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A teologia da libertação no banco dos réus

PENSANDO O BRASIL

A teologia da libertação no banco dos réus

entrevista de Ralph Delia Cava

As recentes punições sofridas pelos teólogos brasileiros Leonardo Boff — condenado a um ano de silêncio — e Clodovis Boff — proibido de lecionar teologia em qualquer estabelecimento de ensino da Igreja — são apenas mais um episódio de uma luta interna que atinge a Igreja Católica em nível mundial.

As origens da Teologia da Libertação, o seu desenvolvimento e as suas conseqüências são focalizados nesta entrevista que o brasilianista Ralph Delia Cava — especialista em Igreja e História do Brasil e da América Latina — concedeu a LUA NOVA e que está sendo publicada simultaneamente no jornal do Queens College, de Nova Iorque.

Pergunta: Qual o impacto que o documento publicado pela Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé terá, sobre o setor da Igreja que adotou a teologia da libertação como fonte de inspiração e práxis para o seu engajamento?

RALPH DELLA CAVA: No fundamental, ele coloca este setor na defensiva. Logicamente, o documento é genérico e não detalhado. Não existem nomes, livros e escritos determinados que estejam sendo diretamente questionados. Mesmo assim, horas após a publicação oficial desse documento, as conferências de bispos de todo o mundo imediatamente o endossavam, e expressavam sua solidariedade para com o Santo Ofício e o Santo Papa, em defesa daquele documento.

Mas a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que reúne 350 bispos, dos quais no mínimo um quinto a um terço destes estão claramente identificados com o experimento das Comunidades Eclesiais de Base e com os sentimentos de liberação teológicos (...) mesmo esta Conferência de Bispos, expressou sua total solidariedade para com o Santo Padre.

A conseqüência disso é que os teólogos da libertação encontram-se agora numa situação incômoda terrível. Daqui em diante eles terão que provar que não são alvo da artilharia do Vaticano. Somente depois de provarem que não são esse alvo, é que poderão ir em frente. E terão que agir daí para diante com cautela. Assim, creio que o Vaticano impôs com sucesso uma espécie de coerção moral, institucional, que até então não havia existido.

Pergunta: Quais as origens dessa crítica, e a quem ela beneficia?

DELLA CAVA: A crítica da teologia da libertação tem suas origens em duas áreas: uma filosófica e outra política.

A posição filosófica, da qual a crítica da teologia da libertação faz parte, pode ser chamada de "integrista": uma posição inerente ao catolicismo e a muitas religiões mundiais. Por integrista, eu defino a visão que concebe o divino como transcendental e imutável, opondo-se à concepção contraditória que a sociedade moderna tem de si mesma, enquadrada temporal e historicamente. Ora, os teólogos que subscrevem esta última visão, que podemos chamar de visão progressista, mesmo que a subscrevam apenas metodologicamente, usando o relativismo histórico e sociológico para explicar a realidade, estão, como crentes, sempre em desvantagem. Porque os crentes, como homens de fé, precisam ceder sempre à suposição indiscutível dos integristas, de que o que é divino é transcendental e imutável. De outro modo, teólogos que usassem a visão progressista enquanto método não teriam espaço na Igreja.

Mas esta visão é também política, tanto dentro da Igreja, como na sociedade em seu conjunto. Dentro da Igreja, pode-se dizer que os integristas europeus erguem-se contra os progressistas desde o Concílio Vaticano II. Lembremo-nos do falecido cardeal Ottaviani, que foi o símbolo da oposição à decisão do papa João XXIII de convocar o Concílio. Agora este grupo integrista, mais identificado com a Cúria Romana e a estrutura burocrática da administração da Igreja, finalmente ganhou a luta, após mais de uma década de ações de retaguarda e escaramuças dentro da instituição. E pode-se dizer que o momento de virada, quando obtiveram a sua vitória, não foi necessariamente ao conseguir reverter o Vaticano II, mas ao dar-lhe o xeque-mate, em meados do pontificado de João Paulo II, dois anos atrás; exatamente quando o papado e a Cúria Romana conseguiram dominar a mais avançada das Igrejas progressistas da Europa, ou seja, a Igreja alemã. Ela foi enquadrada através de uma intervenção direta do papado na seleção da hierarquia alemã. Em segundo lugar, pela chamada à ordem de alguns dos mais eminentes teólogos identificados com essa posição. Para a América Latina, este conflito político, com o auxílio dos integristas europeus, vem à tona, claramente, em 1972. Exatamente quatro anos depois da reunião da Segunda Conferência dos Bispos Latino-americanos, realizada em 1968 em Medellin, na Colômbia.

Em 1972, na eleição do secretariado do CELAM, os vitoriosos, fundamentalmente representados na pessoa do novo secretário geral, monsenhor, agora cardeal, Lopes Trujillo, de Medellin, significavam a vitória da posição integrista na Igreja da América Latina. Mas a vitória não permitiu reverter imediatamente as posições progressistas adotadas em Medellin, na conferência de 1968. Entre 1972 e a atual declaração do cardeal Ratzinger, ocorreu uma série de mudanças e alterações nos encontros teológicos, que finalmente puseram a teologia da libertação em xeque.

Pode-se dizer que a posição do cardeal Ratzinger, o seu documento, é uma reflexão sobre a elaboração teológica trabalhada pelos integristas latino-americanos, ou seja, contra a ala progressiva da Igreja da América Latina.

Pergunta: Além de reforçar o seu poder, a hierarquia da Igreja latinoamericana serve a alguns interesses políticos e econômicos, identificáveis dentro da própria América Latina, especialmente considerando-se o impacto que a teologia da libertação assume entre as classes baixas?

DELLA CAVA: Obviamente, não há uma relação unidirecional entre as posições dentro da Igreja e aquelas da sociedade como um todo. A sociedade é sempre mediada por uma série de outras instituições. Mas o contra-ataque dos integristas latino-americanos contra os teólogos da libertação e sua posição de 1968 em Medellin refletem claramente a tendência geral a visualizar a Igreja como instrumento de mudanças sociais radicais na América Latina. Falando de modo geral, uma das razões da força da posição integrista e o fato de ela representar não somente uma corrente dentro da Igreja latino-americana, mas dentro da sociedade como um todo, que teme que os teólogos progressistas tenham legitimado profundamente mudanças estruturais, que muitos daqueles das classes dominantes não vêem com bons olhos. Ou seja, o endurecimento dos integristas contra os progressistas na América Latina reflete uma dinâmica da Igreja Católica, interna e externa a ela. E neste sentido fica claro que este papapo tenta "apropriar-se" e não destruir a "opção preferencial pelos pobres", elaborada pelos teólogos progressistas latino-americanos. Mas. ao apropriar-se desta questão, será o papado que, doravante, definirá os termos desta opção preferencial, em vez da dinâmica dos teólogos, que até agora havia permanecido sem ser "checada".

Do ponto de vista da Igreja como uma instituição autocontrolada, o período em que a teologia era um jogo flutuante, livre, e um debate aberto acabou. E são o papado e a burocracia da Igreja que definem, agora, o que é aceitável como teologia.

Pergunta: O que você acha das aparentes contradições entre os pronunciamentos papais em homilias feitas na Guatemala, Oaxaca, México e mesmo no Brasil, de um lado, e a posição atual do papa com relação à teologia da libertação, de outro?

DELLA CAVA: O Concílio Vaticano II basicamente endossou várias proposições que agora estão sendo checadas, fundamentalmente, pelo papado, porém não destruídas, não revogadas. Os limites destas proposições estão sendo traçados agora. Alguns deles têm que ver com a teologia. Até o Concílio Vaticano II, era o papado que determinava os limites da teologia. Mas, com o Concílio, ela passou a ser vista como um debate e discurso próprio dos teólogos, ligados às bases populares. Portanto, em vez de considerar a teologia como uma "questão partidária", dentro da Igreja, era um debate aberto. Não havia uma teologia, havia muitas. Quando se tem ideologias pluralistas emanando da base, de dentro de uma instituição, cuja liderança gostaria de impor uma direção, sempre se terá conflitos e focos de tensão. São esses focos de tensão e conflito que este papa está tentando reduzir. Mas, agora, impondo limites aos teólogos e recuperando para o papado o papel dirigente, este papado reapropriou-se da função que sempre havia sido exercida "autoritariamente", do período de 1870 até o início do Vaticano II, em 1962.

Em segundo lugar, a outra ruptura democratizadora dentro do catolicismo foi o devolver as funções litúrgicas do clero para a laicidade. O Vaticano II propôs uma redefinição da Igreja, como "Povo de Deus". E o Encontro latino-americano de bispos de Medellin, em 1968, estendeu esta definição para "o povo oprimido", pelo qual a Igreja institucional, agora, teria que fazer uma "opção preferencial".

Essa tendência democratizante da função litúrgica do clero, essencialmente, "protestantizou" o catolicismo: para invocar a terminologia luterana, ela torna a fé acessível a todos os crentes. Tratava-se de uma transformação necessária na Igreja, no momento em que, como instituição da América Latina, ela tentava promover mudanças estruturais.

E, finalmente, há um terceiro aspecto, que se relaciona diretamente com aquele segundo, que acabei de relatar, que é a transformação da Igreja institucional, particularmente no seu nível mais baixo. Isso ocorre na América Latina, especialmente no Brasil (mas também na Nicarágua), onde as antigas paróquias, que representam a verticalidade da Igreja e sua estrutura centralista, são superadas pela criação de instituições chamadas Comunidades Eclesiais de Base. Era um novo modo de organizar a base, de forma a colocar a experiência da religião mais ligada, diretamente, à experiência da vida. Isto me conduz a uma última questão.

A coisa mais importante que a instituição teve que fazer, em virtude destas tendências democráticas, foi alterar o significado dos símbolos. Uma dessas mudanças básicas foi a figura do Cristo, esse Cristo sofredor da Paixão, que suporta toda sorte de opressão, por um símbolo oposto, chamado de "Jesus Cristo, o Libertador" (que é o nome do livro escrito por Leonardo Boff). Ou seja, alterando a imagem de aceitação da miséria do mundo, como dada por Deus, para um símbolo, através do qual, graças a Cristo, se transformaria o mundo. Outro símbolo que me parece fundamental foi o uso do livro do êxodo, do Velho Testamento, o clássico texto no qual Deus liberta seu povo escolhido da opressão dos faraós, conduzindo-o do Egito para a terra do leite e do mel, Sion. E esse é justamente o texto que se tornou o ponto fundamental de discussão da realidade histórica atual dos povos da América Latina, nas Comunidades Eclesiais de Base. Isto é, como comunidades de base elas se vêem como o povo escolhido de Deus, que está sendo conduzindo para a terra do leite e do mel, a se criar. E essa torna-se a base religiosa, teológica, da transformação democrática da sociedade latino-americana. é por isso que a Igreja opõe-se a ela.

Pergunta: Esses "desvios", aos quais o cardeal Ratzinger se refere — como "ateísmo e negação da pessoa humana, estão no coração da teoria marxista", ou "a lei da história, que é a lei da luta de classes, implica que a sociedade está fundada na violência" — baseiam-se em um conhecimento profundo da teoria marxista ou são parte da essência da teologia da libertação?

DELLA CAVA: Creio que você deveria colocar essa questão para um grupo de acadêmicos marxistas. Leonardo Boff e Gustavo Gutierrez repetidamente afirmaram que não são marxistas. E que o uso que fizeram do pensamento marxista foi mais metodológico, como uma técnica de análise da realidade. Suponho que você poderia citar aqui a resposta dada há dois sábados, em uma entrevista concedida pelo novo superior geral da Ordem dos Jesuítas, que disse que se, de fato, existe uma luta de classes, a teoria marxista, que a assinala, está de fato correta, e se isso é correto, o catolicismo terá que encontrar de alguma forma um caminho para relacionar-se com essa teoria e, ao fazê-lo, cristianizá-la e incorporá-la.

Minha própria resposta à questão é que obviamente o marxismo é hoje um corpo de crenças que se encontra em profundas alterações, em um fluxo intenso. E falar de um marxismo determinado, como Ratzinger fez, isto é, entre todas as possíveis interpretações do marxismo, produzir uma visão marxista apenas, é desconhecer e ir contra a multiplicidade de teorias que existem dentro do próprio marxismo.

Talvez Ratzinger tenha feito um grande desserviço não somente para os teólogos da libertação, mas para todos aqueles que, dentro da ampla área do pensamento marxista, gostariam de reinjetar vida nova nesse pensar.

Pergunta: Qual o futuro que você entrevê para a teologia da libertação, para as Comunidades de Base e para a "opção preferencial pelos pobres", como foi concebida em Medellin e Puebla?

DELLA CAVA: Não acho que os teólogos da libertação venham a entregar sua alma só porque um cardeal da burocracia romana féz uma declaração como aquela. E também não creio que seja possível reverter, da noite para o dia, estas tremendas energias e forças novas que foram desencadeadas na América Latina, pela Igreja progressiva e pelos seus ativistas jovens e brilhantes.

Creio que se estabelecerá um debate constante. E haverá alguns casos-teste. A Nicarágua, possivelmente, será o primeiro desses testes. E apesar de ter sido um brasileiro quem foi chamado ao Santo Ofício, talvez a publicação dessa sentença e dos debates daí decorrentes seja mais pertinente para o caso nicaragüense. Atualmente, parte da Igreja local está engajada diretamente no regime sandinista, do qual alguns dos seus líderes se autoproclama-ram marxistas. Penso que teremos uma década muito interessante pela frente. E é muito cedo para dizer qual dos dois lados sairá, ao fim, vencedor.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Set 1985
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