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PENSAR A ARTE NA ANÁLISE DE DISCURSO: UMA ANÁLISE N'O FANTASMA DA LIBERDADE 1 1 Este trabalho é parte de nossa tese de doutoramento, orientada pela professora Aracy Ernst na Universidade Católica de Pelotas.

THINKING ON ART IN DISCOURSE ANALYSIS: AN ANALYSIS IN THE PHANTOM OF LIBERTY

PENSAR EL ARTE EN EL ANÁLISIS DE DISCURSO: UN ANÁLISIS EN EL FANTASMA DE LA LIBERTAD

Resumo

A fim de pensar o estatuto da arte a partir da Análise de Discurso (AD), este artigo empreende a teorização do regime estético das artes como Formação Discursiva Estética (FDE). Para exemplificar o funcionamento dessa FD em torno do questionamento das evidências e do estabelecimento do equívoco como modo mesmo de produção de sentidos, lança mão da análise de uma sequência do filme O Fantasma da Liberdade, escrito por Luís Buñuel e Jean-Claude Carrière, representativa da posição-sujeito surrealista. Nessa sequência, pelo surgimento do absurdo, os sentidos de fantasma e liberdade respondem a uma multiplicidade que é característica do discurso artístico estético, tal como surge na FDE, estabelecendo-se a polissemia como processo dominante, mesmo no seio dos processos parafrásticos.

Palavras-chave:
Discurso artístico; Formação Discursiva Estética; Cinema surrealista

Abstract

In order to think the statute of art based on Discourse Analysis (DA), we undertake the theorizing of the aesthetic regime of arts as Aesthetic Discursive Formation (ADF). To exemplify the functioning of this discursive formation (DF) regarding the questioning of evidences, as well as the establishment of the equivoque as a means of meaning production, we propose the analysis of a sequence from the movie The Phantom of Liberty, written by Luís Buñuel and Jean-Claude Carrière, which is representative of the surrealist subject-position. In the mentioned sequence, through the emergence of absurd, the meanings of phantom and liberty respond to a multiplicity that is characteristic of the aesthetic artistic discourse such as it emerges in the ADF, establishing polysemy as dominant process, even within the paraphrastic processes.

Keywords:
Artistic discourse; Aesthetic Discursive Formation; Surrealist cinema

Resumen

Para pensar el estatuto del arte desde el Análisis del Discurso (AD), ese artículo emprende la teorización del régimen estético de las artes como Formación Discursiva Estética (FDE). Para ejemplificar el funcionamiento de esa FD al rededor del cuestionamiento de las evidencias y del establecimiento del equívoco como modo mismo de producción de sentidos, recurre el análisis de una secuencia de la película El Fantasma de la Libertad, escrita por Luís Buñuel y Jean-Claude Carrière, representativa de la posición-sujeto surrealista. En esa secuencia, por el surgimiento del absurdo, los sentidos de fantasma y libertad contestan una multiplicidad que es característica del discurso artístico estético, tal como aparece en la FDE, estableciéndose la polisemia como proceso dominante, mismo en el seno de los procesos parafrásticos.

Palabras clave:
Discurso artístico; Formación Discursiva Estética; Cinema surrealista

1 INTRODUÇÃO

Pensar a arte sob os pressupostos da Análise de Discurso (AD) é, a um só tempo, uma tarefa superficialmente simples e profundamente complexa. Esse paradoxo, se tomado como mero impasse na escolha dos caminhos teóricos a serem percorridos na observação da arte como discurso, implica um duplo risco: se tomamos o empreendimento de pensar a arte segundo a Teoria do Discurso como simples, ou, mesmo, simétrico à análise de outros campos discursivos, podemos erroneamente obliterar a potência criadora da arte; ao contrário, se pensarmos esse empreendimento como pertencente a outro campo teórico, do qual o analista de discurso deve apropriar-se a fim de tratar a arte devidamente, podemos incorrer em outro erro: tomar o discurso artístico como aquele em que os funcionamentos da língua, da ideologia e do inconsciente são suspensos. Ora, nesse caso, estaríamos diante de uma concepção de arte como exceção, como lugar no qual o sujeito-artista teria domínio sobre si e conheceria o que os outros sujeitos esquecem em sua relação com a ideologia e o inconsciente.

É Michel Pêcheux (1990PÊCHEUX, M. [1983]. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 1990. ) quem nos dá pistas do reducionismo a que esse paradoxo se submete. Em seu Discurso: estrutura ou acontecimento, o autor afirma que nada da arte - ele se refere especificamente à poesia e ao humor - é estranho à língua e ao discurso, o que autoriza o tratamento discursivo da arte, já que ela é produzida por sujeitos submetidos à ideologia e ao inconsciente. Dessa forma, pensamos que o campo discursivo das artes pode ser objeto de análise, pois, assim como outros campos, a arte participa das formações sociais e é a elas - e às formações ideológicas e discursivas que lhes são correspondentes - submetida, ao mesmo tempo que quem a produz não são sujeitos livres do assujeitamento.

Com relação ao segundo ponto, Pêcheux (1990PÊCHEUX, M. [1983]. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes, 1990. ) esclarece, com fina ironia, que o marxismo, campo em que a AD ancora-se fortemente, não pode construir, por si só, “edifícios teóricos” capazes de trazer à luz todos os fenômenos, sejam eles linguísticos, filosóficos, artísticos etc. Assim, acreditamos que, como analistas de discurso, temos o dever ético de, quando necessário, aliar dialeticamente conhecimentos concernentes à Teoria do Discurso a conceitos e reflexões externos a ela, desde que devidamente trabalhados sob sua episteme. No entanto, não se trata de nos apropriarmos de campos teórico-filosóficos que se especificam por tratar objetos artísticos, mas de admitirmos não ser a AD uma “máquina” interpretativa homogênea e sem furos. Ao analisar uma cena do filme O fantasma da liberdade, escrito por Luís Buñuel e Jean-Claude Carrière, recorreremos não só ao aparato teórico-analítico da AD, mas a exterioridades teóricas relativas à estética, devidamente tratadas sob o ponto de vista discursivo.

2 ARTE, INCONSCIENTE E IDEOLOGIA

Rancière (2009RANCIÈRE, J. [2001]. O inconsciente estético. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: Ed. 34, 2009.)3 3 Rancière (2009) concebe a Estética como um regime histórico de pensamento das artes que se inaugura no romantismo alemão. Nesse sentido, diferencia-a de outros regimes: o regime ético das imagens e o regime poético ou representativo. Nesse sentido, o termo estética não é sinônimo de arte, mas um dado modo histórico do fazer artístico. afirma que, a partir do Romantismo Alemão, a estética deixa de ser uma disciplina que trata do belo para constituir-se como um modo de pensamento específico das artes, um “pensamento daquilo que não pensa” (p. 13). Esse pensamento, dotado de uma potência heterogênea, para o autor, é estranho a si mesmo, no qual idêntico e não idêntico coincidem. Assim, no âmbito da estética, admite-se a existência de uma identidade de contrários, identidade entre razão e irracionalidade, entre realidade e ficção, entre consciente e inconsciente, a qual pode ser formulada como: 1. Existe razão na loucura (pensamento no não pensamento); e 2. A razão pressupõe loucura (não pensamento no pensamento). O que Rancière chama de “regime estético das artes” rompe com uma tradição mimética e, assim, eleva essa identidade de contrários como um modo de produção das artes.

Nesse sentido, reencontramos Pêcheux, para quem o traço poético e o humor “pertencem aos meios fundamentais de que dispõe a inteligência política e teórica” (1990, p. 53), ou seja, no seio mesmo dos processos sócio-históricos, o impensado é capaz de surgir no pensamento, solapando a ilusória unidade lógica dos processos discursivos. Analogamente ao pensamento de Rancière, podemos dizer que a própria realidade tem a estrutura de uma ficção (PÊCHEUX, 1988aPÊCHEUX, M. [1975]. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni P. Orlandi et al. Campinas: UNICAMP, 1988a. ). A afirmação de Pêcheux, ancorada em Lacan, diz respeito às relações entre ideologia e inconsciente, mais precisamente às formas como este permite que, no interior da realidade forjada pelo assujeitamento ideológico, haja falhas, seja possível a transformação, intimamente relacionada ao que Rancière chama de regime estético das artes, regime histórico, inaugurado em condições de produção específicas, que trabalha com a identidade de contrários e que, longe de expressar uma simples identidade, ainda que paradoxal, alarga o horizonte do que seja consciência e inconsciente, pensamento e não pensamento etc.

Apesar de as obras de arte serem dotadas de historicidade, elas, segundo Barthes (1987BARTHES, R. Racine. Trad. Antônio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM, 1987.) 4 4 O autor refere-se especificamente à literatura. , não podem ser reduzidas a meros produtos históricos, já que se caracterizam por, ao mesmo tempo que são “signos” de seu tempo, resistirem às condições históricas em que surgem, ou seja, ao mesmo tempo que a arte é história, é resistência à história; identidade de contrários que, longe de estabelecer um paradoxo insolúvel, permite-nos compreender a complexa constituição da arte estética, tal como a define Rancière. Ainda para Barthes (1987), a obra escapa à determinação histórica, pois resta um “caroço duro, irredutível”. Assumamos que essa dupla constituição, no âmbito da AD, relaciona-se, de um lado, à ideologia e, de outro, ao inconsciente. Essa articulação faz-se presente na formulação do regime estético das artes, de onde partimos para afirmar que: 1. A arte tem relação com a ideologia, já que é historicamente produzida como objeto de saber; 2. A arte tem relação com o inconsciente, já que admitimos, com Rancière e Barthes, que resta, neste campo, um saber estranho a si próprio e um caráter irredutível, que não permite que uma obra de arte (estética) seja um mero produto de suas condições de produção; e, finalmente, 3. Que a arte é discurso, pois não só produz e faz circular sentidos, como os produz de maneira a questionar a evidente - e ilusória - realidade.

3 O REAL DA ARTE COMO DISCURSO

A arte, tal como concebida por Rancière no regime estético das artes, tende a engendrar modos de produção de sentidos mais próximos da polissemia que da paráfrase, o que implica dizer que as coisas da arte, nesse regime estético, têm na ruptura e na transgressão seu modo próprio de produzir discurso, como se ficassem suspensos os sentidos do comum, estabelecidos social e discursivamente como “verdadeiros”, “literais”, em oposição a outros sentidos “periféricos, e pudessem circular, pelo trabalho do sujeito-artista, sentidos outros, sem que a univocidade lógica se exerça completamente sobre eles.

Ora, esse modo excepcional de funcionamento é regular no Surrealismo e em outros movimentos no interior do regime estético das artes, de modo que parece-nos lícito supor a existência de uma Formação Discursiva Estética (FDE)5 5 Apesar de a noção de formação discursiva ter sido revista por Pêcheux (1990), pensamos ser lícito ainda utilizá-la, embora considerando, com o autor, que, em momentos anteriores a noção “derivou muitas vezes para a ideia de uma máquina discursiva de assujeitamento dotada de uma estrutura semiótica interna e por isso mesmo voltada à repetição” (1990, p. 55). Se, conforme o autor, não se trata de conceber todo e qualquer discurso como independente das redes de memória, i. e., das formações discursivas, mas de concebê-lo como “índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação” (p. 56), é lícito considerar a heterogeneidade e o equívoco como próprios à noção de formação discursiva. , na qual o discurso artístico, a partir da identidade de contrários, teria como saber primeiro o questionamento das evidências. Essa FD determina, no nosso entendimento, os processos de produção de sentidos do discurso artístico dominante desde o Romantismo alemão, ao mesmo tempo que questiona os saberes ilusoriamente evidentes que vêm de outras FD6 6 Dependendo da obra considerada, diferentes FD figurarão como exterioridade específica da FDE. No caso do filme em questão, por exemplo, podemos considerar como exterioridades específicas uma FD Psicanalítica, dada a relação do surrealismo com a psicanálise freudiana, e uma FD comunista, conforme evidenciamos na sequência. . Podemos então considerar que, na FDE, têm lugar rearranjos específicos das relações parafrásticas que vão dar origem a efeitos de sentido determinados simultaneamente pela região do formulável na FDE e pelo não-formulável de seu exterior constitutivo.

Nesse sentido, os saberes da FDE estão em constante deslocamento de sentidos produzidos alhures, em outras FD. O movimento constante é, assim, uma relação tensa de desarranjo-rearranjo de processos discursivos que trabalham nos sentidos em seu caráter material. O movimento, pois, mais do que se constituir como real do discurso, no discurso artístico, é a lei formal sob a qual se dão os processos de produção de sentidos. Isso coloca em evidência o fato de que não existe sentido em si mesmo, desautorizando aprioristicamente a ilusão de transparência do que é dito/visto. Concebendo o discurso artístico estético em sua radicalidade, podemos dizer que o saber que regula os processos de produção discursiva na FDE relaciona-se à identidade de contrários, especificamente à identidade entre sentido e não-sentido. Logo, não é que não haja um sistema de evidência que regula o discurso na FDE, mas a evidência primeira sobre a qual repousam os processos discursivos estéticos é a de que não há evidências.

A suposição de uma FD cujo saber prototípico seja o questionamento das evidências, por outro lado, não implica negarmos a interpelação ideológica; a interpelação é condição primeira da constituição subjetiva. É justamente em seu ponto de falha que trabalha a FDE. Se considerarmos como verdadeira a injunção formal que propusemos, a existência da FDE só pode ser falha, porquanto a forma-sujeito que lhe seria correspondente teria que comportar sua própria falha de identificação. Considerando, então, o sujeito como desde sempre assujeitado e, além disso, desde sempre desejante, consideramos posta a relevância da FDE, de cuja forma-sujeito jamais se supõe um funcionamento absoluto, já que ela trabalha explicitamente sob o questionamento da evidência. Ainda, a contradição, sendo constitutiva do sujeito e das FD, é, pois, o modo primeiro de funcionar da FDE.

4 UM FANTASMA N’O FANTASMA DA LIBERDADE

Situemos os saberes em torno do que se convencionou chamar Surrealismo como uma posição de sujeito no interior da FDE, posição essa fundada pela contraidentificação a uma outra posição-sujeito da mesma FD, a dadaísta. As condições de aparecimento dessa posição giram em torno de quatro pontos essenciais: 1. A crise na literatura e nas artes modernas de cunho racionalista, a qual culminou no surgimento de outros movimentos literários, como o Dadaísmo; 2. O fato de ter irrompido entre as duas grandes guerras que marcam a grande crise da sociedade capitalista moderna; 3. O impacto que o pensamento freudiano causou na sociedade ocidental; e 4. O impacto não menos transformador que teve a Revolução Comunista na Rússia (NADEAU, 2008NADEAU, M. [1964]. História do Surrealismo. Trad. Geraldo G. de Souza. São Paulo: Perspectiva, 2008.).

Da posição-sujeito surrealista, surge a produção cinematográfica de Luís Buñuel. Respondendo à regularidade estranha da FDE, no interior da posição-sujeito à qual se identifica, a produção do cineasta envolve a utilização da estrutura onírica e dos chistes, relacionados intimamente pela via do absurdo. Em Freud (1996aFREUD, S. [1900]. A interpretação dos sonhos. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996a., 1996b), essas formações do inconsciente são capazes de tocar algo de estranhamente constitutivo ao sujeito, esse Real de que fala Lacan, esse impossível da língua de que falam Gadet e Pêcheux (2010GADET, F.; PÊCHEUX, M. [1982]. A língua inatingível: o discurso na história da linguística. Trad. Bethania Mariani e Mª. Elizabeth C. de Mello. 2. ed. Campinas: Ed. RG, 2010.). Esse irredutível à ordem da língua, à ordem da ideologia e à ordem da consciência instaura o não-idêntico no espaço do repetível, abrindo-se a FDE para a multiplicidade de sentidos e seu equívoco. É nesse sentido que Pêcheux (1990) afirma não ser o equívoco exterior à língua, mas estrutural (e estruturante), constitutivo da ordem simbólica. Esse saber que não alcançamos mas com o qual nos deparamos é o núcleo duro em torno do qual o chiste e o sonho vão se estruturar como seus efeitos. O Fantasma da Liberdade, filme dirigido por Buñuel em 1974, materialidade analítica que escolhemos para exemplificar o que vimos falando em torno do discurso estético, vai explorar justamente esse ponto em que o absurdo e o sem-sentido são trazidos à cena e colocados em seu centro.

As partes parcialmente independentes entre si que compõem o “Fantasma da Liberdade” remetem, segundo Buñuel, ao primeiro enunciado do Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels: “Um fantasma ronda a Europa: o fantasma do Comunismo”. O todo da obra aponta para a radical arbitrariedade das normas sociais, questionando, sobretudo, em consonância com o saber prototípico da FDE, o aspecto de evidência a que o que chamamos “realidade” está apegado.

Sob o rótulo opaco do título, o tempo da ação começa em 1808 e, em seguida, passa aos tempos atuais da película. Quanto ao espaço, o filme passa-se basicamente em Paris e seus arredores, com exceção da primeira sequência, que se passa em Toledo, na Espanha. A narrativa da peça audiovisual é baseada na ligação aparentemente contingente de episódios independentes. Passamos de um esquete a outro sem que fique claro como eles se relacionam. As histórias só se conectam através de uma personagem que se repete no esquete subsequente, dando a ideia de deslocamento. A ligação fortuita entre os acontecimentos não faz mais que ligar entre si histórias independentes, cuja conjunção tem a estrutura semelhante a um sonho. As personagens que fazem a transição de um esquete a outro, na maioria das vezes, são ligadas às duas situações de que participam pelo acaso, por um processo metonímico, no qual um elemento secundário em uma sequência torna-se o tema central na seguinte, processo semelhante ao deslocamento nas formações do inconsciente (FREUD, 1996aFREUD, S. [1900]. A interpretação dos sonhos. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996a., 1996b). Tentamos remeter esses esquetes sempre ao rótulo que os unifica: o título. Para a análise que empreenderemos a seguir, comecemos pelo “fantasma” do título.

A concepção do senso comum de “fantasma”, que aponta para uma lógica dicotômica, vida/morte, corpo/alma, atravessa todo o imaginário ocidental, ligada ao sobrenatural, ou seja, àquilo que excede a natureza e relaciona-se com o mistério, com o desconhecido. Buñuel aproximou-se dessa temática n’O fantasma da liberdade. Na peça audiovisual, a dicotomia vida-corpo/morte-espírito é suspensa pela corporificação do fantasma. Para dar conta desse processo discursivo que sobrepõe os polos dessa dicotomia, acreditamos ser producente a concepção de fantasma advinda da psicanálise.

A noção de fantasia/fantasma surge em Freud em relação às histéricas (Cf. JORGE, 2010JORGE, M. A. C. Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan. A clínica da fantasia. Vol. II. Rio de Janeiro: Zahar, 2010., p. 29). Freud observou que muitas pacientes histéricas narravam cenas de agressão, via de regra perpetradas por uma figura masculina, que não necessariamente estavam vinculadas à realidade objetiva: “Há casos em que as fantasias histéricas, ao invés de se expressarem por meio de sintomas, surgem como realizações conscientes que encenam estupros, ataques ou atos de agressão sexual” (JORGE, 2010, p. 50-51). Essas cenas, no entanto, dizem respeito à realidade psíquica do sujeito, pois indicam a realização do desejo. O processo fantasístico dá-se, para Freud, porque a pulsão - essencialmente pulsão de morte - impele o sujeito à tentativa de satisfação que, em última análise, jamais poderá ser total: “A repetição representa a insistência da pulsão em sua busca, jamais atendida, de uma satisfação absoluta” (JORGE, 2010, p. 68), de maneira que o sujeito é levado sempre à repetição automática, compulsiva e inconsciente de “imagens” que encenam as satisfações primeiras. Essas imagens não são fixas, mas sempre variáveis, pois os objetos de satisfação serão sempre parciais.

Para Lacan (Cf. ROUDINESCO; PLON, 1998ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de Psicanálise. Trad. Vera Riberio, Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.), a fantasia é um mecanismo de defesa que visa impedir a emergência de um episódio traumático, o que barra a angústia e faz do outro uma “tela de projeção fantasmática”, levando-nos a perceber o mundo como consistente e dotado de sentido. Assim, podemos considerar que a realidade é desde sempre fantasmática, como a própria unidade do corpo que percebemos como real é fantasmática. Nessa direção, o que chamamos de realidade objetiva, ou seja, a forma como percebemos o que está à nossa volta, é fundamentalmente fantasmática (SAFATLE, s.d.). Assim, a própria unidade corporal que percebemos em uma imagem especular é fantasmática. Essa estruturação da fantasia, produtora de imaginária satisfação e responsável pela imagem de unidade do corpo, também ocorre no nível simbólico: especifica-se como uma estrutura significante, tal como compreendida pela Psicanálise lacaniana. Além disso, ela toca o real, já que o prazer que causa também causa certa cota de desprazer.

Essa estrutura fantasística, que coloca o sujeito na trilha de uma necessidade, é índice de uma falta estruturante, a falta da diferença sexual, que faz com que o desejo nunca possa ser plenamente satisfeito. A fantasia, ao lograr preencher essa falta apenas parcialmente, relaciona-se ao terrível Outro. Para Žižek (2010ŽIŽEK, S. Como ler Lacan. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.), o sujeito é dotado de um mecanismo de defesa que evita o contato intolerável com a falta imposta pelo objeto a, aquele que é sempre uma falta. O autor relaciona essa dimensão abismal do encontro com o Outro com a diferença kantiana entre juízo negativo e juízo indefinido, identificada por ele nos livros de Stephen King, nos termos da diferença entre “não estar morto” (juízo negativo) e “estar não morto” (juízo indefinido), ou seja, sem o “filtro” da fantasia, o encontro real com o Outro dá existência a um terceiro termo, que não é, no caso do exemplo em tela, nem morto nem vivo, mas não morto, o que se aplica ao par “humano/desumano”, no qual “desumano” não é o contrário exato de humano, mas algo entre o humano e o não humano, de todo modo inerente à humanidade. A fantasia “media” esse encontro com o Real, com o desejo do Outro, com o Outro como desejo, de forma a barrá-lo. Por esse motivo, a fantasia está relacionada àquilo que experimentamos como realidade, o que devolve a unidade ao sujeito. No entanto, é também real, no sentido de que estrutura o desejo do outro para o sujeito, relacionando-se à causa faltosa desse desejo. Para Žižek:

O que temos diante de nós é a ambiguidade fundamental da noção de fantasia: embora a fantasia seja o crivo que nos protege do encontro com o real, a própria fantasia, no que tem de mais fundamental - o que Freud chamou de ‘fantasia fundamental’, que fornece as coordenadas mais elementares da capacidade de desejar do sujeito -, nunca pode ser subjetivada, e tem de permanecer recalcada para funcionar. (2010, p. 75)

Ou seja, ao mesmo tempo que a fantasia tem algo a ver com a realidade imaginária que experimentamos como verdadeira, ela também resta inassimilável de alguma forma, em sua dimensão de real. Para que o sujeito viva em sua fantasia, ela não pode ser plenamente imaginária, estando intrincada, para sempre, na relação real-simbólico-imaginário. Essa contradição inerente à fantasia e à constituição subjetiva desdobra-se nas formações sociais não como mero reflexo, mas na forma de uma tensão entre o social e o psíquico. Žižek (1992ŽIŽEK, S. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.), ao analisar, sob as bases do retorno lacaniano a Freud, a aproximação entre o materialismo e a psicanálise empreendida pela Escola de Frankfurt, forja o conceito de “fantasia ideológica” como a ilusão que estrutura a realidade social, determinando o “fazer” do sujeito. A fantasia ideológica não está somente relacionada ao fato de o sujeito desconhecer o caráter do que o domina, mas em desconhecer o caráter ilusório de sua prática. Žižek (1992) ressalta a dimensão de impossível e de infundado da lei social, esta em cujo cerne reside o “sempre-já” que regula e que interdita seu questionamento. No fosso entre a autoridade forjada da lei e a interdição do questionamento de sua origem, vem inscrever-se a fantasia ideológica: “‘No começo’ da lei, portanto, há um certo fora-da-lei, um certo real da violência que coincide com o próprio ato de instauração da lei, e todo o pensamento político-filosófico clássico repousa num desmentido desse avesso da lei.” (ŽIŽEK, 1992ŽIŽEK, S. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1992., p. 65).

A lei, ela mesma, é forjada de maneira violenta e “sem sentido” num universo fora-da-lei. Esse “objeto” regulado pela lei contém, em certa medida, um “impossível”, uma falta fundamental que Žižek relaciona ao objeto a lacaniano, esse resto que sempre persiste no “ego-sujeito-pleno”, em cuja suplência a fantasia ideológica emerge. Nesse sentido, o autor associa a identificação fantasística da psicanálise com a interpelação ideológica althusseriana. Para ele, o erro da concepção althusseriana da ideologia consiste em ter relacionado a interpelação somente à identificação, em seus vieses imaginário e simbólico, e não em sua dimensão fantasística, que remete, de pronto, ao desejo e à falta no Outro:

O derradeiro suporte do efeito ideológico (ou seja, a maneira como uma rede ideológica de significantes nos ‘prende’) é o núcleo fora de sentido, pré-ideológico do gozo. Na ideologia, ‘nem tudo é ideologia (isto é, sentido ideológico)’, mas é precisamente esse excesso que constitui o derradeiro esteio da ideologia (ŽIŽEK, 1992ŽIŽEK, S. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1992., p. 122).

A dimensão do gozo, atinente ao campo do Outro, implicada na fantasia - que tenta insistentemente “tapar” o desejo do Outro, estruturando, paradoxalmente o desejo do sujeito -, é precisamente o lugar do nonsense da falha no ritual ideológico do qual fala Pêcheux (1988bPÊCHEUX, M. [1978]. Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês. In: PÊCHEUX, M. [1975]. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni P. Orlandi et al. Campinas: UNICAMP, 1988b. ) em sua retificação, o ponto de impossível a significar pelo qual o assujeitamento pode ser apreendido. Nesse sentido, à fórmula lacaniana clássica segundo a qual a relação sexual não existe, em torno de que a fantasia forja uma complementaridade entre os sexos, corresponde a formulação de Žižek segundo a qual “não existe relação de classe”, ou seja, ao modo da impossibilidade de complementação entre os sexos, as classes em luta não são jamais simétricas e a uma não corresponde a outra como oposto direto. A clivagem entre as classes em luta não pode, segundo Žižek (1992), ser integrada à ordem simbólica, e disso resulta seu antagonismo, dissimulado nas formações sociais.

Assim, a fantasia ideológica mascara o antagonismo, de forma a levar desde sempre em conta sua falha constitutiva, esta implicada na ordem da fantasia, tal como se a concebe na psicanálise. O que ameaça esse edifício fantasístico da sociedade corporativista é precisamente o que deve ser eliminado, o sintoma, o intruso, o estranho que, não obstante, a constitui e desvela seus mecanismos reais. Segundo Žižek (1992ŽIŽEK, S. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.), Lacan atribui a Marx a criação do sintoma, como esse “excesso” social que é tomado como o excedente anormal e que, como tal, deve ser eliminado. Todavia, esse sintoma é próprio ao sistema, é o que denuncia seu antagonismo mascarado.

O assujeitamento em sua dimensão de fantasia ideológica é, pois, o real das sociedades capitalistas. É assim que chegamos a considerar que o “fantasma” de Buñuel joga no entremeio do fantasma psicanalítico e do fantasma marxista, sintetizados na fantasia ideológico-social de Žižek (1992ŽIŽEK, S. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.): de forma dialética, o constructo teórico “fantasma” encontra a metáfora do fantasma em Marx e Engels n’O fantasma da liberdade, fazendo emergir, na película, tanto o fantasma como mecanismo de encobrimento do assujeitamento, como ameaça ao ideal libertário do marxismo.

O saber prototípico da FDE, que imprime uma identidade de contrários às coisas, subtraindo seu caráter de evidência transparente, aliado aos saberes do materialismo e da psicanálise convocados pela posição-sujeito surrealista, resulta no título superficialmente paradoxal da peça audiovisual, que vai subordinar sintaticamente a “liberdade” ao “fantasma”. Todavia, o substantivo fantasma, apesar de funcionar como núcleo sintático subordinante, vai modificar qualitativamente o termo liberdade que, embora não seja o núcleo sintático do sintagma nominal, funciona como núcleo referencial. Logo, a construção preposicionada (sintagma preposicional) da liberdade não é semanticamente subordinada ao núcleo do sintagma nominal, pelo contrário, o núcleo fantasma funciona como um predicado de liberdade e poderia ser parafraseado como A liberdade é um fantasma ou, ainda, A liberdade contém um fantasma. Essas duas paráfrases, no entanto, não são simétricas, sendo que a forma nominalizada O fantasma da liberdade, ao mesmo tempo que autoriza as duas paráfrases, suspende-as, já que são mutuamente excludentes, ou seja, se a liberdade é um fantasma, ela não pode conter um fantasma. Da mesma forma, as possíveis paráfrases nominalizadas Liberdade fantasmagórica/fantasmática e Fantasma libertário/libertador são essencialmente dissimétricas em relação ao sintagma original, pois particularizam também propriedades cujo sentido é suspenso na formulação primeira.

Dessa forma, podemos tomar o título O fantasma da liberdade como o enunciado que rege a unidade imaginária da peça audiovisual, materializando-se em cada formulação/sequência da montagem fílmica de forma a limitar ou expandir os sentidos relacionados a ele de maneira polissêmica, embora respondendo à regularidade do enunciado, jogando entre os sentidos de fantasma e liberdade. Os sentidos de fantasma aparecem de forma direta nas sequências que têm por tema a dualidade vida/morte. Ocupemo-nos de uma dessas sequências.

Na sequência a ser analisada, o prefeito de polícia vê materializada diante de si a irmã morta, Marguerite. Essa sequência se passa no tempo atual da película, ou seja, em 1974. Após trabalhar no caso de uma menina desaparecida, o chefe de polícia vai a um bar. Lá, encontra uma mulher que é igual à sua irmã, que morrera. Enquanto conversa com essa mulher sobre a irmã, recebe um telefonema misterioso que o faz ir à noite ao cemitério. Aqui, vemos funcionar mais fortemente a fantasia que estrutura a lei como natural, como desde-sempre-já-aí que, no entanto, estrutura violentamente o “fora-da-lei” real de que nos fala Žižek (1992ŽIŽEK, S. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.). A crença cristã da vida após a morte subsiste aqui de forma tênue, embora estruture os atos do chefe de polícia.

Num cenário externo urbano, um motorista abre a porta para o chefe de polícia, M. Richepin, perguntando-lhe se quer que o espere, ao que ele responde negativamente. Esse plano inicial, no qual a câmera acompanha os movimentos do motorista e de seu superior, dá consistência à autoridade encarnada em M. Richepin, já que ele tem sob suas ordens um subordinado. Acompanhamos o chefe de polícia até a porta de um prédio, no qual ele entra. Em um cenário interno, vemos Richepin descer uma escada. Enquanto ele atravessa a portinhola do bar, dois homens saem, aparentemente sem reconhecê-lo, o que dá ao espectador a sensação de que o chefe de polícia vai até esse bar a fim de descansar de suas tarefas como superior do corpo policial da cidade. Já no interior do bar, o “prefeito” cumprimenta o barman, questiona se “eles” - não sabemos quem - ainda não chegaram. Frente à resposta negativa do barman, ele reclama do atraso. Richepin deixa seu casaco e seu chapéu em um cabide. O barman pergunta-lhe se vai beber a mesma coisa de sempre, ao que ele responde afirmativamente. A câmera acompanha novamente o chefe de polícia até uma mesa, atrás da qual ele se senta. Vemos, em seguida, de perto, as mãos de Richepin derrubarem à mesa peças de dominó, que ele organiza de cabeça para baixo. A câmera sobe, mostrando seu rosto, enquanto ouvimos fora do campo a voz do garçom e uma voz feminina. Ao perceber a conversa, o chefe de polícia volta seu rosto para trás e vemos o garçom atendendo uma mulher ruiva de pé. Ela pede um vinho do porto e dirige-se a uma mesa, acompanhada pela câmera. Vemos novamente Richepin, com uma expressão de curiosidade no rosto. Ele volta a mexer nas peças de dominó, que se encontram fora do quadro, enquanto parece pensar confusamente, com o cenho franzido. Olha novamente para trás e a câmera, simulando seu olhar (câmera subjetiva), fixa a mulher ruiva que, distraidamente, tira suas luvas e observa-se em um espelho que não vemos diretamente, mas supomos pelos seus gestos. Novamente vemos Richepin, em plano médio, ainda com o cenho franzido, mexendo nas peças de dominó. Ele olha para trás novamente e larga as peças, levantando-se e dirigindo-se até a mesa da mulher.

Figura 1
Richepin e Estelle

Richepin dirige-se à mulher, pedindo desculpas pelo incômodo e afirmando que ela não tem nada a temer, já que ele é o chefe de polícia, reafirmando sua autoridade ao mesmo tempo que tenta tranquilizar a mulher, mostrando que, devido a essa autoridade, ela está segura ao falar com um estranho. Sua autoridade é ainda reforçada pelo fato de ele estar de pé, em posição superior à da mulher, que se encontra sentada. Ele solicita sentar-se. O garçom surge, serve a bebida solicitada pela mulher e avisa ao “prefeito” que sua bebida encontra-se em sua mesa. Ao chamar Richepin de “prefeito”, ele reforça ainda mais a autoridade já reafirmada. Richepin pergunta à moça se ela costuma frequentar o lugar, ao que ela responde que é a primeira vez que vai até aquele bar. O chefe de polícia conta, então, a Estelle que ficou muito perturbado ao vê-la entrar, pois a moça era igual à sua irmã, Marguerite, que morrera exatamente quatro anos antes. Estelle, com o rosto curioso, toma seu vinho do porto enquanto ouve a história do chefe de polícia. Novamente a câmera é posicionada atrás de Estelle, enquanto vemos Richepin, com expressão de admiração, olhá-la lembrando as características da irmã. A moça apressa-se em dizer seu nome a fim de reforçar o fato de não ser a irmã do chefe de polícia. Ele, olhando para o lado, lembra de uma tarde de verão com a irmã.

Inicia-se um longo flashback que não descreveremos aqui. De volta ao bar, Richepin declara ter a irmã morrido alguns dias depois da lembrança por ele narrada. Ele pergunta a Estelle se ela toca piano como sua irmã Marguerite, ao que ela responde afirmativamente. Estelle pergunta de qual doença morrera Marguerite, ao que Richepin responde que fora de cólica miserere, que, em latim, significa “tem misericórdia”, referência sutil ao cristianismo, pois, além de designar a doença, miserere é o nome do Salmo 51 na Bíblia. Enquanto Richepin explica o que é a doença a Estelle, ouvimos fora do campo7 7 A expressão utilizada refere-se à forma como, no cinema, denomina-se aquilo que não pode ser visto na tela, mas que ainda assim compõe a cena. soar um telefone. No plano seguinte, vemos o garçom dirigir-se ao telefone e atendê-lo. Enquanto vemos o garçom ao telefone, ouvimos fora do campo Richepin despedindo-se de Estelle e convidando-a para o baile da polícia. O garçom ouve atentamente a outra pessoa ao telefone e pede que espere um momento. A câmera o acompanha até a mesa dos dois clientes, onde ele diz ao chefe de polícia que alguém o chama ao telefone. Richepin pergunta se é Marcel, ao que o garçom responde negativamente. Richepin, então, ordena que o rapaz pergunte quem é. O garçom se retira e vemos o prefeito de polícia pedir o telefone da moça. A câmera enfoca, então, o garçom, que, afastando o telefone do rosto, anuncia que fala ao telefone a irmã morta do chefe de polícia, Marguerite. Vemos Estelle e Richepin, que franze o cenho e pergunta, incrédulo, o que o garçom está dizendo, ao que este responde que Marguerite dissera que gostaria de falar com o irmão. Richepin ordena, então, que o garçom, Georges, insulte a pessoa ao telefone, desculpando-se a Estelle pelo palavreado. Aproximando sua mão da mão de Estelle, declara, irritado, que se trata de uma brincadeira de mau gosto, já que a irmã Marguerite está morta. A câmera enfoca novamente o garçom, enquanto ele declara que a pessoa insiste em falar com o chefe de polícia e gostaria de encontrá-lo à noite no mausoléu da família, cuja chave está na gaveta direita da escrivaninha de Richepin. O chefe de polícia volta-se novamente na direção do garçom e ordena que este pergunte à pessoa ao telefone o que ele pediu que Marguerite tocasse ao piano em um dia quente de verão, cena a que assistimos no flashback; o garçom repete a pergunta ao telefone, ouve a resposta e diz a Richepin que fora a Rapsódia de Brahms. Com o cenho franzido, Richepin olha a companheira, apaga o cigarro que tinha entre os dedos, levanta-se e vai até o telefone. Ao telefone, ele repete, em tom de pergunta, enquanto tem a testa franzida, as palavras da pessoa com quem fala “Compreender o verdadeiro mistério da morte esta noite?”. Quando ele vai responder, a pessoa do outro lado do telefone parece ter desligado. O chefe de polícia, visivelmente irritado, coloca o telefone na base. Corta.

Figura 2
Richepin ao telefone

Na rua, à noite, Richepin desce de um táxi em frente a um portão. Ele olha para os lados e dirige-se até uma porta, onde há uma campainha. Ele toca essa campainha e é atendido por um guarda, o qual pergunta rispidamente a Richepin o que ele quer, ao que ele responde que deseja entrar. O guarda, fazendo um gesto com as duas mãos, declara que está fechado. Richepin apresenta-se, como se devesse ser reconhecido pelo guarda, e solicita a entrada novamente. O guarda, não reconhecendo o chefe de polícia, diz que ele precisaria de uma autorização especial para entrar à noite no lugar. Irritado, Richepin, retirando do casaco um documento e entregando-o ao guarda, diz que é o “prefeito” de polícia. O guarda aproxima-se, enquanto olha alternadamente para o documento e para Richepin que, em contrapartida, observa-o desafiadoramente. O guarda deixa-o entrar e pergunta se quer companhia, ao que o chefe de polícia responde negativamente. O guarda vai atrás de Richepin com o braço levantado, parecendo querer dizer alguma coisa, mas desiste, fazendo um gesto com as duas mãos e voltando novamente até perto da porta, onde pega um telefone e diz “alô”. Corta.

Richepin caminha com uma lanterna entre túmulos. Ao chegar a um mausoléu, ele abre a porta e entra. No interior, ele desce as escadas, iluminando o caminho com a lanterna. A câmera acompanha-o de forma regressiva, tremendo sutilmente, o que sugere um ângulo subjetivo, como se o espectador estivesse observando a cena de dentro do mausoléu ou, ainda, como se houvesse uma terceira pessoa não identificada observando os movimentos de Richepin. Vemos dois caixões, um de cada lado do chefe de polícia; a câmera acompanha seus movimentos de cabeça enquanto observa os ataúdes. No ataúde que se encontra à sua direita, cabelos ruivos estão dispostos do lado de fora, sugerindo que aquele é o ataúde da irmã. Apesar de estar escuro, vemos o cenho de Richepin franzir-se enquanto toca os cabelos ruivos. Observa em volta e percebe, ao lado do ataúde, um telefone, pega-o e olha, com expressão de dúvida, para a frente. Ele retira do casaco uma ferramenta, com que tenta violar o ataúde da irmã. No plano de fundo, enxergamos a escada, de onde vemos descer o guarda do cemitério e mais três policiais, que pegam Richepin à força, enquanto este protesta, enfurecido, dizendo-se o chefe de polícia, ao que um dos policiais responde que ele poderá explicar-se na delegacia. Richepin ordena que os oficiais ponham-se em sentido e forneçam-lhe seus números de registro. Sem dar atenção aos protestos de Richepin, os guardas o conduzem aos tapas para o exterior. Na parte exterior do cemitério, vemos Richepin ser conduzido por dois policiais que lhe seguram os braços. Nas cenas posteriores, veremos que Richepin não é o chefe de polícia que diz ser.

Figura 3
Richepin é conduzido à força

O tema do fantasma, nesta sequência, vem sobrepor-se ao tema da autoridade policial. Richepin, ao dirigir-se ao garçom e aos guardas no cemitério, usa somente o imperativo. Ao solicitar ao garçom que a música ambiente do bar seja desligada, ele diz “Écoutez, coupez cette musique, hein!” e “Coupez ça, voulez-vous?”. Ao solicitar ao garçom que pergunte quem fala ao telefone, ele diz “Demandez qui est à parler!”. Ao duvidar que seja sua irmã ao telefone, ele ordena que o garçom faça uma pergunta: “Demandez-lui donc quel est le morceau que je le priai de jouer un jour très chaud lorsque je suis entré dans sa chambre”. Ao ir até o telefone, ele ordena a Georges: “Donnez-moi ça!”. Ao insistir para entrar no cemitério à noite, dirige-se ao guarda: “Laissez-moi passer!”; aos guardas que tentam levá-lo à força, ordena: “Lâchez-moi!” e “Donnez-moi vos numéros!”. Ao uso constante do imperativo, vêm juntar-se as várias vezes em que Richepin afirma ser o chefe de polícia. Notemos que Richepin somente afirma sua autoridade, mas não há indício visual dela; quando ele mostra seu documento ao guarda, nós não o vemos. A autoridade de Richepin ainda é reforçada pelo fato de que a câmera subjetiva é usada constantemente, todavia, somente para expressar seu ponto de vista e não o das outras personagens envolvidas na cena. Ao trocar de posição com o espectador, por meio do ângulo subjetivo, Richepin tem sua autoridade reafirmada, já que o espectador vê como ele vê.

No nível do intradiscurso, na base da língua mesma, através da autodesignação préfet de police e dos verbos no imperativo, sua autoridade é, então, homogênea. No entanto, se tomarmos a formulação audiovisual como um todo, somente a utilização de ângulo subjetivo afirma, simulando o olhar da personagem, a veracidade da autodesignação. Vemos através dos olhos da mais alta autoridade policial de Paris e, por isso, não duvidamos de seu poder, reafirmado constantemente, mesmo que suas roupas sejam civis. Em um nível vertical, ou seja, aquele do interdiscurso, a autoridade de Richepin aproxima-se da “liberdade”, ou seja, ele, como chefe supremo da polícia de Paris, pode dispor livremente da vida dos sujeitos, utiliza sua autoridade para aproximar-se de Estelle e para forçar a entrada no cemitério durante a noite.

Como representante da instância da lei e do aparelho repressivo de estado, o chefe de polícia forja sua autoridade frente aos outros sujeitos sociais, que cedem aos seus desejos, não somente o garçom, que trata com rispidez, sempre no imperativo, mas também a irmã, Marguerite, que toca a Rapsódia de Brahms, como ele lhe pede, e Estelle, que permite ao estranho, já que se autodesigna chefe de polícia, sentar-se à sua mesa, além de aceitar o convite para ir ao baile da Polícia. Todavia, essa autoridade onipotente é sutilmente colocada em questão desde o início da sequência, seja pelo atraso dos colegas de dominó, seja por a pessoa ao telefone terminar a ligação antes de ele obter mais informações. Pequenos indícios como os citados contrapõem-se ao uso excessivo do imperativo e à repetição de sua designação como chefe de polícia. A própria repetição reiterada de sua autoridade emerge como pista de que essa autoridade e a consequente liberdade não são totalmente plenas. Em outras palavras, o excesso causa o estranhamento de que nos fala Ernst-Pereira (2009).

O fantasma é aludido pela primeira vez pela estranheza com que Richepin ouve e acompanha a chegada de Estelle ao bar: sua expressão facial tensa parece ser a de quem viu/ouviu uma “assombração”. Enquanto o chefe de polícia aproxima-se, a mulher olha-se no espelho que, malgrado não vejamos, reduplica sua imagem, anunciando uma dupla presença, a sua e a da irmã do chefe de polícia, Marguerite. Aqui, o fantasma de Marguerite, apesar de anunciado, não desfaz a dualidade vida/morte, já que se anuncia pela presença duplicada de Estelle, que, embora seja igual a Marguerite, apresenta-se com nome diferente e, até mesmo, com sotaque diferente, pois é italiana. A semelhança das duas mulheres é o que parece, aos olhos de Richepin, “sobrenatural”. O irmão deseja que Marguerite esteja viva, mas é somente quando a pessoa ao telefone lhe dá informações precisas a respeito de sua relação com a irmã que vida e morte passam a coexistir sem serem mutuamente exclusivas.

Marguerite convida o irmão a conhecer o “verdadeiro mistério da morte”, no cemitério, à meia noite, lugar e horário típicos de lendas sobrenaturais populares. O fato de ela falar ao telefone nesses termos - a que só temos acesso por acreditarmos que Richepin, imbuído da autoridade que lhe é atribuída, ao menos aparentemente, pelo estado, repete as palavras da irmã - reforça sua constituição como viva e morta ao mesmo tempo; ela fala ao telefone ao mesmo tempo que diz conhecer “o mistério da morte”. A crença cristã no espírito, que, ao ser materializado na voz ao telefone - inacessível ao espectador, mas ainda assim suposta -, torna-se fantasma, é reforçada pela designação da doença que tirou a vida corpórea de Marguerite, a cólica miserere. Apesar de realmente existir tal doença, a designação nominalizada funciona como pré-construído cristão que incide, sem a intervenção do locutor Richepin, como pré-construído, no interior de seu discurso laico de autoridade de estado. Miserere é o título do salmo 51 da Bíblia cristã, constituído por uma oração que implora perdão e promete sacrifícios a Deus.

Vejamos a formulação inicial de tal salmo: “Tem misericórdia de mim, ó Deus, por teu amor; por tua grande compaixão apaga as minhas transgressões” (Salmos 51:1). O pré-construído cristão incide, assim, pela designação “miserere”, no discurso laico de Richepin e, não por acaso, a formulação inicial do salmo, que traz em si a designação miserere - tem misericórdia - incide sobre a morte de Marguerite, que expunha sua nudez ao irmão, no flashback. Notemos que, mesmo não parecendo desejar a irmã quando esta está nua ao piano no flashback, Richepin flerta com Estelle, a mulher idêntica a Marguerite, convidando-a para acompanhá-lo ao baile da Polícia. O desejo incestuoso inconsciente emerge, assim, na imagem duplicada da irmã. Nesse sentido, Richepin, interditado em seu desejo por Marguerite, adquire liberdade ao desejá-la pelo crivo fantasístico da imagem de Estelle.

O fantasma da irmã incide, então, na liberdade laica atribuída aparentemente pelo estado a Richepin. Nesse sentido, podemos parafrasear a afirmação dessa liberdade que toma forma pela via da autoridade repressiva policial como “A liberdade contém um fantasma”, o fantasma cristão que, quando está por vir à tona, implica a destituição da autoridade e, consequentemente, da liberdade de Richepin, o qual não é mais reconhecido como chefe de polícia enquanto tenta profanar o ataúde de Marguerite e é, por isso, privado de sua “liberdade de ir e vir”, sendo levado preso pelos policiais, que usam a força. O cristianismo impõe uma barreira à liberdade autoritária do sujeito de estado Richepin, trazendo à superfície sua divisão. Se o desejo por Estelle emerge como substituição fantasística do desejo incestuoso por Marguerite, o objeto a insuportável, barrado quando a irmã era viva, esse desejo logo volta-se à irmã, pela interrupção abrupta que a pessoa ao telefone impõe à conversa com Estelle. O telefonema, índice do desejo insuportável do Outro, faz com que Richepin abandone sua posição autoritária a fim de ceder à ordem de Marguerite. Nesse movimento, sua autoridade desfaz-se e dá incidência ao surgimento de novos agentes do aparelho repressivo de estado que não usam da força através da língua, como Richepin, mas a colocam literalmente em ato: os quatro guardas conduzem-no à força e aos tapas para fora do sepulcro da família. O desejo do Outro, quando se afigura na materialidade do cabelo ruivo que aparece na parte exterior do ataúde de Marguerite, reforçado pela presença de um telefone ao seu lado, o qual sugere que a ligação recebida por Richepin no bar originara-se ali, é logo solapado pela autoridade repressiva.

A liberdade aparece na sequência em outro de seus vieses: a liberdade repressiva de estado, a Lei forjada no espaço mesmo de sua constituição equívoca, como aponta Žižek (1992ŽIŽEK, S. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.). A coincidência, na mesma personagem, da garantia policial da aplicação da lei, ou seja, da autoridade/liberdade repressiva, materializada pelo uso excessivo do imperativo e da autodesignação préfet de police, e da subversão da lei, materializada na formulação audiovisual pela tentativa de violação do sepulcro de Marguerite, traz à superfície, pela via do interdiscurso, a falha, o furo próprio à lei. Richepin condensa essa identidade de contrários; ele é o bom sujeito do Estado, na medida em que garante a força da lei, e é, também, o mau sujeito, que se contraidentifica subvertendo a lei pela via de sua autoridade mesma, ou, mais precisamente, identificando-se plenamente com a lei, ele é a lei e, por isso, pode dispor da vida e da morte dos sujeitos. Quando Richepin identifica-se plenamente com a instância da lei, ele se atribui uma qualidade onipotente: sendo a lei, ele não precisa respeitá-la; na relação com a forma-sujeito do cristianismo, ele age como Deus, regulando vida e a morte da irmã.

Identificado à lei e a Deus, Richepin transgride as próprias leis de que é a garantia e a sustentação, ele trabalha na própria falha do ritual ideológico, emergindo como sujeito fundamentalmente desejante e dividido. Ele impõe a lei e resiste a ela; ele encarna a lei laica do estado burguês e resiste a ela. Assim, a mobilização discursiva da liberdade repressiva que encarna não faz mais que reverberar o engodo de toda autoridade e, mais que isso, de trabalhar na falta inerente a todo ego-sujeito-pleno.

Sob o saber que eleva a não-evidência dos sentidos em detrimento da literalidade na relação entre a posição-sujeito surrealista e a forma-sujeito da FDE, tal como materializada na peça audiovisual O fantasma da liberdade, participam do processo de produção discursiva sentidos diversos que, em relação de contradição, estendem a polissemia ao eixo parafrástico. Na sequência em análise, as exterioridades convocadas sob a designação “O fantasma da liberdade” fazem deslizar os sentidos mobilizados, de forma a fazer coincidir saberes contraditórios, apontando para o equívoco que solapa a relação ilusoriamente transparente do sujeito com o discurso. Apesar de não ter compromisso com o que concebemos como realidade, o absurdo que surge da sobreposição de saberes heterogêneos, como os saberes cristãos e laicos, retorna sobre a fantasia ideológica, colocando à prova sua eficácia. As “liberdades civis” consideradas próprias às formações sociais ditas democráticas são questionadas pelo caráter chistoso e pela estrutura onírica do deslocamento e da condensação, de modo que os inúmeros sentidos mobilizados pela palavra “liberdade” retornam sob a forma de uma asserção: a liberdade é um fantasma.

5 POR UMA ANÁLISE DO DISCURSO ARTÍSTICO

Não pretendemos defender, com este trabalho, que toda manifestação artística seja mais ou menos revolucionária, questionadora das evidências que regem o funcionamento discursivo. No entanto, partindo de Rancière (2009RANCIÈRE, J. [2001]. O inconsciente estético. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: Ed. 34, 2009.), podemos dizer que há ruptura com a arte representativa no Romantismo Alemão, a qual deu origem ao que Rancière chama de regime estético das artes. Nesse regime, como dissemos, a identidade de contrários dá margem para a potência criadora de um discurso que trabalha diretamente no equívoco. A posição-sujeito surrealista é emblemática desse potencial transgressor da FDE, pois, em determinadas condições de produção, essencialmente relacionadas às crises sucessivas do entreguerras, pôde aliar saberes que denunciavam a instabilidade social e subjetiva, de forma a produzir configurações singulares no âmbito da arte.

O cinema, como campo discursivo e artístico extremamente difundido desde o advento do filme sonoro no princípio do século XX, pareceu-nos um campo profícuo para a observação do discurso estético. Como materialidade significante na qual a língua, o som e a imagem não podem ser dissociados, o cinema emerge, assim, como um campo discursivo em que a arte estética tem franca disseminação. Engendrado por uma contradição, produto de uma indústria, ao mesmo tempo que resiste ao status quo da sociedade capitalista, o cinema surrealista é campo privilegiado para a observação do funcionamento excepcional da FDE. A fim de compreender as relações aí estabelecidas, mobilizamos saberes da AD, bem como a saberes relacionados à estética e à psicanálise. Nesse sentido, Jacques Rancière e Slavoj Žižek foram essenciais para o estabelecimento, respectivamente, das relações entre estética e discurso e ideologia e inconsciente.

No filme de Buñuel, assistimos a um complexo jogo discursivo que traz à superfície a opacidade a que está submetido todo discurso. Através de uma série de sobreposições, inversões e deslocamentos, essa peça audiovisual desnaturaliza a percepção de ações, atitudes e hábitos “semanticamente normais” na formação capitalista ocidental. Utilizando-se do absurdo, a película é capaz de flagrar, de seu universo não estabilizado logicamente, as relações sociais em sua dupla dimensão, ideológica e inconsciente, de modo a retornar sobre a realidade como um questionamento a respeito da evidência sob a qual subjaz o equívoco dos sentidos. O “desalinho” aparente d’O fantasma da liberdade não faz mais que retroagir sobre as evidências a que estava submetida a sociedade ocidental em meados do século XX, de forma a içar o equívoco ao nível do intradiscurso. Por sua filiação à FDE, o filme desarranja-rearranja as relações entre a evidência e o equívoco, relação esta que preside o discursivo.

A estética, por sua relação não vinculativa com a realidade empírica, é campo privilegiado para a observação dos processos discursivos relacionados à polissemia: a suspensão dos sentidos correntes faz com que possamos perceber, na materialidade discursiva, aquilo que há de inconsistente no que acreditamos ser a verdade única, una e transparente. O fantasma da liberdade, especialmente na sequência que analisamos, ao mobilizar diferentes sentidos para “fantasma” e “liberdade”, flagrando a heterogeneidade constitutiva de todo dizer, traz aos olhos do espectador uma verdade incômoda: aquela segundo a qual não há o que, do desejo, da linguagem, do discurso e da ideologia, não possa ser desacomodado.

REFERÊNCIAS

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  • ŽIŽEK, S. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
  • ŽIŽEK, S. Como ler Lacan. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
  • 1
    Este trabalho é parte de nossa tese de doutoramento, orientada pela professora Aracy Ernst na Universidade Católica de Pelotas.
  • 3
    Rancière (2009) concebe a Estética como um regime histórico de pensamento das artes que se inaugura no romantismo alemão. Nesse sentido, diferencia-a de outros regimes: o regime ético das imagens e o regime poético ou representativo. Nesse sentido, o termo estética não é sinônimo de arte, mas um dado modo histórico do fazer artístico.
  • 4
    O autor refere-se especificamente à literatura.
  • 5
    Apesar de a noção de formação discursiva ter sido revista por Pêcheux (1990), pensamos ser lícito ainda utilizá-la, embora considerando, com o autor, que, em momentos anteriores a noção “derivou muitas vezes para a ideia de uma máquina discursiva de assujeitamento dotada de uma estrutura semiótica interna e por isso mesmo voltada à repetição” (1990, p. 55). Se, conforme o autor, não se trata de conceber todo e qualquer discurso como independente das redes de memória, i. e., das formações discursivas, mas de concebê-lo como “índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação” (p. 56), é lícito considerar a heterogeneidade e o equívoco como próprios à noção de formação discursiva.
  • 6
    Dependendo da obra considerada, diferentes FD figurarão como exterioridade específica da FDE. No caso do filme em questão, por exemplo, podemos considerar como exterioridades específicas uma FD Psicanalítica, dada a relação do surrealismo com a psicanálise freudiana, e uma FD comunista, conforme evidenciamos na sequência.
  • 7
    A expressão utilizada refere-se à forma como, no cinema, denomina-se aquilo que não pode ser visto na tela, mas que ainda assim compõe a cena.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2018
  • Aceito
    18 Nov 2018
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