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RESENHAS

Dulce Whitaker

Socióloga e Professora da UNESP-Araraquara

O Saber Militante, Ensaios Sobre Florestan Fernandes

Org: Maria Angela D'Incao

Editora: UNESP/Paz E Terra, Rio de Janeiro, 1987.

Ao organizar um livro de Ensaios sobre Florestan Fernandes, a professora M. Angela D'Incao transcendeu os propósitos manifestos da obra em questão (a merecida homenagem a um dos luminadores da nossa Sociologia) e acabou produzindo uma coletânea perfeitamente enquadrável como urna obra de Sociologia da Sociologia Brasileira.

O livro reúne ensaios elaborados para a Jornada de Estudos Florestan Fernandes, realizada em maio de 1986 na Faculdade de Filosofia, Educação e ciências Sociais e da Documentação da UNESP em Marilia, e apresenta seqüência fascinante de textos. Captar o sociólogo através daqueles que ensaiaram interpretá-lo, implica em verdadeira revisão da evolução do "Pensamento Social" em nosso país - o que vale dizer, das Ciências Socrais, e principalmente da Sociologia, enquanto disciplina acadêmica - e resulta na compreensão de como essa evolução foi dramaticamente marcada pela modernização, pelo desenvolvimento e pela exacerbação do autoritarismo em nosso país.

Os primeiros textos procuram reconstruir a figura do mestre erudito na antiga Faculdade de Filosofia da Rua Maria Antônia em São Paulo. Através do depoimento de Fernando Henrique Cardoso vamos encontrá-lo, já àquela época, transmitindo "aquela paixão pela vida intelectual" e "aquele rigor científico" que se associavam a "uma espécie de ira sagrada contra a injustiça". Considero fundamental a reconstrução dessa imagem, e gostaria de remeter esses primeiros textos aos nossos estudantes de hoje, para que conheçam o modelo de como se forma um saber militante: em primeiro lugar, uma sólida formação teórica - alguém que mergulha no conhecimento profundo dos autores fundamentais e estimula seus alunos a acompanhá-lo, sem dogmatismos, sem preconceitos contra este ou aquele autor, até porque se precisa conhecer bem exatamente aqueles aos quais se deseja refutar; a seguir, uma constante indagação sobre a função e o compromisso do intelectual mas sempre inspirada em sólida base teórica, e nunca dogmática. Conforme lembra ainda Fernando Henrique Cardoso, "Florestan nos obrigava a ler os trabalhos mais maçudos de Mannheim", porque ao tentar compreender o seu conceito de utopia e refletir sobre a função do intelectual, o mestre incentivava a todos a tatearem na busca de entender como o sociólogo se situa na sociedade.

Talvez esteja aí um dos fatores explicativos da coerência política do atual Deputado Constituinte, cujos artigos publicados hoje à página 3 da Folha de S. Paulo são verdadeiro antídoto contra certas "Tendências" ali expressas, por trazerem justamente ao debate e à crítica nossas estruturas sociais paralisantes. Ninguém como ele para percebê-las e explicá-las em seus eficientíssimos mecanismos de conservação, os quais lhes permitem estar constantemente a se modernizarem sem que produzam as transformações substanciais que promoveriam os "deserdados" de toda ordem aos benefícios do progresso material restrito à minoria de privilegiados.

A seqüência dos ensaios nos revela como foi possível ao sociólogo militante formar essa visão tão lúcida do maquiavélico conservantismo brasileiro travestido de modernização. Sua apreensão da sociedade nacional foi elaborada de forma tensa e envolvente - historicamente, de dentro para fora. Começa pelo estudo do Folclore - tema aparentemente marginal e sobre o qual polemizou muito. Isto lhe permitiu de início compreender uma das âncoras da resistência e da identidade cultural dos oprimidos. A seguir estudou o Índio, em obras que marcaram época. Ao estudar o Negro, ajudou a denunciar o farisaísmo racista que marca sua condição, justamente naquela que se diz ser a sociedade moderna nacional. Conforme assinala Octavio lanni, o sociólogo submete a situação desses atores oprimidos à sua perspectiva crítica: "são índios, negros e imigrantes, escravos e livres, trabalhadores da cidade e do campo que reaparecem no movimento da História". O mesmo autor remarca: "As mais notáveis propostas teóricas da Sociologia são avaliadas, questionadas e recriadas, tendo em conta a compreensão das suas contribuições para apanhar os andamentos da realidade social".

Ao "dissecar" a sociedade dos colonizados, lança mão, portanto, das teorias mais adequadas, tomando-se o conhecedor por excelência das nossas especificidades, sem o dogmatismo estéril que explica tudo sem levar em conta o movimento do real.

Essa formação teórica totalizadora permitiria, ao longo dos anos, essa interpretação precisa da história das nossas estruturas, que se concretizou na obra A Revolução Burguesa no Brasil.

Mas voltemos aos textos que compõem o livro. Extraordinariamente bem articulados, caminham naturalmente o leitor no sentido de captar a formação totalizadora do sociólogo. Conforme assinala Gabriel Cohn, "A disposição (de Florestan Fernandes) para articular modalidades diversas de acesso à realidade social, para mobilizar formulação metodológica e esquemas teóricos diversos no interior da mesma pesquisa, é uma maneira de dar conta da tensão entre a inserção prática angustiada, tensa - e, por que não dizer, em muitos momentos contraditória no seu mundo - e as exigências da consistência interna, do acabamento, da integridade da obra".

Essa genialidade projeta seu nome internacionalmente, o que fica patente no texto elaborado por um "scholar" de Oxford - o professor Herminio Martins - que homenageia o sociólogo militante pelo apoio que sempre deu aos que se opuseram à ditadura Salazarista. Num estilo ao mesmo tempo leve, erudito e irônico, o professor Martins discorre sobre a "crise da totalidade" a nível internacional. £ aqui começa a se aprofundar o que considero nessa obra a Sociologia da Sociologia Brasileira. Maria Angela D'Incao chama atenção para a ênfase que seu homenageado deu aos estudos da mudança social. Ao fazê-lo, constrói um texto denso, com dois registros: no primeiro deles, homenageia a maneira correta como o sociólogo analisou a mudança social, preocupado com valores da educação e da participação, enquanto no segundo revela preocupações com os caminhos teóricos de uma Sociologia que deve dar conta da multiplicidade de culturas e modos de vida do planeta: "Se a Sociologia é uma ciência, e como tal, tem código e linguagem racionais, 'civilizados', quais seriam suas chances de dar conta democraticamente da diversidade da sociedade?"

Também preocupado com a mudança, porém em outro sentido, José César Gnaccarini nos surpreende mostrando o lugar importante ocupado pelos estudos sobre folclore na obra de Florestan. Na mesma linha, afirma Claude Lepine, "o estudo do negro e das relações raciais no Brasil não representa na obra de Florestan Fernandes, algo secundário ou marginal, mas, segundo me parece, o problema concreto de onde partem suas reflexões posteriores, sua análise da formação e da evolução da sociedade brasileira"(grifos desta autora).

Lepine lembra ainda o compromisso do sociólogo com os oprimidos, o que levou-o, não só a denunciar o mito da democracia racial brasileira, como a advertir negros e brancos para se reeducarem para a sociedade democrática.

Tanto Gnaccarini como Lepine enfatizam aquela idéia tão presente em Florestan Fernandes de que o "desejar algo socialmente" é que amplia nossa capacidade de percepção do social. Mas onde vamos encontrar a síntese do significado do sociólogo do terceiro mundo e da História da Sociologia do terceiro mundo é, não por acaso, no texto de um historiador. Carlos Guilherme Mota utiliza-se de afirmações do próprio autor para definir a experiência do sociólogo do terceiro mundo:

"sua experiência humana é impar, comparada com a do scholar europeu ou com a do sociólogo acadêmico norte-americano. Nós não dispomos de um nicho para abrigarmo-nos: em compensação, podemos receber em toda plenitude a luz do sol, que cresta e castiga, mas ilumina, aquece e fecunda o cenário da vida"

A conclusão de Florestan, enfatizada por Mota, é de que a sociedade que não pode oferecer segurança e sossego ao sociólogo, projeta-o no "âmago dos grandes processos históricos em efervescência."

Mota observa no entanto que o "intelectual do terceiro mundo", no caso em questão, fez escola, e registra sua influência nos Estados Unidos e em diferentes países da América Latina, nos quais jovens pesquisadores se voltaram para ele em busca de critérios científicos e interdisciplinariedade, fugindo "ao dogmatismo reinante então no pensamento marxista."

Nada escapou à perspectiva crítica de Florestan. Jorge Nagle chama atenção para sua fecunda contribuição aos estudos sobre educação em relação aos quais desenvolveu um verdadeiro "pensamento para a reconstrução". Nagle parece refletir, junto com Florestan, sobre as deformações do nosso ensino superior, criticando o dogmatismo do conhecimento e a preocupação com a formação de profissionais liberais que obstaculizaram "a produção de conhecimento original nas Universidades".

Os exemplos acima são suficientes para mostrar a estimulação oferecida pela interação entre diferentes tipos de pensamento social. Cada autor estabeleceu com o "sociólogo militante" uma comunicação que desencadeia suas próprias preocupações. É óbvio que os diferentes ensaístas nem sempre estão de acordo com as teorias que analisam. Ao polemizarem com Florestan, muitos deles revelam ainda mais claramente as ricas possibilidades desse tipo de Sociologia da Sociologia. Ora estimulantes, ora intrigantes, tais polêmicas - que vicejam principalmente em torno de "A Revolução Burguesa no Brasil" - oferecem vasto material para interpretações da ideologia do pensamento social.

O texto de Florestan que encerra a coletânea destaca o caráter saudável dessas polêmicas, lamentando o isolamento em que viveu na cidade de São Paulo, ao regressar do Canadá. Recorda "o lado duro de ser intelectual numa sociedade que é moderna na superfície e rústica nas suas profundezas". E coloca o dedo na ferida, quando destaca o isolamento em que vivem os intelectuais brasileiros, ignorando-se mutuamente nos corredores das Faculdades. Ressalta então o caráter excepcional da jornada que o homenageou, entusiasmado com a presença da juventude. É comovente a sua modéstia quando se recorda e a Antônio Cândido como "a geração between" intermediários entre os professores europeus e os jovens estudantes brasileiros, reabilitando os manuais para permitir a transição entre a escola secundária e a Universidade. Ainda dirigindo-se aos jovens, constata a existência cada vez maior de estudantes de origem social semelhante à sua dentro das Universidades, e propõe revolucioná-la para que os pobres e negros se tornem visíveis dentro dela. Coerente com sua visão otimista, constata que a Universidade rompeu com seus medos ancestrais.

O livro é um balanço da sociologia brasileira nos últimos 30 anos e oferece à leitura mais atenta a análise dos ricos e tortuosos caminhos que ela teve que percorrer para captar as especificidades das estruturas sociais complexas que se formam sob o capitalismo selvagem no terceiro mundo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Out 1988
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