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Além da transparência: accountability e política da publicidade

Beyond transparency: accountability and policy of publicity

Resumos

Os países ocidentais têm vivenciado uma crescente demanda de accountability como elemento fundamental à democratização do Estado. Tal demanda tem ensejado a defesa da transparência das instituições e das políticas públicas por ele implementadas. Essa defesa, por sua vez, visa tornar os governos responsáveis diante do público. O objetivo desse artigo é formular uma perspectiva crítica ao que nomeamos como "política da transparência"em favor do que chamamos de "política da publicidade". Esta última tem como perspectiva fornecer um argumento normativo para o conceito de accountability, no sentido de aprofundar a democracia e fortalecer os processos de gestão pública.

transparência; publicidade; accountability; democracia


Western countries have experienced a growing demand for accountability as fundamental element for democratization of the State. This demand has occasioned a case for transparency of public institutions and public policies implemented by the State. This defense, in turn, aims to make governments accountable to the public. The objective of this article is to formulate a critical perspective for what we name as "policy of transparency"in favor that we name "policy of publicity". This last aproach aims to provide the normative argument for the concept of the accountability, to deepen democracy and strengthen the process of public management.

transparency; publicity; accountability; democracy


Além da transparência: accountability e política da publicidade* * Agradeço os comentários e as críticas preciosas do parecerista de Lua Nova, que muito contribuíram para aprofundar e melhorar o argumento do artigo.

Beyond transparency: accountability and policy of publicity

Fernando Filgueiras

Professor do Departamento de Ciência Política da UFMG e pesquisador do Centro de Referência do Interesse Público (CRIP)

RESUMO

Os países ocidentais têm vivenciado uma crescente demanda de accountability como elemento fundamental à democratização do Estado. Tal demanda tem ensejado a defesa da transparência das instituições e das políticas públicas por ele implementadas. Essa defesa, por sua vez, visa tornar os governos responsáveis diante do público. O objetivo desse artigo é formular uma perspectiva crítica ao que nomeamos como "política da transparência"em favor do que chamamos de "política da publicidade". Esta última tem como perspectiva fornecer um argumento normativo para o conceito de accountability, no sentido de aprofundar a democracia e fortalecer os processos de gestão pública.

Palavras-chave: transparência, publicidade, accountability, democracia.

ABSTRACT

Western countries have experienced a growing demand for accountability as fundamental element for democratization of the State. This demand has occasioned a case for transparency of public institutions and public policies implemented by the State. This defense, in turn, aims to make governments accountable to the public. The objective of this article is to formulate a critical perspective for what we name as "policy of transparency"in favor that we name "policy of publicity". This last aproach aims to provide the normative argument for the concept of the accountability, to deepen democracy and strengthen the process of public management.

Keywords: transparency, publicity, accountability, democracy.

Um dos temas centrais da teoria política contemporânea tem sido o da democratização do Estado no sentido de promover reformas apoiadas no diagnóstico de sua crescente crise. O objetivo desse processo é enfrentar as contradições estruturais que se expressam pela corrupção, pela baixa densidade dos processos eleitorais na vida cotidiana, pela escalada da violência e pela extensão da pobreza, mesmo em países do centro do capitalismo. Os processos de representação política se transformaram por conta da presença mais forte de lideranças plebiscitárias, da perda de centralidade dos partidos, das mudanças no mercado de trabalho que tornaram as identidades de classe mais fluidas e da crescente desconfiança dos cidadãos em relação às instituições democráticas (Rosanvallon, 2009).

Essas contradições estruturais desencadearam o surgimento de diferentes concepções de reforma do Estado que têm como intuito resgatar uma ideia mais forte de legitimidade democrática. No âmbito da literatura especializada, em diferentes tradições de pensamento e famílias de teoria política, muito se tem escrito a respeito de reformas institucionais. Não obstante, um ponto de interseção entre essas diferentes tradições é o reconhecimento de que a democratização do Estado demanda o aprofundamento da accountability. Trata-se de um conceito que entrou para o léxico da teoria política contemporânea e se tornou um princípio fundamental do ordenamento democrático. As demandas por accountability reforçaram, por sua vez, a criação de outro princípio para a democratização do Estado: o da transparência.

As demandas por reformas e pelo aprofundamento da accountability são unívocas em ressaltar a necessidade de maior transparência das ações do Estado frente à sociedade, criando, dessa maneira, uma política da transparência nas democracias contemporâneas. Nesses termos, a democratização do Estado deve promover uma abertura do sistema político, no sentido de torná-lo mais transparente e, por sua vez, mais afeito à avaliação do público. A política da transparência articula uma concepção de accountability e uma perspectiva prática balizada por desenhos institucionais e pelo discurso político. Dessa forma, as crescentes delinquências

do homem público tornam necessária uma política da transparência que permita submeter o Estado e seus agentes ao controle da cidadania. O conceito de transparência, por conseguinte, tem se tornado uma espécie de lugar comum na política contemporânea, estando presente no discurso político como uma verdade irrefutável. Aparece como um remédio para os males e as delinquências praticadas na política e na gestão pública, mas não proporciona um substrato normativo para o conceito de accountability. Ambos os conceitos são muitas vezes usados como termos intercambiáveis, sem uma compreensão acerca das diferenças e questões institucionais que suscitam.

Este ensaio questiona a política da transparência e defende outra via para a democratização do Estado: a política da publicidade. Nas democracias liberais, as perspectivas de reforço da accountability carecem de um sentido mais claro da ideia de publicidade. Portanto, a resposta à tendência de crise da legitimação do Estado se encontra no que nomeamos como política da publicidade, a qual oferece ao conceito de accountability um outro substrato normativo no âmbito da teoria política.

O texto está dividido em três partes. Na primeira, abordo o conceito de accountability e sua relação com a política da transparência no âmbito da teoria da agência. Na segunda parte, aponto os limites dessa política para a consolidação daquele conceito. Na terceira, abordo o conceito de publicidade e nomeio o que defendo como política da publicidade e sua relação com o aprofundamento da accountability.

Accountability, a política da transparência e a crítica à teoria da agência

A accountability tem sido um tema central na teoria democrática contemporânea. É um conceito próprio a uma teoria política dos Estados liberais, pois pressupõe uma diferenciação entre o público e o privado. O pressuposto é o de que uma ordem política democrática se consolida e legitima mediante a responsabilização dos agentes públicos diante dos cidadãos, tendo em vista uma relação entre governantes e governados balizada no exercício da autoridade por parte dos segundos. Trata-se, sobretudo, de um princípio de legitimação de decisões sobre leis e políticas em um Estado democrático (Barnard, 2001). A questão da accountability é a do exercício da autoridade de acordo com bases legítimas de ação do Estado na sociedade (Ferejohn, 1999). Dessa maneira, é tarefa das instituições políticas construírem mecanismos de prestação de contas à sociedade, no sentido de reduzir a razão de Estado a uma razão do público e permitir o controle deste sobre aquele1 1 Compreendemos como razão do público o princípio segundo o qual uma ordem política democrática baseia suas decisões e leis em princípios normativos originados da vontade dos cidadãos. O termo público, por conseguinte, qualifica diferentes expressões – tais como gestão pública, agentes públicos, esfera pública – que designam formas institucionais e agentes imbuídos dessa vontade dos cidadãos. O público, portanto, compreende o interesse dos cidadãos e o modo como esses interesses legitimam instituições e práticas constituídas no âmbito do Estado (Christiano, 1996). .

Nesse sentido, o conceito de accountability permite consolidar uma diferenciação entre o público e o privado, e proporciona formas de gestão pública abertas à participação da sociedade. O debate da teoria democrática contemporânea tem conferido ao conceito uma atenção privilegiada, concedendo-lhe o condão de refletir a respeito da consolidação da democracia como forma de governo (Przeworski; Cheibub, 1999). A especulação teórica sobre o tema tem avançado de forma a estabelecer os mecanismos de prestação de contas dos governantes perante os governados. O suposto é o de que o conceito de accountability deve permear as concepções de reforma do Estado, sendo este o horizonte normativo para a consolidação da ordem democrática. Como observa Przeworski, " [o] objetivo da reforma do Estado é construir instituições que deem poder ao aparelho de Estado para fazer o que deve fazer e o impeçam de fazer o que não deve fazer" (Przeworski, 2001, p. 39).

O contexto de reforma do Estado nas democracias contemporâneas confere ao conceito de accountability, portanto, um horizonte normativo. Horizonte que permite pensar, por um lado, uma perspectiva de responsabilização dos agentes políticos e burocratas, e, por outro, inscrever Estado, sociedade e economia no âmbito de uma teoria política alicerçada em modelos empíricos. De fato, o conceito entrou para o léxico da teoria democrática contemporânea tendo como pano de fundo um conjunto de pesquisas empíricas realizadas na área de economia e gestão do setor público, de acordo com o compromisso em torno das reformas institucionais (Dowdle, 2006). Trata-se, assim, de um conceito normativamente informado – um dever-ser do Estado democrático contemporâneo –, mas ganhou conformação substancial na teoria política a partir de uma abordagem empírica.

Com base na ideia de controle dos cidadãos sobre o governo e deste sobre si mesmo, o conceito de accountability assume um forte apelo moral. Associado à ampliação da eficiência econômica (Ferejohn, 1999), o conceito acarreta uma despolitização da ideia de responsabilidade e uma visão comum do Estado como espaço dos vícios. Por essa formulação, o conceito de accountability está centrado no problema da gestão e eficiência das políticas públicas.

Na teoria política contemporânea, tornou-se hegemônica a perspectiva da teoria da agência, que reconhece na accountability o problema do principal-agent (Philp, 2009). De acordo com Przeworski, esse problema envolve o da informação e uma concepção relacional da accountability. O problema desta última, por sua vez, estaria relacionado ao tema da delegação, uma vez que as democracias representativas espelham uma relação de autoridade entre quem delega e aquele que é delegado. O principal delega ao agent um poder para realizar algo em seu interesse, cabendo ao agent atuar em nome dos interesses do principal. A relação principal-agent deve respeitar a compatibilidade de incentivos, já que o agent apenas agirá no interesse do principal se também puder perseguir seus próprios interesses2 2 Como observa Przeworski, o agent deve agir no interesse do principal, mas não pode descartar seus próprios interesses. Exemplo disso é o modo como os burocratas devem perseguir os interesses dos cidadãos, mas não podem abrir mão dos próprios interesses, como salários, planos de carreira e outras recompensas (Przeworski, 2001). .

De acordo com a compatibilidade de incentivos, cria-se a necessidade de responsabilização do agent diante do principal. O problema do agent é que ele não pode ter certeza de que, se agir bem, será recompensado, cabendo a ele uma autonomia decisória que lhe dá informação privilegiada diante do principal. O problema desse último, por outro lado, é que a assimetria de informação em relação ao agent lhe dá pouca margem de decisão, fazendo com que, na verdade, ocorra uma série de custos da delegação. Quanto maior for a assimetria de informação entre o principal e o agent, maiores serão os custos da delegação e menor a qualidade da democracia3 3 Pela teoria da agência, a qualidade da democracia é passível de medição empírica pela ideia de eficiência econômica do serviço prestado ao público. . Esses custos implicam ampliação da corrupção, do clientelismo e da ineficiência administrativa do Estado, que surgem, fundamentalmente, do uso que os agents fazem da informação privilegiada e do poder de decisão para auferir vantagens indevidas (Przeworski, 2001).

Ou seja, a questão da informação é central na relação entre principal-agent. Demanda uma concepção de accountability centrada na abertura da razão de Estado para o conhecimento do principal, o qual é compreendido como a cidadania em sua concepção mais abrangente. O problema se relaciona, portanto, ao tema do conhecimento social, compondo, em última instância, um questionamento fundamental para se pensar a liberdade política em sentido estrito.

Pelo fato de aliar uma perspectiva normativamente informada pela necessidade de reformas institucionais com o pano de fundo de amplas pesquisas empíricas, o conceito de accountability assumiu o lugar de um consenso organizador da democracia. Enquanto ideia normativamente informada, surgiu em meio às propostas de reformas liberais das décadas de 1980 e 1990 (Dowdle, 2006), sendo compreendida, sobretudo, como prestação de contas. Contudo, não se pode perder de vista o caráter normativo do conceito, o qual, como destaca Przeworski (2001), tem o claro fim de fazer com que o Estado faça o que deve ser feito. Por ter uma ampla abrangência nas pesquisas empíricas, falta ao conceito de accountability um tratamento normativo mais acurado, com a finalidade de resgatar uma perspectiva conceitual que dê conta dos problemas propriamente políticos das sociedades democráticas. O objetivo normativo é claro, mas falta a ele uma conformação mais adequada à ideia de democracia e ao modo como opera na política cotidiana, afinal ela não se restringe aos problemas de gestão e eficiência econômica. Logo, o conceito de accountability não se refere apenas ao processo contábil de prestação de contas, mas também a um processo político e democrático de exercício da autoridade por parte dos cidadãos. Ou seja, uma discussão normativa do conceito deve dar conta de dois problemas fundamentais: 1. o fortalecimento de uma ideia substantiva de democracia, sendo a accountability compreendida como um princípio normativo; 2. a operação do conceito no plano das instituições políticas e das práticas dos cidadãos.

Pela perspectiva da teoria da agência, as reformas de Estado devem assegurar a accountability minorando a assimetria de informação entre principal e agent, bem como estabelecendo uma compatibilidade de incentivos seletivos que evitem os custos da delegação. Dessa forma, a accountability é aprimorada tomando em consideração os seguintes aspectos: 1. os eleitores devem poder saber a quem atribuir de fato responsabilidade pelo desempenho do governo; 2. os eleitores devem poder votar para destituir do governo os partidos responsáveis por mau desempenho; 3. os políticos devem ter incentivos para querer ser reeleitos; 4. os eleitores devem dispor de instrumentos institucionais para recompensar e punir os governos pelos resultados que produzem em diferentes domínios (Przeworski, 2001, p. 63). De acordo com essa perspectiva, portanto, a accountability se realiza na dimensão de uma democracia eleitoral.

Dentro dessa concepção minimalista de democracia, o fundamental para a institucionalização da accountability é reduzir o déficit de informação entre principals e agents, e propiciar a abertura dos segredos de Estado pela via da transparência. Como o conceito só se realiza mediante o aprimoramento da transparência, os dois termos muitas vezes se tornam intercambiáveis. De acordo com Stiglitz (1999), o segredo tem uma série de efeitos adversos para a gestão pública e em especial para o mundo econômico, que demanda certezas nas relações contratuais e um processo racional de persecução dos interesses no mundo público. Por outro lado, funcionários públicos têm incentivos para buscar o segredo, uma vez que podem obter recompensas em esquemas de malversação de recursos públicos. Nesses termos, o segredo favorece o surgimento de interesses especiais na arena pública, desencoraja a participação pública no processo democrático e encobre a capacidade da imprensa de verificar os abusos cometidos pelo governo. Assim, o segredo é comum no âmbito da razão de Estado e faz com que o exercício de sua autoridade se torne pouco responsivo às demandas do público.

Para mitigar os efeitos do segredo na ordem democrática, a ideia de transparência assumiu um papel importante na definição do conceito de accountability. De acordo com Stiglitz, transparência significa a redução das assimetrias informacionais entre cidadãos e agentes estatais, de maneira a reduzir as falhas de gestão e permitir maior controle sobre os atos ilícitos cometidos no setor público. Como aponta o autor, " com mais informação, o público será capaz de discernir melhor o valor adicionado pela ação pública" (Stiglitz, 1999). O conceito de transparência, nesse sentido, surge como um valor fundamental da gestão pública contemporânea; a sua realização significa ampliar as informações da sociedade acerca das ações realizadas pelos agentes públicos e, por esta via, fomentar a accountability. Isso explica a popularidade que o conceito de transparência assumiu nas democracias contemporâneas (Etzioni, 2010). Como assevera Roumeem Islam (2003), governos transparentes governam melhor porque a ampliação da informação proporciona a existência de um mercado político com menos corrupção e, por sua vez, mais eficiência.

Dessa maneira, o conceito de transparência se liga ao problema da economia da informação, em que o cidadão é visto como um investidor e consumidor de bens públicos. De acordo com Ferejohn, o principal investe seus recursos na ação do agent esperando retorno no investimento (público) realizado. O ponto de equilíbrio na relação entre o principal e o agent depende da existência de instituições mais transparentes, que sejam capazes de reduzir as incertezas de investimento (Ferejohn, 1999). Ou seja, a accountability é aprimorada com a ampliação da transparência, tendo em vista uma questão de retorno do investimento realizado pelos cidadãos na ação pública dos agentes. Por permitir a redução da assimetria de informação entre principal e agent, a transparência maximiza a accountability e garante um sistema de responsabilização derivado da abertura dos segredos de Estado. Fornece ao conceito, assim, um sentido normativo ajustado à economia da informação, que vê o cidadão como um consumidor de bens públicos no mesmo patamar de outros bens de mercado. Esta noção, porém, não está incólume a objeções.

As primeiras objeções à teoria da agência assinalam o fato de ela concentrar o processo democrático na etapa eleitoral e conceber a política pelo mercado. A sua noção de accountability é minimalista; exige apenas a instituição de regras processuais que deem aos principals o poder de controlar retrospectivamente os agents. Não há uma concepção abrangente sem uma noção mais ampla de público, em que o problema da responsabilização não atente apenas para os custos da delegação, mas também para o processo democrático como um todo. Além disso, essa concepção minimalista produz uma concepção restrita de cidadania, marcada pelo consumidor passivo de bens públicos e centrada numa perspectiva derivada de uma racionalidade instrumental.

Tendo como horizonte uma perspectiva normativa, Mark Philp (2009) formulou um outro conjunto de objeções a essa concepção de accountability. Em primeiro lugar, destaca o autor, a relação principal-agent assume um viés bilateral: os agents (A) servem ao interesse do povo (principal) (P). No entanto, em muitos casos os grupos servidos por A não são idênticos a P. Exemplo disso é o modo como os professores devem educar as crianças, que nem sempre exige uma responsabilização diante dos pais. Os pais podem ter interesse em transmitir uma concepção patriarcal e machista de família para os filhos, mas, por responsabilidade, cabe ao professor um exercício crítico nem sempre condizente com o que os pais pensam. Em segundo lugar, no âmbito da teoria da agência o conceito de accountability implica um tratamento de questões contingentes como condições necessárias para sua efetivação. Nessa chave, o conceito demanda uma elevada concentração no poder de sanção dos principals, sendo que a accountability não se resume à sanção do povo. Finalmente, Philp (2009, pp. 30-31) destaca que o tratamento empírico do conceito – a partir de modelagens econômicas – carece da compreensão de processos desencadeados na sociedade civil, faltando, portanto, uma perspectiva de justificação e definição de parâmetros de legitimidade para as agências que têm a delegação de poder.

É com relação ao problema da informação que uma crítica normativa ao conceito de accountability da teoria da agência pode ser realizada. Como observei anteriormente, essa tarefa deve fortalecer uma noção substantiva de democracia na dimensão do político, bem como pensar o processo efetivo da responsabilização no âmbito das instituições políticas. O fundamental é pensar o problema da transparência no sentido de aprimorar a noção de responsabilidade do Estado diante da sociedade. O aprimoramento do conceito de accountability depende, por sua vez, da compreensão do lugar do conhecimento social na construção da responsabilidade política, já que existe um pressuposto de assimetria informacional entre principals e agents que requer tratamento normativo na esfera das instituições políticas. Na próxima seção, discuto os limites da política da transparência na política contemporânea com o objetivo de derivar um sentido mais amplo de accountability.

Os limites da política da transparência para a accountability

Pode-se afirmar que a política da transparência se tornou uma espécie de lugar comum na política das sociedades liberais. De lugar comum, passou a uma espécie de panaceia para as delinquências do homem público e a ineficácia institucional. Diante de casos de corrupção, clama-se por maior transparência das instituições, pela abertura das contas públicas e pela moralização da política. A transparência, de fato, é um elemento central da accountability, de maneira que a ideia de responsabilidade política constitui qualquer projeto de democracia. É impossível pensar a responsabilidade política sem que as instituições sejam transparentes aos cidadãos e que o déficit de informação entre o homem comum e as instituições democráticas seja reduzido. Para sua consolidação como regime político, a democracia pressupõe uma espécie de livre conhecimento por parte do cidadão comum. Nesse caso, para que esse conhecimento se torne possível, é fundamental que as instituições políticas sejam límpidas, informem e prestem contas ao cidadão comum, e tenham a ideia de transparência como um valor instrumental para o exercício da accountability (Heald, 2006a).

Pelo pressuposto de livre-conhecimento por parte do cidadão, a democracia liberal não tolera a existência do segredo e estabelece a liberdade de informação como um direito fundamental que organiza a esfera pública. A democracia requer a liberdade de informação como um mecanismo que permita a responsabilização do Estado diante da sociedade; o segredo é típico de formas autocráticas de governo, que convivem com os conluios e conspirações, que demandam a discrição no âmbito das relações políticas.

A teoria política contemporânea atribui ao conceito de transparência derivado da teoria da agência uma acepção de

economia da informação, como se ele fosse uma espécie de remédio para o mal da corrupção e o Estado, por de­fi­nição, um mau gestor dos recursos públicos. A política da transparência, dessa forma, reduz os segredos de Estado, permite o livre-conhecimento da sociedade e potencializa, supostamente, o exercício da cidadania. A cultura do segredo, por outro lado, erode o processo democrático, porquanto seja contraposta à própria noção de democracia. Como destaca Thompson (1999), há uma estimativa de criação de 3,5 milhões de novos segredos por ano no âmbito do Estado norte-americano. Essa cultura conflita com a noção de processo democrático, uma vez que permite o uso dual do poder político para a persecução de interesses privados. O segredo, portanto, representa uma razão não pública (Chambers, 2004).

Do ponto de vista conceitual, a noção de transparência significa uma regra de conduta de agentes públicos; carrega um poder simbólico associado à abertura de processos e resultados de assuntos públicos relativos ao governo e aos negócios de mercado4 4 David Heald observa que a noção de transparência não fica restrita à política; é também uma regra de conduta do mercado que tem como objetivo reduzir as incertezas de investimento nos negócios (Heald, 2006a). . Pressupõe que a redução da assimetria de informação contribui para a redução das incertezas de investimento, proporcionando uma forma de controle sobre a conduta dos agentes públicos no sentido da maior eficiência possível dos resultados. Ou seja, o conceito de transparência surge como uma questão de economia da informação, em que o principal deve obter o melhor resultado possível para o investimento público realizado nas diferentes agências do governo e do mercado (Stiglitz, 1999). A abertura de informações, portanto, constitui o âmbito conceitual da política da transparência, cujo suposto é o de que o processo político é mais eficiente à medida que as informações sejam abertas ao público e permitam decisões de investimento mais acertadas e mais estáveis.

No que diz respeito ao processo político, o conceito de transparência é uma derivação de uma noção econômica aplicada à dimensão política. Nesse sentido, apresento seis objeções à política da transparência e a sua aplicação ao político, que visam direcionar o seu conteúdo para o fortalecimento de uma noção normativa de accountability. Essas objeções à política da transparência são as seguintes: 1. pressupõe o cidadão como consumidor de um mercado político; 2. não aborda a questão cognitiva da produção da informação; 3. afeta a noção de privacidade, sendo contraditória, portanto, a alguns direitos fundamentais; 4. como regra de conduta, não diferencia a conduta individual da questão institucional; 5. no âmbito do político, o segredo tem uma função importante, pois nem tudo pode ser transparecido; 6. carece de uma distinção mais clara entre razão pública e razão não pública ou entre o público e o privado.

Por ser uma concepção derivada de uma perspectiva da economia da informação, o conceito de transparência pressupõe o cidadão como um consumidor de informação, cuja ação pública se baliza em uma concepção privada de bens. O conceito é uma derivação da ideia de mercado enquanto um tipo ideal, em que as escolhas e ações dos agentes ocorrem de maneira transparente, influenciando os resultados de investimento e determinando a existência de interações em bases racionais. Essa conceituação pressupõe, por sua vez, que o problema político seja o da distribuição dos bens e da renda (Musgrave, 1962). De acordo com Musgrave, essa concepção de mercado político apóia-se em uma visão hedonística segundo a qual o conjunto dos interesses privados coincide com o interesse público. Como ressalta o mesmo autor, o problema da distribuição acarreta que na política, tal como no mercado, a soberania pertença ao consumidor e o cidadão seja visto como um portador de interesses privados que se agregam numa forma coletiva de interesse público.

A transparência exige a liberdade de informação como um direito fundamental às democracias liberais, de maneira a fomentar a soberania do consumidor e permitir a livre-escolha pública. Dessa forma, cumpre uma função importante ao permitir a livre-escolha dos cidadãos, sem adentrar, como nota Musgrave (1962), no terreno de aspectos não econô­micos delimitados como interesse público. Ao não levar em consideração aspectos normativos que demandam um tipo de justificação pública, essa concepção de soberania do consumidor revela-se, portanto, estreita. Ou seja, o conceito de transparência não dá conta dos processos de justificação de escolhas e políticas realizadas em público, desconsiderando o fato de que concepções morais de mundo influenciam substancialmente o modo como os cidadãos julgam as políticas.

A segunda objeção à política da transparência assinala a ausência de uma atenção à questão da produção da informação e aos aspectos cognitivos envolvidos no julgamento de escolhas de políticas e de seus resultados. A simples abertura de processos e informações à sociedade não significa que a audiência seja capaz de processá-los, denotando um problema cognitivo assentado no uso da linguagem (Heald, 2006b). O problema cognitivo da transparência está na margem que oferece ao uso instrumental da informação, proporcionando um processo de abertura balizado por discursos assertóricos. Ao pressupor o cidadão como um mero consumidor de informação, a política da transparência não dá conta de produzir entendimento acerca das questões públicas, pois não possibilita perquirir o processo de construção da informação (Etzioni, 2010).

A política da transparência tem um compromisso normativo com a produção de informação verdadeira e faz com que o processo de construção da informação seja fundamental ao estabelecimento do entendimento público. Dessa forma, demanda uma instância de deliberação imparcial, que, pela lógica de um discurso voltado para os aspectos cognitivos da sociedade, possibilite esse entendimento. Um Estado plenamente transparente não significa entendimento e, por sua vez, julgamento imparcial no âmbito da sociedade. Sem essa instância imparcial de deliberação, o resultado da política da transparência é nutrir uma política do escândalo, em que os aspectos relacionados à vida privada e à reputação dos envolvidos importam mais do que as questões públicas propriamente. A política do escândalo não tem um compromisso com a verdade, mas com fins instrumentais de indivíduos ou grupos presentes na esfera pública (Shapiro, 2003)5 5 Como observa Ian Shapiro, a democracia não tem, necessariamente, um compromisso com a verdade, porquanto esse compromisso denotaria uma noção de bem verdadeiro que dá margem à justificação de formas autocráticas de governo. Contudo, a verdade é um elemento essencial à legitimidade na política, porquanto é a democracia a forma de governo que permite jogar luz sobre os segredos de Estado, tornando-se um antídoto aos monopólios de poder. É nesse sentido que a democracia não tem um compromisso com a verdade, mas a fomenta (Shapiro, 2003). . O resultado de uma política da transparência é configurar um discurso público marcado por proposições assertóricas que têm a pretensão de descrever a realidade, mas sem um pano de fundo valorativo assentado nas questões morais da conduta dos agentes públicos. Uma vez que engendra um discurso carente de um apelo normativo orientado por uma moralidade de fundo, a transparência fomenta o uso instrumental da informação e, por conseguinte, uma cultura do moralismo que não se preocupa com o entendimento, mas com uma política do escândalo permanente.

Essa política do escândalo permite configurar a terceira objeção à política da transparência. Esta afeta a privacidade dos agentes públicos, porquanto não distingue os mecanismos de entendimento público da existência de um Estado regulatório. Pode representar uma nova forma de vigilância e tecnologia disciplinar sobre os indivíduos, fomentando um processo muito mais próximo de formas autocráticas do que propriamente democráticas (Fung, Graham e Weil, 2007). Como observa Simmel, é característica da modernidade a constituição da privacidade. Segundo o autor, o segredo se constitui como processo de individuação e promove a distinção entre a esfera pública, marcada pela abertura e publicidade, e a esfera privada, marcada pela intimidade (Simmel, 1977). A modernidade, dessa forma, estabelece a privacidade como um elemento institucional fundamental, tendo em vista o fato de a vida do indivíduo ser distinta da vida na coletividade.

A transparência significa a abertura sem um critério mais claro que separe as instâncias da vida privada daquelas da vida pública. A política do escândalo torna a privacidade uma instância aberta ao juízo da sociedade, fazendo com que razões não públicas interfiram no julgamento social das políticas e de seus resultados. Dessa forma, a política da transparência faz com que o princípio da liberdade de expressão conflite com as liberdades individuais. Ao permitir que nas democracias liberais demandas por maior moralização da política resultem em um tipo de uso público de razões não públicas, a transparência se torna uma nova tecnologia de vigilância e uma nova forma de opressão.

A quarta objeção atenta para o fato de que o conceito de transparência não diferencia a conduta individual dos agentes das questões propriamente institucionais da democracia. Ao possibilitar que razões privadas sejam determinantes para o julgamento de instituições, a transparência pode infligir um dano à confiança do cidadão comum (O'Neill, 2002), o que, por sua vez, traz problemas para a fundamentação da accountability nas democracias liberais. Por se concentrar na conduta de pessoas, a política da transparência produz um tipo de responsabilização pela reputação que submete os seus mecanismos ao aspecto puramente individual (Philp, 2009, p. 33). O sistema de sanções atua sobre o indivíduo e não sobre sua ação no contexto das instituições, implicando, dessa forma, uma instrumentalização do discurso que não proporciona entendimento público.

Essa quarta objeção obriga a pensar a função do segredo nas ordens democráticas, o que conduz a formulação da quinta objeção à ideia de transparência. Como observa Dennis Thompson (1999), há uma antinomia entre o segredo e o processo democrático nomeada como dilema da accountability. Esse dilema se evidencia quando a questão do princípio de publicidade das ordens democráticas é confrontado ao segredo requerido por algumas políticas. A democracia exige que as decisões sejam tomadas em público, mas algumas políticas, para serem eficientes, necessitam do segredo. O pressuposto da política da transparência é que políticas públicas mais transparentes são mais eficientes. Como observa Ferejohn (1999), na medida em que permite maior estabilidade do processo de escolhas públicas, a transparência maximiza a eficiência do investimento público. Conforme afirma Thompson, no entanto, algumas políticas exigem segredo e nenhuma transparência: as investigações policiais, o combate ao tráfico de drogas e decisões econômicas sobre juros e política financeira são alguns exemplos. A eficiência de uma política de combate ao crime organizado depende de não vazar informações sobre a investigação realizada. Uma vez que a transparência não significa necessariamente maior eficiência das políticas públicas, nem tudo pode ser transparecido na democracia.

O dilema da accountability demanda uma solução que permita que o segredo seja constitutivo de algumas políticas públicas. Thompson formula os seguintes princípios a respeito da questão do segredo na política democrática: 1. o segredo se justifica apenas quando promover a discussão democrática sobre os méritos de uma política pública; 2. o segredo se justifica desde que os cidadãos e seus representantes sejam capazes de deliberar sobre ele. O dilema é resolvido pela criação de um segredo de primeira ordem, acompanhado de uma publicidade de segunda ordem (Thompson, 1999). Ou seja, a decisão sobre criar uma política ou processo que ocorra em segredo deve ser justificada publicamente. Essa ideia de publicidade de segunda ordem possibilita que o segredo esteja relacionado com o princípio democrático.

Dessas cinco objeções à política da transparência, podemos formular uma sexta, conclusiva. A política da transparência não permite uma distinção clara entre razão pública e razão não pública, nem formular uma concepção de publicidade que especifique uma distinção mais clara entre o público e o privado. Consequentemente, permite que razões não públicas sejam determinantes para se estabelecer juízos acerca da moralidade pública e do resultado de políticas ensejadas no plano das instituições. A política da transparência formula uma ideia fraca de accountability, em que os aspectos ligados à reputação dos indivíduos são centrais para uma política da moralização e não da responsabilidade. Tampouco resulta em maior responsabilização dos agentes políticos e das instituições, mas em uma busca por maior moralização da atividade política que não produz uma política liberal melhor.

Por dispensar um aspecto normativo do conceito de accountability, a política da transparência não consegue precisar o pano de fundo valorativo envolvido na razão pública. Por outro lado, ao não dar conta desses valores e normas postos no plano público, o conceito de accountability esvazia o conteúdo normativo ligado ao julgamento da ação política no plano das instituições. Com isso, não se pode derivar uma concepção mais ampla de cidadania e de moralidade na gestão da coisa pública. Mais informação não significa necessariamente a produção de cidadãos melhores, nem governos mais transparentes propiciam governantes melhores e menos corrompidos. O problema do conceito de transparência é que o maior volume de informação em si não significa informações mais qualificadas, pois elas são produzidas por agências que permitem o uso ideológico da transparência. Desse conceito, portanto, não se consegue derivar uma possibilidade de crítica social da política (Etzioni, 2010).

Essa política oferece um vazio normativo para a consecução da accountability. Frente às objeções acima apresentadas, entendemos que a política da transparência precisa ser informada por uma política da publicidade, em que a razão que justifica o julgamento de processos e políticas seja, por definição, pública. É fundamental a constituição de fóruns imparciais onde se possa deliberar com o intuito de garantir a concretização de juízos balizados em uma racionalidade voltada ao entendimento. Para compatibilizar as perspectivas normativas envolvidas no conceito de accountability com uma concretização efetiva do princípio democrático, uma política da transparência deve estar assentada em uma política da publicidade. Apenas uma política como essa pode atender ao princípio democrático no plano de uma razão pública imparcial; ou seja, uma razão baseada em uma concepção forte de cidadania, de sujeitos discursivos capazes de se fazerem ouvir e, de fato, serem ouvidos. Na próxima seção, discuto o conceito de publicidade e sua vinculação com a ideia de accountability.

A política da publicidade e a accountability

O respeito ao princípio de legitimidade democrática exige uma possibilidade de crítica social da política, que não se realiza, por sua vez, se não houver um governo transparente. Contudo, a política da transparência – como defendida pela teoria da agência – restringe-se ao problema da delegação, não abordando a questão da autonomia como fundamento da legitimidade democrática. Isso acarreta uma despolitização do político e faz da transparência uma concepção parcial do controle democrático. A transparência é importante na relação do Estado com a sociedade, mas precisa ser abordada como um elemento de uma política de publicidade.

A accountability depende de um princípio de autoridade democrática, mas exige uma arquitetura institucional em que a responsabilização de governantes frente aos governados seja aprimorada. De uma perspectiva política, a accountability se refere ao conjunto de processos, procedimentos e valores atrelado a um ideal de responsabilização e de controle dos governos, que se realiza nas condições de regimes políticos democráticos. Nesse sentido, a accountability é um princípio de legitimação (Barnard, 2001) e exige, para além da transparência, que as políticas, normas e diretivas postas pelo governo ocorram em condições de publicidade.

Publicidade, aqui, não se confunde com transparência. Como observamos anteriormente, esta última se refere à disponibilização de informações e processos relacionados às políticas públicas. A publicidade demanda, muitas vezes, a transparência, mas vai além por ser um princípio de autoridade. Como tal, ela exige que os processos representativos da democracia sejam organizados em condições equitativas, em que, observadas a pluralidade dos interesses e as diferenças de condição social, as instituições consideram igualmente os interesses dos diferentes cidadãos (Christiano, 2004).

A publicidade exige que as políticas e as normas emanadas do governo ocorram em um processo aberto de decisão democrática e que as instituições sejam controladas por outras instituições e pelos próprios cidadãos. A publicidade significa atrelar as decisões do governo à autoridade da cidadania, seja por meio de instituições, seja da participação da própria sociedade nos processos de escolhas e decisões públicas. No contexto de sociedades democráticas, a publicidade é a realização de decisões balizadas em uma razão pública, que é a razão da própria cidadania (Rawls, 2002).

Como observa Bohman, a limitação do conceito de publicidade da teoria democrática contemporânea é derivada do fato de se pensar uma condição unívoca do seu exercício. Segundo o autor, tal concepção é incapaz de absorver uma crítica para além dos direitos fundamentais, resultando em uma formulação de cidadania que se efetiva pela abstração das desigualdades e dos papéis sociais (Bohman, 1999). Para prover a política da publicidade de uma concepção pragmática de uso público da razão e, por conseguinte, de liberdade política, é primordial delimitar uma estrutura conceitual que compatibilize crítica e imparcialidade.

Guttman e Thompson (1997) assinalam que é fundamental ao conceito de publicidade a existência de instâncias deliberativas com a finalidade de matizar os desacordos morais nas sociedades democráticas contemporâneas Os autores desenvolvem um conceito de democracia deliberativa que permite configurar mais claramente uma política da publicidade. O fórum público requer que o processo deliberativo obedeça aos princípios da publicidade, da accountability e da reciprocidade. A accountability possibilita reconciliar crítica e imparcialidade, pois cria, conforme os diferentes agentes presentes na esfera pública se tornam responsáveis diante do próprio público, uma situação de reciprocidade do discurso e, por sua vez, a possibilidade de sua correção. Por reciprocidade do discurso, os autores entendem o fato de que todos os presentes na esfera pública têm voz para expressar seus interesses e o dever de ouvir os demais agentes, fazendo com que os acordos sejam possíveis. No intuito de possibilitar uma mediação dos desacordos morais das sociedades plurais contemporâneas, o processo deliberativo deve respeitar aqueles princípios em um mesmo patamar.

O problema dessa concepção do processo deliberativo é não considerar as condições de desigualdades no âmbito da própria esfera pública, demandando, para além da reciprocidade, uma condição de inclusão e, por sua vez, uma condição de imparcialidade dos agentes no processo de deliberação. A desconsideração das questões da desigualdade e da imparcialidade do discurso racional promove uma incompatibilidade entre os princípios da publicidade, da accountability e da reciprocidade. No sentido de compatibilizar imparcialidade e crítica, uma abordagem mais forte do princípio da publicidade sugere que a promoção da accountability demanda uma esfera pública inclusiva, uma noção forte de responsabilidade moral e uma reciprocidade do discurso nos processos de deliberação pública. Essa possibilidade de compatibilização está na recuperação da ideia de responsabilidade. As democracias exigem uma política da publicidade que assegure um processo de fundamentação das liberdades políticas e de responsabilização do Estado diante da sociedade civil.

A política da publicidade requer a existência de fóruns onde os sujeitos discursivos possam fazer o uso público da razão e concretizar uma noção mais ampla de autonomia. A noção de publicidade permite uma abordagem mais democrática para a questão da accountability, uma vez que possibilita uma crítica da política no âmbito da esfera pública. Oferece ao conceito uma dimensão normativa não abordada pela política da transparência. Uma crítica desse conceito deve informar uma noção mais ampla de democratização do Estado e reconciliar noções de bom governo defendidas no plano da sociedade com processos efetivos de governança no âmbito das políticas e decisões públicas. Ou seja, a accountability desencadeia tanto o processo de julgamento pela cidadania quanto o exercício da autoridade democrática, sendo, portanto, um elemento central à legitimação.

A partir dessa noção de política da publicidade, formulamos outra abordagem do conceito de accountability que reconcilie a ideia de transparência com uma perspectiva mais ampla de público. Dessa forma, accountability é o princípio institucional da democracia segundo o qual se exige o cumprimento dos seguintes princípios complementares: 1. a existência de um processo de justificação pública de políticas e decisões no âmbito de uma esfera pública inclusiva e autônoma; 2. a existência de um sistema de direitos que assegure, no limite dos direitos fundamentais, o status de participação na formação da vontade; 3. a transparência de ações, políticas e decisões do governo no limite do processo de justificação pública. Esses princípios complementares da accountability, por sua vez, exigem os correlatos da reciprocidade do discurso no plano de uma esfera pública inclusiva e da noção de responsabilidade política no nível do Estado democrático.

No que diz respeito à justificação pública de políticas e decisões, a noção de publicidade exige que, para fortalecer a ideia de responsabilização do Estado frente à sociedade, esse processo ocorra em um fórum de deliberação pública. Nesse processo, o Estado e o governo justificam a tomada de posição por determinadas políticas e decisões perante a sociedade, com o intuito de reforçar uma ideia substantiva de accountability. A deliberação observa as considerações normativas dos agentes políticos, que avaliam os resultados de políticas e decisões do Estado de acordo com preferências fortes6 6 A noção de preferência forte está relacionada aos compromissos que indivíduos e grupos assumem com base nas concepções de boa vida (Taylor, 1992). .

A existência de uma esfera pública inclusiva é, portanto, uma exigência do processo deliberativo e da noção de accountability. Como um fórum de justificação de políticas e decisões tomadas no plano do Estado, ela é capaz de reconciliar os processos administrativos estatais com as visões de mundo normativas e com a autonomia da sociedade (Habermas, 1993). Contudo, tendo em vista uma abordagem que se queira inclusiva, a noção de esfera pública não pode ser estanque ou unitária (Bohman, 1999). Ela deve ser capaz de agregar os novos públicos e outras formas de ação coletiva que não se restrinjam ao sistema hegemônico de comunicação da sociedade (Avritzer e Costa, 2004). Ou seja, deve garantir a reciprocidade do discurso dos interessados nas políticas e decisões de governo.

A regra da justificação pública, todavia, deve ser limitada pela existência de direitos fundamentais que garantam, ao mesmo tempo, a proteção às liberdades individuais, a reciprocidade do discurso dos agentes na formação da vontade e um sistema de liberdade de expressão que assegure voz a todos os participantes. Esses direitos fundamentais devem fazer com que não ocorram formas opressivas contra o indivíduo; ou seja, devem garantir que não haja qualquer forma de tirania da opinião restringindo a autonomia dos agentes. Como afirma Rawls (2002), a possibilidade de uso público da razão deve ser matizada pela existência de direitos fundamentais que assegurem a liberdade individual e a proteção contra perspectivas hegemônicas de políticas.

Por fim, a consolidação de uma política da publicidade exige a existência de um governo transparente, no limite dos processos de justificação pública. Conforme mostramos anteriormente, a transparência deve ser contrastada a uma noção de funcionalidade do segredo, em que nem toda política ou decisão deve ser transparecida. Todavia, a decisão de ocultá-las deve ser tomada publicamente. Ademais, a accountability será aprimorada não apenas pela maior disponibilidade de informação, mas por um princípio de autoridade democrática que obrigue o Estado e seus agentes a se tornarem responsáveis diante dos cidadãos. Entendemos que a política da publicidade, portanto, fomenta a autoridade da cidadania e aprofunda uma concepção normativa de accountability.

Nesse intuito, a política da publicidade deve conciliar processos de crítica social com a possibilidade de imparcialidade dos discursos no âmbito da esfera pública. Essa possibilidade de reconciliação pelo uso público da razão deve colocar no mesmo plano a possibilidade de reciprocidade do discurso com os processos de justificação pública (Rawls, 2002). Desse modo, o nosso argumento é que tanto a reconciliação entre crítica e imparcialidade quanto entre reciprocidade do discurso e justificação pública apenas é possível resgatando uma noção de responsabilidade. A responsabilidade é uma condição para a existência de sujeitos discursivos, o que nos remete a uma consideração republicana da ideia de publicidade.

A ideia de responsabilidade moral significa que os agentes discursivos devem ser capazes de se comprometer com noções de boa vida. Isso faz com que o uso público da razão não esteja vinculado apenas a uma concepção de direitos, mas também a uma noção contraposta de deveres. Como nota Pettit (2001), a condição de liberdade exige a responsabilidade moral dos agentes e sua capacidade de se comprometer com os bens públicos. Ou seja, a noção de uso público da razão deve estar relacionada com a capacidade de autonomia e a capacidade dos agentes de se tornarem responsáveis pelo uso discursivo que fazem de suas preferências. A noção republicana de responsabilidade aqui reivindicada exige que a política da publicidade esteja assentada numa concepção de virtudes políticas de governantes e cidadãos [ver a Figura 1].


A política da publicidade deve oferecer um sentido normativo para o conceito de accountability. Um sentido que possibilite a crítica da cidadania em relação às políticas de governo, um governo transparente e responsivo às demandas do público e um processo de justificação pública de políticas, decisões e seus resultados. Inscrita numa concepção republicana, a accountability exige uma moralidade política capaz de adensar uma noção democrática de governo e de Estado. A responsabilidade reivindicada como conceito capaz de conciliar reciprocidade do discurso e processos de justificação pública permite ao cidadão escolher alternativas de políticas que ele pode influenciar e se sentir responsável.

Dessa maneira, os processos de justificação e a reciprocidade do discurso demandam a responsabilidade dos sujeitos discursivos, tendo em vista um anseio por não dominação (Pettit, 2001). De uma perspectiva republicana, o conceito de accountability está relacionado a um processo de crítica da política e a uma reciprocidade discursiva entre governantes e cidadãos comprometidos com os bens públicos. O problema não se refere apenas a uma concepção centrada no Estado, mas em sociedades inteiras. Envolve a responsabilidade de agentes políticos e cidadãos, e o compromisso com concepções de boa vida.

A publicidade demanda esses compromissos morais e a adequação dos cidadãos e dos governantes para serem considerados responsáveis. Portanto, a accountability dos sistemas políticos exige um compromisso republicano com concepções de boa vida e de bom governo, tendo como elemento constitutivo uma ideia forte de responsabilidade que não se restringe à mercantilização da política e a uma concepção de cidadão como consumidor passivo de bens públicos. Ela requer uma concepção politicamente orientada ao público e a cidadãos completos, que não se eximem de se fazerem ouvir, serem ouvidos e ouvirem os outros. Sem essa noção de política da publicidade, não há, nesse sentido, um conteúdo substantivo para a ideia de accountability como princípio da legitimidade democrática.

***

A ideia de política da publicidade reivindica que a transparência, sozinha, não possibilita um processo de crítica social da política nas democracias contemporâneas. Num processo mais amplo de participação cívica, a transparência é um dos elementos da política da publicidade. A política da transparência tem limites intrínsecos à realidade institucional da democracia, uma vez que o pressuposto de accountability realiza-se pela simples abertura do Estado e do governo. Sem um sentido mais profundo, a política da transparência desdobra-se em um contexto de deslegitimação da política, em que ela passa a ser vista como o espaço dos vícios, onde o essencial é a reputação dos indivíduos e não o aspecto propriamente institucional.

Como observei anteriormente, uma discussão normativa do conceito de accountability deve dar conta do fortalecimento de uma ideia substantiva de democracia e pensar a operacionalização de seu conceito tanto no plano das instituições políticas quanto das práticas dos cidadãos. A partir do que nomeei como política da publicidade, argumento que a accountability deve estar ancorada no princípio de legitimidade democrática. Como um princípio substantivo da ideia de democracia, o conceito mitiga a tendência de crise política e se constitui como marco fundador do governo democrático. Isso implica que a accountability está relacionada aos processos que fundamentam e institucionalizam a autoridade democrática.

Tanto no plano das instituições políticas formais quanto das práticas dos cidadãos, o conceito de accountability demanda a existência de uma esfera pública onde os múltiplos públicos possam ter voz, para além dos sistemas hegemônicos de comunicação social. Do ponto de vista dos cidadãos, o conceito deve estar relacionado a processos discursivos de formação da opinião e da vontade pública. Com o intuito de assegurar um processo aberto de formação dessa vontade, a política da publicidade demanda a justificação pública de políticas e decisões de Estado. Além disso, exige a presença de um sistema de direitos que assegure uma reciprocidade do discurso público. A política da publicidade, nesse sentido, exige a capacidade de compromisso moral dos cidadãos com o bem público, fazendo com que a responsabilidade seja constitutiva de práticas públicas de cidadania e de composição da força das instituições políticas.

A política da publicidade, portanto, toma a ideia de transparência como algo fundamental à sua consolidação. Mas a toma num sentido mais profundo: o de estabelecer um horizonte normativo para o conceito de accountability. Inscreve-o nos marcos do processo de publicidade de políticas e decisões do governo, que, por sua vez, é entendido como um problema da legitimação e tem como pano de fundo uma visão de cidadãos completos. A accountability, como princípio, não se limita a uma agência realizada exclusivamente nos órgãos de Estado, mas envolve uma concepção de responsabilidade moral que é capaz de consolidar outra via para a relação entre o Estado e a sociedade.

FUNG, A.; GRAHAM, M.; WEIL, D. 2007. Full disclosure: the perils and promise of transparency. Cambridge: Cambridge University Press.

Recebido: 01/07/2009

Aprovado: 05/09/2011

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  • *
    Agradeço os comentários e as críticas preciosas do parecerista de Lua Nova, que muito contribuíram para aprofundar e melhorar o argumento do artigo.
  • 1
    Compreendemos como razão do público o princípio segundo o qual uma ordem política democrática baseia suas decisões e leis em princípios normativos originados da vontade dos cidadãos. O termo público, por conseguinte, qualifica diferentes expressões – tais como gestão pública, agentes públicos, esfera pública – que designam formas institucionais e agentes imbuídos dessa vontade dos cidadãos. O público, portanto, compreende o interesse dos cidadãos e o modo como esses interesses legitimam instituições e práticas constituídas no âmbito do Estado (Christiano, 1996).
  • 2
    Como observa Przeworski, o agent deve agir no interesse do principal, mas não pode descartar seus próprios interesses. Exemplo disso é o modo como os burocratas devem perseguir os interesses dos cidadãos, mas não podem abrir mão dos próprios interesses, como salários, planos de carreira e outras recompensas (Przeworski, 2001).
  • 3
    Pela teoria da agência, a qualidade da democracia é passível de medição empírica pela ideia de eficiência econômica do serviço prestado ao público.
  • 4
    David Heald observa que a noção de transparência não fica restrita à política; é também uma regra de conduta do mercado que tem como objetivo reduzir as incertezas de investimento nos negócios (Heald, 2006a).
  • 5
    Como observa Ian Shapiro, a democracia não tem, necessariamente, um compromisso com a verdade, porquanto esse compromisso denotaria uma noção de bem verdadeiro que dá margem à justificação de formas autocráticas de governo. Contudo, a verdade é um elemento essencial à legitimidade na política, porquanto é a democracia a forma de governo que permite jogar luz sobre os segredos de Estado, tornando-se um antídoto aos monopólios de poder. É nesse sentido que a democracia não tem um compromisso com a verdade, mas a fomenta (Shapiro, 2003).
  • 6
    A noção de preferência forte está relacionada aos compromissos que indivíduos e grupos assumem com base nas concepções de boa vida (Taylor, 1992).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Jan 2012
    • Data do Fascículo
      2011

    Histórico

    • Recebido
      01 Jul 2009
    • Aceito
      05 Set 2011
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