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LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS E LITERATURAS: ANÁLISE DISCURSIVA DO EDITAL DE CONVOCAÇÃO DO PNLD 2020

Portuguese and Literatures Textbooks in Brazil: Discursive Analysis of the PNLD 2020 Call Notice

Libros de texto de portugués y literaturas: análisis discursivo de la convocatoria del PNLD 2020

Resumo

Este artigo aborda o cenário de livros didáticos no Brasil, marcado pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD). O foco de análise recai no edital de convocação do PNLD 2020. Apoiado em pressupostos da Análise Dialógica do Discurso (ADD), o objetivo do texto é traçar um histórico do PNLD e apresentar uma discussão acerca do mercado de livros didáticos no Brasil. A análise do edital de convocação do PNLD 2020 se dá em cotejo com recentes pesquisas sobre desafios e perspectivas quanto ao ensino de línguas em livros didáticos, entre as quais destacam-se as de Silva e Pereira (2018), Paim (2018) e Amorim (2017). Os resultados apontam para avanços em aspectos como o cuidado quanto a representações estereotipadas e respeito à legislação e aos documentos oficiais. Contudo, os desafios ainda se mostram presentes, sobretudo no espaço destinado às literaturas negras e indígenas e ao posicionamento discente crítico.

Palavras-chave:
Livro didático; PNLD 2020; Ensino de português; Ensino de literatura

Abstract

This article provides an overview of the scenario of textbooks in Brazil, marked by the National Book and Teaching Material Program (PNLD). The analysis focus is on the PNLD 2020 call notice and on the advances and challenges regarding Portuguese and literatures textbooks. Supported by Dialogic Discourse Analysis (ADD) assumptions, the text traces a history of PNLD and presents a discussion about the textbook market in Brazil. The analysis of the PNLD 2020 call notice is in comparison with recent research on challenges and perspectives regarding the teaching of languages ​​in textbooks, among which Silva and Pereira (2018), Paim (2018) and Amorim (2017). The results point to advances in aspects such as care regarding stereotyped representations and respect for legislation and official documents. The challenges are still present, especially in the space that the materials allocate to black and indigenous literatures and to critical student positioning.

Keywords:
Textbook; PNLD 2020; Teaching Portuguese; Teaching Literature

Resumen

Este artículo aborda el panorama de los libros de texto en Brasil, marcado por el Programa Nacional del Libro y el Material Didáctico (PNLD). El enfoque de análisis se centra en la convocatoria del PNLD 2020. Basado en los presupuestos del Análisis Dialógico del Discurso (ADD), el objetivo del texto es trazar una historia del PNLD y presentar una discusión sobre el mercado de libros de texto en Brasil. El análisis de la convocatoria del PNLD 2020 se lleva a cabo en comparación con investigaciones recientes sobre desafíos y perspectivas en la enseñanza de idiomas en libros de texto, entre las que se destacan las de Silva y Pereira (2018), Paim (2018) y Amorim (2017). Los resultados indican avances en aspectos como la atención a representaciones estereotipadas y el respeto a leyes y documentos oficiales. Sin embargo, los desafíos siguen siendo evidentes, especialmente en lo que respecta a la inclusión de literatura negra e indígena y la promoción de la posición crítica del estudiante.

Palabras clave:
Libro de texto; PNLD 2020; Enseñanza de portugués; Enseñanza de literatura

1 INTRODUÇÃO

A atuação, ao longo de 15 anos, como docente das disciplinas de Língua Portuguesa e Literaturas em escolas públicas, tanto de esfera municipal quanto estadual, me tem permitido vivenciar a importância do objeto livro didático no contexto educacional brasileiro. Nosso sistema educacional, marcado por um histórico inicial de exclusão da maior parte da população e por uma ampliação da oferta de vagas feita de forma a incluir precariamente a população inicialmente excluída, parece vir apostando no objeto livro didático como valiosa peça da engrenagem educacional.

No contexto mencionado, o livro didático surge como apoio a docentes com carga horária elevada e inviabilizadora de tempo para o necessário planejamento das aulas. Além disso, a falta de estrutura de muitas escolas - ausência ou inatividade de bibliotecas e salas de leitura, escassez de folhas, copiadoras e aparelhos de projeção e toda sorte de equipamentos - também contribui para a importância dos livros didáticos, muitas vezes os únicos recursos disponíveis. Tudo isso sem mencionar o número elevado de estudantes nas salas e a falta de investimentos em cursos de formação continuada para o constante e necessário refazer das práticas docentes. Em resumo, na ausência de tempo para o preparo das aulas, condições estruturais para o trabalho e formação para se (re)pensar as práticas docentes, os livros didáticos acabam recebendo um grande destaque em muitas escolas brasileiras, o que justifica a escrita do presente artigo.

É por inserir-me no contexto descrito e por considerar que a inserção e a relevância de um objeto em determinado contexto só ocorre em paralelo a questões macro e microssociais dos momentos históricos a constituírem o desenrolar dos acontecimentos, que buscarei, ao longo do texto, entrecruzar os apontamentos sobre o objeto livro didático aos contextos que o circundam. Nesse sentido, reitero o entendimento de Maria da Graça Costa Val e Beth Marcuschi (2008, p. 7), segundo as quais “as discussões em torno de um objeto de estudo como o livro didático só farão sentido se, de alguma forma, considerarem o momento sócio-histórico de que participamos e as práticas sociais e escolares que realizamos”.

Logo, as breves menções anteriores - sobre as questões do contexto educacional no qual me insiro, marcado por falta de recursos e sobrecarga de trabalho docente - constituem rizoma para a construção de meu entendimento sobre a inserção dos livros didáticos nesse contexto. Inserção realizada a partir do edital de convocação para o processo de inscrição e avaliação de obras didáticas e literárias para o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) - no caso em questão, PNLD 2020.

Assim, com base nas situações que vivencio cotidianamente, percebo a necessidade de se investigar a inserção do livro didático e toda a complexidade que envolve sua elaboração, escolha, distribuição e utilização no contexto brasileiro. Com efeito, é objetivo deste artigo discutir o edital de convocação do PNLD 2020, a partir dos pontos de vista de: como, historicamente, vem sendo construída a figura docente no processo de escolha dos livros didáticos; qual o histórico de expansão do PNLD e o que refrata quanto à educação literária; a relação entre as ideologias (linguísticas) e os documentos oficiais sobre o ensino na elaboração e adoção dos livros didáticos; o que apontam os estudos quanto a avanços e desafios relacionados a livros didáticos de português e literaturas. Para tanto, começo por dedicar a próxima seção a considerações sobre formas de compreensão do objeto livro didático.

2 O LIVRO DIDÁTICO: DISCUSSÃO

Como caminho para chegar às discussões sinalizadas na seção anterior, começo por discorrer sobre o livro didático em algumas de suas possíveis formas de compreensão, tanto do ponto de vista de seu uso, quanto do ponto de vista de suas características estruturantes. Ademais, atentando ao macrocontexto que circunscreve o objeto em questão, encontro respaldo em Cassiano (2013CASSIANO, C. C. O mercado do Livro Didático no Brasil do século XXI: a entrada do capital espanhol na Educação nacional. São Paulo: Ed. Unesp, 2013.) para discutir o livro didático como um valioso e lucrativo produto do mercado editorial. Por fim, traço um histórico do programa governamental brasileiro responsável pela distribuição de livros didáticos às escolas públicas em todo o país, o PNLD.

2.1 FORMAS DE COMPREENSÃO DO LIVRO DIDÁTICO

Tendo justificado os motivos que levam à presente discussão, começo por discorrer sobre como o livro didático é entendido dentro deste artigo. Este esclarecimento torna-se necessário porque esse objeto pode ser visto de diversas maneiras. Do ponto de vista de seu uso, é comum que ele seja visto ou como estruturador do trabalho docente, entendimento a partir do qual equipes escolares (professores, coordenadores etc.) escolhem os livros didáticos e precisam ajustar as aulas de acordo com o material a ser “consumido” pelos alunos, fazendo com que o planejamento gire em torno da organização proposta pelo material; ou como mediador do trabalho docente, entendimento pelo qual o livro é um dos recursos disponíveis para o fazer pedagógico, podendo (não) ser utilizado a critério das demandas das aulas.

Já do ponto de vista do que constitui ou caracteriza os livros didáticos, eles são materiais que reúnem textos representativos de diversos gêneros que organizam e transformam as (inter)ações humanas em esferas sociais diversas (contos, poemas, trechos de romances, notícias, bilhetes, reportagens, tirinhas, charges, resenhas, textos didáticos, receitas, textos publicitários etc.), com o objetivo de contribuir para o letramento, que, apesar de escolar, também tenta dialogar com outras esferas. Logo, ciente do caráter múltiplo das práticas de letramento, coaduno com o entendimento dos livros didáticos como agências de múltiplos letramentos, no sentido de Angela Kleiman (2007KLEIMAN, A. Letramento e suas implicações para o ensino de língua materna. Signo. Santa Cruz do Sul, v. 32, n. 53, 2007, p. 1-25.):

Acredito que é na escola, agência de letramento por excelência de nossa sociedade, que devem ser criados espaços para experimentar formas de participação nas práticas sociais letradas e, portanto, acredito também na pertinência de assumir o letramento, ou melhor, os múltiplos letramentos da vida social, como o objetivo estruturante do trabalho escolar em todos os ciclos (Kleiman, 2007KLEIMAN, A. Letramento e suas implicações para o ensino de língua materna. Signo. Santa Cruz do Sul, v. 32, n. 53, 2007, p. 1-25., p. 4).

Concordando com Kleiman (2007KLEIMAN, A. Letramento e suas implicações para o ensino de língua materna. Signo. Santa Cruz do Sul, v. 32, n. 53, 2007, p. 1-25.) e entendendo a escola como a agência de letramento por excelência em nossa sociedade, essa primeira seção conceptualiza o livro didático como um dos materiais escolares - talvez o mais importante deles - com grande potencial para contribuir com o letramento discente. É por meio dele que a escola, na maior parte das vezes, estrutura e abre caminho para a tomada de conhecimento sobre as formas de atuação social em uma cultura letrada. Dado esse valor, em uma sociedade capitalista, que de tudo se apropria com a intenção de concentração de riqueza e poder, cabe-nos também atentar à conceptualização de livro didático como um produto importante no mercado financeiro, elaborado e distribuído de acordo com critérios de um importante programa governamental denominado Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD).

2.2 O LD COMO PRODUTO DE MERCADO

Nos dias de hoje, o livro didático, além de artefato de uso escolar, é um produto que movimenta grande quantia de valores no mercado. Para se ter uma ideia, segundo os dados estatísticos divulgados pelo site do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação o valor investido em livros didáticos somente no PNLD 2018 foi de R$ 1.467.232.112,09 (um bilhão, quatrocentos e sessenta e sete milhões, duzentos e trinta e dois mil, cento e doze reais e nove centavos). Já em 2019, o valor foi de R$ 1.102.025.652,17 (um bilhão, cento e dois milhões, vinte e cinco mil, seiscentos e cinquenta e dois reais e dezessete centavos) e em 2020, R$ 1.390.201.035,55 (um bilhão, trezentos e noventa milhões, duzentos e um mil, trinta e cinco reais e cinquenta e cinco centavos)1 1 Informações disponíveis em: https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/pnld/dados-estatisticos. Acesso em 19/07/2021. .

Desse modo, sua elaboração se realiza em meio a uma arena de lutas onde entram em jogo interesses advindos de setores educacionais, editoriais e comerciais. Portanto, para aprofundar o conhecimento sobre a influência do livro didático nas práticas escolares, tenho de compreender, entre outros fatores, como aponta Célia Cristina Cassiano (2013CASSIANO, C. C. O mercado do Livro Didático no Brasil do século XXI: a entrada do capital espanhol na Educação nacional. São Paulo: Ed. Unesp, 2013., p. 31), “o movimento dos agentes e forças socioculturais que o prescrevem e controlam”. Nessa arena, onde se movimentam forças de diferentes instâncias sociais, o principal agente de prescrição e controle da elaboração e distribuição de livros didáticos no Brasil atual é o PNLD. Apresento, portanto, um breve histórico sobre o programa.

2.3 HISTÓRICO DO PNLD

Criado em 1985 com o nome de Programa Nacional do Livro Didático, o PNLD é, em verdade, uma adaptação de programas de controle de materiais didáticos anteriores. O livro didático, desde sua criação, foi visto pela sociedade como um instrumento capaz de moldar enquadramentos de mundo. Por isso, desde o início do processo de democratização da escola existiu, em maior ou em menor grau, uma preocupação pelo controle de seus conteúdos e métodos. Logo, no período de 1938 até 1985, “diversas formas de controle e intervenção estatal incidiram sobre o livro didático brasileiro, norteando diferentemente a sua circulação, principalmente no período da ditadura militar (1964-1985)” (Cassiano, 2013CASSIANO, C. C. O mercado do Livro Didático no Brasil do século XXI: a entrada do capital espanhol na Educação nacional. São Paulo: Ed. Unesp, 2013., p. 53). A não menção aos programas anteriores na implementação do PNLD de 1985 se deve à estratégia política de o governo vigente na época se desvencilhar de programas de governos anteriores, no caso, governos referentes ao período da ditadura militar.

O que não se pode negar, contudo, é que o PNLD trouxe consideráveis modificações ao programa que vigorava anteriormente, o Programa do Livro Didático para o Ensino Fundamental (PLIDEF). Entre as inovações estão (a) o término da compra de livros descartáveis (aqueles destinados ao uso em apenas um ano letivo), (b) a escolha do livro pelo professor e (c) a distribuição universal e gratuita de livros para alunos do Ensino Fundamental de toda a rede pública.

Isto posto, o PNLD, que representou uma ruptura com o programa de governo anterior, seguiu uma trajetória na qual as inovações apresentadas como seus objetivos foram sendo cumpridas gradativamente. Assim, o programa passou seus dez primeiros anos com dificuldades para atender satisfatoriamente aos itens b e c. Nesse período, de 1985 a 1995, o PNLD foi destaque na mídia por ter sido alvo de fraudes envolvendo editoras, por conseguirem burlar o sistema de escolha que deveria ser feito pelos professores. Além disso, grande parte das editoras encarregadas da elaboração e distribuição dos livros não conseguia suprir a demanda com a qual se comprometia. Por isso, houve casos de atraso e até de não entrega dos livros (Cassiano, 2013CASSIANO, C. C. O mercado do Livro Didático no Brasil do século XXI: a entrada do capital espanhol na Educação nacional. São Paulo: Ed. Unesp, 2013.).

Outro ponto que merece destaque nessa primeira fase do PNLD é o fato de, até então, os livros comprados não passarem por uma avaliação sobre a qualidade de seus conteúdos programáticos e aspectos metodológicos. Foi somente em 1993 que se instituiu uma comissão para essa avaliação, a princípio nos livros das séries iniciais. O resultado, divulgado no ano de 1994 pela mídia, foi que o MEC vinha comprando livros didáticos preconceituosos, desatualizados e com erros conceituais.

A segunda fase do PNLD inicia em 1995, e sua principal característica é o maior rigor no cumprimento dos itens b e c. Além disso, com base nos resultados de 1994, o MEC implementou oficialmente em 1996 a avaliação pedagógica dos livros comprados por meio do PNLD. Dessa forma, nasceu o Guia de Livros Didáticos, marco do processo oficial de avaliação dos livros comprados pelo governo para distribuição na rede pública de ensino e meio de divulgação dos resultados das avaliações dos livros.

Antes de analisar o que dizem as pesquisas sobre os livros didáticos de português e literaturas escolhidos a partir dos Guias, descrevo, na próxima seção, como direciono meu olhar para os estudos em investigação.

3 METODOLOGIA

Fruto de reflexões construídas ao longo de pesquisa de Tese, este artigo apresenta uma análise do edital de convocação para o processo de inscrição e avaliação de obras didáticas e literárias para o Programa Nacional do Livro e do Material Didático PNLD 2020, em um olhar que enfoca a questão dos livros didáticos de português e literaturas, não se furtando, no entanto, a discussões que possam se espraiar desse escopo.

A pesquisa tem caráter qualitativo, uma vez que parte do princípio de que há múltiplas possibilidades de interpretação do edital que possibilita a inserção dos livros didáticos nas escolas públicas brasileiras. Nesse sentido, ao longo de todo o texto, o artigo busca as relações entre o que dizem as pesquisas consultadas, o edital de convocação para o PNLD 2020 e as percepções da pesquisadora enquanto docente da educação básica, atuante em contextos a partir dos quais os livros didáticos desempenham função de grande relevância nas aulas.

Como mencionado, os dados selecionados para a pesquisa dizem respeito aos discursos presentes no edital de convocação para o processo de inscrição e avaliação de obras didáticas e literárias para o Programa Nacional do Livro e do Material Didático PNLD 2020, em cotejo com o estudo de Célia Cristina Cassiano (2013CASSIANO, C. C. O mercado do Livro Didático no Brasil do século XXI: a entrada do capital espanhol na Educação nacional. São Paulo: Ed. Unesp, 2013.) sobre o mercado do livro didático no Brasil do século XXI, e com atualizações sobre transformações do programa PNLD. Para as discussões, também serão levantadas recentes pesquisas sobre desafios e perspectivas quanto às disciplinas de línguas e literaturas nos livros didáticos, entre as quais destaco as de Silva e Pereira (2018SILVA, S.; PEREIRA, J. O livro didático de língua portuguesa e a formação do jovem brasileiro. In: SILVA, S.; PEREIRA, J. (Org.) Língua Portuguesa e Literatura no Livro Didático: desafios e perspectivas. Campinas: Pontes Editores, 2018.), Paim (2018PAIM, M. Variação linguística no livro didático para o ensino médio: algumas considerações. In: SILVA, S.; PEREIRA, J. (Org.) Língua Portuguesa e Literatura no Livro Didático: desafios e perspectivas. Campinas: Pontes Editores, 2018.) e Amorim, (2017AMORIM, M. A. de. A leitura literária nos discursos oficiais sobre o ensino de I/LE. In: AMORIM, M. A. de (Org.) Ensino de literaturas: Perspectivas em Linguística Aplicada. Campinas: Pontes, 2017.). Ao cotejar tais estudos com o discurso do edital de convocação do PNLD 2020, o artigo busca a “interpretação do fenômeno observado a partir de vários ângulos e utilização de diferentes fontes de dados comparadas entre si” (Motta-Roth; Hendges, 2010, p. 113), característica marcante em pesquisas qualitativas.

Para isso, os dados serão interpretados à luz da Análise Dialógica do Discurso (ADD). Segundo Brait (2004BRAIT, B. Linguagem e identidade: um constante trabalho de estilo. Trabalho, educação e saúde, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, 2004, p. 15-32.), a ADD tem por característica a compreensão dos processos de construção de sentidos e seus efeitos no mundo social. Desse modo, ela parte do pressuposto de que os significados só se constroem na interação social, isto é, no diálogo entre sujeitos compreendidos como discursivos, históricos e culturais.

Sobral e Giacomelli (2016SOBRAL, A.; GIACOMELLI, K. Observações didáticas sobre a análise dialógica do discurso - ADD. Domínios de Lingu@gem, v. 10, n. 3, 2016, p. 1076-1094., p. 1092), por sua vez, apontam que:

Uma análise da ADD envolve, para dar conta dos dois componentes considerados - a língua e a enunciação -, os seguintes passos: descrever o objeto concreto em termos de sua materialidade linguística e de suas características enunciativas; analisar as relações estabelecidas entre esses dois planos, o da língua (nível micro) e o da enunciação (nível macro); e, por fim, interpretar que sentidos cria a junção contextual da materialidade e do ato enunciativo.

Com efeito, é intenção deste artigo interpretar os sentidos construídos na junção contextual da materialidade e do ato enunciativo do edital de convocação do PNLD 2020 e das pesquisas sobre os livros didáticos. Somam-se a isso as percepções de quem vivencia o impacto do uso dos livros didáticos em sua prática profissional diária. Desse modo, passo à análise, em uma atitude responsiva (Volóchinov, 2017VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2017.) de pesquisadora e também de docente que se utiliza de livros didáticos como apoio em suas práticas.

4 O CENÁRIO DE LIVROS DIDÁTICOS: UMA ANÁLISE A PARTIR DO EDITAL DE CONVOCAÇÃO DO PNLD 2020

Nesta seção, em uma atitude responsiva (Volóchinov, 2017VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2017.) frente aos estudos realizados, e em diálogo com percepções decorrentes da prática docente junto a escolas públicas de educação básica, a análise se dá no campo da relação entre o edital de convocação do PNLD 2020 e as vozes docentes quanto à escolha de livros didáticos; o histórico de expansão do PNLD e o que o programa sinaliza sobre a educação literária; além de ideologias (linguísticas) e documentos que impactam na elaboração dos livros didáticos. Tais reflexões culminam em apontamentos sobre avanços e desafios quanto ao cenário de livros didáticos de português e literaturas no Brasil.

4.1 O PNLD E AS VOZES DOCENTES NA ESCOLHA DE LIVROS DIDÁTICOS

Como já mencionado, uma das consideráveis modificações trazidas pelo PNLD foi a escolha do livro pelo professor. Como docente, considero uma etapa importante o processo de avaliação dos materiais que, durante quatro anos letivos, poderão servir de apoio às aulas. De acordo com o edital de convocação para o processo de inscrição e avaliação de obras para o PNLD 2020, “a escolha das obras didáticas será embasada na análise das informações contidas no Guia Digital do PNLD, considerando-se a adequação e a pertinência das obras didáticas em relação à proposta pedagógica de cada instituição escolar” (Brasil, 2018, p. 16). Esse Guia, bem como os links para acesso às obras nos sites das editoras, diz respeito às obras previamente aprovadas pelo MEC, como se pode notar no seguinte trecho: “os professores poderão ter acesso, no momento da escolha, exclusivamente às obras aprovadas, na sua totalidade ou parcialmente (Brasil, 2018, p. 9, grifos meus).

Nem sempre foi assim. Em seu princípio, segundo o estudo de Cassiano (2013CASSIANO, C. C. O mercado do Livro Didático no Brasil do século XXI: a entrada do capital espanhol na Educação nacional. São Paulo: Ed. Unesp, 2013.), nas análises ocorridas para avaliação e disponibilização de livros didáticos para a escolha dos docentes, o MEC divulgava dados sobre todos os livros, inclusive os reprovados no processo. Isso gerava desgaste com as editoras e autores reprovados, que ficavam desacreditados no mercado. Com o intuito de acabar com o desgaste, o Guia do PNLD passou a mencionar apenas os livros aprovados, que eram categorizados como não recomendados, recomendados com ressalvas, recomendados e recomendados com distinção.

Sobre esse aspecto, é importante destacar que a maioria dos livros escolhidos pelos professores não era bem avaliada pelo programa: “somente 20% da escolha docente, no PNLD de 1997, recaiu sobre os livros considerados efetivamente bons pelo MEC” (Cassiano, 2013CASSIANO, C. C. O mercado do Livro Didático no Brasil do século XXI: a entrada do capital espanhol na Educação nacional. São Paulo: Ed. Unesp, 2013., p. 126). A escolha desses professores poderia estar sinalizando que os critérios de avaliação do MEC estavam em descompasso com as práticas de sala de aula. Diante de tal sinalização, o mais lógico a fazer, a meu ver, seria um estudo que ouvisse as vozes dos professores e buscasse entender as causas do descompasso. O estudo poderia apontar para algumas direções: a readequação do processo avaliativo, a necessidade de investimentos na formação continuada dos professores, ou, ainda, a necessidade de reestruturação das condições de trabalho docente para que conteúdos e práticas bem avaliados pelo MEC pudessem ser efetivados.

Infelizmente, as explicações dadas por representantes do MEC para o descompasso entre a escolha dos professores e a avaliação do MEC “sempre direcionaram para um apagamento da voz do professor” (Cassiano, 2013CASSIANO, C. C. O mercado do Livro Didático no Brasil do século XXI: a entrada do capital espanhol na Educação nacional. São Paulo: Ed. Unesp, 2013., p. 127), visto como profissional malformado, mal remunerado e incapaz de fazer suas escolhas de modo adequado. Prova desse apagamento é o fato de os critérios de classificação das obras terem deixado de existir a partir de 2005. As coleções passaram a ser consideradas apenas excluídas ou aprovadas (lembrando que a lista de excluídas não é divulgada). Desse modo, se a divulgação dos materiais previamente filtrados pode contribuir com a qualidade de escolha docente, o modo como foi resolvida a questão do descompasso entre as avaliações do MEC e as dos profissionais da educação sinaliza que a figura do professor, como a grande voz quanto à escolha dos livros didáticos de que faz uso, mostra-se uma força previamente enfraquecida.

4.2 EXPANSÃO DO PNLD E O QUE REFRATA SOBRE A EDUCAÇÃO LITERÁRIA

Em meio ao contexto de alterações em seu formato, o PNLD foi paulatinamente se expandindo, atingindo outros segmentos da Educação Básica e outros materiais além dos livros didáticos em si. Assim, no ano de 2000, o programa começou a distribuir também dicionários, atendendo inicialmente alunos do primeiro segmento e ampliando seu escopo de distribuição nos programas seguintes. O ano de 2005 marca o início da inclusão da etapa do Ensino Médio em todo o Brasil, com o Programa Nacional de Livros Didáticos para o Ensino Médio (PNLEM), a princípio somente com livros de português e matemática. Em 2011, tem início a distribuição de livros para a etapa da Educação de Jovens e Adultos (PNLD EJA)2 2 Disponível em: http://www.fnde.gov.br/programas/programas-do-livro/pnld/remanejamento/item/518. Acesso em 25 jul. 2021. .

Mais recentemente, em 2017, o Programa passou a se chamar Programa Nacional do Livro e do Material Didático e, por meio da unificação com o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), ampliou seu escopo para a aquisição e distribuição de livros literários: o PNLD Literário. Este novo setor, lançado em 2018, foi destinado a princípio a avaliar e distribuir obras literárias para Educação Infantil (creche e pré-escola), Anos Iniciais do Ensino Fundamental (1º ao 5º ano) e Ensino Médio. Observa-se aí uma lacuna quanto aos anos finais do Ensino Fundamental (6° ao 9° ano), etapa que só passou a ser contemplada no PNLD de 2020, referente ao “processo de aquisição de obras didáticas e literárias destinadas aos estudantes e professores dos anos finais do ensino fundamental” (Brasil, 2018, p. 1, grifos meus).

Vale lembrar que o PNLD é reflexo do nosso sistema educacional como um todo. Essa lacuna quanto às obras literárias referentes aos anos finais do Fundamental, deixadas para uma etapa posterior à escolha correspondente aos anos iniciais e ao ensino médio, por exemplo, pode refratar o modo como a leitura literária costuma ser abordada na Educação Básica: apoio para alfabetização nos anos iniciais e ensino de historiografia literária no Ensino Médio. A etapa do meio parece ficar postergada nas prioridades das políticas públicas quanto à leitura literária na escola.

4.3 IDEOLOGIAS LINGUÍSTICAS E SOCIAIS QUE IMPACTAM NO PNLD

Um dos critérios quanto à avaliação pedagógica das obras do PNLD 2020 é a “observância às regras ortográficas e gramaticais da língua na qual a obra tenha sido escrita” (Brasil, 2018, p. 37). A esse respeito, sabemos que as regras de uma língua podem diferir, em acordo com a variedade linguística em questão. A própria concepção de gramática pode se dar a partir do ponto de vista da norma - gramática normativa -, da descrição linguística - gramática descritiva -, ou do saber linguístico - gramática interna (Franchi, 2006FRANCHI, C; NEGRÃO, E.; MULLER, A. L. Mas o que é mesmo “gramática”? São Paulo: Parábola Editorial, 2006.). A observância às regras ortográficas e gramaticais a que o critério do PNLD se refere parece se referir ao entendimento de gramática como norma, entendimento que “ainda predomina na maioria de nossas práticas escolares sobre a linguagem” (Franchi, 2006, p. 18). Tal critério é bastante pertinente para a avaliação da qualidade didática, desde que os materiais, sobretudo os de língua portuguesa e de literaturas, não manifestem exclusões e preconceitos linguísticos. Caso se observem tais manifestações em uma obra, ela não estará de acordo com os princípios éticos, os quais afirmam que o livro didático deve “estar livre de estereótipos ou preconceitos de condição socioeconômica, regional, étnicoracial, de gênero, de orientação sexual, de idade, de linguagem [...]” (Brasil, 2018, p. 38, grifos meus).

Com relação a preconceitos de condição socioeconômica ou de linguagem, convém mencionar que a educação escolar sempre se mostrou silenciadora, não somente de vozes docentes, conforme visto na seção anterior, mas também de vozes, saberes e valores discentes, sobretudo daqueles oriundos de camadas populares. Logo, sendo a escola parte do sistema social, seus materiais também costumam manifestar certo grau de apagamento quanto ao que foge aos valores e às formas de linguagem socialmente prestigiadas.

No caso dos livros didáticos de Língua Portuguesa, o apagamento dos saberes trazidos pelos alunos das camadas populares se mostra visível de muitas maneiras: os textos que servem de base para as atividades de leitura costumam ser, no tocante aos textos considerados pertencentes à esfera literária, aqueles relativos a um número seleto de escritores socialmente prestigiados e consagrados, em sua maioria provenientes das regiões Sul e Sudeste do país. “Não se percebe, por parte dos autores dos livros didáticos, que haja uma preocupação em pesquisar a diversidade autoral, quando se pensa nos textos que fogem aos que representam o cânone e as regiões” (Silva; Pereira, 2018SILVA, S.; PEREIRA, J. O livro didático de língua portuguesa e a formação do jovem brasileiro. In: SILVA, S.; PEREIRA, J. (Org.) Língua Portuguesa e Literatura no Livro Didático: desafios e perspectivas. Campinas: Pontes Editores, 2018., p. 35). Assim, muito da experiência literária extraescolar dos alunos pode acabar sendo ignorada. O edital de convocação do PNLD 2020 parece estar atento à questão, ao mencionar, como um dos critérios de aprovação, que o livro didático deve “representar a diversidade cultural, social, histórica e econômica do país (Brasil, 2018, p. 39)”, além de “representar as diferenças políticas, econômicas, sociais e culturais de povos e países” (Brasil, 2018, p. 39).

No âmbito literário, as novas formas de circulação literária e a leitura de best-sellers e de autores contemporâneos podem estar em diálogo com o que a escola considera relevante no estudo da literatura. Contudo, nosso sistema educacional parece tender a ignorar as experiências extraescolares dos estudantes, inviabilizando um reconhecimento conceitual (Gerhardt, 2010GERHARDT, A. F. Integração conceptual, formação de conceitos e aprendizado. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 15, n. 44. 2010, p. 247-263.) da relação que pode existir entre práticas ocorridas dentro e fora da escola. O fato de os alunos eventualmente não reconhecerem conceitualmente suas experiências literárias extraescolares, por exemplo, não quer dizer que não as pratiquem. Parece faltar, entre os muitos fatores desse complexo problema, um trabalho metacognitivo (Gerhardt, 2010), ou seja, de reconhecimento conceitual de uma experiência.

No tocante aos gêneros da esfera jornalística, as notícias também costumam ser aquelas encontradas em um número restrito de jornais. O gênero canção, por sua vez, costuma aparecer em letras de grandes nomes da Música Popular Brasileira (MPB), um estilo musical que, apesar de carregar o nome de MPB, não parece representar as escolhas musicais da maior parte da população brasileira. É claro que a escolha dos textos para compor os livros didáticos envolve liberação de direitos autorais e questões de ordem econômica, uma vez que esses direitos precisam ser, muitas vezes, comprados. Porém, a exclusão dos saberes das pessoas de classes populares se dá, também, em questões que não envolvem a compra de direitos autorais, como é caso das práticas e saberes linguísticos trazidos pelos alunos à escola. Essa exclusão está relacionada a uma forma de dominação, uma vez que o não reconhecimento dos saberes dos alunos é instrumento de poder e de desigualdade social, dado que algumas práticas têm mais capital simbólico (cf. Bourdieu, 1998BOURDIEU, P. Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes. 1998) do que outras.

Nesse sentido, o ambiente escolar possui uma tradição de não aceitação da heterogeneidade linguística e costuma realizar “a imposição da língua descrita pela tradição gramatical como a única possibilidade existente, estigmatizando as demais como erros” (Paim, 2018PAIM, M. Variação linguística no livro didático para o ensino médio: algumas considerações. In: SILVA, S.; PEREIRA, J. (Org.) Língua Portuguesa e Literatura no Livro Didático: desafios e perspectivas. Campinas: Pontes Editores, 2018., p. 170-171). Logo, a linguagem informal costuma ser abominada e não reconhecida, nem mesmo como forma de acesso à variedade3 3 O conceito de variedade é aqui entendido “como conjunto de elementos ou de padrões linguísticos associados a fatores externos, sejam contextos situacionais, sejam profissionais, sociais ou geográficos” (Paim, 2018, p. 171). Vale destacar, ainda, que a noção de variedade linguística é excludente, pois contribui para estratificar e excluir, posto que a norma culta é (des)legitimada como tal e vendida/mantida como capital simbólico por certos grupos sociais (cf. Pinto, 2018). A escola, por sua vez, exerce o papel central de guardiã desse capital. conhecida como norma culta. Dessa forma, ainda que estudos recentes, como o de Marcela Paim (2018), apontem para o fato de que os livros didáticos do Ensino Médio aprovados pelo PNLD de 2018 já contemplam o estudo da variação linguística de forma satisfatória, ainda parece haver um longo percurso a se percorrer no tocante ao respeito pelos saberes linguísticos de parte bastante considerável da população brasileira nos livros didáticos. Isso, porque esses materiais, conforme mencionado, encontram-se no centro de uma arena de disputas ideológicas e tentam atender às expectativas de setores variados.

Em primeiro lugar, os livros didáticos precisam atender às demandas do edital do PNLD e de seus avaliadores, dos documentos oficiais que regem o ensino no país, dos resultados de estudos acadêmicos que devem impactar em melhora na qualidade do ensino, dos anseios de professores e pais de alunos e, como visto, da pressão social como um todo. E não podemos atribuir essa pressão social apenas aos segmentos sociais dominantes. Sabemos que, embora os setores mais privilegiados legitimem certas práticas de letramento em detrimento de outras, essa legitimação também é refratada e reiterada pelas classes populares. Logo, não é apenas a elite e classe média que refratam ideologias linguísticas que reforçam o capital simbólico da norma culta.

4.4 DOCUMENTOS QUE IMPACTAM NA ELABORAÇÃO DOS LIVROS DIDÁTICOS

Com relação às exigências a que os autores de livros didáticos precisam atender, destaco que as avaliações realizadas pelo PNLD sempre foram feitas com base no que regem as leis e os principais documentos norteadores da educação no país. Segundo o edital de convocação para o PNLD 2020, um dos critérios quanto à avaliação das obras é o “Respeito à legislação, às diretrizes e às normas oficiais relativas à Educação” (Brasil, 2018, p. 37). Entre as leis listadas, encontram-se a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB (Lei 9.394/1996), o Plano Nacional de Educação PNE - 2014-2024 (Lei 13.005/2014), várias diretrizes educacionais nacionais, tais como as voltadas para educação do campo, educação especial, educação quilombola, educação em direitos humanos, entre outras.

No âmbito dos documentos oficiais mais pedagogicamente específicos, sabemos que foram destaque nos últimos 30 anos: os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN - Ensino Fundamental e Ensino Médio (Brasil, 1998 e Brasil 1999), as Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN+ (Brasil, 2002) e as Orientações Curriculares para o Ensino Médio - OCEM (Brasil, 2006). Atualmente, a Base Nacional Comum Curricular - BNCC (Brasil, 2018b) é a grande norteadora do PNLD. Por isso, caso um livro didático não contemple todas as habilidades por ela previstas, a coleção de livros pode ser reprovada na análise do programa, uma vez que o edital de convocação menciona a necessidade de atendimento à “Resolução que institui e orienta a implementação da Base Nacional Comum Curricular (CNE/CP Nº 02/2017)” (Brasil, 2018, p. 37).

Caso bastante comentado entre os professores de português do ensino fundamental II foi o de reprovação na avaliação do PNLD 2020 da obra Português Linguagens, dos autores William Cereja e Carolina Assis Dias Vianna. A obra, que sempre havia sido aprovada ao longo dos vinte anos nos quais participou do programa avaliativo e era a principal escolha dos professores4 4 Conforme dados estatísticos de coleções mais distribuídas no PNLD 2017. Disponível em: https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/pnld/dados-estatisticos. Acesso em: 18 jul. 2021. , foi reprovada5 5 Conforme PORTARIA Nº 25, DE 14 DE AGOSTO DE 2019. Disponível em: http://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-25-de-14-de-agosto-de-2019-210737871. Acesso em: 20 jul. 2021. por não contemplar 4 das 185 habilidades previstas para a etapa dos anos finais do Ensino Fundamental, além de ter textos pertencentes ao gênero anúncio publicitário, julgados como publicidade6 6 Conforme carta aberta divulgada pelos autores no site da editora responsável pela obra. Disponível em: http://portuguescereja.editorasaraiva.com.br/carta-aberta-dos-autores-da-colecao-portugues-linguagens/. Acesso em: 20 jul. 2021. . Quanto ao atendimento à BNCC, o edital de convocação do PNLD 2020 é bem específico ao mencionar que:

São critérios de avaliação das obras disciplinares destinadas aos anos finais do ensino fundamental:

a. Consistência e coerência entre os conteúdos e as atividades propostas e os objetos de conhecimento e habilidades constantes na BNCC;

b. Contemplação de todos os objetos de conhecimento e habilidades constantes na BNCC.

Serão excluídas as obras que não contribuírem adequadamente para o desenvolvimento de todas as competências gerais e competências específicas das áreas de conhecimento, constantes na BNCC (Brasil, 2018, p. 42).

Observa-se, portanto, uma relação bem estreita entre os documentos oficiais e a elaboração dos livros didáticos. Segundo a apresentação do Guia do PNLD 2020 - documento gerado a partir da avaliação do MEC, e que serve de apoio para a escolha docente - na análise das obras

é verificada a observância das obras inscritas aos critérios listados no Decreto 9.099, de 18 de julho de 2017 e aos previstos no Edital 01/2018 - CGPLI, tais como a adequação à Base Nacional Comum Curricular; a observância aos princípios éticos necessários à construção da cidadania e ao convívio social republicano; a correção e a atualização de conceitos (Brasil, 2019, p. 1, grifos meus).

É importante observar o quanto os documentos oficiais que regem o ensino - a BNCC nos dias de hoje - impactam diretamente o edital de convocação que, por sua vez, se transforma em uma espécie de guia para os autores, que precisam segui-lo à risca, sob pena de não terem suas obras aprovadas, pois é com base nele que a equipe de avaliação escolhida pela Comissão Técnica indicada pelo MEC emite seus pareceres. Logo, a elaboração dos livros por parte dos autores leva em conta os critérios do edital de convocação e, consequentemente, as orientações dos documentos que o balizam. Desse modo, os livros didáticos acabam refletindo e refratando as ideias presentes nos documentos oficiais. É o que aponta a pesquisa de Amorim (2017AMORIM, M. A. de. A leitura literária nos discursos oficiais sobre o ensino de I/LE. In: AMORIM, M. A. de (Org.) Ensino de literaturas: Perspectivas em Linguística Aplicada. Campinas: Pontes, 2017.): “apesar de não advogar uma relação direta e única entre a construção dos documentos oficiais e livros didáticos de LP, após o surgimento de documentos como os aqui descritos [PCN e OCEM], podem-se perceber redescrições na construção dos manuais distribuídos nas escolas brasileiras” (Amorim, 2017, p. 78).

O autor, ao comparar três livros didáticos de língua portuguesa para o ensino médio de três diferentes épocas - o primeiro de 1977, antes do surgimento dos PCN; o segundo de 1997, com a influência do pensar sobre ensino de literatura da época, totalmente voltado para o vestibular; e o terceiro em uso no ano de 2017, já após as OCEM -, percebe redescrições nos modos de as atividades de leitura abordarem os textos considerados literários. No material de 1977, Amorim (2017AMORIM, M. A. de. A leitura literária nos discursos oficiais sobre o ensino de I/LE. In: AMORIM, M. A. de (Org.) Ensino de literaturas: Perspectivas em Linguística Aplicada. Campinas: Pontes, 2017., p. 80) observa uma “abordagem gramatical, despreocupada com uma real prática de leitura do texto literário”. O livro de 1997, por sua vez, apresenta “uma justaposição de exercícios que parecem avaliar conhecimentos estanques de características literárias das obras, biografias de autores e atividades de leitura de baixo nível” (p. 80). Já o terceiro material, o que estava em uso no ano de 2017, pareceu-lhe melhor abordar o texto literário, “proporcionando ao aluno atividades de leitura que podem incitar o desenvolvimento de diferentes níveis de letramento” (p. 80).

4.5 AVANÇOS E DESAFIOS QUANTO AOS LIVROS DIDÁTICOS

Os apontamentos da seção anterior, sobre os impactos dos documentos oficiais na elaboração dos livros didáticos, parecem ser reiterados por Silva e Pereira (2018SILVA, S.; PEREIRA, J. O livro didático de língua portuguesa e a formação do jovem brasileiro. In: SILVA, S.; PEREIRA, J. (Org.) Língua Portuguesa e Literatura no Livro Didático: desafios e perspectivas. Campinas: Pontes Editores, 2018.). Os autores, ao concluírem análises sobre os livros didáticos aprovados pelo PNLD 2018, constatam que as obras atuais “registram grandes avanços em relação ao que se tinha há 20 anos” (Silva; Pereira, 2018, p. 41). Ademais, os autores afirmam que “não se observa mais, nas obras inscritas no PNLD, nenhum tipo de doutrinação religiosa ou política. Também os estereótipos não aparecem de forma sistemática” (Silva; Pereira, 2018, p. 28-29). Os pesquisadores observaram, pois, que está havendo maior cuidado com relação a visões estereotipadas sobre os conceitos de família, papel social da mulher e representação dos negros na sociedade, o que indica um avanço. O edital de convocação do PNLD 2020 ratifica tal cuidado ao mencionar:

Não serão selecionadas obras que apresentem preconceitos, estereótipos ou discriminação de ordem racial, regional, social, sexual e de gênero, entre outros, tampouco aquelas que incitem a violência entre seres humanos ou contra outros seres vivos, em qualquer uma de suas diversas manifestações (Brasil, 2018, p. 49).

Contudo, se houve avanços em alguns pontos, ainda há um longo caminho a percorrer em várias outras questões. A Literatura Africana, por exemplo, é tratada, via de regra, através “do cânone: Pepetela, Luandino, Mia Couto, entre outros. [...] A escolha dos autores estudados não contempla escritores negros” (Silva; Pereira, 2018SILVA, S.; PEREIRA, J. O livro didático de língua portuguesa e a formação do jovem brasileiro. In: SILVA, S.; PEREIRA, J. (Org.) Língua Portuguesa e Literatura no Livro Didático: desafios e perspectivas. Campinas: Pontes Editores, 2018., p. 31). Além disso, “muitos textos utilizados nos livros trazem o ponto de vista dos brancos, o que é importante, mas negligenciam o ponto de vista do próprio negro, sujeito que pensa sobre sua condição no contexto em que está inserido” (Silva; Pereira, 2018, p. 32). Com relação às atividades, “elas não levam o aluno nem o professor a discutir questões como racismo em África e Brasil” (Silva; Pereira, 2018, p. 31).

No tocante à questão dos povos indígenas, a situação mostra-se ainda mais preocupante. Na maioria dos casos, os autores não observaram uma “presença significativa da literatura e da cultura indígena brasileira” (Silva; Pereira, 2018SILVA, S.; PEREIRA, J. O livro didático de língua portuguesa e a formação do jovem brasileiro. In: SILVA, S.; PEREIRA, J. (Org.) Língua Portuguesa e Literatura no Livro Didático: desafios e perspectivas. Campinas: Pontes Editores, 2018., p. 32). Apesar dos avanços visíveis no não uso de imagens estereotipadas, ainda há muito a melhorar no aspecto do reconhecimento de indígenas como pessoas constituintes da nossa história e da nossa sociedade. Nesse sentido, o edital de convocação do PNLD 2020 menciona, como critério para avaliação das obras didáticas, a importância de a obra “Promover positivamente a cultura e história afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros, valorizando seus valores, tradições, organizações, conhecimentos, formas de participação social e saberes” (Brasil, 2018, p. 39).

Outro fator preocupante encontrado por pesquisadores que analisaram livros didáticos do PNLD 2018 é o tratamento superficial com relação a temas polêmicos como homofobia, diretos humanos, violência e racismo. Além disso, o silenciamento das vozes dos alunos sobre esses temas tão importantes também foi constatado. Sobre a análise de um dos livros, temos: “no formato dado à aula, no livro, a abordagem crítica se restringe ao autor, que fala e reflete sobre as relações entre o homem e os acontecimentos no mundo. Quando a voz é dada ao estudante, a essência crítica frente às injustiças sociais e à violência é apagada” (Silva; Pereira, 2018SILVA, S.; PEREIRA, J. O livro didático de língua portuguesa e a formação do jovem brasileiro. In: SILVA, S.; PEREIRA, J. (Org.) Língua Portuguesa e Literatura no Livro Didático: desafios e perspectivas. Campinas: Pontes Editores, 2018., p. 34). Como professora que faz uso de livros didáticos, noto que esse silenciamento das vozes dos alunos é comum, não somente sobre temas polêmicos, mas sobre todas as questões que são colocadas através das leituras. Logo, apesar de muitos livros já apresentarem atividades que permitem ao aluno ultrapassar as habilidades de localizar e copiar partes dos textos, “ainda é preciso que se incluam mais questões que levem aos implícitos” (Silva; Pereira, 2018, p. 35), de modo que possa haver um trabalho mais pautado na criticidade discente.

5 CONSIDERAÇÕES

Com base na análise realizada, não é arriscado afirmar que os livros didáticos refratam o PNLD e os contextos educacionais e históricos do país, contextos que se materializam nos documentos oficiais. Nesse sentido, o edital de convocação para o PNLD 2020 traz importantes direcionamentos no que tange a critérios para a qualidade dos livros destinados ao Ensino Fundamental II. Além disso, é possível perceber a importância do PNLD e de sua trajetória, que testemunha as transformações pelas quais passou o ensino da disciplina de Língua Portuguesa e Literatura e o próprio sistema de ensino como um todo.

Por outro lado, é necessário ter em mente que o processo avaliativo “também pode resultar na produção homogeneizada desses livros” (Cassiano, 2013CASSIANO, C. C. O mercado do Livro Didático no Brasil do século XXI: a entrada do capital espanhol na Educação nacional. São Paulo: Ed. Unesp, 2013., p. 139). Isso quer dizer que inovações na ordem dos conteúdos ou da metodologia de ensino tendem a ser evitadas sob pena de as obras não serem aprovadas. Ademais, caso elas sejam aprovadas pelos avaliadores, ainda precisarão passar pelo crivo dos vários segmentos da sociedade, sobretudo o dos segmentos sociais privilegiados, que detêm maior influência e apoio na/da mídia.

Este artigo constata, desse modo, uma relação na qual os sistemas social e educacional parecem moldar o edital de convocação para inscrição e avaliação de livros didáticos, entre os quais encontram-se os de português e literaturas, ao passo que os mesmos livros também contribuem para a manutenção dos valores sociais e educacionais que, em um processo circular, desembocarão em paradigmas para materiais futuros. Resta-nos, enquanto professores e pesquisadores, atuar em práticas e pesquisas que possam colaborar para abalos nas engrenagens vigentes, de modo que as fricções possam derrubar paradigmas excludentes, em um processo de (re)pensar das elaborações e escolhas quanto aos livros didáticos.

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Editado por

Editor de Seção:

Fábio José Rauen

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    13 Dez 2021
  • Aceito
    26 Ago 2023
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