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Hobbes e o antagonismo como o real da política

Hobbes and antagonism as the real of politics

Resumos

Por que no estado de natureza hobbesiano os homens lutam entre si? A questão está mal posta, sustenta o autor, após passar em revista interpretações importantes de Hobbes. Se tormos além de buscar as razões dos homens no estado de natureza (essa sombra da sociedade civil) e examinarmos o próprio antagonismo penetraremos mais fundo no dominio da política, argumenta ele.


Why do men fight each other in the Hobbesian state of nature? The question is badly put, holds the author, after reviewing important interpretations of Hobbes. If we go farther than searching men's reasons in the state of nature (this shadow of civil society) and examine antagonism as such we will penetrate deeper in the domain of politics, he argues.


REPÚBLICA

Hobbes e o antagonismo como o real da política* * "EI estado de la natureza, o el antagonismo como lo real de la política. (Un ejercicio con el pensamiento de Hobbes). Tradução de Encarnación Moya.

Hobbes and antagonism as the real of politics

Eduardo Rinesi

Docente em Buenos Aires e doutorando em Filosofia na USP

RESUMO

Por que no estado de natureza hobbesiano os homens lutam entre si? A questão está mal posta, sustenta o autor, após passar em revista interpretações importantes de Hobbes. Se tormos além de buscar as razões dos homens no estado de natureza (essa sombra da sociedade civil) e examinarmos o próprio antagonismo penetraremos mais fundo no dominio da política, argumenta ele.

ABSTRACT

Why do men fight each other in the Hobbesian state of nature? The question is badly put, holds the author, after reviewing important interpretations of Hobbes. If we go farther than searching men's reasons in the state of nature (this shadow of civil society) and examine antagonism as such we will penetrate deeper in the domain of politics, he argues.

1.

No capítulo dedicado a Hobbes, no já clássico Politics and Vision, Sheldon Wolin observa que a noção de estado de natureza não pode ser pensada, na obra do autor do Leviatã, nem como nome dado a uma situação histórica pertencente a algum tempo remoto e superado, nem corno um recurso puramente lógico, separado da história e de suas determinações, destinado a demonstrar a necessidade de uma soberania absoluta. O estado de natureza hobbesiano, efetivamente, não pode ser pensado como um ponto distante no passado, como uma condição cronologicamente anterior à sociedade civil, porque seu caráter é, antes, — como muitos outros comentaristas da obra de Hobbes também apontaram - "o de uma possibilidade sempre presente, inerente a toda sociedade política organizada"1 1 Wolin, Sheldon. Política y perspectiva. Continuidad y cambio en el pensamiento político occidental. Buenos Aires. Amorrortu, 1973, p. 282. Todas as citações são dessa tradução de Politics and Vision. Continuity and Innovation in Western Political Thought. , o de "uma ameaça onipresente que, como macabra acompanhante, seguia a sociedade em cada etapa de seu trajeto"2 2 Ibid. , o de uma contínua lembrança da fragilidade das ordens políticas e do risco permanente de uma recaída, um retrocesso, uma volta àquela situação da qual o contrato (outra grande figura da construção teórica hobbesiana) pretendia manter os homens distantes. Mas também não é uma hipótese meramente lógica, vinda de nenhuma parte e concebida apenas como um passo necessário em uma demonstração puramente racional. Quero dizer, não é que não se trate, em um sentido fundamental, de uma hipótese de trabalho ou de um exercício imaginário - o que, sem dúvida, é - , mas tal hipótese é inspirada a Hobbes - e esta é uma questão sobre a qual Wolin é especialmente enfático - pelo contexto de crise, de caos social, religioso e político em que o filósofo escreve. De fato, uma das hipóteses centrais do livro de Wolin -e precisamente por isso o capítulo consagrado a Hobbes é um dos fundamentais - é a dupla hipótese de que "os grandes enunciados da filosofia política foram propostos em épocas de crise"3 3 Ibid.,p. 17. , e de que foram propostos a fim de "definir as condições necessárias para uma ordem política estável"4 4 Ibid., p. 30. . Ou, de outro modo, que a filosofia política é sempre um pensamento sobre a ordem, e que por isso mesmo encontra sua inspiração, sua matéria e sua justificação nas situações de desordem sobre as quais, e contra as quais, se levanta. Na Inglaterra do tempo de Hobbes, essa desordem conheceu a forma de uma revolução política, de um conflito religioso e de uma guerra civil de tal intensidade, que arrastaram toda a sociedade "à beira do nada"5 5 Ibid., p. 261. , e é exatamente essa situação, essa condição - "a condição do nada político"6 6 Ibid. — , que a ficção teórica do "estado de natureza" procura conceituar. Uma ficção sim, mas uma ficção que "comunicava aos homens do século XVII um significado vivido e nada fictício"7 7 Ibid. . Se me permitem colocá-lo em uma fórmula simples, diria que o estado de natureza em Hobbes é uma conceituação, e talvez também uma estilização - livre de extravagâncias, despojada de história "concreta" e levada às últimas conseqüências lógicas - da guerra civil.

Assim, o "experimento mental", como Luiz Eduardo Soares o chama, através do qual Hobbes configura a hipótese teórica do "estado de natureza", consiste em perguntar "o que ocorreria aos homens se subtraíssemos de seu convívio tudo o que resulta da presença organizada da sociedade e se extraíssemos deles todas as marcas dessa presença"8 8 Soares, Luiz Eduardo. E. A invenção do sujeito universal. Hobbes e a política como experiencia dramática do sentido. Campinas. UNICAMP, 1995, p. 214. , isto é, que ocorreria caso se produzisse exatamente essa situação de "'ruptura' na existência social"9 9 Wolin, S., op. 677., p. 283. que é uma guerra civil. Como atuariam os homens se, por exemplo, desaparecessem as "leis delimitando propriedades, determinando obrigações, distribuindo responsabilidades e definindo direitos, em nome de um poder supremo capaz de despertar confiança e temor? Como agiriam os homens se, por ausência de legislação e, conseqüentemente, por impossibilidade de definir o justo e o injusto, apenas dispusessem de suas paixões para distinguir o bem e o mal? Que tipo de convívio resultaria da inexistência de balizamentos institucionais amplamente reconhecidos e apoiados na obediência comum a um poder superior?"10 10 Soares, L. E., op. c/7., p. 213. Conhecemos, supostamente, a resposta a essa pergunta: nenhuma convivência entre esses homens "naturais" pensados por Hobbes seria possível. O que é outra maneira de dizer o que Wolin afirma: que essa ficção teórica que é o ''estado de natureza" representa em Hobbes a condição do mais perfeito nada político, e isso porque os homens, deixados em uma situação como a postulada por essa hipótese (e como a que a guerra civil, insistamos, materializa), simplesmente "matar-se-iam uns aos outros, como lobos, sem piedade, moderação ou pudor"11 11 Ibid., p. 214. . O que nos obriga a formular uma pergunta fundamental - fundamental para nós, fundamental na interpretação geral do pensamento do autor do Leviatã - , uma pergunta que, certamente, não deixou de ser colocada por gerações e gerações de leitores e críticos de Hobbes, e que é a seguinte: por quê? Por que se matariam uns aos outros ou poderiam chegar a matar-se uns aos outros, "como lobos", esses homens "naturais" pensados por Hobbes? Por que lutam entre si, ou estão dispostos a lutar entre si, e, eventualmente, a matar e morrer nessa luta, esses homens "naturais", esses homens fora do tempo, esses homens não submetidos ao poder coercitivo de nenhum Estado, deixados às suas próprias forças na intempérie hostil do "estado de natureza"?

Essa pergunta, fundamental, recebeu ao longo dos séculos respostas muito diferentes, e não há dúvida de que o próprio Hobbes tem alguma responsabilidade nisso. De fato, no famoso capítulo 13 do Leviatã, que trata "Da condição natural da humanidade relativamente à sua felicidade e miséria", lemos que as principais causas da luta entre os homens são o desejo de lucro, o de segurança e o de reputação, o que não nos dá um motivo para a guerra, mas três. Na natureza humana, escreve Hobbes, "encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória. A primeira leva os homens a atacar tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação"12 12 Hobbes, Thomas. Leviathan. London. Dent & Sons, 1914, p. 64. . Dessas três causas de conflito, a primeira, evidentemente, apresenta os homens "naturais" como portadores de valores burgueses ou proto-burgueses — o espírito de competição, a busca do lucro -, e o estado de natureza como uma estilização da sociedade civil moderna. A terceira, pelo contrário, os torna portadores de valores "aristocráticos" ou pré-modernos - a glória e a reputação —, e mostra o conflito e a guerra como resultado da incapacidade dos homens para deixar atrás valores incivilizados e abraçar o valor moderno, racional, secular, desencantado, em suma burguês, da paz. A segunda - a desconfiança -, apresenta, de sua parte, a imagem de uma suspeita difundida, de um conflito generalizado e de uma relação entre os homens caracterizada pela permanente inquietude de cada um sobre a tendência dos outros de por em risco sua própria vida.

Pois bem, é necessário nos determos um pouco sobre essas três causas da guerra consideradas por Hobbes, para advertir que não são apenas mutuamente exclusivas (o que é óbvio, mas uma questão à qual, de qualquer modo, voltaremos), mas, sobretudo, que essas três causas situam-se em níveis, por assim dizer, distintos, com estatutos diferentes, e que não há entre elas nenhuma simetria, e isso em dois sentidos diferentes. Em primeiro lugar, no sentido de que uma delas - a segunda, a desconfiança -alude a um traço que define o que poderíamos chamar a forma geral das relações entre os homens, enquanto as outras duas - o desejo de lucro e o de reputação - designam o que proponho chamar conteúdos sociológicos específicos dessas relações. Com efeito, a desconfiança é a forma geral das relações entre os homens no estado de natureza hobbesiano, porque nesse estado de natureza o homem, segundo Hobbes, atua — e não pode deixar de atuar, devido à inexistência de parâmetros e autoridade externos - "em função da expectativa da agressão preventiva alheia, a qual supostamente responderia, por antecipação, ao movimento reativo do primeiro à hipótese plausível, mesmo que não provável, da iniciativa defensiva e antecipatória do outro, que, por sua vez, se adiantaria defensivamente, ante a iminência do ataque preventivo"13 13 Soares, L. E., op. cit., p. 215. , e, assim, ad infinitum, independente da circunstância de que eu desconfie do outro (ou desconfie que o outro possa desconfiar de mim....) porque pense que ele constitui um obstáculo (ou que ele possa pensar que eu o constituo para ele, ou que ele possa pensar que eu talvez pense...) em minha busca de lucro ou em minha busca de glória. É nesse sentido que afirmava que a busca de ganho ou de glória constituem conteúdos sociológicos específicos das relações entre os homens "naturais" pensados por Hobbes, relações cuja forma geral, e independente deles, é a da desconfiança. Isso, por um lado.

Por outro lado, a segunda das três razões apontadas por Hobbes também se distingue das outras duas pelo fato de que, enquanto estas - a busca de benefícios e a ânsia de reputação , envolvem o universo irracional das paixões e do desejo - de bens ou de glória, mas sempre desejo -, a outra, que estamos destacando - a desconfiança -, inscreve-se na esfera dos comportamentos e das atitudes ditadas pelas razão, pela racional tendência humana à autoconservação. E, na medida em que essa tendência racional dita a atitude de prudente desconfiança que constitui a forma geral das relações entre os homens no estado de natureza hobbesiano, não se revela necessário, para compreender a hipótese hobbesiana do estado de natureza, imaginar tais homens "naturais" como escravos de seus desejos irracionais ou de suas paixões desenfreadas, e também não é necessário interpretar mal a alegoria do honro homini lupus acusando-os das mais reprováveis qualidades psicológicas, antropológicas ou morais. Como Soares explica muito bem, "para que a máquina de guerra natural seja ativada não é preciso que os homens sejam egoístas em extremo, perversos, covardes, corruptíveis, desleais, manipulativos, imoderadamente passionais, puramente interesseiros ou atados a ambições desenfreadas. Basta que eles sejam basicamente iguais, conscientes dessa igualdade - vale dizer, do caráter universal de sua razão natural - , racionais e inspirados pelo desejo de autoconservar-se"14 14 Ibid.,p. 216. . Não há porque atribuir ao homem natural hobbesiano - segundo a caricatura escolar da qual seria bom livrar-se - nenhum traço moral repudiável. Até é possível supor que todos, e cada um dos homens que se encontram no estado de natureza imaginado por Hobbes, sejam "razoavelmente generosos, zelosos de seus compromissos e da honorabilidade de suas palavras, preocupados com a sorte alheia e sinceramente interessados em cooperar"15 15 Ibid. . O problema é que no estado de natureza, isto é, repitamos, na hipotética ausência de uma garantia externa da paz, nenhum dos agentes pode excluir a hipótese de que outro possa querer alcançar seus propósitos - não importa quais sejam, se os bens, a glória ou algum outro - eliminando-o violentamente. Dito de outro modo, não é necessário, para provocar em um sujeito a atitude de prudência e desconfiança que estamos considerando, que esse sujeito possa identificar o outro como um assassino frio, desumano e cruel; basta que não possa descartar racionalmente a hipótese de que, talvez, o outro possa pretender conseguir seus fins de um modo que ameace sua própria vida. Porém, nem sequer é preciso que esse "outro" seja distinguível e identificável. Pelo contrário, é precisamente a dificuldade ou a impossibilidade de identificar aquele cujas estratégias, eventualmente, poderiam ameaçar minha vida, o que contribui para aumentar minha incerteza (traço fundamental do estado de natureza hobbesiano) e para pôr-me de guarda. E, de sobreaviso e alertado pela minha prudência e pela minha razão sobre o perigo que corro ou que posso correr (um perigo que se multiplica, além disso, se penso que o outro, ou qualquer um dos outros, que são iguais a mim, têm os mesmos motivos para suspeitar de mim e, de sua parte, pôr-se de guarda e pensar isso mesmo que estou pensando agora), não há nenhum motivo para que eu mesmo não tome a iniciativa (seria imprudente e irracional que não o fizesse) e comece a eliminar todos aqueles cuja mera existência constitui uma ameaça potencial à minha segurança. Observe-se que não há aqui — como sublinha Soares, com toda razão -, nenhum império desordenado das paixões, mas a "realização racional de previsões e de atos que as confirmam."16 16 Ibid.,, p. 219. O estado de natureza é o inferno da guerra de todos contra todos, porque a ausência de garantias externas para paz precipita a situação, inexoravelmente, em direção à realização das piores hipóteses que os agentes poderiam forjar. Mas é a razão, o "tempestuoso delírio da razão" para usar a feliz fórmula do próprio Soares, e não a paixão ou o desejo irracional, que preside essa precipitação.

Gostaria de deter-me um momento, sempre tendo à mão o sugestivo trabalho de Soares, para considerar o problema da inexorabilidade do desenlace fatal dessa situação "natural", na qual todos os agentes, movidos pela razão, contribuem para aproximar o que desejam afastar. Se trata da conhecida situação da "profecia auto-cumprida": do prognóstico que se torna verdadeiro a partir das condutas - tendentes, paradoxalmente, a conjurá-lo - que ele mesmo inspira; do destino trágico que, "previsto como hipótese plausível, concretiza-se como fortuna inexorável, ante a qual toda virtude é fundamentalmente impotente, porque simplesmente reedita o círculo destrutivo"17 17 Ibid., p. 215. . Não deveríamos passar por alto a aparição, nessa frase, das idéias de fortuna e de virtude - de fortuna "inexorável" e de virtude "fundamentalmente impotente" -, que já tivemos ocasião de examinar18 18 Em texto ainda inédito, sobre Shakespeare e Hobbes. , e que pertencem ao universo (já o dissemos e, agora, vemos confirmado) trágico das teorias da ação. Universo trágico contra o qual, e para conjurá-lo Hobbes levanta seu edifício.

O que este rápido olhar sobre a categoria hobbesiana do "estado de natureza" nos permitiu conhecer é a estrutura lógica dessa situação trágica contra a qual Hobbes tenta pensar. Recapitulando, podemos dizer que se trata de uma situação em que, dada uma certa premissa, um certo "horizonte de risco", os agentes nada podem fazer para evitar que tal horizonte se materialize como uma realidade, e correm, enlouquecidos de razão, ao encontro daquilo de que fogem. Assim, "a previsão produz o real que antecipa e comprova sua justeza".19 19 Soares, L. E., op. cit.. A profecia se auto-cumpre: "A virtualidade da guerra de todos contra todos, sendo o horizonte de risco, é, já, imediatamente, sua realização".20 20 Ibid. Como que antecipando de modo "ironicamente perverso" o famoso dictum hegeliano, o estado de natureza hobbesiano faz coincidir o real e o racional.21 21 Ibid., p. 219. Talvez seja exatamente esse o melhor modo de caracterizá-lo: não poderíamos definir o estado de natureza, com efeito, como o estado no qual, inexoravelmente, "toda potência se atualiza, toda realidade se resume ao cumprimento do destino trágico"22 22 Ibid., p. 215. , "todo ato se justifica e cumpre o prognóstico de si próprio" ?23 23 Ibid.,,p. 221. E, erguida contra a inexorabilidade do cumprimento do destino trágico, não poderíamos caracterizar a tentativa de Hobbes como a de restabelecer, entre a potência e o ato - entre o prognóstico e o diagnóstico, entre o destino e a realidade, entre o sonho e o pesadelo - , a distância, as mediações, que tornem possível ao compromisso autoconservador da razão não assumir a forma autodestrutiva que necessariamente assumirá fora do mundo pacificador das instituições? Essa será, efetivamente, segundo Soares, a função do contrato: "estabelecer distâncias, descontinuidades, autonomias, mediações, lacunas, defasagens".24 24 Ibid., p. 223. A lógica do contrato hobbesiano é a lógica da separação (contra a qual uma longa tradição de pensadores modernos, de Rousseau a, digamos, Guy Debord, não deixaram de levantar a voz), porque apenas a separação garante, segundo Hobbes, as condições para a vida.

2.

A desconfiança generalizada é, então, o signo geral - a forma geral, dizíamos - que assumem as relações entre os homens no "estado de natureza" imaginado por Hobbes - isto é, na ausência de um poder soberano comum. Porém, já indicamos que o próprio Hobbes acrescenta outros dois motivos, bem menos gerais e mais precisos, à lista de razões pelas quais os homens naturais lutam ou lutariam entre si. Dois motivos que, se o que sugerimos acima for certo, nos permitiriam, na medida em que aludem a alguns conteúdos específicos dessas relações, tentar uma espécie de "sociologia" do pensamento de Hobbes. De fato, essas outras duas interpretações, das três que a famosa passagem de Hobbes autorizaria - a que torna os homens "naturais" portadores de valores "burgueses", como a busca de lucro ou o espírito de competição, e a que os torna portadores de valores "aristocráticos", como a honra ou a ânsia de glória -, têm em comum permitir-nos pensar a obra de Hobbes como uma racionalização ou uma expressão, não necessariamente consciente, de certo momento na história das lutas sociais inglesas ou européias entre a aristocracia em decadência e a burguesia em ascensão.

Assim, a interpretação que faz da busca aristocrática da glória a principal causa dos conflitos e das guerras nos revelaria um Hobbes "burguês" ou "pró-burguês", cujo propósito, ao forjar esta ficção teórica que estamos considerando, parecia ser o de mostrar como a inscrição em um sistema de valores correspondente a uma etapa anterior do desenvolvimento econômico e dos costumes de uma classe - que por todas as partes começava a parecer anacrônica - , não podia levar, senão, à guerra e à destruição recíproca; e de convocar os homens de seu tempo, consequentemente, a abraçar valores mais civilizados e adequados: valores modernos, valores "burgueses". De sua parte, a interpretação que imagina o estado de natureza como uma estilização das lutas pela propriedade entre indivíduos que já são, eles mesmos, proprietários de sua própria pessoa e de suas capacidades (isto é, que já são "burgueses"), nos mostraria um Hobbes cujo retrato de tais lutas parecia procurar confrontar a burguesia - da qual o filósofo de Malmesbury surgiria como uma espécie de "ideólogo" - com o temível espelho do futuro que a esperava, caso ela não fosse capaz de criar as instituições políticas, o Estado político, que sua própria sobrevivência reclamava - como o tratamento hobbesiano desse estado de natureza parecia "provar". A primeira dessas duas interpretações é a que se destaca de um livro clássico e notável de Leo Strauss, The political philosophy of Hobbes; a segunda, a que surge do vigoroso e também muito influente The political theory of possessive individualism, de C. B. Macpherson. Vamos vê-las um pouco mais de perto.

Uma das teses mais fortes do livro de Strauss sobre Hobbes é a que afirma que a filosofia política do autor do Leviatã constitui uma ruptura definitiva com as tradições políticas e intelectuais anteriores, mas que, ao mesmo tempo, as fontes ou as bases desse exercício de ruptura com a tradição não devem ser buscadas no compromisso de Hobbes com a grande aventura racionalista da ciência moderna, mas no que Strauss chama sua atitude moral. A crítica de Hobbes às tradições deveria ser concebida, segundo Strauss, sobretudo como uma crítica aos valores morais tradicionais, contra os quais o próprio sistema filosófico-político hobbesiano se levantaria, de sua parte, não em nome de uma certa forma ("científica") do saber, mas em nome de um conjunto de valores morais diferentes, mais humanos e mais dignos. É nessa chave que Strauss retoma, em seu livro, a fórmula hobbesiana dos "dois mais verdadeiros postulados da natureza humana", que são -como se pode ler a certa altura do De Cive - o "apetite natural" e a "razão natural", mostrando que a causa e a origem do primeiro é "o desejo humano de satisfazer-se apreciando sua própria superioridade"25 25 Strauss, Leo. The political philosophy of Hobbes. Its Basis and its Genesis. The University of Chicago Press, 1963 [ 1936], p. 12. , isto é, a vaidade humana, e a causa e origem da segunda é "uma paixão, o medo da morte"26 26 Ibid.,., p. 15. , que entendemos, naturalmente, não como medo da "morte ela própria [mas da] morte violenta pela mão de outro homem"27 27 Ibid., p. 16 e ss. . Vê-se claramente a íntima relação entre esses dois postulados da natureza humana: por um lado, a vaidade dos homens leva cada um a enfrentar os outros e, daí, à guerra de todos contra todos; por outro, o temor da morte violenta nessa guerra modera em cada um o desejo de triunfar e o prepara para aceitar as condições que lhe permitiriam salvar sua própria vida. Posto desse modo, é fácil ver que a íntima relação entre os dois postulados da natureza humana é de perfeita c nítida oposição: se a vaidade conduz os homens, inexoravelmente, a um combate mortal e, nesse sentido, é um princípio - imoral - de destruição, o temor da morte violenta, único que pode conjurá-la, se erige como princípio - moral - de sociabilidade: "O Estado Artificial, que é o mais perfeito, surge quando os dois adversários são tomados de medo por suas vidas, superam a vaidade e a vergonha de confessarem seu temor, e reconhecem como real inimigo não o rival, mas 'aquele terrível inimigo da natureza, a morte', que, como inimigo comum, força-os à mutua compreensão, confiança e união..."28 28 Ibid.,, p. 22.

Percebe-se, então, no que consiste a operação de Strauss. Ao remeter cada um do dois grandes postulados da natureza humana de que falava Hobbes - o apetite natural e a razão natural - a suas últimas fontes - a vaidade e o medo da morte violenta -, o que faz Strauss é reescrever em chave moral a oposição que a leitura tradicional de Hobbes, como autor racionalista, pensava em chave científica. "Consequentemente, não é a antítese naturalista de um apetite natural moralmente indiferente (ou de uma luta humana por poder moralmente indiferente), de um lado, nem a luta pela autoconservação moralmente indiferente, de outro, mas é a antítese moral e humanista da vaidade fundamentalmente injusta e do medo da morte fundamentalmente justo, a base da filosofia política de Hobbes"29 29 Ibid, p. 27 e ss. .

O que gostaria de defender agora - sempre seguindo a argumentação de Strauss - é que essa oposição entre a "vaidade", entendida como um valor "fundamentalmente injusto", e o medo da morte violenta, concebido como um valor "fundamentalmente justo", constitui um capítulo fundamental da operação hobbesiana de ruptura com o passado e com as tradições, na medida em que a "vaidade" é identificada por ele com o universo da "honra" e da "virtude heróica", da coragem militar, da guerra e dos acontecimentos armados próprios do mundo -pré-moderno, pré-burguês - da aristocracia; e o medo da morte violenta, com seus corolários de justiça e caridade, é apresentado como o núcleo duro de uma "nova atitude moral"30 30 Ibid., p. 108. , que parte da crítica dessa virtude aristocrática, identificada agora com "a virtude da época bárbara, na qual 'a rapina era um negócio de vida'"31 31 Ibid., 114. , ou, simplesmente, reduzida "a uma virtude do estado de natureza"32 32 Ibid., 115. em nome das "regras burguesas de vida" 33 33 Ibid., 121. . Porque a moral hobbesiana, insiste Strauss, "é a moralidade do mundo burguês. Mesmo sua forte crítica da burguesia não tem outro motivo, no fundo, do que lembrar a burguesia da condição elementar de sua existência. Essa condição não é o trabalho e a frugalidade, não são as ações específicas da burguesia, mas a segurança do corpo e da alma"34 34 Ibid. , uma segurança que, como Strauss acrescenta imediatamente - e como a análise de Hobbes trata muito bem de nos fazer notar, como vimos -, "a burguesia não pode garantir por si própria."35 35 Ibid.

Vale a pena chamar a atenção para o fato de que esse objetivo final que, segundo a interpretação de Strauss, Hobbes perseguiria - o de revelar à burguesia alguns de seus verdadeiros problemas, perigos e interesses -, coincide com aquele apresentado por uma análise tão distinta de sua obra como a que C. B. Macpherson propõe, mesmo que esta última parta de uma resposta à pergunta que tínhamos formulado mais acima - por que os homens naturais em que pensa Hobbes estão dispostos a lutar entre si e a matar uns aos outros ? - radicalmente diferente da que Strauss oferece. Porque se este, como vimos, responde a essa pergunta apelando à terceira das causa "naturais" de conflito que o próprio Hobbes apontava, a da busca tipicamente aristocrática da glória, Macpherson atribui a esses homens naturais as características tipicamente burguesas que justificam a primeira dessas causas de conflito: a busca do lucro e o espírito de competição. Para Macpherson, esses eram os traços centrais que orientavam os comportamentos dos homens na sociedade "possessiva de mercado" efetivamente existente na Inglaterra da época de Hobbes a partir da qual - e este é um dos pontos centrais de sua argumentação - ele tinha construído a "hipótese lógica" do estado de natureza. E essa é uma questão fundamental para o filósofo canadense, que insiste com ênfase em que "o fato de ser o estado de natureza uma hipótese lógica, e não histórica" não deve ser entendido no sentido de supô-lo como uma hipótese forjada sobre a base de "serem completamente deixadas de lado as características humanas historicamente adquiridas"36 36 Macpherson, C. B., A teoria política cio individualismo possessivo. De Hobbes a Locke. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1979, p. 32. , mas no sentido de que se trata de uma dedução, lógica, sim, hipotética, mas realizada sobre a base da "natureza historicamente adquirida" 37 37 Ibid., p. 33. do homem. O estado de natureza hobbesiano, para Macpherson, "é uma afirmação quanto ao comportamento a que seriam levados os indivíduos (como são agora, indivíduos que vivem em sociedades civilizadas e que têm desejos de homens civilizados) se fosse suspensa a obrigação ao cumprimento de todas as leis e contratos"38 38 Ibid., grifo meu. Isto é, "para conseguir o estado de natureza, Hobbes deixou de lado a lei, mas não o comportamento e os desejos humanos socialmente adquiridos"39 39 Ibid. , comportamento e desejos que constituem, pelo contrário, a base dessa construção hipotética.

O que poderia, inclusive, ser dito de outro modo, afirmando-se que o "estado de natureza" não é algo que esteja fora dos homens ou entre eles, "em algum lugar ou época distante", mas "algo que está dentro dos homens", e que, inclusive, seria melhor nomear com alguma outra expressão, menos equívoca, tal como "a condição natural da humanidade".40 40 Ibid., p. 36. Essa "condição natural da humanidade" designaria, assim, o conjunto de "disposições 'naturais' dos homens na sociedade civil"41 41 Ibid. , disposições que, na ausência, esta sim hipotética, do medo "das conseqüências desagradáveis ou fatais"42 42 Ibid., p. 39. de violar a lei, conduziria inexoravelmente à penosa situação de guerra de todos contra todos. Essa indicação de Macpherson é fundamental por dois motivos. Em primeiro lugar, apenas supondo que as disposições naturais dos homens se encontram dentro deles, Hobbes poderia apelar, como fonte fundamental de legitimação de seus argumentos, a esse exercício que ele denominava "introspeção" - ponto sobre o qual Renato Janine Ribeiro chamou várias vezes a atenção . Para persuadir seus leitores da necessidade de um soberano, o método de Hobbes consistia, nas suas próprias palavras, em "apenas relembrar aos homens aquilo que já sabem, ou podem saber por experiência própria"43 43 (Elements of Law, parte i, cap. 1, secc. 2, p. I, cit. em Macpherson, p. 80) , e em derivar precisamente dessa "experiência própria" de seus leitores a necessidade de suas conclusões. Em segundo lugar, a indicação de Macpherson de que o "estado de natureza" não está fora dos homens, mas dentro deles, é fundamental para compreender que o corolário que Hobbes derivava da figura do "estado de natureza", ou seja, a necessidade dos homens de reconhecer um soberano capaz de protegê-los do medo recíproco, não integrava um programa teórico reconstrutivo das origens - se não históricas, lógicas - do Estado, mas um programa teórico-político dirigido ao coração de seu presente histórico. Hobbes não falava de homens hipotéticos ou antigos, mas de (ou a) homens de seu tempo, burgueses, aos quais queria ajudar, fazendo-os entender suas próprias paixões e necessidades. É aqui que a interpretação de Macpherson, formulada desde uma perspectiva teórica e ideológica tão diferente daquela proposta por Strauss, encontra um ponto de coincidência decisivo com ela e, isso, a partir de uma ênfase distinta deste em relação à pergunta da qual havíamos partido - por que é que os homens naturais pensados por Hobbes lutam entre si? -, e distinta das repostas que o próprio Hobbes oferece a essa pergunta.

3.

Em mais de uma ocasião Renato Janine Ribeiro discutiu a pertinência e o interesse desse tipo de interpretações que, em sua opinião, conferem demasiada importância a um aspecto do pensamento do filósofo inglês -o aspecto, digamos, "classista" ou, no caso, "burguês") - que dificilmente ele mesmo teria considerado tão fundamental, e deixam de lado, em troca, os problemas e as preocupações que realmente foram os seus. Essa hipótese de Renato Janine Ribeiro, amplamente desenvolvida em Ao leitor sem medo, volta a parecer agora em um texto recente do autor, "Thomas Hobbes, ou a paz contra o clero", sobre o qual gostaria de deter-me brevemente. Sobretudo, porque Janine Ribeiro insiste com muita força em algo que já insinuamos também, isto é, que o estado de natureza, o estado de guerra de todos contra todos, "não é uma simples hipótese a servir de contraponto ou alibi à paz instaurada pelo poder soberano"44 44 Ribeiro, Renato Janine, "Thomas Hobbes o la paz contra el clero" . in Atilio Boron (org.) La filosofia política moderna. De Hobbes a Marx. Buenos Aires. Clacso-Eudeba, 2000, p. 28." , mas o nome que Hobbes dá a uma situação perfeitamente conhecida por ele e por seus contemporâneos, e que não tinha nada de hipotética, nem de conjectural: a guerra civil, "a genuína ameaça a todos nós ou, pelo menos, aquilo contra o qual Hobbes escreve"45 45 Ibid., p. 30. . Portanto, Hobbes escreve contra a guerra civil, contra a guerra civil que pouco antes tinha sacudido seu país e que constituía sempre uma ameaça para os frágeis poderes políticos estabelecidos, e a essa guerra civil dá o nome de "estado de natureza". O que vai um pouco além da afirmação, já feita por nós, e que tanto Strauss como Macpherson aceitariam sem problemas, de que a guerra civil inglesa é o "contexto" sobre o fundo a partir do qual Hobbes escreve; e também vai um pouco mais além de afirmar, como igualmente fizemos, que o "estado de natureza" constitui uma estilização dessa guerra civil. Para Janine Ribeiro, insisto, a guerra de todos contra todos é, simplesmente, a guerra civil. De onde deriva uma conclusão fundamental, segundo a qual, para conhecer as causas dessa guerra de todos contra todos deveríamos examinar quais tinham sido para Hobbes as causas da guerra civil. E esse é exatamente o tema de um dos livros de nosso filósofo, o Behemoth, "livro de menor pretensão teórica", diz Janine Ribeiro, que o Leviatã, o De Corpore Político e o De Cive, mas "que mostra com precisão como e porque se produz a condição da guerra"46 46 Ibid., p. 29. . Pois bem, a tese do Behemoth de Hobbes, segundo Janine Ribeiro, é de que "a guerra de todos contra todos não é simples desordem, não é mera carência de ordem. Ela é produzida pela existência, no interior do Estado, de um partido. [...] É conseqüência da ação de um contrapoder, que se move nas sombras"47 47 Ibid., p. 20. . E esse contrapoder, responsável, causador e beneficiário dessa situação de guerra, é, para Hobbes, o clero. A palavra, desmedida e descontrolada, sedutora e sediciosa - sediciosa porque sedutora - do clero ou dos diversos cleros que pretendem deter as chaves do acesso ao absoluto, monopolizar o passaporte à satisfação ou à dor eternas, colonizar através do medo o Além, as consciências e os corações dos homens e, assim, semeando entre eles devastadoras doutrinas e opiniões, erodir a legitimidade dos poderes estabelecidos do Estado. Na interessante comparação sugerida por Janine Ribeiro, a sistemática vontade subversiva do clero ocupa, no pensamento de Hobbes, "o lugar que seria o do gênio maligno ou grande embusteiro na filosofia de Descartes"48 48 Ibid, p. 29. , no entanto, o "erro" que essa vontade subversiva promove entre os súditos do Estado não tem a forma de uma soma mal feita ou de um raciocínio equivocado, e sim, a de uma falha moral e política cujo resultado é a destruição da sociedade, não apenas como objeto de conhecimento, mas, sobretudo, como espaço de convivência possível entre os homens.

Percebe-se agora porque Janine Ribeiro impugna as interpretações da figura hobbesiana do "estado de natureza" que vínhamos considerando, pois o problema crucial de Hobbes "na relação com os atores políticos e sociais de seu tempo não estava nos capitalistas, mas nos eclesiásticos. O clero, e não o capital, é o grande ator contra o qual Hobbes trabalha". É óbvio que o ponto de vista de Hobbes sobre sua época e sobre sua obra não tem que ser o único ponto de vista para se julgar qualquer uma das duas, e que certo "anacronismo" voluntário poderia ser considerado bem menos um obstáculo do que a condição mesma para um pensamento crítico sobre um autor e uma obra, de modo que, julgar a obra de Hobbes a partir da maneira corno ele próprio a julgava também não nos dá, a priori, todas as garantias. Mas há algo que, sem dúvida, ela nos dá, e que é, a meu ver, um primeiro mérito do enfoque proposto por Janine Ribeiro. Trata-se da possibilidade de pensar a obra do autor do Leviatã em uma chave muito mais política, ou mais imediatamente política, do que aquela produzida pelas outras duas interpretações. Isto é, pensar a obra de Hobbes como a de alguém que estava combatendo, durante ou logo após a guerra civil que tinha ensangüentado seu país, a hegemonia cultural e ideológica de um determinado grupo político - o clero ou casta sacerdotal -, e que tentava construir em seu lugar uma hegemonia alternativa. Alguém que concebia a construção dessa hegemonia alternativa, erguida sobre um eixo que já não devia ser a Igreja, mas o Estado, como própria condição de possibilidade da paz.

O Leviatã que surge, então, dessa leitura é menos abstrato e mais histórico; digamos, mais "gramscianamente" histórico - não é por acaso que usamos a palavra "hegemonia" algumas linhas acima e voltaremos a ela - do que o que resulta de uma leitura menos "contextual" da obra de Hobbes. Porém, há mais. Existe um segundo motivo pelo qual nos interessa pensar o estado de natureza, a partir da proposta de Janine Ribeiro, como uma alegoria da guerra civil, e a guerra civil como a conseqüência da ação sediciosa de um grupo específico, o clero; tal interpretação permitiria oferecer uma nova resposta, distinta das três que surgem do próprio texto hobbesiano - "Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; Terceiro, a glória" -, à pergunta que a descrição hobbesiana desse "estado de natureza" coloca e com a qual estamos lidando: por que os homens, no estado de natureza, lutam ou estão dispostos a lutar entre si? A interpretação de Janine Ribeiro lança uma nova luz sobre essa velha pergunta, pois nos permite pensar que há pelo menos alguns homens que lutam pelo poder, e homens importantes, como já dissemos, que são os padres. Então, junto com o lucro, a segurança e a honra, o poder aparece aqui como uma quarta e decisiva causa de luta entre os homens e de ameaça à paz das sociedades e dos estados - e tanto Norberto Bobbio como Luiz Eduardo Soares, em seus livros sobre Hobbes, estariam de acordo com essa ênfase.

4.

Porém, as respostas possíveis à pergunta sobre as razões pelas quais os homens naturais imaginados por Hobbes estariam dispostos a combater uns aos outros não terminam aqui. Claudia Hilb sugeriu, por exemplo, a possibilidade de "suspeitar que o que os homens hobbesianos disputam, bem freudianamente, são as mulheres"49 49 Hilb, Claudia, "La violencia en la teoria política" in Arturo Fernández e Silvia Gaveglio (orgs.) Globalizatión, fragmentación social y violencia. Rosario. Homo Sapiens, 1997, p. 19. , o que sem dúvida é menos evidente, mas certamente não menos interessante, e é bem possível que outras interpretações pudessem ser acrescentadas. Evidentemente, o primeiro que teria que se dizer dessa acumulação de interpretações é que, como já foi antecipado com relação às três causas de conflitos propostas pelo próprio Hobbes, não parecem mutuamente exclusivas. Norberto Bobbio, por exemplo, sublinha a insistência de Hobbes, entre as paixões geradoras de disputas, na vangloria, mas apenas para acrescentar imediatamente que isso se deve ao fato de Hobbes considerá-la "como a manifestação mais visível do desejo de poder". Isto posto, em segundo lugar, e em um sentido talvez um pouco mais profundo, o que estou tentado sugerir mediante a apresentação de diferentes interpretações sobre esse ponto, é que talvez não seja importante saber qual o motivo - supondo que exista algo assim, como um motivo único ou pelo menos principal -que leva os homens hobbesianos a manter entre si as relações de antagonismo que caracterizam seus vínculos "naturais". Que talvez não seja necessário "fixar" esse antagonismo em um tipo específico de conflito, mais ou menos identificável, pois pode ser que o que interesse esteja na descoberta hobbesiana da lógica do antagonismo como tal.

É possível que, em Hobbes, os homens lutem entre si pelas mulheres, ou por prestígio, ou por poder. Porém, é possível também pensar "as mulheres", "o prestígio" e "o poder", menos como um conjunto de entidades, do que como o nome que damos a um objeto de desejo, que sempre é, nos lembra Hilb, seguindo nisso René Girard, um desejo mimético, "desejo do objeto desejado pelo outro". E, se Luiz Eduardo Soares, no livro que já consultamos, estiver certo, "um objeto do desejo que se ponha, não como falta, mas como substância ontológica, tangível, manipulável e apropriável, representa uma contradição em termos".50 50 Soares, L. E., op. cit., p. 223. Estou sugerindo que, talvez, o que interessa em Hobbes não seja tanto a descoberta de que tal ou qual conflito particular - por bens, poder, prestígio, mulheres - organiza as relações dos homens, e sim a descoberta de que é a lógica do antagonismo a que preside essa cena abismai do Real da política que ele, possivelmente, foi o primeiro a descrever. Porque, efetivamente, talvez não fosse descabido sugerir que o primeiro tratamento sistemático das características, do lugar e da função desse campo do Real da política foi o de Hobbes. Real este que, de Jacques Lacan a Slavoj Zizek ou a Ernesto Laclau, nunca teve lugar e se organiza em torno de uma lógica do conflito. Que, então, o primeiro tratamento do conflito e do antagonismo como o Real da política pode ser encontrado na descrição do estado de natureza realizada por Hobbes. Ainda de outra forma? Que talvez em Hobbes o antagonismo não seja o nome de um conflito em particular, mas o nome da própria impossibilidade do fechamento do campo social.

É com essa suspeita que podemos abrir, proveitosamente, um dos sugestivos livros de Slavoj Zizek, El Sublime objeto de Ia ideologia, onde encontramos uma valiosa discussão da idéia lacaniana do Real aplicada ao campo do social e do político. Na perspectiva aberta pelo psicanalista francês, o Real (o trauma) pode ser pensado como uma espécie de núcleo duro que resiste à simbolização, que não se deixa prender nas redes do simbólico, que persiste em seu lugar e sempre volta a ele. Mas ao mesmo tempo, como algo relativamente ao qual não importa saber se teve lugar, se "'realmente" ocorreu. Ou ainda, como algo que realmente (na realidade) "não existe", que nunca aconteceu, mas que apesar disso, "tem uma série de propriedades, exerce uma causalidade estrutural, pode produzir efeitos na realidade simbólica dos sujeitos"51 51 Zizek, Slavoj. El sublime objeto da Ia ideologia. México. Siglo XXI, 1992, p. 213. . Não existir e, entretanto, produzir efeitos, efeitos de estruturação do sujeito, efeitos de organização da realidade, efeitos na produção dos discursos, é o extraordinário paradoxo do Real lacaniano. Zizek oferece dois exemplos interessantes de entidades "reais" (de traumas "reais") nesse sentido. Um é o da luta mortal entre o senhor e o escravo na Fenomenologia do Espírito de Hegel. É evidente que nesse caso, como diz Zizek, "não há sentido em tentar determinar quando esse acontecimento teve lugar; trata-se precisamente da necessidade de se pressupor que ele constitui um argumento da imaginação implícito no próprio fato de que as pessoas trabalhem"52 52 Ibid.. . O Real, como vemos, "é uma entidade a ser construída posteriormente para que possamos explicar as deformações da estrutura simbólica"53 53 Ibid., p. 212. - no caso, o fato de que as pessoas trabalhem estabelecendo relações instrumentais umas com as outras -, "uma causa que em si não existe, que está presente apenas em uma série de efeitos"54 54 Ibid., p. 214. . Aconteceria outra coisa com o estado de natureza-guerra conceituado por Hobbes? Tal estado de natureza-guerra hobbesiano não poderia ser definido exatamente como um núcleo impossível desse tipo? Ou melhor, por acaso a imagem hobbesiana do estado de natureza-guerra não caracterizaria exatamente isso que Laclan e Mouffe chamaram antagonismo, e que Zizek caracteriza como "um certo limite que em si não é nada"55 55 Ibid., p. 214. , um ponto traumático que impede o fechamento do campo social e que se manifesta apenas em seus efeitos, no fato de que toda tentativa de totalizar esse campo social está condenada ao fracasso? O segundo exemplo oferecido por Zizek de uma entidade real é o exemplo freudiano do parricidio original. Também aqui, obviamente, seria insensato buscar em algum ponto da realidade histórica ou pré-histórica o "lugar" desse parricidio original, ainda que não o seja buscar suas marcas, seus efeitos ou seus "vestígios", os vestígios desse fato que nunca ocorreu, mas que permanecem e, como se diz, nos "constituem" e constituem a cultura; e ainda que, inexoravelmente, tenhamos que pressupor esse ato de violência originária "se queremos explicar o atual estado de coisas"56 56 Ibid. p. 213. . Novamente, não seria esse o caso da categoria central do autor do Leviatã, o estado de natureza?

O que estou propondo, então, é que o primeiro tratamento sistemático do antagonismo como o Real da política corre por conta de quem com mais energia tentará depois erguer as mais altas muralhas contra a ameaça terrível que tal antagonismo sempre renovado suscita no mundo social; de quem com maior lucidez e decisão delineará as coordenadas de um modo de se pensar a política - aquele no qual ainda estamos presos e que ainda nos governa - que permita concebê-la sempre como algo próximo desse exterior temível, dessa intempérie desoladora e ameaçadora. Essa tensão, já dissemos57 57 No trabalho referido na nota 18 , é a tragédia do pensador militantemente antitrágico em seu projeto teórico e político, mas profundamente trágico em sua concepção última das coisas e na compreensão da inutilidade de todos os esforços para afastar o fantasma da desordem, que foi Hobbes; talvez, o primeiro a compreender a pavorosa verdade de que - para usar a paráfrase lacaniana de Ernesto Laclau - "a sociedade não existe", não pode existir.

E, para Hobbes, era necessário que a sociedade existisse. O fantasma da desagregação de todos os laços sociais, da perda das referências comuns, da luta de todos contra todos é, como já foi dito tantas vezes, e como nós mesmos temos dito tantas vezes ao longo destas páginas, a tela de fundo sobre a qual Hobbes constrói sua teoria e a forma daquilo de que é necessário fugir, a forma daquilo que é necessário conjurar. Para isso, Hobbes propõe fundar novamente, contra a disseminação dos sentidos, contra os usos metafóricos e figurativos da linguagem, um Logos obrigatório e universal, única garantia da paz e da ordem. Ora, já dissemos que, ao mesmo tempo, ninguém esteve mais consciente do que Hobbes a respeito da fragilidade e da precariedade dessa ordem, que, além do mais, ele já não podia supor como natural, e sim, como produto da arte e das convenções dos homens. Que Hobbes sabe muito bem que o fechamento de sentido que procura, o cancelamento da existência de validade plural para as palavras, a eliminação do fantasma da desordem, o afastamento definitivo do espaço pré-político da guerra e do desentendimento recíproco, já não podem ser feitos apelando-se à existência de alguma ordem prévia, de algum significado verdadeiro das palavras situado sabe lá em que substrato profundo da realidade ou de alguma essência verdadeira da comunidade que seria tarefa da política realizar.

Dito de outro modo, que Hobbes sabe, melhor do que ninguém, que o mundo está, sempre e constitutivamente, fora dos eixos, out of joint, e que sabe também da necessidade de provê-lo de algum tipo de ordem para que a convivência entre os homens seja possível, para que a vida em comum das pessoas possa começar. Sendo tal ordem, que é necessário construir, precisamente isso, uma construção, um constructo, um artifício, sua viabilidade não pode depender, senão, da existência de um poder político estatal que a garanta e a sustente. Do que deriva a centralidade do problema da obediência no pensamento hobbesiano. De fato, na medida em que o Leviatã é, para Hobbes, a garantia da soberania do Logos, e esta a condição de possibilidade para a convivência pacífica entre as pessoas, garantir obediência ao Leviatão torna-se para ele uma e a mesma coisa que garantira possibilidade mesma da vida civil. O que nos leva à seguinte questão: como é possível garantir, para Hobbes, essa obediência indispensável? Em outras palavras, por que razão, segundo Hobbes, estariam os cidadãos obrigados a obedecer o poder político estatal? Sabemos que só uma coisa pode obrigá-los a isso: a própria vontade, expressa livremente através do contrato. Aqui está, então, a outra peça chave do sistema hobbesiano, o contrato, que deveremos examinar com maior cuidado. Mas não aqui. Será motivo de outro exercício mais ou menos semelhante.

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  • *
    "EI estado de la natureza, o el antagonismo como lo real de la política. (Un ejercicio con el pensamiento de Hobbes). Tradução de Encarnación Moya.
  • 1
    Wolin, Sheldon.
    Política y perspectiva. Continuidad y cambio en el pensamiento político occidental. Buenos Aires. Amorrortu, 1973, p. 282. Todas as citações são dessa tradução de
    Politics and Vision. Continuity and Innovation in Western Political Thought.
  • 2
    Ibid.
  • 3
    Ibid.,p. 17.
  • 4
    Ibid., p. 30.
  • 5
    Ibid., p. 261.
  • 6
    Ibid.
  • 7
    Ibid.
  • 8
    Soares, Luiz Eduardo. E.
    A invenção do sujeito universal. Hobbes e a política como experiencia dramática do sentido. Campinas. UNICAMP, 1995, p. 214.
  • 9
    Wolin, S.,
    op. 677., p. 283.
  • 10
    Soares, L. E.,
    op. c/7., p. 213.
  • 11
    Ibid., p. 214.
  • 12
    Hobbes, Thomas.
    Leviathan. London. Dent & Sons, 1914, p. 64.
  • 13
    Soares, L. E.,
    op. cit., p. 215.
  • 14
    Ibid.,p. 216.
  • 15
    Ibid.
  • 16
    Ibid.,, p. 219.
  • 17
    Ibid., p. 215.
  • 18
    Em texto ainda inédito, sobre Shakespeare e Hobbes.
  • 19
    Soares, L. E.,
    op. cit..
  • 20
    Ibid.
  • 21
    Ibid., p. 219.
  • 22
    Ibid., p. 215.
  • 23
    Ibid.,,p. 221.
  • 24
    Ibid., p. 223.
  • 25
    Strauss, Leo.
    The political philosophy of Hobbes. Its Basis and its Genesis. The University of Chicago Press, 1963 [ 1936], p. 12.
  • 26
    Ibid.,., p. 15.
  • 27
    Ibid., p. 16 e ss.
  • 28
    Ibid.,, p. 22.
  • 29
    Ibid, p. 27 e ss.
  • 30
    Ibid., p. 108.
  • 31
    Ibid., 114.
  • 32
    Ibid., 115.
  • 33
    Ibid., 121.
  • 34
    Ibid.
  • 35
    Ibid.
  • 36
    Macpherson, C. B.,
    A teoria política cio individualismo possessivo. De Hobbes a Locke. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1979, p. 32.
  • 37
    Ibid., p. 33.
  • 38
    Ibid., grifo meu.
  • 39
    Ibid.
  • 40
    Ibid., p. 36.
  • 41
    Ibid.
  • 42
    Ibid., p. 39.
  • 43
    (Elements of Law, parte i, cap. 1, secc. 2, p. I, cit. em Macpherson, p. 80)
  • 44
    Ribeiro, Renato Janine, "Thomas Hobbes o la paz contra el clero" . in Atilio Boron (org.)
    La filosofia política moderna. De Hobbes a Marx. Buenos Aires. Clacso-Eudeba, 2000, p. 28."
  • 45
    Ibid., p. 30.
  • 46
    Ibid., p. 29.
  • 47
    Ibid., p. 20.
  • 48
    Ibid, p. 29.
  • 49
    Hilb, Claudia, "La violencia en la teoria política" in Arturo Fernández e Silvia Gaveglio (orgs.)
    Globalizatión, fragmentación social y violencia. Rosario. Homo Sapiens, 1997, p. 19.
  • 50
    Soares, L. E.,
    op. cit., p. 223.
  • 51
    Zizek, Slavoj.
    El sublime objeto da Ia ideologia. México. Siglo XXI, 1992, p. 213.
  • 52
    Ibid..
  • 53
    Ibid., p. 212.
  • 54
    Ibid., p. 214.
  • 55
    Ibid., p. 214.
  • 56
    Ibid. p. 213.
  • 57
    No trabalho referido na nota
    18 18 Em texto ainda inédito, sobre Shakespeare e Hobbes.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      2000
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