148-149). A conclusão da leitura de Weil é que, para Kant, com esse acontecimento, “o homem pensante apareceu na história” (Weil, 2003b______. “Philosophie et réalité II”. Paris: Beauchesne, 2003b. , p. 149).

3. O filósofo e o interesse pela história

Os homens políticos e os pensadores que assistiram aos eventos ao redor da Revolução francesa e testemunharam os seus efeitos chegaram à consciência de que uma nova época começava. Ao se ocupar com a sua influência sobre o pensamento europeu, Weil não se limita à análise historiográfica, mas busca as reais repercussões desse evento no campo do pensamento. De modo mais preciso, não se volta simplesmente à questão da natureza da história; antes, procura levar a um nível mais profundo a autocompreensão do homem como ser dotado de um passado. Ao declinar da reflexão que se desenvolve entre a “história em si”, de um lado, e a “historicidade” do homem, de outro, perguntase por que o homem se interessa pelo passado (Cf. Weil, 1975______. “What is a Breakthrough in History?”. Daedalus, 104/2, 1975, pp. 21-36., pp. 21-23).

Devemos, a partir daqui, considerar argumentos de duas distintas ordens. Em primeiro lugar, temos de levar em conta o fato de que a Revolução francesa representa um real avanço histórico (cf. Weil, 2003a______. “Philosophie et réalité I”. Paris: Beauchesne, 2003a., p. 129), isto é, a partir dos eventos ocorridos na França, em 1789, o quadro dentro do qual o homem se compreende e compreende o mundo é completamente revirado. Em segundo lugar, o fato de que esse evento continua acessível por não se tratar de um acontecimento inteiramente ultrapassado em suas repercussões. Com efeito, a Revolução francesa constitui o evento formador do horizonte abrangente de sentido no qual a civilização ocidental encontra tanto as raízes históricas quanto aquelas lógicas para a compreensão do seu presente.

Nessa segunda direção, uma nova forma de compreender a história ganha força, a saber, o fato de que a história, como atividade do espírito, surge na modernidade e caracteriza o homem moderno. Para este, com efeito, a consciência de si só se dá concomitantemente à tomada de consciência da história como elemento constitutivo da sua humanidade. Em outros termos, na modernidade “o histórico entrou na história” (Weil, 1991a______. “Essais et conférences 1”. Philosophie. Paris: Vrin, 1991a. , p. 186), e a condição moderna revela-se essencialmente histórica, tornando-se impossível o homem compreender a si mesmo de outro modo.

É certo que uma nova compreensão da história não poderia se fazer sem implicar uma nova forma de ver o homem e, por consequência, a filosofia. De fato, a pergunta sobre o sentido da história como elemento constitutivo do homem levanta não apenas um tema de antropologia, mas se volta à compreensão da própria filosofia como uma realização histórica. A relação entre história e filosofia mostra-se então em sua complexidade, pois ambas “são obras do homem e dos mesmos homens que se fazem e se interpretam na história como se interpretam e se fazem na filosofia” (Weil, 1991a______. “Essais et conférences 1”. Philosophie. Paris: Vrin, 1991a. , p. 202). O pensamento do homem moderno dá-se como o pensar de quem tomou consciência da sua própria história, porquanto se compreendeu, finalmente, como ser histórico.

O nosso interesse volta-se então às condições para a compreensão do homem. Desse modo, essa mesma compreensão pode ser vista em sua modernidade respeitando três noções fundamentais: a nova consciência do valor das tradições; a pergunta sobre a possibilidade de um sentido para a história; e, por último, a questão do fim da história.

Em primeiro lugar, o homem moderno “descobre” a sua tradição. Ele, que antes não podia conhecê-la, pois se via inteiramente comprometido em vivê-la, percebe agora a onipresença da tradição. As afirmações de Weil no início de “Tradition et traditionalisme”, de 1953, sublinham a importância deste tema para nosso objetivo. Para o autor, “é graças [à tradição] que nossa vida é nossa”, na medida em que é a “nossa maneira de ser” e “nos forma no seu modelo” (Weil, 1991b______. “Essais et conférences 2”. Politique. Paris: Vrin, 1991b., p. 9). A onipresença da tradição manifesta-se justamente nas inúmeras formas com que ela se apresenta à consideração dos homens modernos, seja como “força na história” (Weil, 1991b______. “Essais et conférences 2”. Politique. Paris: Vrin, 1991b., p. 10), seja como “o valor que funda todos os outros valores” (Weil, 1991b______. “Essais et conférences 2”. Politique. Paris: Vrin, 1991b., p. 12). Sob o signo de sua onipresença, ela assume um caráter ambivalente na definição da condição do homem. De um lado, é em virtude dela que “tudo o que tem a fibra de nosso ser, tudo o que é sagrado para nossa fé” (Weil, 1991b______. “Essais et conférences 2”. Politique. Paris: Vrin, 1991b., p. 12) adquire importância e é a sua estabilidade que garante a identidade de um grupo e mesmo de um indivíduo. De outro, a tradição é sempre uma “força histórica”, uma “questão aberta”. “A tradição não é uma barreira contra a mudança, mesmo contra a mudança violenta, ao contrário, a situação na qual aparecem mudança e violência, como ameaça ou como promessa, é ela mesma um resultado da tradição” (Weil, 1991b______. “Essais et conférences 2”. Politique. Paris: Vrin, 1991b., p. 16) e essa nova condição da sua compreensão se mostra na passagem das molduras políticas e sociais pré-revolucionárias àquelas posteriores a 1789. Há, portanto, na própria ideia de tradição, espaço à instabilidade e à mudança, e Weil põe nessa altura o “paradoxo no próprio conceito de tradição” (Weil, 1991b______. “Essais et conférences 2”. Politique. Paris: Vrin, 1991b., p. 12).

Se, por uma parte, o problema só pôde ser colocado pelo homem moderno e em vista dele, a solução, por outra, assenta-se nas condições próprias da modernidade. “Nossa tradição, dizíamos quando nos opúnhamos a uma tradição estável, repousa sobre a mudança permanente. Mas isso não significa que toda mudança seja tolerável na nossa tradição, nem que ela seja caracterizada exclusivamente por sua tendência à mudança” (Weil, 1991b______. “Essais et conférences 2”. Politique. Paris: Vrin, 1991b., p. 18). São necessários critérios para regular a relação do homem com sua tradição e esses só podem ter significado se, ao mesmo tempo, estiverem ligados aos valores tradicionais e forem racionalmente justificáveis; é a razão que decide “o que é válido numa tradição instável e o que não é” (Weil, 1991b______. “Essais et conférences 2”. Politique. Paris: Vrin, 1991b., p. 20).

A partir da Revolução francesa, a condição moderna é compreendida também como articulação e crítica da tradição pela razão, pois se “não podemos nunca estar seguros da nossa completa racionalidade, isto é, de termos sobrepujado todas as influências de nossa tradição”, e se “queremos ser racionais”, “queremos isso em nossa situação histórica” (Weil, 1991b______. “Essais et conférences 2”. Politique. Paris: Vrin, 1991b., p. 20). A superação desse “paradoxo” se faz porque

a nossa tradição é aquela que incessantemente põe em questão a própria validade, que a cada momento do seu destino histórico tem de decidir [...] o que devemos fazer para nos aproximarmos da verdade, da justiça, da sabedoria. A nossa é a tradição do pensamento filosófico. É a tradição que não se satisfaz com a tradição (Weil, 1991b______. “Essais et conférences 2”. Politique. Paris: Vrin, 1991b., p. 21).

Em segundo lugar, estão as novas formas para a pergunta “se a história existe em si” (Weil, 1991a______. “Essais et conférences 1”. Philosophie. Paris: Vrin, 1991a. , p. 228), isto é, se ela tem sentido. Tratando-se do homem, a resposta só pode ser afirmativa: “a história é racional como aspecto do mundo do homem” (Weil, 1991a______. “Essais et conférences 1”. Philosophie. Paris: Vrin, 1991a. , p. 229). De fato, o homem que pergunta pelo sentido da história é o que já deixou a insensatez e a violência. É aquele que “age (e não apenas reage como os animais) porque fala (pensa) e pensa (não apenas exprime sentimentos) porque age, ou seja, transforma o dado, tanto exterior (natureza ambiental) quanto interior (psiquismo, paixões etc.)” (Weil, 1991a______. “Essais et conférences 1”. Philosophie. Paris: Vrin, 1991a. , p. 203). Esse homem só pode pensar a história ao supor a possibilidade de um sentido para ela, pois se se fala sobre a história, isto é, se se pergunta por ela, é porque é possível traduzi-la numa linguagem sensata e em valores compartilhados.

Consciente da sua história, o homem moderno entende que o mundo a ser interpretado é também um mundo a ser transformado. A partir daí, fica claro que “todo acontecimento histórico é ao mesmo tempo sensato no mundo histórico no qual se realiza e constitui uma modificação deste mesmo mundo em vista de um sentido a se realizar a partir do sentido existente. Transformação da realidade e pensamento da realidade a transformar são dois aspectos inseparáveis da mesma vida humana” (Weil, 1991a______. “Essais et conférences 1”. Philosophie. Paris: Vrin, 1991a. , p. 203).18 18 Essa ideia é desenvolvida no artigo de Luís Manuel Bernardo (2017), cujo título é precisamente “La quête du sens : action et argumentation”. A própria filosofia é compreendida como tomada de consciência da ação em vista do sentido, isto é, o exercício do homem que quer se compreender na ação na história. A história humana não é mera sucessão de eventos, mas “se tornou história para o homem” (Weil, 1991a______. “Essais et conférences 1”. Philosophie. Paris: Vrin, 1991a. , p. 231), enquanto é ele o responsável por encadear, de modo sensato, a partir da linguagem e dos valores da sua comunidade, os acontecimentos ao redor de si.

O homem assume o papel de intérprete do mundo, enquanto ser capaz de pensar e de agir, por isso, a sua história passa a ser compreendida como a história da realização da razão; “o desenvolvimento progressivo da razão e da liberdade, precisamente porque nós nos consideramos como seres racionais; nossa tarefa permanente é a de tornar real a liberdade racional num mundo que ainda não é racional”, e, ainda, “afirmamos a possibilidade de fazer do mundo dos homens o mundo da razão e da liberdade, de humanizá-lo e torná-lo sensato para todos e para cada um” (Weil, 2003b______. “Philosophie et réalité II”. Paris: Beauchesne, 2003b. , p. 199).

Em terceiro lugar, a filosofia contemporânea deve se ocupar com a questão do fim da história.19 19 Nas palavras de Inácio Helfer (2003, p. 248), “O tema do ‘fim da história’ se apresenta como uma reflexão instigante. Trata-se de um estudo escatológico, não no sentido como é elaborado pela teologia, mas segundo o ponto de vista filosófico. Quando os teólogos refletem sobre o fim do mundo (e também sobre a ressurreição e o julgamento final), tratam do assunto numa perspectiva da crença em um ser ou ordem transcendente. Quando o tema é circunscrito ao ponto de vista filosófico, o critério de demarcação da reflexão se limita a uma formulação racional do sentido. O estudo escatológico em filosofia é uma reflexão na esteira da ordem do pensamento que examina, criticamente, se a história da humanidade pode, ou não, ter um fim último; visa explicar em qual sentido este tema pode ser compreendido; como o assunto se relaciona com as demais concepções de história, por exemplo, a história como progresso, como invenção, como referência para as novas gerações, como luta de interesses - classes -, como campo de tragédias, como violência, como espaço da liberdade, entre outras. Assim, pode-se lançar a pergunta: qual o sentido que a noção ‘fim da história’ teve e tem para as comunidades humanas? Diante da constatação de que viver a história, com interesse e numa perspectiva construtiva, é primordial para as comunidades humanas (pois do contrário se colocaria em questão a unidade política, econômica e social de uma nação), tem algum significado pensar o ‘fim da história’?”. Weil trata desse tema em um texto precisamente intitulado “La fin de l’histoire”, artigo no qual vemos refletir as análises características das abordagens do modelo hegelo-kojèviano.20 20 Uma apresentação do que chamamos de “modelo hegelo-kojèviano” se encontra em Bourgeois, 2003. Ao ressaltarmos o seu contexto preciso, salientamos, por um lado, que a reflexão weiliana não se insere diretamente nos nossos debates hodiernos acerca do fracasso dos “escatologismos laicos”,21 21 Logicamente o nome mais conhecido no que concerne à associação de um tipo de projeto econômico e o fim da história é o de Francis Fukuyama, no seu livro de 1992, justamente com título “O fim da história e O último homem”. Sobre as ideias presentes nesse livro, cf. Macey e Miller, 1992.. porém, retomamos seus argumentos convencidos do quanto podem enriquecer o diálogo sobre os problemas, as correntes e as muitas incertezas políticas da atualidade, justamente ao designar o fim da história não só como superação da infelicidade, mas também como a superação da violência pela moral, quer dizer, ao apontar para “o fim da história da vida imoral” (Weil, 2003a______. “Philosophie et réalité I”. Paris: Beauchesne, 2003a., p. 172), o que, de certo modo, liga a temática ao conjunto do pensamento weiliano como um todo.22 22 Sobre a relação da filosofia weiliana com a violência, Cf. Perine, 1987 e Nodari, 2017.

O século XX mostrou concretamente que essa não é a única possibilidade quando pensamos o fim para a história humana. Com efeito, conhecemos bem o poder de nossas armas, o resultado da nossa ação sobre a natureza e como tornamos o nosso próprio extermínio uma realidade possível.23 23 O modo como a geração de Weil ficou marcada pela Segunda Guerra, sobretudo pelas explosões nucleares, é testemunhado por pensadores das mais diferentes perspectivas. Para nós, é suficiente remeter ao prólogo de Arendt em “The human condition” (1998, pp. 1-6) e às páginas de “On violence” em “Crises of the Republic” (1972, pp. 103-184). No entanto, para o homem moderno, o tema do fim da história refere-se, sobretudo, à realização da liberdade e da razão.24 24 “O que a humanidade sempre quis é chegar a um estágio onde as condições de seus sofrimentos, as fatalidades de seus problemas, no sentido mais geral, pudessem terminar” (Helfer, 2003, p. 352). Trata-se do fim de uma história marcada pelo mal e pelo sofrimento, sem que se trate de uma entropia absoluta, mas do desejo de viver feliz no tempo. Mais do que o anúncio de um evento proléptico, pensar o fim da história pode nos dar o crivo que permite “constatar que a história ainda não é feliz, que ainda não é o que gostaríamos que fosse, que ainda é fatalidade cega, sequência de acidentes imprevisíveis e, na maior parte do tempo, desagradáveis, história sofrida que ele deve suportar” (Weil, 2003a______. “Philosophie et réalité I”. Paris: Beauchesne, 2003a., pp. 169-170). Deste modo, o fim da história equivale, assim, ao fim de nossos infortúnios, afinal, o homem “quer viver e assistir os acontecimentos, viver o seu tempo, mas viver feliz” (Weil, 2003a______. “Philosophie et réalité I”. Paris: Beauchesne, 2003a., p. 169).

Se a questão é posta nesses termos, surge a pergunta acerca da sua modernidade, afinal, desde sempre a humanidade busca a felicidade. A originalidade da questão nos tempos modernos está no modo com que lidamos com ela.25 25 De fato, é a ideia do fim da história que orienta a ação do homem moderno, pois ele “quer o fim dos tempos históricos, dito de outra forma, ele quer que a violência, a injustiça, o sofrimento não culpável cessem e desapareçam. Mais simplesmente ainda, o homem, na nossa época, age, quer agir, gostaria de agir, pretende agir, em todo caso, se compreende como ser agente, e agente em vista do fim desta história que ele conhece muito bem” (Weil, 2003a, p. 170). O fim da história não oferece apenas a possibilidade de pensar a sua meta, seu sentido, mas de aquilatar a ação do homem na realização da sua humanidade. O homem moderno, o primeiro a se interpretar como mestre e senhor da natureza e da história, vê na sua própria ação a chance de construir o que imagina e chama “pós-história” (Weil, 2003a______. “Philosophie et réalité I”. Paris: Beauchesne, 2003a., p. 168). Ele se torna, finalmente, aquele que transforma as condições de sua própria vida. Mas não se trata de fazer previsões, afinal, o homem não sabe precisamente o que significa “mundo humano” ou “vida feliz”, sabe apenas o que é desumano.26 26 Podemos ao máximo afirmar com Weil que “queremos ser livres do que nos oprime, nos inquieta, nos impede de sermos nós mesmos, de sermos felizes”, do que se conclui: “Só podemos falar em termos de negatividade, se devemos ser livres, nem nós, nem nada ou ninguém - e, sobretudo, os seres não livres que somos hoje - pode ou deve querer determinar de antemão o conteúdo desta vida futura, que não será livre se puder ser determinada antecipadamente: não se pode, eu não posso me impor o conteúdo de minha felicidade futura, e devo respeitar minha liberdade que vem, minha felicidade esperada, a realização de mim mesmo por mim mesmo; isso se não quiser cair em contradições que tornariam incoerente todo meu pensamento, todo o meu plano” (Weil, 2003a, p. 172). No entanto, podemos e devemos tentar o mais seriamente possível remediar tudo o que desfigura a humanidade, o que traz de volta o problema moral.27 27 Em 1976, Weil, no artigo, “Faudra-t-il de nouveau parler de morale ?”, trazia justamente essa questão, segundo a sua interpretação, “uma questão ao mesmo tempo oportuna e de oportunidade” (Weil, 2003a, p. 255). Sobre esse artigo especificamente, ver o comentário de Marcelo Perine (1985, pp. 109-124). Como entendido aqui, Weil trata unicamente do fim da vida imoral, e o homem pode alcançá-lo quando descobre um sentido que permita, a partir da ação sobre a natureza e sobre si, viver a sua liberdade na coexistência com todos os outros. Weil (2003a, p. 175)______. “Philosophie et réalité I”. Paris: Beauchesne, 2003a. enlaça, assim, o futuro com o presente, evitando qualquer forma de escatologia caricaturada, pois o fim não nos é estranho, mas conhecido nos momentos de presença, isto é, “quando se encontra a beleza da natureza, a arte, a poesia, a vida na presença do espírito e do sentimento, o ser humano no amor”. “O fim da história não significa que nenhum homem será mau, significa que o mau escolheu seu mal e que todo homem, com a única condição de querer (não de cobiçar ou de sonhar), será feliz, porque nada o impedirá de querer sê-lo” (Weil, 2003a______. “Philosophie et réalité I”. Paris: Beauchesne, 2003a., p. 176).28 28 Sobre a repercussão dessa ideia nas últimas páginas da “Filosofia política”, cf. Vestrucci, 2012, p. 38).

O fim da história não é nada além daquilo que a moral visa, o que toda moral, religiosa, tradicional, filosófica, visou desde sempre. O homem será livre. Será feliz em sua liberdade, mais exatamente, terá na sua liberdade a possibilidade de descobrir o sentido da vida e do mundo - pois poderá refutar tanto a liberdade quanto a felicidade -, quando a moral tiver realizado seu mundo, na medida em que ela o tiver realizado, e a história terá terminado, a história ruim terá seu final feliz, quando o homem tiver feito o que se sabe deve ser feito pela moral da liberdade (Weil, 2003a______. “Philosophie et réalité I”. Paris: Beauchesne, 2003a., p. 173).29 29 Para Marco Filoni, o trecho resume a ideia fundamental do artigo de Weil e marca as diferenças entre Weil e Kojève no que concerne ao tema do fim da história. Sobre a leitura weiliana e o quadro atual da discussão, o intérprete põe logo depois das palavras de Weil: “É verdadeiramente lamentável que, no debate filosófico, tenhamos perdido a significação dessa discussão. Com certeza a ideia do fim da história está na moda, mas prisioneira de novas tendências ditas pós-modernas” (Filoni, 2012, p. 6).

O que se evidencia, ao fim e ao cabo, é o caráter “kantiano pós-hegeliano” do pensamento de Weil. Com efeito se o fim da história é reconhecidamente um tema de raiz hegeliana, em Weil, como em Kant, é a reflexão sobre a moral que conduz ao pensamento sobre a história, e este, por sua vez, leva a uma antropologia filosófica (cf. Weil, 1998______. “Problèmes kantiens”. Paris: Vrin, 1998. , p. 16). Logo, deve-se encontrar, subjacente ao pensamento sobre o fim da história, como estava também na reflexão sobre as condições para o progresso moral, a pergunta pelo homem e pelas possibilidades da sua realização (cf. Weil, 1996______. “Logique de la philosophie”. Paris: Vrin, 1996. , p. 10).

4. Conclusões

Como primeira conclusão, podemos assinalar o fato de que, para Weil, a Revolução francesa sublinha o laço essencial entre história, política e moral. Por sua vez, esse próprio laço se torna uma das chaves para a compreensão da modernidade, e só partindo dele podemos interpretar os eventos que mudam o nosso modo de estar no mundo e de compreendê-lo. Dessa forma, a história moderna pode ser caracterizada como uma era da revolução contínua, justamente porque, nela, essa noção adquiriu o estatuto de um movimento natural do campo político, isto é, de um movimento necessário a partir do qual as ações individuais e coletivas são julgadas.

Uma segunda conclusão aponta para o caráter original da filosofia da história de Weil. Para Eric Weil, com efeito, o filósofo volta-se ao passado, mas, diferentemente do homem comum, compreende que neste gesto está uma forma de realização do homem. Em outras palavras, antes mesmo de se perguntar sobre o sentido da história, a filosofia deve inquirir sobre o sentido da pergunta pela história, uma forma, portanto, de questão primeira e, por isso, mais legitimamente filosófica. Desse modo, Weil afasta-se dos modelos de Hegel e de Heidegger, assumindo uma postura verdadeiramente peculiar de filosofia da história. Deseja compreender o fato de que, ao nos voltarmos ao passado, queremos fundamentalmente entender o presente, e a filosofia encontra aí uma chave para a compreensão do próprio homem. É o que fica claro em Burke e Paine, Wieland e Kant, pois, todos eles, pensando a Revolução, querem, em última instância, compreender o homem, de forma consciente ou não, sendo justamente a consciência que se tem disso o fator distintivo do filósofo.

Por fim, se a tarefa do filósofo é tomar num único discurso os elementos dispersos na realidade, a Revolução francesa constitui a base do paradigma atual a partir do qual pensam os filósofos que se interessam pelas “coisas humanas”. Antes de tudo, trata-se da inversão a partir da qual a moral, a política, a filosofia e a história ganham os seus contornos propriamente modernos. Em outras palavras, ao pensar a Revolução, o filósofo lida com o Breakthrough que funda o novo quadro referencial no qual são recolocadas a questão da tradição, a pergunta pelo sentido da história e a compreensão moderna, isto é, secular, do fim da história. É também nessa nova moldura que são tomados indivíduo e comunidade moral, instrução e educação, sociedade e Estado; enfim, todos os problemas pelos quais Weil se interessa na sua filosofia prática, quer dizer, na sua Filosofia política e na sua Filosofia moral, assim como em todos os artigos nos quais decide enfrentar os mais variados aspectos problemáticos da sociedade e do Estado modernos.

  • 1
    Sobre outras leituras dessa relação em Weil, cf. Niel, 1954 e 1961; e Canivez, 1996.
  • 2
    Observamos que, mesmo tomando a Revolução francesa como objeto particular do nosso discurso, não se trata de uma análise histórica deste evento, tipo de análise ao qual, aliás, não temos simplesmente nada a acrescentar neste artigo. Antes, esforçamo-nos para acompanhar Eric Weil na leitura propriamente filosófica de um determinado acontecimento histórico. O mesmo poderia ser feito, por exemplo, com os textos de Weil sobre os fatos em torno da Segunda Guerra Mundial, reunidos, na Itália, no volume “Questioni Tedesche”, de 1982. Mas justamente porque ali Giuseppe Bevilacqua (1982, pp. 5-14) já propõe uma análise bastante aprofundada dessas questões, voltamos nossa atenção aqui ao evento que, segundo o nosso filósofo, funda nosso mundo político atual, justamente a revolução que se dá na França na segunda metade do século XVIII e a sua recepção no resto do Ocidente, mais especificamente na Inglaterra e na Alemanha.
  • 3
    Para a caracterização da modernidade em Eric Weil, cf. Kirscher, 1982 e Castelo Branco, 2014.
  • 4
    Prender juntas as contradições na unidade do sentido, num discurso que o concilia com aquilo que é como seu outro, e que só se torna mundo no discurso” (Weil, 1996______. “Logique de la philosophie”. Paris: Vrin, 1996. , p. 425).
  • 5
    Sobre o significado da transformação que a Revolução francesa representa para o Ocidente, podemos ler, por exemplo, a sua descrição, nas palavras de Weil, como um momento realmente axial no texto “Hegel et le concpet de la révolution”, publicado em 1976: “A história em sua totalidade, percorrendo os estágios sucessivos dos mundos grego, romano, cristão-germânico, chegou a uma reviravolta ou, mais exatamente, se encontra depois de uma reviravolta que, até nova ordem, será a última: o cetro está nas mãos do direito e da razão, os antigos poderes da injustiça, mesmo que ainda possam existir de algum forma nos rincões do mundo empírico, caíram para sempre: incipit vita nova”. Ou seja, trata-se do evento que, historicamente, incorporou todos os valores essenciais do que veio a ser plenamente a nossa condição presente, isto é, um edifício sustentado pelas noções propriamente modernas de justiça e razão.
  • 6
    “É preciso fazer desaparecer os últimos traços do direito de conquista, libertar os homens, introduzir a democracia representativa, renunciar às superstições do passado, emancipar o comércio e a indústria, os grandes meios do entendimento entre os povos, esses grandes poderes pacificadores, é preciso aniquilar a influência dos grupos e das instituições que exigem prerrogativas. É preciso fazer uma boa constituição. Pois a Inglaterra não tem uma constituição ruim, ela não tem nenhuma” (Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 137).
  • 7
    “Nenhuma unidade nacional, nem unidade administrativa nem unidade legislativa; nenhuma tradição revolucionária; nenhuma lembrança de uma tradição comum; nenhum sentimento de poder ou de grandeza política, cultural, militar; nenhuma participação da nação nos negócios políticos, por mais restrito que seja; [administrativamente, tem-se] o paternalismo mais absoluto nos Estados mais avançados como a Prússia, um sistema feudal deteriorado em muitos outros e um absolutismo sem escrúpulos nos demais, chegando a ponto de se vender sentenças para encher os cofres, não dos principados, mas dos tribunais; [socialmente não há] nem nobreza consciente de seu poder e de sua independência, nem burguesia orgulhosa de sua riqueza e de suas prerrogativas comuns: a Alemanha é uma expressão geográfica; não é nem um Estado, nem uma sociedade” (Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 123).
  • 8
    “Para um grande povo é preciso um grande chefe que lhe devolva o lugar que é o seu, que ele perdeu por suas próprias faltas e por suas lutas internas, pela intrigas de seus vizinhos e pela fraqueza e pelo egoísmo de seus príncipes. O nacionalismo alemão pode lutar contra as autoridades existentes; mas é para obter uma outra autoridade, melhor, mais poderosa, mais gloriosa. Um sentimento de inferioridade se declara e busca encontrar uma compensação” (Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 126).
  • 9
    “Aqui se mostra um paradoxo fundamental da história da Alemanha. Os pensadores deste país, em particular um dos maiores entre eles, Hegel, determinaram o pensamento do mundo inteiro; mas não tiveram nenhuma influência sobre a sensibilidade alemã. A filosofia das Luzes carrega em todas as línguas um nome alemão: o de Aufklärung, e em parte alguma do humanismo da época, a grandiosa ideia de uma educação da humanidade para a liberdade e para a razão foi formulada com mais clareza do que em Kant, ou expressada com maior convicção, serenidade e grandeza humana do que por Lessing: e em nenhum lugar, essa ideia foi menos influente sobre o espírito dos governantes e sobre a sensibilidade popular [do que na Alemanha]” (Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 127).
  • 10
    A proximidade temática deste texto com “Hegel et l’État” torna-se patente à medida que Weil se volta a Hegel, mais precisamente, à análise da “Filosofia do direito”: “É em Hegel que essa organização do pensamento político moderno se completa, e é dele que parte toda reflexão política moderna, tanto aquela do socialismo quanto a do estatismo, tanto a interpretação unilateralmente sociológica da comunidade humana como a interpretação puramente política, e os pensadores mais radicalmente opostos encontraram nele os textos que parecem dar razão às suas teses particulares. Segundo o seus pretensos herdeiros, seu pensamento é falso precisamente na medida em que tanto uns quanto outros quiseram tirar dela a sua parte, contribuíram a desfazer a unidade desse pensamento. Mas é a prova de sua grandeza: ele não exagera ao dizer que a sua Filosofia do direito, o pequeno livro publicado em 1821, termina o período da Revolução e que está ali o resultado, como interseção dessas ideias, todas as vias anteriores como todas as vias ulteriores partem” (Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 129).
  • 11
    Embora uma peculiaridade chame especialmente a atenção: “Tranquilos em suas universidades e em seus gabinetes, raramente incomodados pela censura, ainda não perturbados pelas guerras que, bem cedo, vão tocar o solo alemão; eles podem pensar pela Europa, e precisamente porque não podem criticar as condições da Alemanha, porque [...] sobre estas condições tudo está dito há muito tempo e vem sendo continuamente repetido por ótimos propagadores e divulgadores, e, por fim, porque têm uma consciência muito clara de que a Alemanha realmente não é parte neste grande debate, eles realmente pensam: tentam ver o problema antes de propor soluções” (Weil, 1999WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999. , p. 141).
  • 12
    Há muitos textos sobre a recepção da Revolução francesa por Kant, no entanto, podemos recordar aqui, pelo valor da síntese, as palavras de Arendt, para quem, “a sua [de Kant] posição final a respeito da Revolução francesa, um evento que teve papel decisivo em sua velhice, fazendo-o esperar com impaciência pelos jornais, foi decidida por sua atitude do mero espectador, daqueles ‘que não estão engajados no jogo’, mas apenas acompanham-nos com participação apaixonada nas aspirações; certamente não significava, e menos ainda para Kant, que eles agora queiram fazer a revolução; sua simpatia se originava do mero ‘prazer contemplativo e da satisfação inativa’” (Arendt, 1992______. “Lectures on Kant’s political philososophy”. Chicago: University of Chicago Press, 1992. , p. 15).
  • 13
    “De maneira muito surpreendente, esse sujeito pacato se torna em um defensor, um propagandista da Revolução francesa, e isso no momento em que o regime de terror jacobino, em que a execução de Luís XVI reduziu ao silêncio não apenas os governantes, mas também os principais porta-vozes da opinião pública”. O que, por seu turno, “não quer dizer que Kant tenha aprovado todos os atos dos revolucionários” (Weil, 2003b______. “Philosophie et réalité II”. Paris: Beauchesne, 2003b. , p. 142).
  • 14
    Resta aplicar ao pensamento moral kantiano o que ele mesmo afirma valer para todo edifício de sistema de razão pura: “O conceito de liberdade, na medida em que a sua realidade é demonstrada por uma lei apodítica da razão prática, constitui a pedra angular de todo o edifício de um sistema da razão pura, mesmo da razão especulativa e todos os outros conceitos (os de Deus e da imortalidade) que, enquanto simples ideias, permanecem nesta sem apoio, conectam-se com este [conceito] e adquirem com ele e através dele consistência e realidade objectiva, isto é, a sua possibilidade é provada pelo facto de a liberdade ser efectiva; com efeito, esta ideia revela-se mediante a lei moral” (Kant, 2008a______. “O conflito das faculdades”. Lisboa: Edições 70, 2008b., p. 13).
  • 15
    Em “O conflito das faculdades”, o autor sublinha o laço entre a moral e a história na Revolução: “A revolução de um povo espiritual, que vimos ter lugar nos nossos dias, pode ter êxito ou fracassar; pode estar repleta de miséria e de atrocidades de tal modo que um homem bem pensante, se pudesse esperar, empreendendo-a uma segunda vez, levá-la a cabo com êxito, jamais se resolveria, no entanto, a realizar o experimento com semelhantes custos - mas esta revolução, afirmo, depara nos ânimos de todos os espectadores (que não se encontram enredados neste jogo), com uma participação segundo o desejo, na fronteira do entusiasmo, e cuja manifestação estava, inclusive, ligada ao perigo, que não pode, pois, ter nenhuma outra causa a não ser uma disposição moral no género humano” (Kant, 2008b______. “O conflito das faculdades”. Lisboa: Edições 70, 2008b., p. 105). Ao acrescentar algumas páginas depois, “Se, porém, não se alcançasse também agora a meta intentada neste acontecimento, se a revolução, ou a reforma, da constituição de um povo viesse por fim a fracassar ou se, após outorgada por algum tempo, tudo retornasse de novo à senda anterior (como agora alguns políticos vaticinam), aquela predição filosófica nada perde, apesar de tudo, da sua força. - De facto, tal acontecimento é demasiado grande, demasiado entretecido com o interesse da humanidade e, segundo a sua influência, demasiado propalado no mundo em todas as suas partes para, entre os povos, não ter de ser despertado na memória e na repetição de novos intentos desta índole, em qualquer ocasião de circunstâncias favoráveis; porque então, num assunto tão importante para o género humano, a constituição intentada deve finalmente, numa época qualquer, alcançar a solidez que a instrução mediante a múltipla experiência não deixaria de operar nos ânimos de todos” (Kant, 2008b______. “O conflito das faculdades”. Lisboa: Edições 70, 2008b., p. 108). Esses dois trechos são citados por Weil (2003b, pp. 142-143)______. “Philosophie et réalité II”. Paris: Beauchesne, 2003b. .
  • 16
    Esse aspecto foi desenvolvido a partir da questão da unidade do homem moral como elemento para a relação entre Weil e Schiller cf. Vestrucci, 2014, pp. 49-69.
  • 17
    “A humanidade despertou no seio da história para a consciência de seu direito supra-histórico, e o homem que percebeu sua humanidade não repousará antes de ter, como quis a Revolução, tornado a mundo razoável e humano. Doravante, com a Revolução francesa, o homem tomou seu destino nas mãos. A Revolução colocou o mundo na cabeça, quer dizer, no pensamento, e o pensamento jamais será reduzido ao silêncio. Doravante, o homem sozinho, os povos procurarão eles mesmos a sua felicidade, eles terão, antes de tudo, que aprender a usar a liberdade, mas livremente, independentemente da boa ou da má vontade de senhores ou de príncipes autocráticos. Com a Revolução, a humanidade se libertou para a liberdade; sem dúvida ela quer a própria felicidade material e a satisfação das suas necessidades; mas agora ela quer infinitamente mais: ela só quer alcançar sua felicidade pela decisão própria e responsável” (Weil, 2003b______. “Philosophie et réalité II”. Paris: Beauchesne, 2003b. , pp. 148-149).
  • 18
    Essa ideia é desenvolvida no artigo de Luís Manuel Bernardo (2017)BERNARDO, L. “La quête du sens : Action et argumentation”. Meta: Research in Hermeneutics, Phenomenology, and Practical Philosophy, IX/2, 2017, pp. 587-606., cujo título é precisamente “La quête du sens : action et argumentation”.
  • 19
    Nas palavras de Inácio Helfer (2003, p. 248)HELFER, I. “Eric Weil e a noção de ‘Fim da História’”. In: MENEZES, E. DONATELLI, M. (orgs.). Modernidade e a ideia de história. Ilhéus: UESC, 2003. pp. 347-372., “O tema do ‘fim da história’ se apresenta como uma reflexão instigante. Trata-se de um estudo escatológico, não no sentido como é elaborado pela teologia, mas segundo o ponto de vista filosófico. Quando os teólogos refletem sobre o fim do mundo (e também sobre a ressurreição e o julgamento final), tratam do assunto numa perspectiva da crença em um ser ou ordem transcendente. Quando o tema é circunscrito ao ponto de vista filosófico, o critério de demarcação da reflexão se limita a uma formulação racional do sentido. O estudo escatológico em filosofia é uma reflexão na esteira da ordem do pensamento que examina, criticamente, se a história da humanidade pode, ou não, ter um fim último; visa explicar em qual sentido este tema pode ser compreendido; como o assunto se relaciona com as demais concepções de história, por exemplo, a história como progresso, como invenção, como referência para as novas gerações, como luta de interesses - classes -, como campo de tragédias, como violência, como espaço da liberdade, entre outras. Assim, pode-se lançar a pergunta: qual o sentido que a noção ‘fim da história’ teve e tem para as comunidades humanas? Diante da constatação de que viver a história, com interesse e numa perspectiva construtiva, é primordial para as comunidades humanas (pois do contrário se colocaria em questão a unidade política, econômica e social de uma nação), tem algum significado pensar o ‘fim da história’?”.
  • 20
    Uma apresentação do que chamamos de “modelo hegelo-kojèviano” se encontra em Bourgeois, 2003.
  • 21
    Logicamente o nome mais conhecido no que concerne à associação de um tipo de projeto econômico e o fim da história é o de Francis Fukuyama, no seu livro de 1992, justamente com título “O fim da história e O último homem”. Sobre as ideias presentes nesse livro, cf. Macey e Miller, 1992..
  • 22
    Sobre a relação da filosofia weiliana com a violência, Cf. Perine, 1987PERINE, M. “Filosofia e violência. Sentido e intenção da filosofia de Eric Weil”. São Paulo: Loyola, 1987. e Nodari, 2017NODARI, P. “Razão e violência em Eric Weil”. Griot, 16/2, 2017, pp. 188-204..
  • 23
    O modo como a geração de Weil ficou marcada pela Segunda Guerra, sobretudo pelas explosões nucleares, é testemunhado por pensadores das mais diferentes perspectivas. Para nós, é suficiente remeter ao prólogo de Arendt em “The human condition” (1998, pp. 1-6) e às páginas de “On violence” em “Crises of the Republic” (1972, pp. 103-184).
  • 24
    “O que a humanidade sempre quis é chegar a um estágio onde as condições de seus sofrimentos, as fatalidades de seus problemas, no sentido mais geral, pudessem terminar” (Helfer, 2003HELFER, I. “Eric Weil e a noção de ‘Fim da História’”. In: MENEZES, E. DONATELLI, M. (orgs.). Modernidade e a ideia de história. Ilhéus: UESC, 2003. pp. 347-372., p. 352).
  • 25
    De fato, é a ideia do fim da história que orienta a ação do homem moderno, pois ele “quer o fim dos tempos históricos, dito de outra forma, ele quer que a violência, a injustiça, o sofrimento não culpável cessem e desapareçam. Mais simplesmente ainda, o homem, na nossa época, age, quer agir, gostaria de agir, pretende agir, em todo caso, se compreende como ser agente, e agente em vista do fim desta história que ele conhece muito bem” (Weil, 2003a______. “Philosophie et réalité I”. Paris: Beauchesne, 2003a., p. 170).
  • 26
    Podemos ao máximo afirmar com Weil que “queremos ser livres do que nos oprime, nos inquieta, nos impede de sermos nós mesmos, de sermos felizes”, do que se conclui: “Só podemos falar em termos de negatividade, se devemos ser livres, nem nós, nem nada ou ninguém - e, sobretudo, os seres não livres que somos hoje - pode ou deve querer determinar de antemão o conteúdo desta vida futura, que não será livre se puder ser determinada antecipadamente: não se pode, eu não posso me impor o conteúdo de minha felicidade futura, e devo respeitar minha liberdade que vem, minha felicidade esperada, a realização de mim mesmo por mim mesmo; isso se não quiser cair em contradições que tornariam incoerente todo meu pensamento, todo o meu plano” (Weil, 2003a______. “Philosophie et réalité I”. Paris: Beauchesne, 2003a., p. 172).
  • 27
    Em 1976, Weil, no artigo, “Faudra-t-il de nouveau parler de morale ?”, trazia justamente essa questão, segundo a sua interpretação, “uma questão ao mesmo tempo oportuna e de oportunidade” (Weil, 2003a______. “Philosophie et réalité I”. Paris: Beauchesne, 2003a., p. 255). Sobre esse artigo especificamente, ver o comentário de Marcelo Perine (1985, pp. 109-124)______. “Será preciso falar de novo em moral?”. Síntese, 35, 1985, pp. 109-124..
  • 28
    Sobre a repercussão dessa ideia nas últimas páginas da “Filosofia política”, cf. Vestrucci, 2012VESTRUCCI, A. “Il movimento della morale. Eric Weil e Ágnes Heller”. Milano: LED, 2012. , p. 38).
  • 29
    Para Marco Filoni, o trecho resume a ideia fundamental do artigo de Weil e marca as diferenças entre Weil e Kojève no que concerne ao tema do fim da história. Sobre a leitura weiliana e o quadro atual da discussão, o intérprete põe logo depois das palavras de Weil: “É verdadeiramente lamentável que, no debate filosófico, tenhamos perdido a significação dessa discussão. Com certeza a ideia do fim da história está na moda, mas prisioneira de novas tendências ditas pós-modernas” (Filoni, 2012FILONI, M. “La double fin de l’histoire. Alexandre Kojève et Eric Weil: une analyse des textes”. München: Grin, 2012., p. 6).

Referências

  • ARENDT, H. “Crises of the Republic”. New York: Harvest, 1972.
  • ______. “Lectures on Kant’s political philososophy”. Chicago: University of Chicago Press, 1992.
  • ______. “The human condition”. Chicago: University of Chicago Press, 1998.
  • BERNARDO, L. “La quête du sens : Action et argumentation”. Meta: Research in Hermeneutics, Phenomenology, and Practical Philosophy, IX/2, 2017, pp. 587-606.
  • BEVILACQUA, G. “In limine”. In: WEIL, E. Questioni Tedesche Urbino: Quattroventi, 1982. pp. 5-14.
  • BOURGEOIS, B. “La fin de l’histoire, aujourd’hui ?” Archvies de Philosophie du Droit, 47, 2003, pp. 141-148.
  • CANIVEZ, P. “La théorie weilienne de l’histoire”. Cahiers de philosophie de l’Université de Caen, 30, 1996, pp. 389-413.
  • CASTELO BRANCO, J. “A condição do homem moderno no pensamento de Eric Weil”. Argumentos, 6/11, 2014, pp. 190-221.
  • FILONI, M. “La double fin de l’histoire. Alexandre Kojève et Eric Weil: une analyse des textes”. München: Grin, 2012.
  • FUKUYAMA, F. “The End of History and The Last Man”. New York: The Free Press, 1992.
  • HELFER, I. “Eric Weil e a noção de ‘Fim da História’”. In: MENEZES, E. DONATELLI, M. (orgs.). Modernidade e a ideia de história Ilhéus: UESC, 2003. pp. 347-372.
  • KANT, I. “Crítica da razão prática”. Lisboa: Edições 70, 2008a.
  • ______. “O conflito das faculdades”. Lisboa: Edições 70, 2008b.
  • KIRSCHER, G. “L’idée de la modernité chez Eric Weil”. In: KIRSCHER, G. Sept études sur Eric Weil Lille: Press Universitaires de Lille, 1982. pp. 103-144.
  • MACEY, J., MILLER, G. “The End of History and the New World Order: The triumph of Capitalism and the competition between Liberalism and Democracy”. Cornell International Law Journal, 25, 1992, pp. 277-303.
  • NIEL, H. “Philosophie et histoire”. Revue Internationale de Philosophie, 29, 1954, pp. 281-294.
  • ______. “Raison et histoire”. Cahiers de l’Institut de Science Économique Apliquée, 111, 1961, pp. 57-77.
  • NODARI, P. “Razão e violência em Eric Weil”. Griot, 16/2, 2017, pp. 188-204.
  • PERINE, M. “Filosofia e violência. Sentido e intenção da filosofia de Eric Weil”. São Paulo: Loyola, 1987.
  • ______. “Será preciso falar de novo em moral?”. Síntese, 35, 1985, pp. 109-124.
  • ______. “Eric Weil e a compreensão do nosso tempo”. São Paulo: Loyola, 2004.
  • VESTRUCCI, A. “Il movimento della morale. Eric Weil e Ágnes Heller”. Milano: LED, 2012.
  • ______. “A unidade do homem moral: elementos para uma relação Weil-Schiller”. Argumentos, 6/11, 2014, pp. 49-69.
  • WEIL, E. “Essai sur la nature, l’histoire et la politique”. Lille: Presses Universitaires du Spetentrion, 1999.
  • ______. “Essais et conférences 1”. Philosophie. Paris: Vrin, 1991a.
  • ______. “Essais et conférences 2”. Politique. Paris: Vrin, 1991b.
  • ______. “Logique de la philosophie”. Paris: Vrin, 1996.
  • ______. “Philosophie et réalité I”. Paris: Beauchesne, 2003a.
  • ______. “Philosophie et réalité II”. Paris: Beauchesne, 2003b.
  • ______. “Problèmes kantiens”. Paris: Vrin, 1998.
  • ______. “What is a Breakthrough in History?”. Daedalus, 104/2, 1975, pp. 21-36.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    09 Jul 2018
  • Aceito
    16 Jan 2019
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG Av. Antônio Carlos, 6627 Campus Pampulha, CEP: 31270-301 Belo Horizonte MG - Brasil, Tel: (31) 3409-5025, Fax: (31) 3409-5041 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: kriterion@fafich.ufmg.br