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A falácia da interpretação da cultura como texto

The fallacy of interpreting culture as a text

Resumos

Este artigo discute a pertinência do Projeto Interpretativo de Clifford Geertz, cuja proposição central é a de que a cultura deve ser entendida como se fosse um texto. Revisitando exemplos do próprio Geertz, argumenta-se que eles podem ser melhor compreendidos recorrendo-se à concepção convencional de ciência que Geertz rejeita.


This article discusses the merits of Clifford Geertz's Interpretative Project, the central claim of which is that culture should be viewed as a text. Revisiting Geertz's own examples, it is argued that they are better understood by the conventional science that Geertz rejects.


AS TRANSIÇÕES E A MODERNIDADE

A falácia da interpretação da cultura como texto* * Foram-nos muito úteis as críticas dos professores Leonardo Fígoli e Cláudio Beato, ambos da UFMG, a uma versão anterior deste artigo. É bom que se diga que nenhum dos dois concorda com o argumento que aqui é apresentado.

The fallacy of interpreting culture as a text

Renan Springer De FreitasI; Eduardo Cerqueira BatitucciII

IProfessor de Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

IIPesquisador da Fundação João Pinheiro (Minas Gerais)

RESUMO

Este artigo discute a pertinência do Projeto Interpretativo de Clifford Geertz, cuja proposição central é a de que a cultura deve ser entendida como se fosse um texto. Revisitando exemplos do próprio Geertz, argumenta-se que eles podem ser melhor compreendidos recorrendo-se à concepção convencional de ciência que Geertz rejeita.

ABSTRACT

This article discusses the merits of Clifford Geertz's Interpretative Project, the central claim of which is that culture should be viewed as a text. Revisiting Geertz's own examples, it is argued that they are better understood by the conventional science that Geertz rejects.

Em seu consagrado livro A interpretação das culturas Clifford Geertz propõe que as culturas devem ser interpretadas como se fossem textos. Esta proposta resulta de sua desilusão com a ciência tal como usualmente a concebemos, isto é, como um esforço no sentido de explicar fenômenos subordinando-os a leis gerais. Para Geertz, leis científicas nos ajudam a entender o movimento dos planetas, ou a queda dos corpos, mas nada nos dizem sobre culturas. Elas não nos ajudam a entender, por exemplo, porque os balineses queimam viúvas, ou porque os Ilongot caçam cabeças, ou ainda porque os Zande acreditam em bruxaria1 1 Estes exemplos não são do próprio Geertz, mas servem muito bem ao propósito de expor seu raciocínio. . De acordo com Geertz, cultura é a "teia de significados que o homem teceu", e esta "teia" tem uma "superfície enigmática" à qual devemos ter algum acesso2 2 Veja-se A interpretação das culturas, Zahar Editores, 1978, p. 15. . Nesta perspectiva, fenômenos como a queima de viúvas ou a caça de cabeças constituem uma parte da "superfície enigmática" das "teias de significado" que os balineses e os Ilongot "teceram", e devemos nos empenhar em tornar tais fenômenos menos bizarros ou menos enigmáticos aos olhos de um ocidental. Para tanto, devemos associá-los a experiências que nos são familiares. Geertz recorre ao exemplo de uma piscadela para explicar o que é isto. Uma piscadela pode ser descrita como uma contração das pálpebras. Embora não haja nada de errado com tal descrição, ela não nos ajuda a distinguir um gesto voluntário de um mero tique nervoso. Para que tão crucial distinção possa ser feita, precisamos associar este gesto à categorias que são familiares à nossa própria experiência, isto é, precisamos dizer se o que se transmite através dele, em um determinado contexto, é um ridículo, ou um desafio, ou uma ironia, ou uma zanga, ou um deboche, etc. Segundo Geertz, procedimentos metodológicos convencionais tais como subordinar fenômenos a leis, ou construir modelos teóricos e testá-los empiricamente, não nos dão acesso a tal conhecimento. Tais procedimentos não nos ajudam a decifrar um enigma tal como o do significado de uma piscadela. Eles devem portanto ser substituídos por outro tipo de procedimento, a chamada "descrição densa". Assim, quando associamos uma piscadela a um deboche, estamos fazendo uma "descrição densa" deste gesto, e não subordinando este gesto a uma lei geral. Ao fá-lo, estamos operando com um tipo especial de ciência, ao qual Geertz dá o nome de "ciência interpretativa."

Para mostrar a que vem a "ciência interpretativa" Geertz debruça-se sobre dois "enigmas", a prisão de Cohen, uma inocente vítima de um roubo, em Marrocos, e a enorme popularidade da briga de galos em Bali, uma sociedade marcada pela civilidade, polidez, formalismo e, num certo sentido, aversão à violência. Geertz oferece como solução para o primeiro "enigma" a tese da "farsa social", e para o segundo a tese da "educação sentimental". No que se segue argumentaremos que não há nada de especial em relação a estas teses para justificar a necessidade de uma "ciência interpretativa". Ao contrário, à margem dos procedimentos metodológicos convencionais que Geertz rejeita, é impossível saber se estas teses são mesmo boas soluções para os "enigmas" acima. Mais do que isto, é impossível saber se há mesmo algo de "enigmático" no fracasso de Cohen e no fascínio balinês pela briga de galos. Isto conduz à tese central deste artigo: ao propor que rejeitemos a concepção tradicional de ciência em favor de uma concepção centrada no princípio de que a cultura deve ser interpretada como se fosse um texto, o Projeto Interpretativo de Geertz nos fecha uma porta sem nos abrir outra. Ele bloqueia uma via de acesso à cultura, a via das leis científicas e da submissão de hipóteses a testes, sem em contrapartida ser capaz de oferecer uma via alternativa confiável. A via alternativa que ele propõe, a saber, a da associação com aspectos da nossa própria experiência, dá acesso a um texto mas dificilmente dá acesso à cultura. A cultura não é um texto, e disto decorrem enormes dificuldades. Tornar esta via de acesso a um texto aplicável à cultura requereria ser capaz de contornar tais dificuldades e, até onde conseguimos perceber, não se vislumbra no Projeto Interpretativo a mais remota indicação de como isto pode ser feito3 3 A proposta de se considerar a cultura como se fosse um texto é inspirada no trabalho de Paul Ricoeur (Veja-se, por exemplo, seu "The Model of the Text: Meaningful Action Considered as a Text", in P. Rabinow e W. Sullivan [orgs.], Interpretive Social Science, A Reader, 1979, pp. 73-101, University of California Press). Ricoeur expoe as similaridades entre uma ação e um texto mas não expoe as diferenças. Portanto, ele não menciona as dificuldades oriundas de tais diferenças, e muito menos discute os meios de contornar tais dificuldades. Seria legítimo esperar que um trabalho empírico inspirado nesta proposta se ocupasse de tais problemas e não se evadisse deles. O que está em questão neste artigo não é o "paradigma da interpretação do texto" (esta expressão é do próprio Ricoeur) enquanto tal, mas sim a "ciência normal" que se tem feito sob sua inspiração. Geertz dá uma breve descrição desta "ciência normal" em seu Local Knowledge (Basic Books, 1983, veja-se pp. 30-35). Ela envolve alguns trabalhos empíricos sobre temas tais como piadas dos Apaches, comidas inglesas, queimas de viúvas balinesas e escolas secundárias americanas. Na página 30 Geertz afirma que a analogia com o texto é a mais ampla, mais arrojada e menos desenvolvida refiguração recente da teoria social. Pelo que sabemos, sua discussao sobre a briga de galos é o ponto alto desta "mal-desenvolvida" refiguração, e daí nosso interesse em tal discussao. Devemos enfatizar que não vemos o sentido de discutir a validade de um paradigma examinando a "refiguração" que ele propõe, mas sim a "ciência normal" que ele lega. Afinal, se um paradigma é, como diz Kuhn, uma promessa que a "ciência normal" cumpre aos poucos, então, mais importante do que discutir esta "promessa" enquanto tal (promessa é, geralmente, alguma coisa muito boa!), é procurar saber se ela está sendo de alguma forma cumprida sem envolver perdas que superem os ganhos. A promessa que o "paradigma da interpretação do texto" encerra é, de acordo com Ricoeur, a de superar "o clássico debate sobre motivos e causas que tem atormentado a teoria da ação nestas últimas décadas" através da "busca de correlações dentro de sistemas semióticos" (citado, p. 99). O ponto central deste artigo é o de que, até o presente momento, o esforço no sentido de cumprir tal promessa tem envolvido algumas perdas e, até onde conseguimos perceber, nenhum ganho. .

I

O primeiro "enigma" mencionado refere-se ao que Geertz chamou de "o episódio da incursão fracassada aos carneiros". Este episódio foi descrito de uma forma não só "densa" como também muito complicada. Até onde pudemos entender, trata-se do seguinte: Cohen, um comerciante judeu, foi certa vez (em 1912, em Marrocos) atacado e roubado por bérberes rebeldes ao domínio francês (Marrocos era então uma colônia francesa). Ele queixou-se deste ataque junto ao capitão do destacamento colonial e mencionou que iria à tribo atacante exigir o seu "ar". O "ar", segundo o pacto comercial marroquino tradicional, é uma boa indenização a que tem direito quem quer que tenha sido vítima de roubo. O capitão deu autorização verbal a Cohen para fazer sua incursão à tribo atacante. Com a ajuda de outros bérberes Cohen foi até a tribo rebelde e depois de alguma confusão e algumas negociações obteve seu "ar", no caso, um rebanho de carneiros. De volta à cidade, Cohen é preso e seu rebanho é confiscado. Os franceses não acreditaram que os ladrões pudessem indenizá-lo sem uma ordem oficial e, em decorrência, o julgaram um espião da tribo rebelde4 4 Veja-se A interpretação das culturas, citado, pp. 17-19. .

Geertz vê nesse episódio um exemplo privilegiado de fenômeno que não pode ser adequadamente compreendido à margem de uma "ciência interpretativa". De acordo com ele, o fracasso de Cohen se explica por uma "confusão de idiomas", por uma "farsa social" produzida a partir de "desentendimentos sistemáticos". Cohen entendeu mal os franceses e vice-versa, e no fim das contas levou a pior. Tal "farsa social", de acordo com Geertz, não pode ser remontada através de modelos, mas sim através da "constatação básica" de que o episódio em tela envolve "três quadros desiguais de interpretação, ingredientes da situação - o judeu, o bérbere e o francês"5 5 Geertz, citado, p. 19. .

Se considerada em seus próprios termos, a tese da "farsa social" faz bastante sentido. No entanto, também faz sentido levantar a hipótese de que os franceses entenderam tudo perfeitamente bem (afinal, depois de passar alguns anos em Marrocos eles podem ter aprendido muita coisa) mas, usando de sua condição de colonizadores, apropriaram-se impunemente dos carneiros de Cohen. Nesse caso, muito mais do que o resultado de uma "confusão de idiomas", o fracasso de Cohen poderia ser o resultado de uma canalhice dos colonizadores franceses. Que elementos a discussão de Geertz oferece para desarmar esta (talvez primária) objeção? Ao que nos consta, nenhum. Sem dúvida, a tese da "farsa social" é bem mais elegante. Mas elegância não é tudo. Esta tese envolve sérias dificuldades. Ela envolve, por exemplo, aceitar, sem qualquer argumento, duas teses cuja validade não é de forma alguma auto-evidente. A primeira é a de que distâncias culturais (a distancia entre um judeu e um francês, por exemplo) são causas de desentendimentos sistemáticos. A segunda é a de que há "quadros de interpretação" irredutivelmente identificáveis que constituem algo como um fundamento último para o entendimento do que quer que uma pessoa venha a fazer em uma determinada situação. Geertz presume, por exemplo, que é impossível entender o que se passou entre Cohen e o capitão se não se tiver em mente que Cohen era um judeu e o capitão um colonizador francês. Ora, está longe de ser auto-evidente que o ponto de partida para entender o que se passa entre pessoas de background culturais diferentes é a informação de que a situação envolve tal diferença. Tal informação pode, de fato, revelar-se crucial, mas não há porque conceder-lhe, de saída, tal privilégio.

Um meio de desarmar a "tese da canalhice" e de evitar as dificuldades acima mencionadas estaria em interpretar o "caso Cohen" à luz de algum modelo mais abstrato que tornasse tanto a primeira quanto as últimas irrelevantes. Um modelo tal como, por exemplo, o que se articula em torno do diagrama da página seguinte, o qual Elster construiu para explicar como um ator se orienta em seu ambiente6 6 Veja-se Jon Elster, Explaining Technical Change, Cambridge 1983. . Não descartamos, evidentemente, a possibilidade de haver modelos melhores.

De acordo com Elster (e com Parsons, e com Homans) toda ação supõe um ator confrontando um ambiente a partir da avaliação que faz das ações, objetivos e crenças dos outros atores. Há dois tipos de ambiente, o paramétrico e o estratégico. No primeiro caso o ator pode considerar os demais atores como constantes (como parâmetros). Nesse caso, ele não precisa se preocupar com as decisões dos outros para tomar suas próprias decisões, e seu sucesso decorre diretamente do controle sobre informações. Caso o ator não disponha de informação suficiente sobre o ambiente sua envolverá riscos e/ou incertezas. No segundo caso o sujeito da ação não pode considerar os demais atores constantes. Nesse caso, cada ator precisa antecipar as decisões dos outros antes de fazer a sua própria. As decisões são, então, interdependentes.

Este modelo, como qualquer outro, envolve algumas proposições gerais, e o fracasso de Cohen pode ser entendido à luz de uma delas, a saber, a de que decisões tomadas em ambientes paramétricos, quando a informação é insuficiente, envolvem, com ou sem o concurso de distancias culturais, ou de "quadros desiguais de interpretação", riscos e incertezas. Em outras palavras, o modelo acima interpreta a história da incursão fracassada aos carneiros como uma história na qual uma decisão tomada com base em uma avaliação equivocada dos parâmetros do ambiente levou a uma conseqüência desastrosa.

A vantagem de se entender o fracasso de Cohen como sendo em princípio uma conseqüência inerente à decisões tomadas em ambientes paramétricos com informação incompleta, e não como a conseqüência de uma "confusão de idiomas" resultante de distancias culturais, é a de reter a possibilidade de no fim das contas explicar este acontecimento em termos de uma "confusão de idiomas" (afinal, "confusão de idiomas" é um dos riscos inerentes a decisões tomadas em ambientes paramétricos com informação incompleta), sem ao mesmo tempo requerer, como a "ciência interpretativa" de Geertz o faz, uma aceitação acrílica das teses de que a distância cultural é necessariamente uma causa de desentendimentos sistemáticos,

e de que no background cultural de uma pessoa está a chave para se entender qualquer pauta de seu comportamento.

Na verdade, à luz do modelo de Elster, não há nada de muito misterioso ou de "enigmático" em relação ao fracasso de Cohen. Tal fracasso é inerente a qualquer decisão tomada em situações nas quais um ator, por falta de informação, avalia equivocadamente os objetivos, ações e crenças dos demais atores. É verdade que o ator pode avaliar equivocadamente em razão de seu background cultural, ou em razão da situação envolver "quadros desiguais de interpretação", mas a razão do equívoco pode também não ter nada a ver com isto. Ela pode simplesmente ter a ver com o fato de que é impossível antecipar todas as conseqüências de uma escolha, e Geertz nem sequer menciona esta possibilidade. De qualquer maneira, se a tese da "confusão de idiomas" é mesmo uma boa explicação para o fracasso de Cohen (talvez o seja), ela é muito mais viável se formulada à luz de um modelo convencional que dirija nossa atenção para os riscos aos quais um ator se sujeita ao tomar alguma decisão quando não tem controle sobre os parâmetros do seu ambiente, do que se derivada do que Geertz chamou de a "constatação básica" de que o episódio em consideração envolve "quadros desiguais de interpretação".

Em face do exposto, se é mesmo necessário uma ciência especial para se interpretar a cultura, o "diagnóstico" de Geertz7 7 A analogia entre uma "descrição densa" e um diagnóstico médico é do próprio Geertz. para o episódio da incursão fracassada aos carneiros está longe de demonstrar esta necessidade. Talvez a discussão sobre a briga de galos em Bali seja mais eficaz no que concerne a este ponto. Passemos então a ela.

A discussão de Geertz sobre a briga de galos em Bali já mereceu muitos comentários críticos8 8 Veja-se, por exemplo, Mark A. Schneider, "Culture-as-text in the work of Clifford Geertz", Theory and Society, 16:809-839,1987, e Paul Shankman, "The Thick and the Thin: On the Interpretive Theoretical Program of Clifford Geertz", Current Anthropology, 25(3):261-279,1984. , mas acreditamos ter ainda alguma coisa para acrescentar.

II

Vamos iniciar lembrando que Geertz menciona a raiz weberiana de seu Projeto Interpretativo. Como Weber abordaria um tema tal como a briga de galos em Bali? Pelo que sabemos de Weber, ele não arriscaria a dizer coisa alguma sobre o significado que os balineses atribuem à briga de galos sem o auxílio de comparações sistemáticas entre a sociedade balinesa e outras sociedades. Ele procuraria descobrir sociedades muito diferentes da balinesa onde a briga de galos exerce semelhante fascínio ou sociedades semelhantes à balinesa onde não se dá a menor importância para a briga de galos. Em síntese, ele viraria o mundo de cabeça para baixo atrás de semelhanças e diferenças. Dependendo dos resultados ele poderia encontrar o significado da briga de galos em alguns traços estruturais da sociedade balinesa comuns a outras sociedades e/ou em alguma crença que atravessa gerações desde tempos imemoriais9 9 Tudo isto é só para dizer que Weber está muito mais próximo de uma concepção convencional de ciência do que Geertz quer nos fazer crer. .

Sabemos que Geertz não fez nada disto. Aos seus olhos, respostas tais como as acima são insatisfatórias porque não tornam os balineses menos enigmáticos (ou menos bizarros) aos nossos olhos. Descobrir que o fascínio dos balineses pela briga de galos é uma herança cultural, ou que é o efeito de um conjunto determinado de características estruturais da sociedade balinesa, não nos ajuda a entender a racionalidade inerente à popularidade da briga de galos em Bali. Em outras palavras, explicações em termos tais como os acima não removem a tese intuitiva de que a briga de galos é um mero entretenimento "primitivo" e, em decorrência, mantêm os balineses afastados de "nós". Daí que o enigma de como um esporte tão violento pode ser tão popular em uma sociedade tão avessa à violência permaneceria indecifrado.

Uma solução simples para este "enigma" estaria em explicar o fascínio pela briga de galos em termos das oportunidades de ganhos monetários. Geertz apressa-se em descartar tal solução (ele apressa-se em dizer que o sistema de apostas é totalmente irracional) porque, se as brigas de galos envolvem apostas nas quais se pode ganhar muito dinheiro, então o "enigma" está resolvido10 10 Contrariando Geertz, Schneider (citado) argumenta que uma briga de galos envolve chances muito boas de ganhos monetários. Talvez a solução para o "enigma" de Geertz seja bem mais fácil do que ele supõe. . Descartada esta solução, só resta (aos olhos de Geertz) outra: a briga de galos exibe as paixões sociais dos balineses. Ela funciona como um texto no qual todo um conjunto de temas (a morte, a masculinidade, a raiva, o orgulho, a perda, a beneficência e a oportunidade) são ordenados de uma forma inteligível. Nas palavras de Northrop Frye, citado por Geertz:

"Nossas impressões sobre a vida humana são colhidas uma a uma e permanecem, para a maioria de nós, frouxas e desorganizadas. Entretanto, encontramos constantemente (...) coisas que coordenam e trazem a foco uma grande quantidade destas impressões..."11 11 Frye, The Educated Imagination, pp. 63-64, citado em Geertz, op. cit., p. 318.

De acordo com Geertz, a briga de galos é fascinante para os balinses porque cumpre esta função coordenadora. Ela é popular por constituir uma "leitura balinesa da experiência balinesa, uma história sobre eles que eles contam a si mesmos"12 12 Veja-se Geertz op. cit, p. 316. . Nesse sentido, ela não reforça nem atenua a estratificação social mas fornece para os balineses um "comentário" sobre o fato de estarem eles distribuidos em categorias hierárquicas fixas e de estar a existência social organizada com base nesta distribuição. No fim das contas, a briga de galos cumpre uma função pedagógica. Ela envolve a utilização de emoções para fins cognitivos:

"Assistir a briga de galos e delas participar é, para o balinês, uma espécie de educação sentimental. Lá, o que ele aprende, é qual a aparência que têm o ethos de sua cultura e sua sensibilidade privada (ou, pelo menos, certos aspectos dela) quando soletradas externamente, num texto coletivo (...) Se vamos assistir a Macbeth para aprender de que maneira um homem se sente após ganhar um reino mas perder sua alma, os balineses vão às brigas de galos para descobrir como se sente um homem (...) quando, depois de atacado, atormentado, desafiado, insultado e, em virtude disso, levado a paroxismos de fúria, atinge o triunfo total ou o nível mais baixo."13 13 Geertz, op. cit., pp. 317-318. O termo "soletradas", nesta citação, é uma lamentável tradução de "spelled out".

Os balineses gostam da briga de galos como "nós" gostamos de uma peça de Shakespeare: eis finalmente a racionalidade inerente ao fascínio balinês pela briga de galos. A analogia com um drama de Shakespeare realiza a tarefa de tornar o comportamento dos balineses acessível a categorias familiares à nossa própria experiência. Com a ajuda da "ciência interpretativa", podemos agora entender que não há nada de bizarro em se ser ao mesmo tempo tão zeloso em relação aos animais (galos incluídos) e tão fascinado por briga de galos.

Exposto o argumento de Geertz cabe agora discutir sua pertinência enquanto proposta de ciência alternativa. Isto envolve responder três perguntas. Primeira: tornar um comportamento menos enigmático ou menos bizarro aos nossos olhos é mais importante do que explicá-lo causalmente nos moldes tradicionais? Segunda: associar um determinado comportamento a categorias familiares à nossa própria experiência implica tornar este comportamento menos enigmático (ou seja, os balineses estão mesmo mais "próximos" de "nós" depois que Geertz associou uma briga de galos a uma peça de Shakespeare)? Terceira: é possível tornar um comportamento menos enigmático ou menos bizarro aos "nossos" olhos sem recorrer a explicações causais nos moldes tradicionais?

O sucesso do Projeto Interpretativo requer que em todos os três casos a resposta seja sim. Nossa resposta em todos os três casos é não.

Iniciemos pela primeira pergunta. A idéia de que qualquer pauta de comportamento pode ser relacionada com categorias familiares à nossa própria experiência é muito bem-vinda. Ela implica o pressuposto de que as culturas são comensuráveis entre si. Ao alinhar-se a tal pressuposto, Geertz sabiamente afasta-se da concepção pré-darwiniana (hoje conhecida como "pós-moderna") de que cada cultura é um círculo fechado com sua inteligibilidade própria14 14 Para uma excelente crítica a esta concepção veja-se Peter Munz, Our Knowledge of the Growth of Knowledge, Routledge and Kegan Paul, 1985. Para uma excelente discussão sobre o caráter pre-darwiniano do pós-modernismo veja-se, do mesmo autor, "What's PostModern, Anyway?", Philosophy and Literature, 1992, 16:333-353 e "Philosophy and the Mirror of Rorty", In G. Radnitzky and W. W. Bartley, III (eds.), Evolutionary Epistemology, Rationality, and the Sociology of Knowledge, Illinois: Open Court, pp. 345-398, 1987. . Entretanto, a julgar pela discussão de Geertz sobre a briga de galos em Bali, tornar um comportamento inteligível à luz de nossas próprias experiências requer de nós uma excessiva dose de boa vontade em relação ao argumento que nos é apresentado. Requer por .exemplo que aceitemos, sem qualquer argumento, que vamos ao teatro para aprender alguma coisa sobre nós mesmos. Dito de outra forma, requer uma boa dose de nossa solidariedade, e um argumento científico não pode depender permanentemente da solidariedade ou das predisposições de sua audiência. Ao contrário, ele depende de desafios e de intransigências de sua audiência para não se degenerar. Portanto, tornar um comportamento menos bizarro aos nossos olhos não é, em si, uma vantagem. Tal meta não pode ser mais importante do que a de prover explicações causais nos moldes tradicionais.

De acordo com este raciocínio, tornar uma briga de galos em Bali inteligível à luz de nossas próprias experiências (via, por exemplo, associando-a a uma peça de Shakespeare) não é, em si, uma meta mais "nobre" do que identificar os fatores (tais como, por exemplo, alguma crença bizarra herdada de tempos imemoriais) que respondem pela popularidade deste esporte. Se coincidir de a identificação de tais fatores tornar os balineses menos bizarros aos nossos olhos, tanto melhor. Do contrário, paciência. É preferível uma explicação que não diminua "nossa" distância dos "outros" (isto é, que mantenha os "outros" bizarros aos nossos olhos) mas em compensação dê lugar a desafios (e, por conseguinte, investigações e explicações adicionais), do que uma explicação que presumivelmente encurta distâncias mas não deixa ao leitor outra escolha a não ser aceitá-la ou não. Digamos, por exemplo, que se descubra que os galos balineses recebem um tipo especial de treinamento que os torna particularmente hábeis.

Explicar a popularidade da briga de galos em Bali em termos de tal habilidade dos galos balineses implicaria tornar a briga de galos inteligível à luz de nossas próprias experiências, e portanto os balineses menos bizarros aos nossos olhos, sem nos tornar dependentes da solidariedade de nossa audiência. Uma audiência intransigente poderia objetar: "se a resposta está na qualidade dos galos, então por que em, digamos, Quênia, o atletismo não tem a menor popularidade apesar deste país ter excelentes atletas?"15 15 Não estamos evidentemente sugerindo que os balineses gostam de briga de galos porque os galos balineses são bons de briga, nem que a objeção acima seja a mais apropriada para tal tese. No entanto, queremos chamar a atenção para o fato de que mesmo uma tese tola como esta tem, se comparada à tese da educação sentimental, a vantagem de oferecer ao leitor uma oportunidade de aduzir seu conhecimento sobre outras culturas para contestá-la. Suponha-se agora que se descubra que em razão de um conjunto de circunstâncias os balineses vieram a acreditar que Deus fez os galos para que se destruíssem mutuamente. Explicar a popularidade da briga de galos em termos de tal crença não aproximaria os balineses de nós (não os tornaria menos "bizarros" aos nossos olhos) mas é uma explicação tão importante quanto as que têm, como um subproduto, tal efeito. Tal explicação é importante na medida em que levanta questões tais como, por exemplo, a da possibilidade de um dia os balineses colocarem suas crenças em questão. Desnecessário dizer que a tese da educação sentimental nada nos diz sobre a possibilidade de um dia os balineses, a exemplo do que ocorre em relação a muitas culturas, questionarem suas próprias crenças. Geertz porém não veria qualquer problema em não contemplar este ponto. Como também não veria qualquer problema no fato de sua tese não poder ser contestada à luz do que sabemos sobre outras culturas que não a balinesa. Conforme veremos na conclusão deste artigo, a tese da educação sentimental só pode ser contestada num plano meramente intuitivo. Ela não pode se beneficiar do conhecimento sobre outras culturas. Que conhecimento pode prosperar em tais condições?16 16 Tanto em A interpretação das culturas, originalmente publicado em 1973, quanto em Local Knowledge, publicado dez anos depois, Geertz faz menção ao caráter "mal desevolvido" da proposta de se analisar a cultura como se fosse um texto (reveja-se a nota 3). Talvez haja muito boas razões para a persistência deste caráter "mal desenvolvido" ao longo dos dez anos que separam um livro do outro, e dos 14 anos que separam Local Knowledge da presente data.

Passemos agora à segunda pergunta: em que os balineses estão mais "próximos" de "nós" depois que Geertz presumivelmente encurtou a distância entre uma briga de galos e uma peça de Shakespeare? Se Schneider17 17 op. cit. tiver razão, e acreditamos que tem, em nada. Por uma simples razão: Geertz não nos dá elementos para saber se ele encurtou mesmo tal distancia. Aliás, o argumento de Schneider que reproduzimos na nota 29 aponta para a possibilidade de Geertz ter tornado esta distancia ainda maior. É verdade que Geertz relacionou a briga de galos à Macbeth de forma a apresentar a inteligibilidade de um "drama" como sendo dependente da inteligibilidade do outro, mas daí a tornar os balineses menos enigmáticos aos nossos olhos vai uma enorme distância.

Em primeiro lugar, cabe perguntar se há mesmo algum "enigma" no fato de os balineses gostarem tanto de brigas de galos, ou se a presunção de algo enigmático neste "drama" não é o mero resultado de uma predisposição (de Geertz) em favor de totalidades. Quando se supõe que as culturas primitivas são integradas em seus mínimos detalhes (em contraste com o caráter fragmentário das culturas modernas), como Geertz parece supor, qualquer gesto nativo é sempre visto como tendo um significado além daquele que as propriedades intrínsecas deste gesto sugerem à primeira vista18 18 Schneider, op. cit., p. 827. .

Para escapar de tal objeção, isto é, para viabilizar sua tese de que a briga de galos em Bali tem mesmo um significado que difere marcadamente do significado que apareceria aos olhos de um observador inocente, Geertz teria que fornecer evidências para suas teses de que a briga de galos diz mesmo à sociedade balinesa alguma coisa sobre ela mesma, e de que esta (presumida) capacidade de espelhar a "alma" balinesa torna mesmo este esporte fascinante para os balineses. Mas Geertz não oferece evidências nem para uma tese nem para a outra. Em decorrência, ele deixa inteiramente à critério do leitor a aceitação de sua tese mais importante, a da educação sentimental. Se a briga de galos diz mesmo algo aos balineses através de ressonâncias abaixo de seu nível de consciência é uma boa hipótese a ser testada. Como Geertz não apresenta qualquer esforço nesta direção, acredite-se nisto se quiser. 19 19 Veja-se Schneider, op. cit, pp. 812-813.

Geertz poderia se evadir da responsabilidade de apresentar evidências empíricas ancorando-se em sua proposta básica de que está analisando a cultura como se fosse um texto. Nesse sentido, ele poderia argumentar que quando interpretamos um texto não precisamos nem discutir os mecanismos por meio dos quais este texto vem a ter algum efeito sobre os leitores20 20 Quando, por exemplo, interpretamos a história de "Chapeuzinho Vermelho", não precisamos discutir os mecanismos por meio dos quais esta história vem a ter algum efeito sobre o comportamento das crianças. Nem mesmo precisamos discutir se esta história tem algum efeito sobre o comportamento das crianças. , nem oferecer evidências empíricas para nossas interpretações, mas apenas relacionar este texto com categorias que sejam familiares à experiência do leitor. Em outras palavras, Geertz poderia dizer que não precisa se ocupar dos mecanismos por meio dos quais a briga de galos em Bali vem a ter algum efeito sobre os balineses mas apenas tornar este esporte inteligível à luz das experiências de um ocidental. No fim das contas, é isto mesmo que ele faz quando, por exemplo, afirma que a "ciência interpretativa" não está empenhada em "apresentar conclusões" (no sentido em que as ciências "duras" o estão) mas sim em "sustentar discussões".

Esta distinção entre "apresentar uma conclusão" e "sustentar uma discussão" nos parece crucial para o argumento de Geertz e portanto merece ser considerada em algum detalhe. Para fazê-lo, vamos considerar dois "enigmas" e as duas asserções que procuram resolvê-los. O primeiro "enigma" é o seguinte: apesar de o vento ser um fator de queda de temperatura, a temperatura da água do mar aumenta quando o vento sopra em direção ao continente e diminui quando o vento sopra em sentido contrário. O segundo "enigma" é o seguinte: qual é o significado da palavra "forests" ("florestas"), tal como aparece na segunda estrofe do poema The Tyger, de William Blake: "In the forests of the night " ("nas florestas da noite")?

A asserção que procura resolver o primeiro enigma é a seguinte: "em uma massa de água a água, quente tende a elevar-se para a superfície. O sol esquenta a água da superfície com mais intensidade do que esquenta a água do fundo. Por essas duas razões a água da superfície tende a ser mais quente do que a do fundo. O vento atua mais sobre a água da superfície do que sobre a água do fundo, obrigando a primeira a mover-se na direção em que ele está soprando. Portanto, um vento em direção à costa tende a acumular a água quente perto da praia, ao passo que um vento mar adentro tende a afastá-la da costa, fazendo com que a água fria que estava no fundo a substitua."

De acordo com Homans21 21 George Homans, La naturaleza de la ciencia social, Eudeba, Buenos Aires, 1970. , de quem a propósito extraímos esta asserção, se o assunto é ciência, então solucionar o enigma da variação de temperatura da água do mar, ou qualquer outro (inclusive o da popularidade da briga de galos em Bali), envolve sempre a mesma coisa, a saber, mostrar a solução como uma conclusão lógica, como algo que foi deduzido de uma ou mais proposições gerais sob condições específicas dadas. A este ponto retornaremos quando nos ocuparmos da terceira pergunta apresentada acima.

Passemos agora à segunda asserção, a que procura resolver o segundo enigma mencionado, o do significado da palavra "florestas", tal como aparece no poema de William Blake. Tal asserção é do crítico literário E. D. Hirsh, e pode ser formulada nos seguintes termos: "no poema The Tyger, Blake recorre ao termo florestas porque este termo sugere formas altas e linhas retas, um mundo que por todo o seu terror é tão ordenado quanto as listras dos tigres ou aos versos tão equilibrados do poema."22 22 E. D. Hirsh, Innocence and Experience, Yale, 1964, citado por Stanley Fish em Is There a text in this Class? The Authority of Interpretive Communities, Harvard, 1980, p. 39.

Se retomarmos a distinção de Geertz entre "apresentar uma conclusão" e "sustentar uma discussão" poderíamos dizer que a asserção de Homans sobre o fenômeno do aquecimento e esfriamento da água do mar próxima à costa é a "apresentação de uma conclusão" e a asserção de Hirsh sobre o significado da palavra "florestas" no poema de Blake é uma "discussão a ser sustentada". O primeiro caso requer o uso de procedimentos metodológicos tradicionais (requer, por exemplo, a corroboração empírica da tese de que a água mais quente tende mesmo a subir para a superfície); o segundo dispensa tais procedimentos. Seria ridículo pedir a Hirsh que aduzisse evidências empíricas para a sua tese de que a palavra "florestas", no poema de William Blake, sugere as listras de um tigre. Da mesma forma, Geertz poderia argumentar, seria ridículo demandar corroboração empírica para a tese de que uma briga de galos oferece aos que a assistem uma oportunidade para refletir sobre dimensões cruciais de sua própria experiência. Em face disto, a proposta de uma "ciência interpretativa" só se justifica se a discussão de Geertz guardar estreita analogia com a discussão de Hirsh sobre o significado da palavra "florestas" no poema de William Blake e nenhuma analogia com a discussão (ou, melhor dizendo, com a conclusão) de Homans sobre a relação entre a variação da direção do vento e a variação da temperatura da água do mar. Cabe-nos portanto discutir se isto se verifica. O Projeto Interpretativo estará tanto mais firme quanto mais se puder afirmar que a discussão de Geertz depende dos mesmos procedimentos que viabilizam a discussão de Hirsh, e estará tanto mais comprometido quanto mais se puder afirmar que a discussão de Geertz não se sustenta à margem dos procedimentos que validam a conclusão de Homans.

No que concerne a Hirsh, este de fato tem uma "discussão a sustentar". Sua interpretação para a palavra "florestas" é uma reação a uma interpretação anterior. Dez anos antes, uma intérprete chamada K. Raine sugeriu que, no poema em consideração, o termo "florestas" significa o mundo decaído, tão maligno quanto o tigre23 23 "Who Made the Tyger", in Encounter, 1954, citado por Fish, op. cit., p. 339. . Se "florestas" significa uma coisa boa (Hirsh), ou uma coisa ruim (Raine), não é algo que pode ser resolvido via modelos, experimentos ou comparações sistemáticas. O que cabe a cada intérprete é então aduzir elementos para sustentar seu ponto.

Assim, Raine aduziu um traço da biografia de Blake, seu gosto por escritos cabalísticos, os quais, segundo ela, teriam influenciado Blake de forma decisiva. À luz de tais escritos, o tigre seria inequivocamente um ser maligno e, em decorrência, "florestas" só poderia significar o mundo decaído. Ao aduzir os escritos cabalísticos que Blake teria lido, Raine autoriza qualquer outro intérprete a aduzir qualquer outro elemento para sustentar o seu ponto. Assim, Hirsh aduziu a sonoridade do poema; ele argumentou que o som das duas primeiras estrofes ("Tyger, tyger burning bright/In the forests of the night") sugere o belo movimento de um tigre e que, portanto, a palavra ''forests" só poderia significar uma coisa boa. Um terceiro intérprete que decidisse participar desta discussão poderia aduzir dados da biografia de Blake negligenciados tanto por Raine quanto por Hirsh, um quarto poderia aduzir o "ambiente intelectual" em que Blake se formou, um quinto a "audiência" a que Blake se dirigia, um sexto informações sobre o que poderia ser chamado o "contexto da época", e assim por diante.

Isto conduz ao seguinte: sustentar uma discussão implica, necessariamente, dar condições ao interlocutor de aduzir elementos para contestar o ponto que foi posto em discussão. Mais precisamente: implica dar ao interlocutor uma oportunidade de propor e sustentar uma interpretação incompatível com a que é originalmente proposta. Conforme vimos, para que uma discussão emerja a partir da tese de que o poema The Tyger exalta o tigre, é necessário que a tese de que este poema não exalta (ou mesmo denigre) o tigre possa ser de alguma forma defendida. Três elementos acham-se disponíveis para quem quer que queira fazer parte de tal discussão. Em primeiro lugar, um ponto comum de referência, o próprio poema de Blake. Em segundo, um autor cuja intenção pode se buscar resgatar, William Blake. Em terceiro, elementos aos quais se possa recorrer, seja para resgatar a intenção do autor (os escritos cabalísticos que teriam influenciado Blake, por exemplo), seja para revelar o significado que escapa à intenção do autor (por exemplo, a relação que um texto estabelece entre elementos, entre, digamos, o caráter maligno do tigre e o caráter maligno da floresta).

A estas alturas as diferenças entre a discussão de Geertz e a de Hirsh (e portanto as dificuldades do Projeto Interpretativo) devem já estar parecendo óbvias. Conforme já dissemos, para que a "ciência interpretativa" se viabilize é necessário que a interpretação de Geertz para o significado das brigas de galo seja análoga às interpretações de Hirsh ou de Raine para o significado da palavra florestas no poema de William Blake. Entretanto, Geertz não conta com nenhum dos elementos acima, a não ser em um plano meramente metafórico. Que "discussão" pode emergir a partir daí?

Dito de outra forma: quando se está diante de um texto de verdade como, por exemplo, o poema The Tyger, é possível discutir se o poema exalta o tigre, ou se denigre o tigre, ou se não faz nem uma coisa nem outra. Podemos também discutir se o cordeiro (neste poema Blake pergunta se o cordeiro e o tigre podem ter sido criados pelo mesmo ser) é bom ou se é apenas um tolo. Quando entretanto se está diante de um acontecimento que tomamos como se fosse uma dramatização ou um texto, mas que não é nem uma coisa nem outra, tal tipo de exercício não é viável. Como seria possível sustentar uma interpretação que fosse incompatível com, por exemplo, a tese de que uma briga de galos, seja em Bali ou em qualquer lugar, "assume" temas como a morte, a raiva, a masculinidade, etc., e os "ordena" numa "estrutura globalizante"?24 24 Os termos entre aspas são do próprio Geertz, em A interpretação das culturas, citado, p. 311. Como seria possível sustentar a tese (diga-se de passagem, bem mais instigante do que a de Geertz) de que uma briga de galos "assume" e "ordena", numa "estrutura globalizante", temas como o amor, o afeto, a compreensão, e a solidariedade? Ou a de que uma briga de galos não "assume" nem "ordena" coisa nenhuma? Em termos mais genéricos, como é possível se "sustentar uma discussão", ou mesmo haver alguma discussão, se não há condições de um interlocutor levantar argumentos e aduzir elementos em favor de um ponto oposto ao que presumivelmente se coloca para ser discutido?

Geertz não dá qualquer indicação de como contornar ou superar tal dificuldade. Em um trabalho posterior25 25 Clifford Geertz, El Antropologo como Autor, Ediciones Paidos, Barcelona, 1989. ele afirma que a capacidade de persuadir o leitor de que o que está lendo é verdade (é uma "relação autêntica", para usar seus termos) "constitui a base sobre o que tudo mais que a etnografía pretenda fazer - analisar, explicar, divertir, desconcertar, celebrar, edificar, etc. - descansa em última instância".26 26 op.cit,p. 153. Mas ele deixa em aberto a questão de como "persuadir" o leitor. Nos moldes convencionais, "persuadir o leitor" da validade de uma tese envolve derivar conseqüências empíricas desta tese e testá-las. Em Hirsh ou em Raine, "persuadir o leitor" envolve aduzir elementos no sentido de desarmar teses incompatíveis com a que está se propondo. Persuadir o leitor de que o poema The Tyger exalta o tigre e denigre o cordeiro envolve uma tentativa de desarmar a tese de que este mesmo poema denigre o tigre e exalta o cordeiro, ou a de que o poema não exalta nem denigre ninguém. Nos moldes do Projeto Interpretativo, em contraste, não dá bem para entender o que a "persuasão" de um leitor envolve - além, evidentemente, de contar com uma boa dose de sua boa vontade. Geertz é totalmente evasivo a este respeito, como se mostra na passagem seguinte:

"A habilidade dos antropólogos para fazer-nos levar a sério o que dizem tem menos a ver com o aspecto fatual, ou com o ar de elegância fatual de suas afirmações do que com sua capacidade de convencer-nos de que o que dizem é resultado de terem conseguido penetrar (ou serem penetrados por) outra forma de vida, de haver, de um modo ou de outro, realmente ter 'estado lá."'27 27 idem, p. 14.

A menos que se diga como persuadir os outros de ter sido capaz de "penetrar" e de "ser penetrado" por outra "forma de vida", não está se dizendo nada.

III

Passemos agora à terceira e última pergunta: é possível tornar um comportamento menos enigmático aos nossos olhos sem recorrer a explicações causais nos moldes tradicionais? Já dissemos que não, digamos agora por que.

Se a explicação de Geertz para a popularidade da briga de galos em Bali não puder ser da mesma natureza que a explicação de Homans para as variações de temperatura da água do mar, isto é, se ela não pode estar endereçada à explicação daquele fenômeno em termos de fatores com efeitos causais discerníveis, então sua discussão se inviabiliza. À margem da ciência que Geertz rejeita é possível afirmar, como ele o faz, que a briga de galos é um "texto coletivo" que exprime a sensibilidade privada de cada balinês e os valores da cultura balinesa. Tal asserção guarda, mantidas as ressalvas já feitas, analogia com as asserções de Hirsh ou de Raine sobre o significado do tigre (ou da palavra "florestas") no poema de William Blake. Entretanto, qualquer passo adicional, tal como o de sugerir que a briga de galos tem um efeito discernível sobre os balineses - tal como, por exemplo, o de mostrar a eles uma dimensão de sua própria subjetividade - torna a explicação de Geertz para o fascínio pela briga de galos em Bali rigorosamente análoga à explicação de Homans para as variações de temperatura da água do mar em função da direção do vento. Em outras palavras, a afirmação de que os balineses aprendem com as brigas de galos algo sobre si mesmos e sobre a sociedade balinesa, e que por esta razão comparecem às rinhas e apostam (apesar do sistema irracional de apostas) é, quer Geertz queira quer não, da mesma natureza que uma afirmação tal como a de que em uma massa d'água a água da superfície tende a ser mais quente porque o sol a aquece com mais intensidade. A partir do momento em que tal paralelo se estabelece, não há mais porque postular a necessidade de uma "ciência interpretativa" para a interpretação das culturas. A tese da educação sentimental é uma hipótese sobre a razão do fascínio dos balineses pela briga de galos no mesmo sentido em que a tese de que a temperatura da água do mar varia se o vento muda de direção é uma hipótese sobre a razão para a mudança de temperatura da água do mar. Nesta medida, ambas as teses, e não apenas a última, tanto requerem corroboração empírica no sentido mais convencional do termo, quanto envolvem a subordinação de um fenômeno a uma lei. O principal serviço prestado pela idéia de que a cultura requer uma "ciência interpretativa" é o de obscurecer um ponto como este, o qual Homans formulou nos seguintes termos:

"uma pretensa interpretação que não conteria, em si, lei alguma, pode transformar-se imediatamente em uma interpretação 'real' se introduzirmos uma premissa principal não enunciada previamente."28 28 Homans, op. cit., p.50.

Uma das premissas que Geertz não introduziu em sua discussão sobre a incursão fracassada aos carneiros é a de que diferenças culturais são causas de desentendimentos sistemáticos; uma das premissas que ele não deixou explícita em sua discussão sobre a briga de galos é a de que há uma racionalidade inerente à qualquer prática social. Tornar tais premissas explícitas implicaria reconhecer a dependência das teses da "farsa social", e da "educação sentimental", em relação à "tradicional".

IV

Em face do exposto, supor que é necessário uma ciência especial, a chamada "ciência interpretativa", para se chegar a uma tese tal como "a briga de galos em Bali envolve uma educação sentimental" é um erro com uma danosa implicação: a de levar a supor que o fato das ciências sociais lidarem com fenômenos culturais a isenta de subordinar comportamentos a leis e de submeter suas hipóteses a testes. Não descartamos com isto a possibilidade de que haja coisa melhor a fazer do que propor e testar modelos e hipóteses. Tudo o que estamos dizendo é que tentar tornar uma manifestação cultural menos bizarra aos nossos olhos via associações com categorias familiares à nossa própria experiência está bem longe de ser esta coisa melhor. Conforme vimos, tal procedimento nos autoriza a dizer muito pouco e, mesmo este pouco, só pode ser aceito com sérias reservas.

O muito pouco que a "ciência interpretativa" nos autoriza a dizer é que, a exemplo de um texto, ou de um drama, um acontecimento social coordena e traz a foco uma grande quantidade de nossas impressões sobre a vida humana. Isto é pouco porque qualquer afirmação a respeito da recepção desse "drama", ou a respeito de seus presumidos efeitos sobre os participantes ou sobre a audiência, só pode ser feita à luz de procedimentos metodológicos que esta "ciência" rejeita. Esta objeção atinge a analogia que Geertz estabelece entre uma briga de galos e um drama de Shakespeare. À margem da ciência convencional é possível afirmar (como Geertz propriamente o faz, recorrendo a Frye) que Macbeth mostra como um homem se sente depois de ganhar um reino e perder a alma, mas não é possível afirmar (como Geertz impropriamente o faz, recorrendo a Frye) que as pessoas vão assistir a peça para ver isto. Desnecessário dizer que as pessoas podem assistir Macbeth por toda sorte de razões e, fora de procedimentos metodológicos convencionais, qualquer afirmação sobre estas razões é inteiramente gratuita.

Passemos agora às reservas. São duas, ambas decorrentes da mencionada inexistência de um ponto comum de referência a partir do qual se possa contestar "descrições densas". A primeira é o fato de uma "descrição densa" não estar respaldada em elementos aos quais se possa recorrer para desarmar explicações alternativas que venham a ser formuladas de maneira totalmente intuitiva. Esclarecendo: afirmamos anteriormente que ao contrário do que ocorre em relação às interpretações oferecidas para um poema como The Tyger, a interpretação para um acontecimento social (nos moldes propostos por Geertz) não dá oportunidade ao leitor de aduzir elementos para sustentar uma tese que seja incompatível com a tese originalmente proposta. Na ausência de um texto de verdade no qual se possa buscar elementos para contestar uma determinada interpretação, a opção que resta a quem não quer aceitar acriticamente tal interpretação é recorrer à imaginação para propor alguma interpretação alternativa. O mínimo que se pode requerer da interpretação inicial é que exiba uma notória superioridade em relação a esta interpretação alternativa. Entretanto, ao contrário do que ocorre em relação a um texto de verdade, que pode ser literalmente lido e relido por quem quer que seja, e que tem um autor de verdade cuja intenção pode se tentar resgatar, a explicação de um fenômeno nos marcos do Projeto Interpretativo não fornece elementos para desarmar explicações alternativas que expressam nada mais que um livre exercício da imaginação. Assim, conforme vimos, a explicação de Geertz para o "caso Cohen" não traz qualquer elemento para desarmar uma explicação que sustente, por exemplo, que não houve "farsa social" nenhuma mas sim uma "canalhice" dos colonizadores franceses. O mínimo que se pode requerer de uma tese como a da "farsa social" é que seja superior à tese da "canalhice", e um apelo às nossas próprias experiências é muito pouco para nos forçar a aceitar tal superioridade. Da mesma forma, a explicação de Geertz para o fascínio balinês pela briga de galos não oferece qualquer elemento para desarmar uma explicação que diga, por exemplo, que uma briga de galos não envolve "educação sentimental" nenhuma mas, sim, um mero entretenimento. Tal explicação seria mais ou menos a seguinte: "a briga de galos oferece aos balineses uma oportunidade, mas esta oportunidade não é a de refletir sobre dimensões cruciais de sua experiência (como sugere a analogia com Macbeth), e sim a de se deleitar com a precisão de um golpe desferido por um galo contra outro, da mesma maneira que uma luta de boxe oferece a oportunidade de se deleitar com a precisão de um golpe desferido por um pugilista contra seu oponente, ou um jogo de futebol oferece a oportunidade de se deleitar com um drible desconcertante." Em favor de tal explicação poderíamos aduzir a hipótese de que, dependendo do galo que vai brigar, o interesse pela briga aumenta da mesma maneira que o interesse por uma luta de boxe aumenta quando um dos pugilistas é um notório nocauteador, ou por um jogo de futebol aumenta quando um notório "craque" está em campo. Como o relato de Geertz não traz qualquer informação que desminta isto, e como tal informação não se acha disponível em lugar algum, fica inteiramente à critério do leitor decidir se uma peça de Shakespeare, ou uma luta de boxe, é a melhor analogia para "aproximar" os balineses de "nós".29 29 Schneider (citado) oferece um instigante argumento contra a tese de que a analogia com Macbeth torna os balineses mais acessíveis a nós: ninguém assiste Macbeth com tanta freqüência. Admitido que ao assistir esta peça aprendemos algo sobre nós mesmos, teríamos que ser obcecados por este "algo" para assistir uma mesma peça com tamanha freqüência. Por mais rico e complexo que este "algo" seja, aprendê-lo não pode requerer tanta repetição: "Taken seriously, Geertz's argument for a cockfight would turn the Balinese into 'redundancy-freaks', mesmerized by a single document and the constancy of its repetition. Consequently, this confrotation with the enigmatical winds up making the Balinese as foreign to us as they began, or perhaps more so" (p. 819). Este argumento indica que uma luta de boxe pode muito bem ser uma analogia mais apropriada para tornar os balineses mais próximos de "nós". Nesse caso, a antropologia interpretativa seria supérflua pois, tal analogia, além de não resgatar a "racionalidade" dos balinêses (na verdade, tal analogia tem um efeito devastador sobre o argumento de Geertz porque ao invés de aproximar os balineses de "nós" dizendo que eles são tão racionais quanto "nós", ela os aproxima de "nós" dizendo que somos tão bizarros quanto eles), pode ocorrer a qualquer turista de bom senso.

A segunda ressalva é o reverso desta moeda. Reconsideremos a tese de Hirsh de que no poema The Tyger William Blake exalta o tigre ao fazer versos que sugerem os harmoniosos movimentos deste animal. Esta tese pode inspirar outras interpretações mas não pode ser mecanicamente transposta para outro poema. Consideremos agora a tese de Geertz de que a briga de galos em Bali "coordena e traz a foco urna grande quantidade de nossas impressões sobre a vida humana". Para sermos mais precisos, traz a foco e coordena impressões sobre "a morte, a masculinidade, a raiva, o orgulho, a perda, a beneficência e a oportunidade". Na ausência de um texto de verdade que sirva como ponto comum de referência, podemos através de um livre exercício de imaginação transportar mecanicamente esta interpretação para qualquer evento que envolva algum grau de violência. Num plano puramente intuitivo podemos dizer, por exemplo, que um jogo de futebol entre equipes cujas torcidas são arqui-rivais "traz a foco e coordena impressões sobre a morte, a masculinidade, a raiva, o orgulho, a perda, a beneficência e a oportunidade", e, portanto, exprime a "sensibilidade privada" dos torcedores. Em outras palavras, para se transpor a tese da "educação sentimental" para um fenômeno como, por exemplo, o futebol brasileiro, não é necessário um esforço muito maior do que o de substituir, na afirmação: "os balineses vão a uma briga de galos para descobrir como se sente um homem (...) quando, depois de atacado, atormentado, desafiado, insultado e, em virtude disso, levado a paroxismos de fúria, atinge o triunfo total ou o nível mais baixo", as palavras "balineses" e "briga de galos" pelas palavras "brasileiros" e "jogo de futebol". Que elementos a discussão de Geertz oferece para desarmar tal transposição? Mais uma vez, nenhum. Desarmar tal transposição requereria a adoção de procedimentos metodológicos convencionais tais como uma comparação sistemática entre a cultura brasileira e a cultura balinesa. Assim, da mesma maneira que o Projeto Interpretativo não oferece elementos para desarmar interpretações alternativas formuladas através de um livre exercício da imaginação, ele também não oferece elementos para desarmar livres exercícios de imaginação que transportem, com adaptações óbvias, uma interpretação de um fenômeno para outro.

A natureza de tais objeções pode ser melhor entendida se se tiver em mente a anteriormente mencionada analogia que Geertz estabelece entre a interpretação de uma cultura e a elaboração de um diagnóstico médico. Em ambos os casos, diz Geertz, busca-se enquadrar observações de uma forma inteligível, e não subordiná-las a leis. Admitida tal analogia, suponhamos que um médico descreva para uma determinada audiência um determinado caso clínico e apresente seu diagnóstico. Suponhamos agora que um dos ouvintes proponha, através de um livre exercício de imaginação, um diagnóstico alternativo. Que crédito mereceria o diagnóstico original se não fosse possível desarmar tal diagnóstico alternativo? Suponhamos por outro lado que outro ouvinte recorra a um outro exercício de imaginação no sentido de mostrar que o diagnóstico apresentado aplica-se facilmente a casos clínicos bem diferentes daquele que foi descrito e, mais uma vez, não há como desarmar tal argumento. Mais uma vez, que crédito mereceria tal diagnóstico?30 30 Recorramos a mais uma analogia para tornar mais clara a natureza desta objeção. Tome-se o livro O que faz do Brasil, Brasil?, de Roberto da Marta. O que dizer deste livro se, digamos, um escocês argumentasse que substituindo algumas palavras óbvias o título do livro bem poderia ser O que faz da Escócia, Escócia?; se um japonês argumentasse que introduzindo as palavras Japão e japoneses o livro se converteria facilmente em O que faz do Japão, Japão?, etc, e não houvesse no livro elementos aos quais se pudesse recorrer para desarmar nem o argumento do escocês nem o do japonês?

Disso resulta que, para a felicidade da medicina, e de quem possa vir a dela se beneficiar, um diagnóstico (pelo menos um diagnóstico bem feito) não é como uma "descrição densa". Se Geertz tivesse razão em sua analogia, nosso hipotético médico estaria impedido de recorrer a modelos e à comparação com outros casos clínicos, como também de discutir a adequação empírica das objeções que lhe foram colocadas. Em decorrência se veria obrigado a deixar à critério da audiência a decisão sobre a validade de seu diagnóstico. Se, a exemplo do que ocorre em relação a uma "descrição densa", a validade de um diagnóstico médico fosse uma questão de "acredite se quiser", então a espécie humana estaria seriamente ameaçada.

  • 2 Veja-se A interpretação das culturas, Zahar Editores, 1978, p. 15.
  • 3 A proposta de se considerar a cultura como se fosse um texto é inspirada no trabalho de Paul Ricoeur (Veja-se, por exemplo, seu "The Model of the Text: Meaningful Action Considered as a Text", in P. Rabinow e W. Sullivan [orgs.], Interpretive Social Science, A Reader, 1979, pp. 73-101, University of California Press).
  • Ricoeur expoe as similaridades entre uma ação e um texto mas não expoe as diferenças. Portanto, ele não menciona as dificuldades oriundas de tais diferenças, e muito menos discute os meios de contornar tais dificuldades. Seria legítimo esperar que um trabalho empírico inspirado nesta proposta se ocupasse de tais problemas e não se evadisse deles. O que está em questão neste artigo não é o "paradigma da interpretação do texto" (esta expressão é do próprio Ricoeur) enquanto tal, mas sim a "ciência normal" que se tem feito sob sua inspiração. Geertz dá uma breve descrição desta "ciência normal" em seu Local Knowledge (Basic Books, 1983, veja-se pp. 30-35).
  • 4
    4 Veja-se A interpretação das culturas, citado, pp. 17-19.
  • 6 Veja-se Jon Elster, Explaining Technical Change, Cambridge 1983.
  • 8 Veja-se, por exemplo, Mark A. Schneider, "Culture-as-text in the work of Clifford Geertz", Theory and Society, 16:809-839,1987,
  • e Paul Shankman, "The Thick and the Thin: On the Interpretive Theoretical Program of Clifford Geertz", Current Anthropology, 25(3):261-279,1984.
  • 11 Frye, The Educated Imagination, pp. 63-64,
  • 14 Para uma excelente crítica a esta concepção veja-se Peter Munz, Our Knowledge of the Growth of Knowledge, Routledge and Kegan Paul, 1985.
  • Para uma excelente discussão sobre o caráter pre-darwiniano do pós-modernismo veja-se, do mesmo autor, "What's PostModern, Anyway?", Philosophy and Literature, 1992, 16:333-353 e "Philosophy and the Mirror of Rorty",
  • In G. Radnitzky and W. W. Bartley, III (eds.), Evolutionary Epistemology, Rationality, and the Sociology of Knowledge, Illinois: Open Court, pp. 345-398, 1987.
  • 21 George Homans, La naturaleza de la ciencia social, Eudeba, Buenos Aires, 1970.
  • 22 E. D. Hirsh, Innocence and Experience, Yale, 1964,
  • citado por Stanley Fish em Is There a text in this Class? The Authority of Interpretive Communities, Harvard, 1980, p. 39.
  • 24 Os termos entre aspas são do próprio Geertz, em A interpretação das culturas, citado, p. 311.
  • 25 Clifford Geertz, El Antropologo como Autor, Ediciones Paidos, Barcelona, 1989.
  • *
    Foram-nos muito úteis as críticas dos professores Leonardo Fígoli e Cláudio Beato, ambos da UFMG, a uma versão anterior deste artigo. É bom que se diga que nenhum dos dois concorda com o argumento que aqui é apresentado.
  • 1
    Estes exemplos não são do próprio Geertz, mas servem muito bem ao propósito de expor seu raciocínio.
  • 2
    Veja-se
    A interpretação das culturas, Zahar Editores, 1978, p. 15.
  • 3
    A proposta de se considerar a cultura como se fosse um texto é inspirada no trabalho de Paul Ricoeur (Veja-se, por exemplo, seu "The Model of the Text: Meaningful Action Considered as a Text", in P. Rabinow e W. Sullivan [orgs.],
    Interpretive Social Science, A Reader, 1979, pp. 73-101, University of California Press). Ricoeur expoe as similaridades entre uma ação e um texto mas não expoe as diferenças. Portanto, ele não menciona as dificuldades oriundas de tais diferenças, e muito menos discute os meios de contornar tais dificuldades. Seria legítimo esperar que um trabalho empírico inspirado nesta proposta se ocupasse de tais problemas e não se evadisse deles. O que está em questão neste artigo não é o "paradigma da interpretação do texto" (esta expressão é do próprio Ricoeur) enquanto tal, mas sim a "ciência normal" que se tem feito sob sua inspiração. Geertz dá uma breve descrição desta "ciência normal" em seu
    Local Knowledge (Basic Books, 1983, veja-se pp. 30-35). Ela envolve alguns trabalhos empíricos sobre temas tais como piadas dos Apaches, comidas inglesas, queimas de viúvas balinesas e escolas secundárias americanas. Na página 30 Geertz afirma que a analogia com o texto é a mais ampla, mais arrojada e menos desenvolvida refiguração recente da teoria social. Pelo que sabemos, sua discussao sobre a briga de galos é o ponto alto desta "mal-desenvolvida" refiguração, e daí nosso interesse em tal discussao. Devemos enfatizar que não vemos o sentido de discutir a validade de um paradigma examinando a "refiguração" que ele propõe, mas sim a "ciência normal" que ele lega. Afinal, se um paradigma é, como diz Kuhn, uma promessa que a "ciência normal" cumpre aos poucos, então, mais importante do que discutir esta "promessa" enquanto tal (promessa é, geralmente, alguma coisa muito boa!), é procurar saber se ela está sendo de alguma forma cumprida sem envolver perdas que superem os ganhos. A promessa que o "paradigma da interpretação do texto" encerra é, de acordo com Ricoeur, a de superar "o clássico debate sobre motivos e causas que tem atormentado a teoria da ação nestas últimas décadas" através da "busca de correlações dentro de sistemas semióticos" (citado, p. 99). O ponto central deste artigo é o de que, até o presente momento, o esforço no sentido de cumprir tal promessa tem envolvido algumas perdas e, até onde conseguimos perceber, nenhum ganho.
  • 4
    Veja-se
    A interpretação das culturas, citado, pp. 17-19.
  • 5
    Geertz, citado, p. 19.
  • 6
    Veja-se Jon Elster,
    Explaining Technical Change, Cambridge 1983.
  • 7
    A analogia entre uma "descrição densa" e um diagnóstico médico é do próprio Geertz.
  • 8
    Veja-se, por exemplo, Mark A. Schneider, "Culture-as-text in the work of Clifford Geertz",
    Theory and Society, 16:809-839,1987, e Paul Shankman, "The Thick and the Thin: On the Interpretive Theoretical Program of Clifford Geertz",
    Current Anthropology, 25(3):261-279,1984.
  • 9
    Tudo isto é só para dizer que Weber está muito mais próximo de uma concepção convencional de ciência do que Geertz quer nos fazer crer.
  • 10
    Contrariando Geertz, Schneider (citado) argumenta que uma briga de galos envolve chances muito boas de ganhos monetários. Talvez a solução para o "enigma" de Geertz seja bem mais fácil do que ele supõe.
  • 11
    Frye,
    The Educated Imagination, pp. 63-64, citado em Geertz,
    op. cit., p. 318.
  • 12
    Veja-se Geertz
    op. cit, p. 316.
  • 13
    Geertz,
    op. cit., pp. 317-318. O termo "soletradas", nesta citação, é uma lamentável tradução de "spelled out".
  • 14
    Para uma excelente crítica a esta concepção veja-se Peter Munz,
    Our Knowledge of the Growth of Knowledge, Routledge and Kegan Paul, 1985. Para uma excelente discussão sobre o caráter pre-darwiniano do pós-modernismo veja-se, do mesmo autor, "What's PostModern, Anyway?",
    Philosophy and Literature, 1992, 16:333-353 e "Philosophy and the Mirror of Rorty", In G. Radnitzky and W. W. Bartley, III (eds.),
    Evolutionary Epistemology, Rationality, and the Sociology of Knowledge, Illinois: Open Court, pp. 345-398, 1987.
  • 15
    Não estamos evidentemente sugerindo que os balineses gostam de briga de galos porque os galos balineses são bons de briga, nem que a objeção acima seja a mais apropriada para tal tese. No entanto, queremos chamar a atenção para o fato de que mesmo uma tese tola como esta tem, se comparada à tese da educação sentimental, a vantagem de oferecer ao leitor uma oportunidade de aduzir seu conhecimento sobre outras culturas para contestá-la.
  • 16
    Tanto em
    A interpretação das culturas, originalmente publicado em 1973, quanto em
    Local Knowledge, publicado dez anos depois, Geertz faz menção ao caráter "mal desevolvido" da proposta de se analisar a cultura como se fosse um texto (reveja-se a
    nota 3 3 A proposta de se considerar a cultura como se fosse um texto é inspirada no trabalho de Paul Ricoeur (Veja-se, por exemplo, seu "The Model of the Text: Meaningful Action Considered as a Text", in P. Rabinow e W. Sullivan [orgs.], Interpretive Social Science, A Reader, 1979, pp. 73-101, University of California Press). Ricoeur expoe as similaridades entre uma ação e um texto mas não expoe as diferenças. Portanto, ele não menciona as dificuldades oriundas de tais diferenças, e muito menos discute os meios de contornar tais dificuldades. Seria legítimo esperar que um trabalho empírico inspirado nesta proposta se ocupasse de tais problemas e não se evadisse deles. O que está em questão neste artigo não é o "paradigma da interpretação do texto" (esta expressão é do próprio Ricoeur) enquanto tal, mas sim a "ciência normal" que se tem feito sob sua inspiração. Geertz dá uma breve descrição desta "ciência normal" em seu Local Knowledge (Basic Books, 1983, veja-se pp. 30-35). Ela envolve alguns trabalhos empíricos sobre temas tais como piadas dos Apaches, comidas inglesas, queimas de viúvas balinesas e escolas secundárias americanas. Na página 30 Geertz afirma que a analogia com o texto é a mais ampla, mais arrojada e menos desenvolvida refiguração recente da teoria social. Pelo que sabemos, sua discussao sobre a briga de galos é o ponto alto desta "mal-desenvolvida" refiguração, e daí nosso interesse em tal discussao. Devemos enfatizar que não vemos o sentido de discutir a validade de um paradigma examinando a "refiguração" que ele propõe, mas sim a "ciência normal" que ele lega. Afinal, se um paradigma é, como diz Kuhn, uma promessa que a "ciência normal" cumpre aos poucos, então, mais importante do que discutir esta "promessa" enquanto tal (promessa é, geralmente, alguma coisa muito boa!), é procurar saber se ela está sendo de alguma forma cumprida sem envolver perdas que superem os ganhos. A promessa que o "paradigma da interpretação do texto" encerra é, de acordo com Ricoeur, a de superar "o clássico debate sobre motivos e causas que tem atormentado a teoria da ação nestas últimas décadas" através da "busca de correlações dentro de sistemas semióticos" (citado, p. 99). O ponto central deste artigo é o de que, até o presente momento, o esforço no sentido de cumprir tal promessa tem envolvido algumas perdas e, até onde conseguimos perceber, nenhum ganho. ). Talvez haja muito boas razões para a persistência deste caráter "mal desenvolvido" ao longo dos dez anos que separam um livro do outro, e dos 14 anos que separam
    Local Knowledge da presente data.
  • 17
    op. cit.
  • 18
    Schneider,
    op. cit., p. 827.
  • 19
    Veja-se Schneider,
    op. cit, pp. 812-813.
  • 20
    Quando, por exemplo, interpretamos a história de "Chapeuzinho Vermelho", não precisamos discutir os mecanismos por meio dos quais esta história vem a ter algum efeito sobre o comportamento das crianças. Nem mesmo precisamos discutir se esta história tem algum efeito sobre o comportamento das crianças.
  • 21
    George Homans,
    La naturaleza de la ciencia social, Eudeba, Buenos Aires, 1970.
  • 22
    E. D. Hirsh,
    Innocence and Experience, Yale, 1964, citado por Stanley Fish em
    Is There a text in this Class? The Authority of Interpretive Communities, Harvard, 1980, p. 39.
  • 23
    "Who Made the Tyger", in
    Encounter, 1954, citado por Fish,
    op. cit., p. 339.
  • 24
    Os termos entre aspas são do próprio Geertz, em
    A interpretação das culturas, citado, p. 311.
  • 25
    Clifford Geertz,
    El Antropologo como Autor, Ediciones Paidos, Barcelona, 1989.
  • 26
    op.cit,p. 153.
  • 27
    idem, p. 14.
  • 28
    Homans,
    op. cit., p.50.
  • 29
    Schneider (citado) oferece um instigante argumento contra a tese de que a analogia com
    Macbeth torna os balineses mais acessíveis a nós: ninguém assiste
    Macbeth com tanta freqüência. Admitido que ao assistir esta peça aprendemos algo sobre nós mesmos, teríamos que ser obcecados por este "algo" para assistir uma mesma peça com tamanha freqüência. Por mais rico e complexo que este "algo" seja, aprendê-lo não pode requerer tanta repetição: "Taken seriously, Geertz's argument for a cockfight would turn the Balinese into 'redundancy-freaks', mesmerized by a single document and the constancy of its repetition. Consequently, this confrotation with the enigmatical winds up making the Balinese as foreign to us as they began, or perhaps more so" (p. 819). Este argumento indica que uma luta de boxe pode muito bem ser uma analogia mais apropriada para tornar os balineses mais próximos de "nós". Nesse caso, a antropologia interpretativa seria supérflua pois, tal analogia, além de não resgatar a "racionalidade" dos balinêses (na verdade, tal analogia tem um efeito devastador sobre o argumento de Geertz porque ao invés de aproximar os balineses de "nós" dizendo que eles são tão racionais quanto "nós", ela os aproxima de "nós" dizendo que somos tão bizarros quanto eles), pode ocorrer a qualquer turista de bom senso.
  • 30
    Recorramos a mais uma analogia para tornar mais clara a natureza desta objeção. Tome-se o livro
    O que faz do Brasil, Brasil?, de Roberto da Marta. O que dizer deste livro se, digamos, um escocês argumentasse que substituindo algumas palavras óbvias o título do livro bem poderia ser
    O que faz da Escócia, Escócia?; se um japonês argumentasse que introduzindo as palavras Japão e japoneses o livro se converteria facilmente em
    O que faz do Japão, Japão?, etc, e não houvesse no livro elementos aos quais se pudesse recorrer para desarmar nem o argumento do escocês nem o do japonês?
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Nov 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 1997
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