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MESAS-REDONDAS SOBRE FUTEBOL NA TELEVISÃO: UMA ANÁLISE DO ETHOS DISCURSIVO

Round Tables about Soccer on Television: An Analysis of Discursive Ethos

Mesas redondas sobre fútbol en la televisión: un análisis del ethos discursivo

Resumo

Este artigo estuda o funcionamento discursivo de mesas-redondas sobre futebol em programas esportivos televisivos. O estudo parte da hipótese de que a legitimidade dos argumentos nesses debates depende, em grande parte, da encenação da imagem dos enunciadores (mediador e comentaristas) por meio da maneira como estes enunciam. Há desde os programas nos quais os comentaristas negam o “clubismo” em nome da “neutralidade” jornalística até programas em que comentaristas se apresentam ao público como “representantes” dos times. Tratando-se de uma pesquisa fundamentada na Análise do Discurso, o trabalho não objetiva prescrever os rumos “adequados” do debate futebolístico, mas verifica como determinados sentidos são validados nesses discursos. Recorrendo-se à teorização de Charaudeau relacionada ao ato de linguagem como encenação e buscando apoio em estudos de Maingueneau e Amossy quanto à noção de ethos, analisam-se os programas Jogo Aberto (Rede Bandeirantes) e Linha de Passe (ESPN Brasil).

Palavras-chave:
Ethos; Discurso; Debate; Futebol

Abstract

We examine the discursive functioning of roundtable discussions about soccer within televised sports programs. The study begins with the hypothesis that the legitimacy of arguments in these debates depends, to a significant extent, on the staging of the enunciators’ image (mediator and commentators) through the way they enunciate. There are programs in which commentators disavow ‘clubism’ in favor of journalistic ‘neutrality,’ as well as programs in which commentators present themselves to the public as ‘representatives’ of the teams. As this research is grounded in Discourse Analysis, our aim is not to prescribe the ‘appropriate’ directions for soccer debates, but rather to verify how specific meanings are validated in these discourses. Drawing on Charaudeau’s theoretical framework related to language as staging and seeking support from Maingueneau’s and Amossy’s studies concerning the concept of ethos, we analyze the programs ‘Jogo Aberto’ (Rede Bandeirantes) and ‘Linha de Passe’ (ESPN Brasil).

Keywords:
Ethos; Discourse; Debate; Soccer

Resumen

Este artículo estudia el funcionamiento discursivo de las mesas redondas sobre fútbol en los programas deportivos televisivos. Se parte de la hipótesis de que, en estos debates, la legitimidad de los argumentos depende, en gran medida, de la escenificación de la imagen de los enunciadores (mediador y comentarista) a través de su forma de enunciación. Hay programas en los que los comentaristas niegan el “clubismo” en nombre de la “neutralidad” periodística a programas en los que los comentaristas se presentan al público como “representantes” de los equipos. Por tratarse de una investigación basada en el Análisis del Discurso, no pretende prescribir las direcciones “apropiadas” para el debate futbolístico, sino verificar cómo se validan ciertos significados en estos discursos. Apoyándonos en la teorización de Charaudeau en relación con el acto del lenguaje como representación y recurriendo a los estudios de Maingueneau y Amossy acerca de la noción de ethos, analizamos los programas “Jogo Aberto” (Rede Bandeirantes) y “Linha de Passe” (ESPN Brasil).

Palabras clave:
Ethos; Discurso; Debate; Fútbol

1 INTRODUÇÃO

Em programas esportivos de TV ou rádio é comum a presença de um gênero relacionado à tipologia argumentativa: o debate, algumas vezes especificado como “mesa-redonda”. Devido à popularidade do futebol no Brasil, a maior parte das pautas dos debates vislumbra um telespectador que se delineia a partir da figura do torcedor de um time de futebol: alguém que deseja acompanhar a repercussão dos jogos realizados, as notícias e comentários sobre contratações de jogadores, as polêmicas de arbitragem etc. Do ponto de vista discursivo, a relação comentaristas-público chama a atenção, dentre outros fatores, por sua caracterização (ou talvez certa aparência) argumentativa, sobretudo quando questões como “qual time jogou/joga/é melhor?” são levantadas. Considerando o ato de linguagem como uma encenação que coloca em destaque sujeitos para os quais são atribuídos determinados papéis sociais, pode-se indagar se, na medida em que o telespectador é representado imaginariamente como o torcedor de um certo time, a argumentação funcionaria efetivamente nesse quadro como a busca de adesão a determinadas teses. Hipoteticamente, após uma derrota por 1x0, um torcedor do Vasco estaria disposto a ser convencido de que seu time é inferior ao rival Flamengo, ou vice-versa? Em função disso, conjectura-se neste artigo que a configuração discursiva das mesas-redondas televisivas sobre futebol, para além da questão de mera concordância/discordância em relação a opiniões dos comentaristas, rege certos modos de identificação com a representação do público que se engendra em cada programa. Dado que a análise sobre tais questões deve considerar fundamentalmente o modo como o ato de linguagem encena a relação entre os seus protagonistas, vale destacar a função do ethos discursivo na legitimação do que se enuncia. Ainda mais precisamente, defende-se aqui a produção da imagem do enunciador como fator-chave no movimento de identificação com um público específico, sendo, por consequência, aspecto determinante para a escolha por assistir a uma e não a outra mesa-redonda.

No âmbito do debate futebolístico, as atrações televisivas são bastante variadas: há desde os programas nos quais os comentaristas negam o “clubismo” em nome de uma suposta neutralidade jornalística até os programas em que os comentaristas apresentam-se ao público como uma espécie de representantes dos times de futebol, torcedores que se dirigem a torcedores. Considerando que diferentes contratos comunicativos são encenados nas diversas mesas-redondas, uma análise sobre os ethé nos quais apostam os programas esportivos pode ser significativa para a compreensão do funcionamento discursivo que os atos de linguagem colocam em jogo.

Para oferecer algumas possibilidades de resposta a questões suscitadas acima, recorre-se a teorizações de Patrick Charaudeau (2010CHARAUDEAU, P. Discurso das mídias. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2010.; 2016a; 2016b) relacionadas ao ato de linguagem como encenação, bem como a reflexões do autor acerca das especificidades do discurso midiático. No que diz respeito ao ethos discursivo, noção fundamental para os propósitos deste trabalho, fundamenta-se, sobretudo, em estudos de Ruth Amossy (2013AMOSSY, R. O ethos na intersecção das disciplinas: retórica, pragmática, sociologia dos campos. In: AMOSSY, R. (org.). Imagens de si no discurso. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2013.) e Dominique Maingueneau (2006MAINGUENEAU, D. Discurso Literário. São Paulo: Contexto, 2006.; 2013).

Postas essas questões, o artigo abordará questões de cunho teórico nas próximas duas seções. Em um primeiro momento, explorar-se-á a noção de ato de linguagem como encenação, além das condições de produção discursivas que se impõem à enunciação. Em seguida, o foco será a noção de ethos, particularmente em concordância com o que se teoriza sobre tal questão no âmbito da Análise do Discurso. Posteriormente, apresentar-se-á uma análise de dois trechos de programas televisivos esportivos: um do canal aberto Rede Bandeirantes, chamado Jogo Aberto, e outro do canal por assinatura ESPN Brasil, chamado Linha de Passe. Observar-se-á, nas considerações finais, que a escolha desses programas como objeto de análise se explica, em parte, pelos modos de constituição/encenação da relação discursiva entre programa e público significativamente diferentes nos casos em tela.

2 O ATO DE LINGUAGEM COMO ENCENAÇÃO

Charaudeau (2016aCHARAUDEAU, P. Linguagem e discurso: modos de organização. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2016a.), ao discorrer sobre as diferentes atitudes analíticas diante da linguagem, define, sem apontar correntes teóricas específicas, duas tendências mais gerais em relação à delimitação do objeto. A primeira delas “[...] consiste em conceber o ato da linguagem como produzido por um emissor-receptor ideal, em uma circunstância de comunicação neutra” (Charaudeau, 2016a, p. 16); dessa posição decorreria a concepção de linguagem como um objeto transparente, de acordo com o autor. A segunda posição teórica é aquela que tende a conceber “[...] o ato de linguagem como produzido por um emissor determinado, em um dado contexto sócio-histórico” (Charaudeau, 2016a, p. 17). Dessa posição, os “seres de fala” são concebidos em suas diferenças, e não pela semelhança que desencadearia um “ideal” comunicativo. O campo semiolinguístico, tal como Charaudeau (2016a) propõe, não exclui nenhuma das duas atitudes, tendo em vista qua tanto a discordância, quanto a concordância, marcam o funcionamento da linguagem: “afirmação de uma especificidade e de um consenso que se interpelam de forma dialética no mesmo ato linguageiro” (Charaudeau, 2016a, p. 20). Dessa perspectiva, analisar a significação é questionar o “do que a linguagem fala”, mas constitutivamente integrado ao “como fala a linguagem”. Nesse percurso, investigar os sentidos que se produzem deve pressupor a consideração das condições de produção/ interpretação do ato de linguagem.

De acordo com Charaudeau (2016aCHARAUDEAU, P. Linguagem e discurso: modos de organização. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2016a.), dois aspectos são fundamentais às condições de produção/interpretação do ato de linguagem: a relação que os sujeitos (enunciadores e interpretantes) mantêm frente ao propósito linguageiro e a relação estabelecida entre esses sujeitos, um diante do outro. O que o teórico chama de “possíveis interpretativos” em um ato de linguagem determina-se, dessa maneira, a partir de saberes (mais precisamente, hipóteses) tanto sobre o propósito do ato, quanto sobre os seus protagonistas.

O saber que os protagonistas da linguagem constroem sobre os diferentes propósitos contidos nas trocas comunicativas não é ligado apenas às referências ou experiências vividas por cada um deles. Esse saber depende igualmente dos saberes que tais sujeitos comunicantes supõem existir entre eles e que constituem os filtros construtores de sentido (Charaudeau, 2016aCHARAUDEAU, P. Linguagem e discurso: modos de organização. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2016a., p. 31).

Tendo em vista essas considerações introdutórias, pode-se começar a compreender o caráter de “encenação” do ato de linguagem. Conforme Charaudeau (2016aCHARAUDEAU, P. Linguagem e discurso: modos de organização. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2016a.), um ato de linguagem não integra meramente um Eu enunciador e um Tu destinatário (“seres de fala”, internos ao espaço do dizer), mas pressupõe também um Eu comunicante e um Tu interpretante (“seres sociais”, ou melhor, instâncias que se relacionam com a atribuição de diversos papéis sociais, cujo funcionamento legitima, ou não, determinados propósitos enunciativos). Se os saberes que circulam entre os sujeitos se constituem como hipóteses, as suposições também incidem sobre os papéis - expressão-chave no que concerne à noção de encenação - que cada sujeito desempenha no ato linguageiro. Para Charaudeau (2016a, p. 75), é como se o enunciador recorrentemente se perguntasse: “Como é que vou/devo falar (ou escrever), levando em conta o que percebo do interlocutor, o que imagino que ele percebe e espera de mim, do saber que eu e ele temos em comum, e dos papéis que eu e ele devemos desempenhar”.

A proposta de Charaudeau acerca do ato de linguagem como encenação envolve, ainda, diversos outros fatores. A este artigo, devido à limitação de espaço e de escopo, interessa, especificamente, o modo como os papéis dos enunciadores (os comentaristas participantes das mesas-redondas sobre futebol) são imaginariamente representados e produzidos na enunciação. Consequentemente, as imagens sobre os papéis comunicativos do telespectador também entram em cena. Afinal, quando um programa “aposta” em um ethos determinado, mira-se a captação de um público que se delineia, do mesmo modo, a partir da atribuição de papéis específicos.

Outro teórico da Análise do Discurso que também recorre à metáfora da encenação para caracterizar as trocas comunicativas é Dominique Maingueneau (2015MAINGUENEAU, D. Discurso e Análise do Discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.). Para esse autor, que propõe a expressão “cena de enunciação”, certas noções como “situação de enunciação” ou “situação de comunicação” podem vir a indicar perspectivas de ordem estritamente linguística ou puramente sociológica, respectivamente. O termo “cena”, de acordo com Maingueneau (2015, p. 117), “apresenta ainda a vantagem de poder referir ao mesmo tempo um quadro e um processo”: o quadro enquanto um espaço delimitado em que as peças são representadas e o processo enquanto sequência de ações, verbais e não verbais, que se desenvolvem nesse espaço. Na proposição teórica de Maingueneau, tem-se o quadro definido, em parte, pelas restrições do gênero do discurso. No entanto, o quadro é também gerido pelas singulares formas de se encenar a enunciação, constituindo o que o autor denomina “cenografia”.

Apresentadas algumas questões a respeito do ato de linguagem como encenação, passa-se à articulação da proposta teórica especificamente ao discurso midiático. Para isso, fundamenta-se novamente em Charaudeau (2010CHARAUDEAU, P. Discurso das mídias. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2010.), sobretudo, em sua obra Discurso das Mídias. Em um dos capítulos desta obra, há uma discussão sobre estratégias de encenação da informação, algumas delas relacionadas, inclusive, ao ato de comentar o acontecimento, tópico importante para o tema deste artigo. Comparando o comentário com o relato, no âmbito midiático, e rechaçando uma divisão estanque e estável entre os dois procedimentos, Charaudeau (2010, p. 176) afirma que “[...] o relato é aparentemente menos agressivo que o comentário”. Isso ocorre porque o relato propõe uma visão de mundo da ordem do constativo, constitui um estar-aí e demanda do interlocutor, a princípio, apenas uma “tomada de conhecimento”. Quando um jornalista comenta, por outro lado, põe-se o sujeito interpretante em questão: “[...] exige uma atividade intelectiva, um trabalho de raciocínio, uma tomada de posição contra ou a favor, e desta atividade não há ninguém, no fim da troca, que saia incólume” (Charaudeau, 2010, p. 176). O autor acrescenta que a encenação do comentário midiático não passa apenas pela necessidade de parecer credível; é preciso despertar o interesse do consumidor da informação, implicando sua afetividade. Esse é um dos fatores pelos quais o presente trabalho recorre à reflexão sobre o ethos. Nessa abordagem, que dá valor não apenas ao logos, mas também aos processos de identificação a partir da representação imaginária sobre quem enuncia, torna-se crucial demonstrar como os programas esportivos, em seus debates, põem em cena determinados papéis sociais atribuídos aos sujeitos.

Segundo Charaudeau (2010CHARAUDEAU, P. Discurso das mídias. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2010.), as mídias de informação, além de relatar e comentar o acontecimento, também o “provocam”. Provocar, aqui, não tem o sentido de tramar uma situação futura, mas contribuir para a realização do debate social, “[...] dispondo num lugar particular [...] dispositivos que proporcionam o surgimento e o confronto de falas diversas” (Charaudeau, 2010, p. 188). Consultas a especialistas de determinada área, debates sobre perspectivas futuras, entrevistas diversas etc. são algumas das produções midiáticas em que o acontecimento, mais do que meramente “comentado”, é provocado. Em mesas-redondas de programas televisivos sobre futebol, certas pautas aproximam-se mais do comentário propriamente dito, por exemplo, quando os comentaristas avaliam, de modo pontual, a atuação da Seleção Brasileira em um jogo ocorrido. O acontecimento é provocado, por exemplo, quando se propõe a avaliação dos rumos do futebol brasileiro diante da disparidade de poderio financeiro em relação a outros países, que afeta a venda cada vez mais precoce de jogadores brasileiros ao exterior; hipoteticamente, recorre-se a economistas, a especialistas em tática futebolística, a ex-jogadores, a profissionais que trabalham com a formação de jogadores etc., todos eles aptos, do ponto de vista do ato de linguagem que se encena, a contribuir para a produção do acontecimento.

3 A ABORDAGEM DISCURSIVA DO ETHOS

Dois pontos de partida são fundamentais à abordagem discursiva do ethos. Em primeiro lugar, compreende-se que o que está em jogo no funcionamento de um discurso não é uma mera “transmissão de informações”; o modo como se enuncia é determinante para a produção de determinados sentidos e não outros. Em segundo lugar, qualquer ato de linguagem, seja ele oral ou escrito, seja ele argumentativo ou não, engendra um ethos. Para Charaudeau (2016bCHARAUDEAU, P. A conquista da opinião pública. São Paulo: Contexto, 2016b., p. 72), “não há, pois, ato de linguagem que não passe pela construção de uma imagem de si. Desde o instante em que se fala, aparece, transparece, emerge de si, uma parte do que se é através do que se diz”.

O conceito de ethos tem uma trajetória bastante longa nos estudos da linguagem. Pode-se remontar, inicialmente, à Retórica Clássica, em que o ethos compartilhava com o logos e com o pathos o papel de elemento básico de todo discurso argumentativo. De acordo com Eggs (2013EGGS, E. Ethos aristotélico, convicção e pragmática moderna. In: AMOSSY, Ruth (org.). Imagens de si no discurso. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2013., p. 41), o logos, concebido como o próprio discurso em suas estratégias de raciocínio, inferência, argumentação, “[...] convence em si e por si mesmo, independente da situação de comunicação concreta, enquanto o ethos e o pathos estão sempre ligados à problemática específica de uma situação e, sobretudo, aos indivíduos concretos nela implicados”. Como uma abordagem discursiva não exclui as condições de produção em que o ato de linguagem se efetiva, ethos e pathos, na medida em que se relacionam com os participantes da interação, não podem ser descartados: o ethos está associado à figura do enunciador, e o pathos constitui-se pelas disposições, emoções, identificações do auditório.

Poder-se-ia supor, à primeira vista, que o ethos seja fruto de um conhecimento extradiscursivo sobre o enunciador. Para a Retórica aristotélica, no entanto, trata-se de uma imagem que se produz como efeito do próprio discurso, das variadas possibilidades linguísticas e estilísticas de construir os enunciados. Essa diferenciação entre um saber extradiscursivo acerca do enunciador e a imagem que se edifica a partir do discurso não é exclusividade da perspectiva abordada acima. Podemos nos referir, por exemplo, a Ducrot (1987DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987.), que aponta, na enunciação, a distinção entre locutores: o locutor λ, correspondente ao “ser do mundo”, e o locutor L, “ser do discurso”, responsável pelo dizer. Trata-se de um quadro teórico em que, novamente, o ethos não é apreendido a partir do autoelogio ao “ser do mundo” propriamente dito.

Ainda no que concerne à conceituação do ethos na Retórica Clássica, vale destacar as qualidades que eram almejadas para que, com o discurso, o orador provocasse uma boa impressão: a phrónesis, vinculada à imagem de razoabilidade, ponderação, sabedoria; a areté, vinculada à imagem de honestidade, sinceridade, confiabilidade; e, por fim, a eúnoia, vinculada à imagem de benevolência, solidariedade, agradabilidade. De acordo com Eggs (2013EGGS, E. Ethos aristotélico, convicção e pragmática moderna. In: AMOSSY, Ruth (org.). Imagens de si no discurso. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2013.), as características se inter-relacionam com recorrência; a phrónesis, por exemplo, associa-se mais diretamente ao logos, enquanto a eúnoia participa efetivamente dos efeitos ligados ao pathos.

Introduzidos alguns aspectos básicos da conceituação de ethos, o propósito deste artigo demanda uma entrada mais específica na abordagem praticada pela Análise do Discurso. Dominique Maingueneau (2006MAINGUENEAU, D. Discurso Literário. São Paulo: Contexto, 2006.; 2013) não se contrapõe à Retórica Clássica no que diz respeito à constituição do ethos no curso da enunciação (e não como resultado de um conhecimento extradiscursivo). Porém, algumas diferenças importantes precisam ser destacadas. O teórico francês não se refere ao ethos exclusivamente na análise de textos classificados como argumentativos. Todas as manifestações linguísticas, orais ou escritas (mesmo aquelas em que a figura do enunciador aparentemente se apaga), engendram um ethos. Conforme a perspectiva de Maingueneau, outro deslocamento realizado pela Análise do Discurso em relação ao conceito de ethos permite compreender que a imagem do enunciador, embora possa ser “planejada” em certos contextos, não se reduz a cálculos sobre os quais os sujeitos têm total controle; para o autor, o ethos se constitui como efeito da inscrição em uma dada formação discursiva. “Além da persuasão por argumentos, a noção de ethos permite, de fato, refletir sobre o processo mais geral da adesão de sujeitos a uma certa posição discursiva” (Maingueneau, 2013, p. 69).

A teorização de Maingueneau acerca do ethos discursivo aponta recorrentemente dois aspectos que se associam à imagem do enunciador de um discurso: o “caráter” e a “corporalidade”. O autor os define da seguinte forma:

O “caráter” corresponde a um conjunto de características psicológicas. A “corporalidade”, por sua vez, associa-se a uma compleição física e a uma maneira de se vestir. Além disso, o ethos implica uma maneira de se movimentar no espaço social, uma disciplina tácita do corpo apreendida mediante um comportamento global (Maingeueneau, 2006, p. 216-217).

Faz-se a ressalva de que o “caráter”, embora esteja definido como conjunto de características psicológicas, refere-se a uma construção de leitura, e não a um escrutínio empírico de aspectos psicológicos que se poderia realizar. Trata-se, antes, da representação sobre a constituição psicológica do sujeito que enuncia, dependendo, portanto, do modo como este se mostra ao interlocutor no fio do discurso. Da mesma forma, a corporalidade transcende a um corpo “referencial”; pode-se, por exemplo, imaginar um corpo ao ouvir determinada voz e suas inflexões. Segundo Maingueneau (2010MAINGUENEAU, D. Doze conceitos em Análise do Discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2010., p. 80): “[...] a enunciação constrói certa “imagem” do locutor e configura um universo de sentido que corresponde a essa imagem”.

Embora se defenda que o ethos se constitui no ato de linguagem, não se pode ignorar, de acordo com Maingueneau (2013MAINGUENEAU, D. Ethos, cenografia e incorporação. In: AMOSSY, R (org.). Imagens de si no discurso. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2013.), que o interlocutor constrói representações acerca do ethos do enunciador antes mesmo que este enuncie (assiste-se, por exemplo, à propaganda de um político de determinado partido já com uma expectativa relacionada a seu ethos). Levando isso em consideração, o teórico propõe que o “ethos efetivo” resulta da interação entre diversas instâncias: o ethos pré-discursivo, que é formado a partir das representações prévias sobre a imagem do enunciador, e o ethos discursivo, que pode ser “dito” (referências explícitas ao enunciador, alusão a cenas de enunciação validadas) ou “mostrado” (a partir de variados mecanismos enunciativos que, de forma não explícita, sugerem determinada caracterização).

O ethos, na abordagem de Maingueneau, funciona como elemento que ajuda a conferir legitimidade ao discurso. Nesse sentido, não é de maneira aleatória que um específico modo de enunciação torna-se adequado, ou mesmo “natural”, a determinado ato de linguagem. Ruth Amossy (2013AMOSSY, R. O ethos na intersecção das disciplinas: retórica, pragmática, sociologia dos campos. In: AMOSSY, R. (org.). Imagens de si no discurso. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2013., p. 126), estabelecendo relações entre o ethos e a noção de estereótipo, afirma que o enunciador “[...] adapta sua apresentação de si aos esquemas coletivos que ele crê interiorizados e valorizados por seu público-alvo”. Isso significa supor que a aparente naturalidade a partir da qual um modo de enunciação se “adéqua” a um discurso só se efetiva em conformidade com representações imaginárias que se cristalizam e que passam a ser aceitas como válidas pelos sujeitos. Convergindo com a perspectiva de Amossy, Maingueneau (2011, p. 99) afirma que “o poder de persuasão de um discurso consiste em parte em levar o leitor a se identificar com a movimentação de um corpo investido em valores socialmente especificados”.

Outra questão relacionada à abordagem discursiva do ethos também precisa ser brevemente apresentada, visto que é fundamental ao propósito deste artigo: trata-se da interação ethos-enunciatário. Longe de supor que, sendo o ethos um atributo do enunciador, o público teria um papel meramente “receptor” (instância que concordaria ou não com a argumentação, que se identificaria ou não com o texto, de forma mais geral), Maingueneau (2006MAINGUENEAU, D. Discurso Literário. São Paulo: Contexto, 2006.; 2013) propõe a noção de “incorporação”. Para o autor, o modo de enunciar confere caráter e corporalidade ao enunciador, mas o circuito não se encerra aí: o interlocutor está sujeito a assimilar um conjunto de esquemas que correspondem a uma maneira específica de se relacionar com o mundo. Essa “incorporação” do ethos é fator determinante para a singularidade de uma formação discursiva, na medida em que põe em cena mecanismos de identificação entre os sujeitos.

Amossy (2013AMOSSY, R. O ethos na intersecção das disciplinas: retórica, pragmática, sociologia dos campos. In: AMOSSY, R. (org.). Imagens de si no discurso. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2013., p. 125), reforçando a concepção do ethos como construção de leitura, também confere lugar de protagonismo aos enunciatários no que diz respeito à produção do ethos. Para que as representações sejam reconhecidas pelo auditório, “[...] para parecerem legítimas, é preciso que sejam assumidas em uma doxa, isto é, que se indexem em representações partilhadas. É preciso que sejam relacionadas a modelos culturais pregnantes”. Para a Análise do Discurso, como se pode observar, o estudo sobre o ethos só é possível a partir de uma concepção intersubjetiva do ato de linguagem; a imagem do enunciador deixa de ser “do” enunciador e passa a se constituir na relação com os papéis sociais que se encenam na enunciação.

4 ANÁLISE DE DEBATES: JOGO ABERTO E LINHA DE PASSE

Conforme explicitado na introdução deste artigo, a proposta de análise se volta a um gênero argumentativo, o debate, denominado por alguns programas televisivos como “mesa-redonda”. Os dois programas a serem analisados, se comparados, fazem emergir a encenação de distintas relações com o público, isto é, são postos em cena distintos papéis sociais, tanto para os enunciadores, na constituição de um ethos em cada atração, quanto para os telespectadores, projetados também em conformidade com os ethé que entram em funcionamento. Na análise a seguir, pretende-se não apenas indicar quais seriam esses papéis sociais engendrados pelo discurso, mas fundamentalmente demonstrar como dadas representações são sugeridas nos atos de linguagem.

O programa Jogo Aberto, da Rede Bandeirantes, canal aberto de TV, existe desde o ano de 2007 e é apresentado por Renata Fan. A atração conta com uma parte inicial, dedicada a reportagens, e com o debate (com duração aproximada de trinta minutos), que encerra o programa. Os trechos trazidos para a análise foram transcritos do programa que foi ao ar no dia 8 de outubro de 2018, uma segunda-feira. A escolha do dia da semana não é aleatória, tendo em vista que às segundas-feiras os debates discutem a rodada de jogos do fim de semana e reverberam sentidos outros relativamente aos produzidos durante a realização da rodada analisada.

Após uma reportagem acerca da liderança do Campeonato Brasileiro e da vitória de 2 a 0 do Palmeiras sobre o São Paulo ocorrida dois dias antes, a apresentadora Renata dá início ao debate. Estão presentes seis comentaristas: Héverton Guimarães (por vídeo, em Belo Horizonte-MG), Paulo Roberto Martins, Ulisses Costa, Chico Garcia, Denilson “Show” (como é denominado no programa) e Ronaldo Giovanelli, sendo os dois últimos ex-jogadores de futebol. Apresenta-se abaixo o trecho que abre o debate:

Renata Fan: Ai, ai, ai... bom, vamo que vamo... não dá pra falar absolutamente nada de um time que é líder do Campeonato Brasileiro, que tem muita chance na Libertadores, Palmeiras tá com tudo... Héverton Guimarães, pra você o primeiro presente não é legal, né?

[Héverton Guimarães faz sinal de negação com a cabeça]

Renata Fan: É, por enquanto, o Atlético Mineiro não tem chance de título. Vai depender da próxima rodada.

[Héverton Guimarães parece expressar calma, tranquilidade]

Renata Fan: Isso, vira Buda, agora...

Ulisses Costa: Pensei que ia falar outra coisa... [todos riem]

A apresentadora, no início da fala de abertura do debate, mostra-se ao público como alguém que, de alguma forma, envolve-se emocionalmente com os jogos e com a situação do campeonato, como os torcedores, em geral, também se envolvem; prova disso é que precisa se “afastar”, por assim dizer, da repercussão afetiva - “bom, vamo que vamo...”-para apontar o tópico inicial do debate. Vale destacar, desde já, que o tom do programa se constrói justamente pela proximidade afetiva dos comentaristas com determinados times. Em seguida, o primeiro comentário de Renata sugere, de maneira bastante significativa para esta análise, certa falta de necessidade do debate: “não dá pra falar absolutamente nada de um time que é líder do Campeonato Brasileiro [...] Palmeiras tá com tudo”. A suposta inexistência de discussão faz ressoar a conversa cotidiana entre torcedores, em que as teses centrais costumam ser: “meu time é melhor/está melhor/jogou melhor que o seu”. Não se trata de afirmar, com essa relação, que a apresentadora é palmeirense (ela é declaradamente torcedora do Internacional), mas sim começar a demonstrar que o ato de linguagem empreendido pelo programa em questão encena a discussão entre torcedores. Aposta-se, portanto, em um ethos que se caracteriza pelo não distanciamento emotivo em relação aos times e às partidas.

A primeira interpelação a um dos comentaristas, Héverton Guimarães, corrobora o papel social de torcedor, predominante na encenação do programa. Renata pede que o comentarista, em Minas Gerais, confirme se a situação “não está legal”, afinal o Atlético Mineiro não teria mais chance de título. O que se quer saber do comentarista não é, nesse momento, a sua análise das partidas, mas sim como ele se sente (como torcedor, embora isso não seja dito explicitamente). A reação não verbal de Héverton - silêncio, sinal de negação e posterior expressão de tranquilidade - confirma o ethos do torcedor apaixonado pelo time, pois responde efetivamente aos possíveis sentimentos sobre os quais Renata o interroga. Após as expressões de Héverton, Renata brinca: “Isso, vira Buda, agora... [grifo nosso]”. Implicitamente, a brincadeira pode sugerir que o comentarista não tem o costume de ser tranquilo em suas intervenções (e, de fato, as discussões no Jogo Aberto são bastante tumultuadas). Ulisses Costa dá continuidade à brincadeira de Renata Fan e, por perceber a proximidade sonora de “Buda” com outra palavra, diz: “Pensei que ia falar outra coisa”. Como já destacado, a interação entre os participantes do programa encena a conversa entre torcedores, em que são recorrentes as “zoações” mútuas. Nesse cenário, o telespectador é projetado como o torcedor propriamente dito, não como sujeito que está disposto a considerar argumentos para aderir ou aumentar a adesão a certas teses. Embora os comentaristas discutam entre si e o telespectador seja, à primeira vista, um terceiro que testemunha o debate, pode-se supor que a proposta do programa seja captar o público colocando-se no lugar do torcedor, ou melhor, trazendo o telespectador-torcedor, ausente empiricamente, para “dentro” da discussão.

O trecho a seguir, da mesma edição do programa, mas em um momento posterior, trata mais especificamente da situação do Corinthians, que havia sido derrotado em casa pelo Flamengo por 3 a 0. Nele, podem ser destacados outros elementos característicos do Jogo Aberto, além de reforçadas algumas das questões já apontadas.

Renata Fan: Denilson Show, você gostaria de falar alguma coisa para Ronaldo Giovanelli em relação...

Ronaldo Giovanelli: [gargalhadas, interrompendo Renata]

Paulo Roberto: [risos] Mas por quê? Por quê?

Ronaldo Giovanelli: Mas vai falar o que pra mim, menino! [gritando] Bicampeão paulista, campeão brasileiro, vai falar o quê? Que que vai falar, rapaz? [sonoplastia: música de axé “Bota pra quebrar”]

Denilson “Show”: [olha com pouco-caso enquanto Ronaldo fala]

Ronaldo Giovanelli: Ó, psiu... só avisa pro Flamengo pra quarta-feira ir disputar a final, rá, rá, rá... É o Curíntia, véi! Então não tem ninguém que liga pra esse campeonatinho, pra esse Brasileirinho aí, Renata! [sonoplastia: marcha fúnebre]

A fala inicial (considerando a abertura de um novo tópico) da apresentadora, como se observa, funciona como uma incitação à discussão, não a qualquer discussão, e sim àquela, fervorosa, entre torcedores de times rivais, que estão interessados em afirmar qual dos times é melhor. O telespectador compreende a pergunta de Renata Fan a Denilson “Show”, ex-jogador de Palmeiras e de São Paulo, como um atiçamento, uma provocação, porque sabe, provavelmente, que Ronaldo Giovanelli foi goleiro e é ídolo do Corinthians. A mediação realizada pela apresentadora não funciona apenas calcada na transição entre tópicos e na distribuição dos turnos de fala; recorrentemente age-se no sentido de acirrar os ânimos e estimular a discussão acalorada entre os comentaristas. Em se tratando dos turnos de fala, uma característica relevante é a frequente interrupção: raras são as vezes em que a fala de um comentarista se estende por mais de dois ou três períodos. As interrupções, como se observa no trecho transcrito, ocorrem constantemente em meio a gritos e gargalhadas. O viés descontraído (por vezes, humorístico) do debate, em conformidade com a encenação de uma conversa informal entre torcedores, é reforçado por outro elemento: as inserções da sonoplastia. A marcha fúnebre, por exemplo, é tocada quando o comentarista cujo time perdeu está falando; barulhos como o de máquina registradora (para assuntos financeiros), cavalo relinchando (quando há um “coice” de algum comentarista) etc., são também recorrentes. Às vezes, toca-se uma música em meio a falas simultâneas (vide o axé “Bota pra quebrar”), o que dificulta, em parte, a compreensão do que é dito. Todas as características mencionadas se associam ao ethos descontraído do programa, que se esforça por se aproximar do “povo”, do torcedor que chega ao trabalho na segunda-feira e “zoa” (ou é “zoado” pelos) seus colegas devido aos jogos da rodada.

Uma última característica que não se pode deixar de mencionar concerne ao registro utilizado, em geral, pelos participantes do programa Jogo Aberto. A expressão empregada por Ronaldo Giovanelli - É o Curíntia, véi!!! - é ilustrativa do grau de formalidade que se identifica na atração. Não se trata de um fator aleatório, pois o registro linguístico também funciona no sentido de validar a cena empreendida pelo ato de linguagem em questão. Algumas vezes, inclusive, o comentarista Chico Garcia emprega uma palavra relativamente menos cotidiana e, em seguida, é interpelado jocosamente por Denilson “Show”; não à toa Chico Garcia encarna o “personagem” do comentarista sério, elegante, refinado, uma espécie de contraponto que integra o viés humorístico já destacado.

Realizadas algumas considerações analíticas sobre o debate do Jogo Aberto, passa-se agora à análise de um trecho do programa Linha de Passe, exibido predominantemente às segundas-feiras pelo canal por assinatura ESPN Brasil. A atração existe desde 1998 e, no ano da edição em questão, tinha como mediadores, alternadamente, Paulo Andrade e William Tavares. O trecho abaixo foi transcrito de um programa que foi ao ar, assim como o Jogo Aberto, no dia 8 de outubro de 2018:

[Vinheta de abertura] Paulo Andrade: Olá, muito boa noite! Estamos chegando... Edição desta segunda-feira do Linha de Passe no ar, logo depois de Fluminense quatro, Paraná zero. A passos largos o Paraná caminha à segunda divisão, a volta para a segunda divisão do futebol do Brasil. E nós estamos no meio da rodada, na verdade, amanhã tem clássico, clássico carioca, tem Botafogo e Vasco ainda... e NÃO É o encerramento da rodada ainda, tem mais um jogo adiado, Cruzeiro e [expressão de dúvida]...

Juca Kfouri: Ceará.

Paulo Andrade: Adiado para o fim desse mês.

Juca Kfouri: Dia vinte e quatro.

Paulo Andrade: Dia vinte e quatro, mais pro fim do mês agora de outubro. Estamos chegando! Linha vinte e oito, a nossa hashtag pra você participar... Vivemos a rodada vinte e oito do Campeonato Brasileiro, o Palmeiras mostrou MUITA força, acabou com o tabu, acabou com o jejum, venceu o São Paulo no Morumbi... O que será que esse jogo vai trazer de sequelas, de consequência para a sequência [percebendo a rima] do Campeonato Brasileiro? Grande vitória do Flamengo também, impondo a maior derrota do Corinthians em sua arena... Corinthians que enfrenta o Cruzeiro na decisão da Copa do Brasil. Claro que este tema vai passar pelo Linha de Passe que está no ar, que está chegando, comigo, com o Arnaldo Ribeiro, o Gian Oddi, com o Juca Kfouri e com o Mauro Cézar, com você, fã de esportes, pela hashtag linha vinte e oito. Responda pelo Linha ESPN, que é o nosso endereço, o endereço do programa no Twitter: quem é a maior ameaça ao Palmeiras? Que é o líder do Campeonato Brasileiro... quem é a maior ameaça a essa liderança do Palmeiras? Flamengo, Inter, São Paulo ou Grêmio? Boa noite, Juca Kfouri, tudo bem?

Considerando a fala inicial do apresentador Paulo Andrade, pode-se observar um tom, de certa forma, didático: com uma fala cadenciada, o mediador inicia o programa contextualizando a rodada, mencionando, de maneira organizada, a situação de cada time, inclusive com a retomada parafrástica de algumas das informações principais. A relação com o público começa a delinear-se de modo significativamente diferente (comparando-se com o Jogo Aberto); o propósito não é encenar a discussão informal entre torcedores, e, nesse sentido, representa-se o telespectador com o papel de alguém que será informado, jornalisticamente (supõe-se), e apto a refletir “distanciadamente”, em conformidade com a encenação que se empreende, sobre os temas a serem debatidos. Seria uma situação, no mínimo, insólita se, por exemplo, uma conversa entre torcedores no boteco se iniciasse com a “contextualização da rodada”; por outro lado, insinuações sobre a inferioridade do time adversário, semelhantes às que se fazem presentes no debate do Jogo Aberto, são “permitidas” para a abertura de diálogo nesse contexto específico.

Destaca-se, também, no trecho trazido para a análise, o modo como se caracterizam as passagens do turno de fala. Ao contrário do que ocorre no Jogo Aberto, as interrupções, quando acontecem no Linha de Passe, funcionam mais como complementaridade do que como quebra de linha de raciocínio: “Paulo Andrade: [...] e não é o encerramento da rodada ainda, tem mais um jogo adiado, Cruzeiro e.../ Juca Kfouri: Ceará/ Paulo Andrade: Adiado para o fim desse mês/ Juca Kfouri: Dia vinte e quatro [...]”. Há certa sincronização entre as falas (o que não significa concordância de opiniões), característica que se opõe diametralmente às falas sobrepostas frequentes no Jogo Aberto. Transparece, no Linha de Passe, a imagem de um mediador que realiza as passagens de turno de uma maneira ordenada e serena: “Boa noite, Juca Kfouri, tudo bem?”.

Na análise sobre o Jogo Aberto, ressaltou-se a recorrência de um registro linguístico menos formal. No programa Linha de Passe, pode-se afirmar que há o emprego de um registro relativamente mais formal, se comparado à atração da Rede Bandeirantes. Em certos momentos, chega-se a produzir certa imagem de “sofisticação” quanto ao emprego de recursos linguísticos; por exemplo, quando o apresentador diz “[...] consequência para a sequência” e parece expressar imediatamente a percepção da rima. Nessa mesma edição do programa, após Mauro Cezar Pereira se referir a um “pênalti como esses que o Juca gosta”, o comentarista Juca Kfouri diz “[...] foi mexer comigo, cometeu um cacófato, bem feito!” e todos riem. Todos esses elementos ajudam a constituir o ethos característico do programa: diferentemente do Jogo Aberto, em que a proximidade com o popular é uma das apostas de captação do público, a produção da imagem de um saber fundamentado, apurado, é um dos fatores que reivindicam legitimidade ao ato de linguagem encenado no programa Linha de Passe.

Pode-se comparar também a organização espacial dos programas, como elemento que integra de forma significativa o ato de linguagem. No Jogo Aberto, a apresentadora fica predominantemente de pé e os comentaristas sentam-se em um semicírculo com uma curvatura tão mínima que o resultado é quase uma linha reta. No Linha de Passe, há uma mesa retangular; o apresentador fica ao centro, em um dos lados menores do retângulo, e os quatro comentaristas se dividem nos dois lados maiores; a focalização da câmera faz, muitas vezes, com que o retângulo passe ao público a impressão de ser um triângulo, com o apresentador na ponta. Essas configurações espaciais são relevantes para o modo como os debates fluem: na primeira atração, os comentaristas não estão de frente entre si e isso faz com que, frequentemente, suas falas “disputem” a atenção da apresentadora (que se posiciona de frente em relação aos demais); a segunda, por sua vez, propicia um ambiente de fala relativamente “controlado”, pois quando um dos comentaristas fala gera-se uma focalização natural: todos os outros o encaram, mais ou menos, de frente, embora possa haver interrupções e falas simultâneas em alguns momentos.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerar o ato de linguagem como encenação demanda que a exploração analítica de um discurso caracterize os “papéis” atribuídos aos sujeitos, tanto enunciadores, quanto destinatários da enunciação. O conceito de ethos, como se pôde observar, tem bastante produtividade nessa abordagem, tendo em vista que diz respeito à imagem do enunciador e, além disso, envolve determinadas projeções acerca do enunciatário.

A teorização sobre o ethos, especificamente na Análise do Discurso, possibilita que os mecanismos linguísticos e enunciativos sejam relacionados às condições de produção dos discursos. Nessa perspectiva, os papéis encenados pelos sujeitos no ato de linguagem resultam de projeções imaginárias, tanto sobre o propósito comunicativo, quanto sobre as posições sociais desses sujeitos em relação. Cada discurso legitima, em sua prática, o que se considera, por exemplo, como o verdadeiro “jornalismo esportivo”, uma agradável “mesa-redonda futebolística”, ou, mais amplamente, a função de uma atração televisiva. Tais posições, na maioria das vezes, não são ditas explicitamente, mas estão localizadas nas especificidades dos atos de linguagem, nas diversas formas de encenar - levando em consideração o objeto em questão - um debate.

Nos casos dos programas analisados, o que os diferencia fundamentalmente não é a ausência ou presença de descontração. O debate do Jogo Aberto é caracterizado, em parte, por um viés humorístico, mas o Linha de Passe não é completamente avesso a momentos descontraídos. De outro modo, é possível supor que o cerne da diferenciação entre os programas esteja na produção de uma imagem de afastamento ou proximidade em relação à figura do torcedor. Trata-se, portanto, de um processo que envolve, sim, os enunciadores, mas constitui, também, o público de que se almeja a identificação. Em um dos programas, o ato de linguagem encena uma possível “conversa de boteco”; os comentaristas assumem o ethos do torcedor apaixonado, que defende seu time sob quaisquer circunstâncias, que “zoa” seus amigos torcedores de times adversários. Na outra atração, produz-se o ethos do profissionalismo, da imparcialidade, da racionalidade; os comentaristas, embora torçam declaradamente para determinados times, esforçam-se por sustentar a imagem de que o “lado torcedor” pode ser separado do “lado analista/jornalista/comentarista”. No seio dessa discussão, vale mencionar que a própria ESPN Brasil tem, em sua grade, programas de debate com propostas bastante diferentes em relação ao Linha de Passe - como o Bate-Bola Debate, por exemplo -, mas que se pautam, de diferentes formas, pela cisão entre torcedor e comentarista. Mesmo no Bate-Bola Debate, que se caracteriza por um tom descontraído, criou-se a “polícia do clubismo”: uma sirene, presente no cenário, é disparada quando algum comentarista (ou algum torcedor, por meio de mensagem) propõe alguma análise que supostamente esteja “contaminada” pela torcida por algum time.

No início deste artigo, questionou-se: após uma derrota por 1x0, um torcedor do Vasco estaria disposto a ser convencido, ao assistir a um debate televisivo, de que seu time é inferior ao rival Flamengo, ou vice-versa? Com as reflexões aqui empreendidas, é possível supor que a manutenção da audiência de um programa de debate futebolístico não depende da adesão do público a uma tese em particular ou a um conjunto de teses, mas de um processo de identificação com a forma como um ou outro programa produz determinado ethos a partir da enunciação. Ao analista do discurso, não cabe definir os “rumos corretos” do jornalismo esportivo, tampouco como deve ou deveria ser uma “boa” mesa-redonda sobre futebol; o propósito é o de demonstrar a constituição de determinados sentidos a partir do modo como o ato de linguagem, em suas especificidades, é encenado.

REFERÊNCIAS

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  • MAINGUENEAU, D. Discurso e Análise do Discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    21 Out 2019
  • Aceito
    12 Ago 2023
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