Acessibilidade / Reportar erro

A agenda constituinte e a difícil governabilidade

Agenda constitutionalization and governabujty

Resumos

A política brasileira tem se caracterizado, nos anos que se seguiram ao fim do regime militar, pela constitucionalização da agenda governamental. Obrigados a formar amplas coalizões que ultrapassam a necessidade corriqueira de maioria absoluta no Congresso, os chefes do Executivo enfrentam dificuldades maiores do que aquelas que normalmente caracterizam os sistemas presidencialistas. Além de um sistema político consociativo, o Brasil tem se defrontado com uma agenda ultraconsociativa.


One of the main features of Brazilian politics in the years following the end of the military regime has been the constitutionalization of the governmental agenda. Forced to form wide coalizations which overstep the routine demand of absolute majority, the chiefs of the Executive branch face greater difficulties than those which normally characterize presidentialist systems. Besides a consociative political system Brazil has been facing an ultraconsociative agenda.


GOVERNO & DIREITOS

A agenda constituinte e a difícil governabilidade* * Este artigo é o primeiro produto de uma pesquisa em fase inicial, buscando compreender a relação entre o processo de ajuste estrutural e as instituições políticas no Brasil desde o fim do militarismo. Portanto, mais do que apresentar conclusões seu propósito é lançar hipóteses.

Agenda constitutionalization and governabujty

Cláudio Gonçalves Couto

Professor do Departamento de Política da PUC-SP e pesquisador do CEDEC

RESUMO

A política brasileira tem se caracterizado, nos anos que se seguiram ao fim do regime militar, pela constitucionalização da agenda governamental. Obrigados a formar amplas coalizões que ultrapassam a necessidade corriqueira de maioria absoluta no Congresso, os chefes do Executivo enfrentam dificuldades maiores do que aquelas que normalmente caracterizam os sistemas presidencialistas. Além de um sistema político consociativo, o Brasil tem se defrontado com uma agenda ultraconsociativa.

ABSTRACT

One of the main features of Brazilian politics in the years following the end of the military regime has been the constitutionalization of the governmental agenda. Forced to form wide coalizations which overstep the routine demand of absolute majority, the chiefs of the Executive branch face greater difficulties than those which normally characterize presidentialist systems. Besides a consociative political system Brazil has been facing an ultraconsociative agenda.

Um tema recorrente entre os diversos analistas da política brasileira no período iniciado com a Nova República tem sido o da incapacidade governativa no plano nacional. Freqüentemente, menciona-se que a perda de capacidade de governo por parte do Executivo central teria uma origem ainda anterior à posse do presidente José Sarney. Ela remontaria ao início da década de 1980, quando o governo chefiado pelo presidente Figueiredo viu-se diante de uma dupla derrocada, política e econômica. No campo político, a derrocada se evidenciava com a vitória oposicionista em 10 estados nas eleições de 19821 1 A oposição não apenas venceu em 10 estados, mas conquistou também o governo estadual nos três mais importantes: Minas Gerais e São Paulo, com o PMDB, e Rio de Janeiro, com o PDT. , culminando um processo paulatino de incremento do voto oposicionista iniciado em 19742 2 A esse respeito ver Lamounier, Bolívar. "O 'Brasil autoritário' revisitado: o impacto das eleições sobre a abertura". In Stepan, Alfred (org.), Democratizando o Brasil (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988). e lançando na arena política novos atores, capazes de fazer frente ao poder central: os governadores3 3 Para uma acurada análise do poder dos governadores no Brasil, ver Abrucio, Fernando Luiz. "Os Barões da Federação" (Lua Nova 33, 1994) e Os Barões da federação: o poder dos governadores no Brasil pós-autoritário (Dissertação de mestrado. Departamento de Ciência Política. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1995). . No campo econômico, a derrocada se fazia sentir com o colapso definitivo (apesar das posteriores tentativas de retomada) do projeto de Estado nacional-desenvolvimentista. A segunda crise do petróleo em 1979, a crise dos juros em 1980, a moratória mexicana em 1982 e, finalmente, a desastrada política do "segundo delfinato", todos esses fatores contribuíram para o esgotamento de um modelo de inegável sucesso nos 45 anos precedentes: delineava-se aquilo que depois seria referido por Bresser Pereira como a "crise fiscal do Estado"4 4 Bresser descreve a crise fiscal do Estado como uma redução significativa da capacidade de poupança do setor público, que tem como implicação a redução das taxas de investimento e crescimento da economia brasileira, daí, a necessidade de recuperar a capacidade de poupança do setor público para que seja retomado o desenvolvimento. Suas causas residiriam no peso representado pela dívida externa e no preço pago pelo setor público no processo de ajuste levado a cabo no início dos anos 80. A este respeito ver Bresser Pereira, Luiz Carlos. "Problematizando uma experiência de governo: contra a corrente no ministério da Fazenda". {Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 19, ano 7, junho de 1992). Para uma descrição da catástrofe econômica que tem lugar no governo Figueiredo ver Fishlow, Albert. "Uma história de dois presidentes: a economia política da gestão da crise". In Stepan, Alfred (org.). Democratizando o Brasil (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988). .

A dupla derrocada esteve presente no desfecho da transição democrática brasileira, gerando o que Maria Herminia Tavares de Almeida descreve como uma dupla transição, política e econômica. No caso da transição política, ocorria a "substituição do autoritarismo por um regime democrático", no caso da transição econômica, iniciava-se uma mudança que "deve desembocar numa nova relação entre Estado e Mercado"5 5 Almeida, Maria Herminia Tavares de. "Pragmatismo por necessidade: os rumos da reforma econômica no Brasil" {Dados vol. 39, nº 2, 1996, p. 213). . Brasílio Sallum Jr. já havia trabalhado nesta mesma temática de forma distinta. Para ele, ocorria nesse momento uma profunda modificação na relação Estado-Sociedade, tanto no que diz respeito às ralações Estado-Mercado, como no que concerne à mudança do regime (nos seus aspectos institucional-formais) e das coalizões políticas que o sustentavam, até como uma decorrência da débâcle econômica6 6 Sallum Jr., Brasílio. "Transição política e crise de Estado". ( Lua Nova, 32, 1994); Sallum Jr., Brasílio & Kugelmas, Eduardo. "O Leviatã acorrentado: a crise brasileira dos anos 80". In Sola, Lourdes (org.) Estado, mercado e democracia: política e economia comparadas (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993). . Nos termos do próprio Sallum referindo-se ao período da Nova República:

"Estão em crise o padrão anterior de articulação entre capitais locais — privados e estatal — e o capital internacional; a forma existente de agregação e representação de interesses econômico-sociais gerados em uma sociedade cada vez mais complexa; e a relação entre setor público e privado no processo de desenvolvimento capitalista. Tais crises se condensam no núcleo político da sociedade pondo em xeque, não só o regime que se cuida de substituir, mas a própria forma de Estado, o Estado intervencionista vigente"7 7 Sallum Jr., Brasílio, "Porque não tem dado certo: notas sobre a transição política brasileira", in Sola, Lourdes (org.). O Estado da transição — política e economia na Nova República. (São Paulo, Vértice, 1988, p. 119) apud Sallum Jr., Brasílio, Labirintos: dos generais à Nova República. (São Paulo, Hucitec, 1996, p. 8). .

Mas os pactos antes prevalecentes não deram lugar a novas coalizões, capazes de encaminhar um novo projeto hegemônico. As alianças que se forjavam eram efêmeras e de pouca consistência, constituindo-se antes como coalizões de veto a certas iniciativas do que como propositoras de saídas consistentes para crise.

A inexistência de uma nova coalizão hegemônica no processo de transição é também apontada por Bolívar Lamounier. Tal constatação permite contestar as teses segundo as quais o Brasil teria experimentado um processo de "transição transada". São várias as evidências desse hiato de poder: o debilitamento recíproco de militares e civis; a busca de apoio popular por parte dos líderes civis incapazes de forjar um pacto elitista; a precária legitimidade de José Sarney, surpreendido pelo acesso ao posto presidencial; e a atomização do Congresso Constituinte, impossibilitando um consenso prévio sobre qualquer projeto8 8 Lamounier, Bolívar. A Democracia brasileira no limiar do século 21. Série Pesquisas, nº 5. (São Paulo, Fundação Konrad-Adenauer-Stiftung, 1996). . Apesar de ter obtido uma avassaladora maioria congressual nas eleições de 1986, impulsionado pelo efêmero sucesso do Plano Cruzado, o PMDB vitorioso naquele ano carecia de consistência. O partido sofreu um forte inchaço desde sua chegada ao poder nacional em 1985, o qual se agravou no ano da eleição, levando ao seio do partido ex-arenistas e pedessistas fiéis até a undécima hora; além disso, foram lançadas à linha de frente da agremiação novas lideranças, com forte enraizamento regional e de perfil distinto daquele que caracterizava a já frágil coalizão dominante do partido9 9 Refiro-me aqui, sobretudo, aos governadores do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, que passaram a exercer o papel de lideranças significativas no PMDB da Nova República, em particular no que diz respeito à atuação das bancadas estaduais desse partido na Assembléia Nacional Constituinte. .

A inexistência de uma coalizão situacionista minimamente coesa constituiu-se, portanto, num fator decisivo para a crise de ingovernabilidade que marcou as duas primeiras gestões presidenciais civis no Brasil. O modelo anterior de desenvolvimento e de relacionamento Estado-sociedade havia naufragado definitivamente, sem que se configurasse contudo, de forma minimamente consensual, uma alternativa a ele. As cisões de projetos e grupos de poder se faziam presentes no âmbito da sociedade civil, nos partidos políticos (sobretudo os situacionistas) e mesmo no interior do governo, ao mesmo tempo que as novas instituições políticas criadas no processo de transição ainda não haviam sido consolidadas e uma profunda crise econômica se abatia sobre o País. Em meio à crise (ou instabilidade crônica) do Brasil pós-Cruzado, diante do colapso da Aliança Democrática e das dificuldades enfrentadas pelo Plano Bresser para combater o retorno revigorado da inflação, Ulysses Guimarães assim descrevia a conjuntura:

"O PMDB, o PFL e o presidente estão pagando um alto preço, pois estamos numa fase de transição, em que se está combatendo o antigo e ainda não há o novo"10 10 Banco de Dados POLI-CEDEC, 08.08.1987-004. .

Mas se a incapacidade dos atores estrategicamente centrais de forjar um novo pacto governativo, que desse lastro a um novo projeto de Estado, é um elemento fundamental da história política brasileira recente, um outro fator também desponta, tendo sido objeto da maior parte dos estudos contemporâneos sobre o processo de governo no Brasil. Trata-se do arcabouço institucional-legal do país, extremamente favorável à pulverização dos apoios políticos e à geração de impasses decisórios. É desse tema que tratará a próxima seção.

O SISTEMA CONSOCIATIVO

Num célebre trabalho, em que analisa comparativamente 25 democracias contemporâneas, Arend Lijphart estabelece dois modelos polares de organização política: o modelo majoritário (ou de Westminster) e o modelo consensual (referido em obras anteriores como consociativo, termo que prefiro manter). Resumidamente, o modelo majoritário caracteriza-se pela preponderância de regras institucionais favoráveis à prevalência das vontades majoritárias no processo político governamental; seria o modelo mais adequado a países homogêneos do ponto de vista sócio-económico. O modelo consociativo, por sua vez, distingue-se pela presença de regras favoráveis à expressão das diversas parcelas de uma sociedade e/ou de um sistema político, permitindo-lhes inclusive vetar eventuais iniciativas da maioria; seria o sistema mais adequado a países heterogêneos do ponto de vista sócio-econômico. Idealmente, quanto maior a heterogeneidade, maior o consociativismo do sistema político11 11 Lijphart, Arend, As democracias contemporâneas (Lisboa: Gradiva, 1989). . O quadro a seguir — elaborado por mim a partir da discussão de Lijphart, sem contudo reproduzi-la ipsis literis — elenca as características distintivas de um e outro modelo, tomados como tipos ideais.

Se tomarmos o quadro acima como referência para uma apreciação do sistema político institucional brasileiro, verificaremos que ele conta com quase todas as características do modelo consociativo: um sistema presidencialista que, sendo multipartidário, requer a formação de coalizões parlamentares amplas; o funcionamento do Senado como câmara revisora das decisões dos deputados, tornando seu bicameralismo bastante equilibrado; um sistema eleitoral proporcional e que, além disso, sendo de lista aberta, acirra a competição eleitoral intrapartidária12 12 A esse respeito ver o excelente artigo de Mainwaring, Scott. "Políticos, partidos e sistemas eleitorais". (Novos Estudos, 37, 1991) ; um federalismo de conseqüências bastante significativas, com os governos subnacionais desempenhando um papel ativo e constante nas lutas políticas nacionais; o julgamento da constitucionalidade das leis sendo tarefa do Supremo Tribunal Federal, que pode contrariar decisões do Executivo e do Legislativo, e a necessidade de maiorias qualificadas para a modificação da Constituição; por fim, diversos mecanismos que permitem o apelo direto ao eleitor para a resolução de certas questões que seriam, em princípio, de competência exclusiva do parlamento — estes, embora não tenham sido insistentemente utilizados em plano nacional nos últimos anos, tiveram ao menos uma aparição significativa13 13 Quando menciono o fato de que mecanismos de democracia direta (notavelmente o plebiscito) não têm sido muito utilizados no plano nacional, pretendo deixar registrado que eles foram freqüentes em diversas localidades brasileiras no período pós-Constituinte. O plebiscito para decidir acerca da criação de novos municípios, bastando lembrar que houve um aumento de 30% no número de cidades brasileiras nesse período para se avaliar a dimensão do fenômeno. Além disso, mecanismos outros de democracia direta têm sido implementados, sobretudo em localidades governadas por partidos de esquerda. Quanto à aparição significativa do mecanismo plebiscitário em nível nacional, refiro-me, obviamente, à consulta sobre forma e sistema de governo realizada em 1993. . Talvez o único porém ao consociativismo generalizado no Brasil diga respeito à unidimensionalidade do sistema partidário, pois os partidos brasileiros — ainda que com nuanças — dispõem-se basicamente ao longo do continuum esquerda-direita14 14 Figueiredo & Limongi, "Partidos políticos na Câmara dos Deputados". (Dados, vol. 38, nº 3, 1995a) demonstram com propriedade como o continuum esquerda-direita se manifesta de forma linear e perfeita nas votações parlamentares. Também Kinzo, Maria D'Alva Gil, Radiografia do quadro partidário brasileiro. (Série Pesquisas, nº 1. São Paulo: Fundação Konrad-Adenauer-Stiftung, 1993). demonstra isto com base em entrevistas realizadas com os parlamentares. .

Este consociativismo bastante pronunciado faz com que o processo decisório governamental tenha como condição sine qua non para sua operação prolongados e complexos processos de negociação, tornando mais instável e incerto o processo governativo e podendo gerar eventuais crises de ingovernabilidade decorrentes de impasses decisórios. Dentre os aspectos que cabe destacar para minha discussão está a existência de um sistema presidencialista em contexto multipartidário. O grande número de partidos congressuais efetivos torna ainda mais árdua a tarefa do Executivo de obter maiorias parlamentares, devido à maior complexidade da negociação no Legislativo15 15 Mainwaring, Scott. "Políticos, partidos e sistemas eleitorais" (Novos Estudos, 37, 1991). . Superadas as adversidades do processo de negociação, as coalizões governamentais resultantes são, necessariamente, conglomerados de diversos partidos. Um bom exemplo disso é a Câmara de Deputados eleita em 1990. Ela apresentava a composição partidária exposta na Tabela 1.

Uma eventual coalizão majoritária que reunisse os maiores partidos, independentemente de sua coloração ideológica, teria necessariamente de contar com quatro sócios. O presidente Collor, eleito no ano anterior pelo recém criado PRN, tendo como único parceiro eleitoral o PSC, contava com uma bancada de apenas 9,2% da Câmara. Caso buscasse forjar uma aliança majoritária de perfil conservador, relativamente coerente do ponto de vista ideológico e para tanto excluindo de antemão PMDB, PDT, PSDB, PT, PSB e os partidos comunistas, o governo teria de congregar nada menos do que 8 partidos (PFL, PDS, PTB, PL, PDC, PRN, PSC è PRS), contando assim com apertados 50,1%. Qualquer defecção num quadro como este seria suficiente para retirar do governo sua base majoritária na Câmara. Tal exercício nos dá uma noção da enorme instabilidade de qualquer base governativa num presidencialismo multipartidário extremamente fragmentado como o brasileiro16 16 Mainwaring compara a fragmentação partidária média da Câmara dos deputados brasileira de 1990 com a de outros 25 países do mundo no período 1945-1973 (antes porém do período que analiso). O índice brasileiro é o mais alto (0,884), seguido de perto apenas pela Finlândia (0,804) e pela Confederação Suíça (0,801). O país presidencialista mais próximo é o Chile (0,796), seguido pelo próprio Brasil no período 1950-1962 (0,774). Superamos, portanto, mesmo o índice de fragmentação de um país como a Itália (0,721), que apesar de parlamentarista apresentou enorme instabilidade em seus gabinetes no pós-guerra. Os Estados Unidos, caso paradigmático de presidencialismo estável e democracia durável, apesar de freqüentes períodos de "governo dividido" (congresso controlado por um partido diferente daquele do presidente), apresenta o segundo mais baixo índice de fragmentação (0,483). Mainwaring, 1993, cit., p. 27. .

É claro que à hipotética coalizão indicada poderiam agregar-se apoios oriundos de outros partidos, seja através da adesão individual de parlamentares, seja através de frações partidárias. A bancada de um partido heterogêneo como o PMDB, por exemplo, prestar-se-ia muito bem a este papel; parlamentares do PSDB freqüentemente votaram a favor do governo Collor. Mas assim como é possível colher esparsos apoios externos a uma eventual "coalizão mínima" em outros partidos, é também provável que haja defecções no interior da base parlamentar original, de modo que o mesmo problema persiste. A indisciplina existente no interior dos partidos parlamentares brasileiros, incentivada pelas regras extremamente permissivas da legislação eleitoral e partidária — fomentadoras do individualismo parlamentar — contribui para este tipo de comportamento dos congressistas, assim como para as freqüentes mudanças de partido17 17 Para um excelente estudo acerca da permissividade das regras eleitorais e partidárias brasileiras ver Lima Jr., Olavo Brasil de. Democracia e instituições políticas no Brasil dos anos 80 (Rio de Janeiro: Loyola, 1993). Um estudo recente e bastante detalhado sobre as trocas de partidos no Congresso brasileiro é o de Nicolau, Jairo Marconi. "A Migração partidária na Câmara dos Deputados (1991-96)" (Monitor Público, ano 3, nº 10, 1996. Nele, o autor mostra que 33% dos deputados eleitos em 1991 "deixaram o partido pelo qual se elegeram" antes do fim da legislatura, sendo que, desses, mais de 20% mudaram mais de uma vez de legenda (pp. 41-2). Apenas no primeiro ano da legislatura iniciada em 1995, 16% dos parlamentares trocaram de partido (p. 45). e para a formação de blocos parlamentares parapartidários, que atuam voltados para questões específicas, do interesse de grupos sócio-econômicos particulares, como os ruralistas, os funcionários públicos, etc. Assim, a infidelidade partidária e o fracionamento intrapartidário, que sequer aparecem como elementos característicos do modelo consociativo descrito por Lijphart (provavelmente figurariam como desvios pouco significativos, a priori), podem tornar-se novos elementos a requerer a negociação, dificultando o processo governativo célere; desta forma, também têm efeitos consociativos.

Mas além das questões partidária e do sistema de governo há outras que se destacam no consociativismo do sistema político brasileiro. É o caso do bicameralismo parlamentar, em que o Senado atua como uma "câmara revisora" das decisões tomadas pelos deputados em sua Casa. Embora caiba à Câmara decidir em última instância sobre iniciativas legislativas alteradas pelo Senado, a possibilidade de adiamento demasiado de decisões importantes torna necessário ao interessado estabelecer cuidadosas negociações conjuntamente nas duas Casas. Como também no Senado o quadro de fragmentação partidária está presente, ainda que em menor medida, têm-se idéia das grandes dificuldades criadas.

Um outro fator a ser considerado, para o qual o Senado tem um papel importante, é o federalismo. Os interesses das unidades subnacionais de governo (estados e municípios) contrapõem-se freqüentemente às iniciativas do Executivo central, gerando uma nova arena para a negociação. Aqui, o papel destacado cabe aos estados, através das várias instâncias em que podem influir. Se o Senado é a arena mais óbvia — pois é a Casa de "representação dos estados" — não é porém a única. Também é fator relevante a influência que exercem os governadores sobre suas bancadas na Câmara dos Deputados, atuando de modo a coordená-las, direcionando a votação de seus parlamentares de acordo com os interesses estaduais18 18 Para a discussão desta questão, ver Abrucio, cit.. ; e como os estados menos populosos e mais pobres do país são super-representados na Câmara, reiterando a função estadualista do Senado, as minorias regionais têm fortalecido seu poder de veto. Mas em nenhum foro decisório de âmbito nacional o poder de veto de minorias estaduais é tão grande como no CONFAZ (Conselho Nacional de Política Fazendária). Nele, o veto de apenas uma das representações estaduais (efetuada através dos secretários da Fazenda) é suficiente para obstaculizar qualquer medida — trata-se de um órgão que toma apenas decisões unânimes19 19 Essa questão é apontada também por Lamounier, Bolívar. A Democracia brasileira no limiar do século 21, cit., p. 24. .

Em suma, o Brasil, sem contar com profundas diferenças do ponto de vista étnico, lingüístico ou religioso, o que ajuda a explicar a inexistência de um sistema partidário multidimensional, possui entretanto um grande consociativismo institucional nos outros âmbitos. Ainda que contemos com desigualdades regionais de cunho sócio-econômico bastante consideráveis, sendo inclusive apontadas por alguns como justificativa aos mecanismos de super-representação congressual de certas regiões, é difícil justificá-las na magnitude em que se dão. Um exemplo dos mais gritantes deste fenômeno é a comparação do número de votos necessários para a eleição de um parlamentar pelos Estados de Roraima e de São Paulo. Enquanto no primeiro apenas cerca de 15.000 eleitores são suficientes para eleger um deputado, no segundo o mínimo necessário é de cerca de 300.000 — ou seja, o princípio democrático elementar "um eleitor, um voto", é desrespeitado na proporção de 20 para 1. A idéia de contrapor o poder político ao poder econômico é aqui levada ao paroxismo.

É necessário, como aponta Lamounier, estabelecer um trade-off entre dispositivos consociativos e majoritários. Isto implica dizer que é necessário encontrar um ponto de equilíbrio entre as características mais favoráveis à representação das minorias — assegurada, por exemplo pelo sistema eleitoral proporcional, favorável à multiplicação dos partidos — e aquelas que contribuem para a governabilidade — isto é, para uma maior facilidade na tomada e implementação de decisões. Alguns dispositivos consociativos, como a super-representação parlamentar de estados menores na Câmara sequer contribui para um aprimoramento da representação, mas, pelo contrário, subverte-a. O parlamentarismo, após o plebiscito de 1993, é uma solução que foi lançada para fora da agenda política nacional. É cabível, contudo, pensar em mecanismos favoráveis à redução da fragmentação partidária, como a proibição de coligações nas eleições legislativas, através das quais os partidos menores ou tomam uma "carona" nas agremiações mais bem votadas, ou conseguem juntos atingir um coeficiente eleitoral que jamais alcançariam sozinhos; outros mecanismos importantes para este fim seriam modificações do regimento interno do Congresso, tornando-o menos benevolente com partidos "nanicos", de reduzidíssima expressão parlamentar — medidas neste sentido, aliás, vêm sendo tomadas.

Cabe, contudo, estabelecer um porém a esta discussão. Muito embora os dispositivos consociativos sejam de fato um obstáculo à tomada de decisões, eles não constituem, por si sós, dificuldades insanáveis. Em trabalhos recentes, Argelina Figueiredo e Fernando Limongi têm demonstrado que os partidos brasileiros apresentam maior consistência do que pode parecer à primeira vista e que o Congresso Nacional não é um obstáculo às vontades do Executivo em quaisquer questões. Este Poder tem a capacidade de fixar a agenda decisória do Parlamento, além de poder acelerar o processo decisório no interior deste último através de recursos como o pedido de urgência ou urgência urgentíssima na apreciação de projetos de lei de seu interesse; e o Congresso costuma, na maior parte das vezes, aprovar os projetos do Executivo, ainda que introduzindo algumas modificações20 20 A esse respeito ver Figueiredo, Argelina & Limongi, Femando. "Mudança constitucional, desempenho do legislativo e consolidação institucional" (Revista Brasileira de Ciências Sociais; vol. 10, nº 29, 1995). Acerca da questão partidária ver idem, "Partidos políticos na Câmara dos Deputados" (Dados, vol. 38, nº 3, 1995). . Portanto, não é adequada a afirmação de que o Poder Legislativo se constitui num atravancador do processo governamental. No mais das vezes, no que diz respeito às iniciativas legislativas mais corriqueiras, o Congresso se mostra bastante dócil às vontades do Executivo. Além do que, este poder conta com a possibilidade de editar Medidas Provisórias (MPs), o que lhe confere uma considerável parcela de poder legislativo. E na medida em que as MPs criam situações de fato elas são, freqüentemente, irreversíveis, cabendo ao Parlamento apenas sancionar formalmente algo que já se tornou uma realidade. Não há exemplo melhor a este respeito do que o do Plano Real, lançado e sustentado por mais de dois anos com base em Medidas Provisórias.

Entretanto, tal sucesso decisório se refere preponderantemente à legislação ordinária apreciada pelo Legislativo, necessária para o cotidiano da atividade governamental. No que diz respeito a intervenções de maior envergadura, as dificuldades têm sido bem maiores, e não apenas em decorrência dos elementos apontados acima. Embora eles estejam presentes o tempo todo no processo de decisão política, há um fator adicional que merece ser observado, e que também está entre as características consociativas elencadas por Lijphart, assumindo na história brasileira recente uma importância crucial. Refiro-me à constituição escrita e à possibilidade do veto das minorias em questões constitucionais. Mais importante para o autor do que o fato da Constituição ser ou não escrita é a capacidade que tem ela de limitar a ação das maiorias. É apenas neste sentido que se torna importante o fato da lei suprema ser explícita e consolidada num texto, pois neste caso ela pode se tornar um elemento de constrangimento à ação livre de grupos eventualmente majoritários.

Daí, o segundo aspecto, mais relevante para a discussão empreendida aqui, são os procedimentos necessários para emendar a constituição21 21 Um outro elemento importante apontado por Lijphart, que deixarei de lado aqui, diz respeito à capacidade de julgar a constitucionalidade das leis. Caso uma instituição externa ao Legislativo tenha essa atribuição, podendo rever leis votadas por uma maioria parlamentar, teremos então um novo dispositivo consociativo. Novamente, é este o caso do Brasil. Para uma discussão a este respeito ver Arantes, Rogério Bastos. O Controle da constitucionalidade das leis no Brasil: a construção de um sistema híbrido. (Dissertação de Mestrado. Departamento de Ciência Política. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1994). . Caso eles se constituam num obstáculo à ação de maiorias parlamentares, configuram um mecanismo consociativo. É este o caso brasileiro. O quorum parlamentar superior à maioria absoluta (50%+1) foi um requisito para a aprovação dos dispositivos da nova constituição brasileira, sendo depois exigido para emendá-la; era necessária uma maioria qualificada de dois terços à época da Constituinte, de três quintos depois. Desta forma, a modificação de preceitos constitucionais passa, necessariamente, pela costura de amplos acordos, capazes de contemplar quase sempre grupos politicamente minoritários, sem os quais a mudança se torna impossível.

No período de elaboração da nova Carta, a exigência de quorum qualificado permitiu a minorias na Constituinte obstaculizarem certas iniciativas constitucionais ou condicionarem sua aprovação a uma barganha: para que votassem favoravelmente a uma dada medida, diversas minorias parlamentares exigiam como contrapartida o apoio dos interessados na ocasião em que fosse votado um outro dispositivo, daquela feita de seu interesse. Em conjunto à inexistência de um consenso inicial mínimo — que estivesse expresso num anteprojeto constitucional, capaz de propiciar um cerne inicial à nova Carta — este outro elemento explica o caráter prolixo da Constituição brasileira. Ela acabou por se tornar o desaguadouro de uma série de reivindicações contra as quais não houvesse uma oposição minimamente consistente. Ao mesmo tempo, medidas mais arrojadas eram postas de lado por contarem com a resistência de minorias significativas22 22 Talvez o exemplo mais notável de medida controversa obstaculizada na Constituinte tenha sido a reforma agrária. O texto que acabou sendo aprovado representou um retrocesso até mesmo com relação à legislação anterior, editada pelo regime militar, sendo ainda mais restritivo. . A Constituição de 1988 é fundamental para a discussão que terá lugar na próxima seção. Ao constitucionalizar no final da década de 80 regras que já vinham sendo postas de lado em todo o mundo, com os processos de ajustamento estrutural e liberalização econômica, e que se tornavam inviáveis diante da crise fiscal do Estado nos três níveis de governo, os legisladores acabaram por embutir na agenda dos futuros governantes a obrigação de retomar o trabalho constituinte. A Constituição de 88, portanto, criou mais do que constrangimentos especificamente político-institucionais à ação governativa, presentes no modelo consociativo da democracia brasileira. Ela criou problemas de agenda para a governabilidade, ao tornar obrigatória a discussão de temas de ordem constitucional, os quais exigem uma maioria qualificada para sua modificação23 23 Como diz Lamounier, cit., p. 27: "Mas o Brasil fez pior, neste particular, que os demais países latino-americanos: entrincheirou na Constituição de 1988 uma formidável série de entraves a essas reformas [econômicas], cuja necessidade era cada vez mais reconhecida entre os economistas e empresários e no debate público, de maneira geral". .

A AGENDA CONSTITUINTE

Desde que o presidente José Sarney se viu atormentado pela ressaca do Plano Cruzado, com o fracasso da última tentativa heterodoxa de grande envergadura no plano econômico e a dissolução da Aliança Democrática, tem sido prática dos Executivos nacionais pautarem a agenda política nacional com temas de ordem constitucional. No seu caso, os temas privilegiados diziam respeito a regras básicas de funcionamento do sistema democrático: a duração do mandato presidencial (4 ou 5 anos) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo). Era crucial, particularmente, definir essas questões com relação ao mandato do próprio Sarney. Não casualmente, seu governo secundarizou as tentativas de estabilização econômica que se seguiram ao Plano Cruzado. Em 1987, a política de ajuste de Bresser Pereira foi corroída pelas próprias divisões no interior do governo e de suas esgarçadas bases, em 1988 a passividade da política do "Feijão com Arroz", de Maílson da Nóbrega, foi a resposta possível à crise por parte de um governo que reservava suas energias mais decididas às negociações na Constituinte. Apenas depois de alcançados seus objetivos políticos prioritários pôde o Executivo, em seu último e desejado ano de mandato, lançar medidas econômicas de maior fôlego — ainda que igualmente ineficazes — através do Plano Verão.

Em meio ao processo de elaboração da nova Carta, caracterizado pela presença dos mais variados lobbies e pela fragmentação das bases de sustentação política, a Presidência da República lutava galhardamente para construir uma nova coalizão em substituição à Aliança Democrática. À nova base, consubstanciada no Centrão, caberia mais do que garantir uma simples maioria parlamentar. Deveria aglutinar uma maioria qualificada capaz de assegurar o ano adicional para o presidente, inscrevendo na Carta os dispositivos necessários ao projeto presidencial24 24 É bom lembrar que o Centrão não foi apenas um bloco parlamentar situacionista. Foi também o polo agregador de boa parte das forças mais conservadoras no interior da Assembléia Nacional Constituinte, visando assegurar uma série de dispositivos constitucionais considerados de primordial importância para essas forças. . Para tanto, além de barganhar junto aos legisladores, teve o presidente de tecer acordos junto a atores políticos de primeira grandeza: os governadores e os caciques regionais — à dimensão estritamente parlamentar da negociação somava-se ainda o aspecto federativo.

Quando finalmente obteve o que desejava, Sarney viu-se imerso numa crise que se agravara continuamente ao longo do período constituinte. Se governar "para valer", contando com um ano adicional de mandato e livre das peias impostas pela Aliança Democrática era o que desejava o presidente, seu último ano de governo acabou por se mostrar insuficiente. Havia ficado tarde demais. A instabilidade crônica — ou ingovernabilidade crônica — que marcou o período talvez deixasse de ser um problema de proporções tão grandes se o presidente pudesse ter encaminhado se governo com a preocupação apenas de possuir uma maioria estrita no parlamento. A insistência do Executivo de intervir no processo de elaboração da Carta, tornando prioridades governamentais algumas medidas de caráter constitucional, fez com que a tarefa presidencial de Sarney se tornasse muito mais ingente do que o normal — sobretudo num período de transição, em que a própria formação de coalizões majoritárias minimamente consistentes já é uma empreitada árdua, como já foi apontado na primeira seção.

O sucessor de Sarney, Fernando Collor de Mello, governou inicialmente amparado no decretismo das Medidas Provisórias e na subserviência de um Congresso em final de mandato, diante do primeiro presidente diretamente eleito em quase 30 anos. Pôde assim lançar seu contundente plano econômico, que apesar do avassalador enxugamento da liquidez causado pelo seqüestro de 70% dos ativos financeiros, não tinha implicações imediatas na transformação do modelo de Estado vigente. A seguir, porém, Collor iniciou de forma efetiva as reformas econômicas orientadas para o mercado, dando partida ao processo de liberalização comercial e aprofundando substancialmente as privatizações iniciadas no governo Sarney. Passado o ímpeto inicial e fracassada a tentativa de matar o tigre inflacionário com uma única bala na agulha, o presidente se viu obrigado a lançar mão de iniciativas mais ousadas, que lhe permitissem, inclusive, aprofundar as reformas até então amparadas em legislação ordinária e medidas provisórias - pautou uma agenda constituinte.

A aprovação das reformas constitucionais do "Emendão" seria um trunfo para um governo que precisava tanto aprofundar as transformações econômicas orientadas para o mercado (que Collor, aliás, inaugurou de forma efetiva) como lançar os fundamentos de uma coalizão política mais coesa que ainda não se forjara. O "Emendão", porém, naufragou. Assim como naufragaram as demais tentativas de reforma constitucional apresentadas pelo presidente. A busca de uma maioria qualificada no Congresso esbarrava em diversos obstáculos: a pouca destreza política do chefe do Executivo, a fragmentação congressual, o empenho das oposições, a inexistência (ainda) de um consenso mais amplo acerca das reformas necessárias e o fato de estar prevista para 1993 uma revisão constitucional, fazendo com que muitos entendessem ser aquele o momento apropriado para mudanças numa Constituição tão recente. Mas Collor foi tragado pela enxurrada de denúncias de corrupção antes que seu governo, atarantado pela tentativa de construir uma base parlamentar de ampla maioria, lograsse qualquer sucesso. O fracasso foi completo, mas muitos analistas diagnosticavam que o problema de governabilidade se devia apenas às já conhecidas características do presidencialismo multipartidário brasileiro e/ou às idiossincrasias do conturbado governo Collor.

No vácuo criado pelo impeachment de Collor, Itamar Franco retomou o ímpeto decretista das MPs e, após idas e vindas no Ministério da Fazenda - substituindo quatro ministros - logrou lançar medidas econômicas que debelaram a inflação, deixando de lado, porém, tentativas mais efetivas de reformar a Constituição naquele momento. Tanto foi assim que a reforma constitucional programada para 1993 não contou com o empenho do Executivo, que direcionava seus esforços para a implementação do Plano Real. As arrastadas controvérsias em torno da possibilidade ou não de se empreenderem as mudanças constitucionais naquele momento, do possível alcance das reformas e da legitimidade do Congresso de então para promovê-las ficaram restritas ao interior do Congresso. Não se viu nada comparável ao empenho aberto de Sarney e Collor, antes, e de Fernando Henrique Cardoso, depois, no sentido de promover as mudanças constitucionais. Itamar Franco contentava-se com o encaminhamento das medidas governamentais cuja implementação pudesse ocorrer unilateralmente por parte do Executivo ou contando com apenas com o apoio de uma maioria simples no Congresso. Não é à toa que, apesar do estilo temperamental e inconstante do presidente, seu curto mandato foi bem sucedido no que se refere à estabilização econômica (Plano Real), ao avanço da abertura comercial e ao aprofundamento das privatizações.

Todavia, o Plano Real, implementado e sustentado através de MPs, bem sucedido no combate à inflação, não se confunde com a reforma estrutural, que não poderia ser implementada através do poder de legislar do Executivo e sem a qual a estabilidade é efêmera25 25 Dentre as características apontadas pelos estudiosos do ajuste estrutural como condições para sua efetivação está a "insulação burocrática" dos responsáveis pela formulação e implementação das medidas. O recurso das MPs dá grande autonomia à equipe econômica do Executivo no que diz respeito às políticas monetária, cambial e de comércio exterior (bases, aliás, do Plano Real). Iniciativas de maior alcance, contudo, dependem do Congresso, em particular aquelas que resvalam em limitações constitucionais. Cf. Haggard & Kaufman, 1993; Sola, 1993; Fiori, 1995; Almeida, 1996, cit.; Lechner, 1996; Torre, 1996. . Como tal reforma tinha como requisito a modificação da Constituição de 88, novamente a agenda governativa se constitucionalizava, cabendo ao sucessor de Itamar Franco a tarefa de conformar uma nova base de ampla maioria.

Foi diante desta agenda que tomou posse Fernando Henrique Cardoso. Enquanto a equipe econômica mantinha-se ao leme do Plano Real, insulada das pressões das elites políticas, o presidente lançava-se, em seu primeiro ano de mandato, na construção de uma ampla coalizão de governo que viabilizasse a aprovação das reformas constitucionais — referentes, primeiro, à desregulamentação econômica, segundo, à reforma do Estado em seus vários aspectos.

O novo presidente foi parcialmente favorecido pela conjuntura que cercou sua eleição, em 1994. O sucesso do Real e a polarização com o candidato de esquerda, Luiz Inácio Lula da Silva (que no início do ano contava com mais de 40% das intenções de voto) levaram água ao moinho de Fernando Henrique, mas não em demasia. Pôde formar uma coalizão eleitoral que garantiu-lhe a vitória no primeiro turno das eleições presidenciais, mas rendeu-lhe uma Câmara na qual contava com apenas 35,5% das cadeiras (42% no Senado). Esse percentual era, obviamente, muito inferior aos dois terços necessários para a aprovação das reformas constitucionais. Teve assim de ampliar a coalizão eleitoral no momento de transformá-la numa coalizão governamental. Mesmo a inclusão do PMDB, maior partido, ainda seria insuficiente para que fosse alcançada a maioria requerida, sendo assim necessária a incorporação de um novo aliado, o PPB. Desta forma, a coalizão parlamentar do governo alcançava 73,7% dos votos na Câmara e 82,8% no Senado26 26 É importante lembrar que esses percentuais tomam como base as bancadas iniciais dos partidos, decorrentes da eleição. Após a posse, com as mudanças de legenda por parte dos parlamentares, esses números modificaram-se, mas não ao ponto de comprometer as indicações feitas aqui, uma vez que a migração partidária teve como destino principal os partidos da base governista. Segundo Nicolau (cit., p. 44), a bancada do PPR/PPB recebeu 21 adesões durante a legislatura, número idêntico ao do PFL, ao passo que o PSDB recebeu 30 novas adesões; 80,7% de todas as mudanças parlamentares direcionaram-se para esses partidos. 27 O PPB surgiu no ano de 1995 como resultado da fusão do PPR com o PP. Sua bancadas aparecem aqui somadas, portanto, embora o PPB não tenha contado com todos os parlamentares do antigo PP. . A Tabela 2 traz a conformação das bancadas na Câmara e no Senado após a eleição de 1994.

A primeira etapa das mudanças constitucionais promovidas pelo Executivo foi muito bem sucedida, mas as dificuldades aumentaram a partir do segundo ano de mandato. A heterogeneidade da ampla coalizão formada (cinco partidos), os interesses conflitantes de lideranças importantes dentre os partidos sócio e todos os aspectos do sistema político consociativo já apontados tornam bastante volúvel a base política do governo. O conflito de interesses entre o principal líder nacional do PPB, o prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, e o Presidente da República acerca da emenda que permite a este último candidatar-se à reeleição é um exemplo do tipo de perturbação que pode por em risco a manutenção de uma base tão ampla como esta; os desdobramentos deste caso, com o "racha" da Executiva nacional do PPB com respeito à questão e o vazamento de dados bancários de seus membros, dão mostras da sua fragilidade.

Mas ao governo Fernando Henrique, diversamente do que ocorria no período Sarney, não restam muitas alternativas senão adotar uma agenda constitucional voltada, desta feita, a assuntos de ordem econômica. É importante notar que a formação de uma base parlamentar ampla, necessária para a votação de emendas constitucionais, é uma tarefa que em muito sobrepuja a reunião de três quintos dos congressistas num determinado momento para aprovar uma emenda constitucional específica. Na medida em que tais reformas constituem-se no cerne do projeto governamental do presidente, a preservação de um constante bom relacionamento com a base parlamentar ampliada torna-se condição crucial, limitando bastante a ousadia política do Executivo. Assim, a aprovação de dispositivos legais controversos por maioria absoluta (50%+1 dos parlamentares da Casa) ou mesmo simples (50%+1 dos parlamentares presentes a uma sessão), ainda que factível, pode significar o sacrifício da agenda constituinte.

Um caso de operação de alto risco como esta se fez presente no final de 1996. Quando o Executivo decidiu modificar a legislação referente ao Imposto Territorial Rural (ITR), elevando as alíquotas de terras produtivas e improdutivas por Medida Provisória, tocou num assunto explosivo. A "bancada ruralista" reagiu prontamente contra a medida - que requeria a maioria absoluta para ser aprovada - exigindo que o governo abrisse mão dela para continuar contando com o apoio dos deputados vinculados ao setor rural. A perda dos votos ruralistas poderia significar o fracasso dos esforços do governo no sentido de buscar obter uma maioria qualificada no Parlamento - essa bancada parapartidária conta com mais de 170 parlamentares, em sua maioria membros dos partidos situacionistas. Desta forma, era necessário agir com cautela, e a solução encontrada pelos líderes governistas foi negociar uma proposta intermediária que logrou dividir a bancada ruralista; ainda que alguns saíssem insatisfeitos, a perda não seria tão grande, nem ao ponto de levar à ruptura definitiva de alguns parlamentares com a situação, nem ao ponto de haver rupturas mais profundas em número capaz de ameaçar a preservação da base parlamentar do Executivo.

Daí a delicadeza do processo governativo num cenário como esse: a agenda constituinte é ameaçada indiretamente pelas iniciativas do Executivo em questões cuja complexidade legal é menor, mas que - atingindo interesses setoriais intensos e bem organizados - suscitam conflitos sócio-econômicos e/ou políticos de intensidade considerável, retroagindo sobre o processo decisório como um todo.

Por fim, cabe observar que as mudanças constitucionais promovidas pelo Executivo central com o apoio do Congresso, superados todos os obstáculos já indicados, podem ainda esbarrar no Poder Judiciário. Medidas apontadas como indispensáveis para o ajuste fiscal do Estado, como o fim da estabilidade no emprego do servidor público (sobretudo no ¡nível subnacional) e a mudança das regras providenciadas, podem ser canceladas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por se atingirem regras apontadas como "cláusulas pétreas" da Constituição, sendo portanto intangíveis. O controle da constitucionalidade das leis como um atributo de outro Poder que não o parlamento é mais um elemento do modelo consociativo elencado por Lijphart que ganha relevância no caso brasileiro. E, neste caso, não se trata apenas de legislação ordinária ou complementar que deve ser compatível com a Carta magna, mas da própria legislação constitucional em mudança. Apesar da exigência de quórum qualificado, o Congresso tem seu poder contestado quando procura modificar certos dispositivos constitucionais. Nas palavras do ministro Celso de Mello, presidente do STF a partir de 1997:

"O Congresso atual é derivado e não tem competência jurídica para reformar a Constituição no núcleo essencial intangível"28 28 O Estado de S. Paulo, 22.12.1996, p. A-10. .

Portanto, no que concerne aos rumos tomados no interior das instituições jurídico-formais, o percurso a ser trilhado pelo governo do ¡presidente Fernando Henrique Cardoso é ainda mais tortuoso do que o seguido pelo presidente Sarney. Aquele não dispunha de bases políticas que lhe permitissem operar mudanças de grande profundidade no cenário político nacional, mas nem era este o seu propósito. Não corria o risco, contudo, de ver um imenso sacrifício de articulação política ser perdido em decorrência da ilegalidade das operações empreendidas, pois o poder da Constituinte não era derivado, e o então presidente de fato dispunha, de acordo com a lei, de seis anos de mandato.

CONCLUSÃO

A constitucionalização da agenda nos últimos anos é um fator que cria dificuldades incomuns à formação de coalizões políticas estáveis e suficientes para governar. Para além dos consideráveis óbices advindos do sistema partidário fragmentado, dos partidos pouco coesos e da força dos grupos de interesse e dos governos estaduais no Congresso (dando origem às aparições eventuais de bancadas parapartidárias como os ruralistas ou os representantes dos estados), os Executivos têm nos últimos anos se defrontado com a árdua tarefa de forjar maiorias excepcionais, necessárias para expressar consensos, antes que meras vontades majoritárias, como é de praxe na vida dos governos. Caso a agenda política brasileira passasse ao largo de questões deste tipo, as políticas traçadas pelos Executivos enfrentariam, indubitavelmente, menores dificuldades. Mas o fato é que o País tem contado, mais do que com instituições políticas consociativas, com uma agenda que acirra ainda mais o grau de consociativismo do sistema político brasileiro.

A agenda constituinte é, portanto, uma agenda ultraconsociativa. Ela radicaliza as exigências corriqueiras de um sistema político repleto de checks and balances no nível nacional ao lançar na pauta governamental cotidiana medidas que requerem a formação de amplos consensos. Este é o legado deixado pela Constituição de 1988, obra de um momento no qual os consensos amplos eram ainda mais difíceis, ao ponto de gerar um paradoxo: muita coisa contra a qual não havia ainda uma posição consolidada acabou por ser posta na Carta, rapidamente o quadro mudou e a percepção dos problemas também, sem contudo mudar o que havia sido constitucionalizado e que hoje limita as possibilidades de resolução dos problemas. Desta forma, junto com as limitações que impõe, a Constituição de 1988 deixa uma exigência: a de ser mudada. Mas dispositivos constitucionais não são feitos para mudar facilmente.

  • ABRUCIO, Fernando Luiz. "Os Barões da Federação". Lua Nova, nş 33, 1994.
  • _______Os Barões da federação: o poder dos governadores no Brasil pós-autoritário. Dissertação de mestrado. Departamento de Ciência Política. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1995.
  • ARANTES, Rogério Bastos. O Controle da constitucionalidade das leis no Brasil: a construção de um sistema híbrido. Dissertação de mestrado. Departamento de Ciência Política. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1994.
  • ALMEIDA, Maria Herminia Tavares de. "Pragmatismo por necessidade: os rumos da reforma econômica no Brasil". Dados, vol. 39, nş 2, 1996. Rio de Janeiro: IUPERJ.
  • BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. "Problematizando uma experiência de governo: contra a corrente no ministério da Fazenda". Revista Brasileira de Ciências Sociais, nş 19,ano 7, junho de 1992.
  • FIGUEIREDO, Argelina & LIMONGI, Fernando. "Mudança constitucional, desempenho do legislativo e consolidação institucional". Revista Brasileira de Ciências Sociais; vol. 10, nş 29, 1995.
  • _______"Partidos políticos na Câmara dos Deputados". Dados, vol. 38, nş 3, 1995a.
  • FIORI, José Luiz. "A Governabilidade democrática na nova ordem econômica". Coleção Documentos. Série Teoria Política, nş 13. São Paulo: IEA-USP, 1995.
  • _______"Para uma economia política do Estado brasileiro". In Em busca do dissenso perdido. Rio de Janeiro: Insight, 1995a.
  • FISHLOW, Albert. "Uma história de dois presidentes: a economia política da gestão da crise". In STEPAN, Alfred (org.). Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
  • HAGGARD, Stephan & KAUFFMAN, Robert. "O Estado no início e na consolidação da reforma orientada para o mercado". In SOLA, Lourdes (org.). Estado, mercado e democracia : política e economia comparadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
  • KINZO, Maria D'Alva Gil. Radiografía do quadro partidário brasileiro. Série Pesquisas, nş 1. São Paulo: Fundação Konrad-Adenauer-Stiftung, 1993.
  • LAMOUNIER, Bolívar. A Democracia brasileira no limiar do século 21. Série Pesquisas, nş 5. São Paulo: Fundação Konrad-Adenauer-Stiftung, 1996.
  • _______"O 'Brasil autoritário' revisitado: o impacto das eleições sobre a abertura". In STEPAN, Alfred (org.). Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
  • LECHNER, Norbert. "Reforma do Estado e condução política". Lua Nova, nş 37, 1996.
  • LIJPHART, Arend. As Democracias contemporâneas. Lisboa: Gradiva, 1989.
  • LIMA Jr., Olavo Brasil de. Democracia e instituições políticas no Brasil dos anos 80. Rio de Janeiro: Loyola, 1993.
  • MAINWARING, Scott. "Políticos, partidos e sistemas eleitorais". Novos Estudos, nş 37, 1991. São Paulo: CEBRAP.
  • _______"Democracia presidencialista multipartidária: o caso do Brasil". Lua Nova, nşs 28/29, 1993.
  • NICOLAU, Jairo Marconi. "A Migração partidária na Câmara dos Deputados (1991-96)". Monitor Público, ano 3, nş 10, 1996. Rio de Janeiro: Conjunto Universitário Cândido Mendes.
  • SALLUM JR., Brasílio & KUGELMAS, Eduardo. "O Leviatã acorrentado: a crise brasileira dos anos 80". In SOLA, Lourdes (org.) Estado, mercado e democracia: política e economia comparadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
  • SALLUM JR., Brasílio. "Transição política e crise de Estado". Lua Nova, nş 32, 1994.
  • ________ "Estado, transformação econômica e democratização no Brasil". In SOLA, Lourdes (org.) Estado, mercado e democracia: política e economia comparadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
  • TORRE, Juan Carlos. "O Encaminhamento político das reformas". Lua Nova, nş 37, 1996.
  • *
    Este artigo é o primeiro produto de uma pesquisa em fase inicial, buscando compreender a relação entre o processo de ajuste estrutural e as instituições políticas no Brasil desde o fim do militarismo. Portanto, mais do que apresentar conclusões seu propósito é lançar hipóteses.
  • 1
    A oposição não apenas venceu em 10 estados, mas conquistou também o governo estadual nos três mais importantes: Minas Gerais e São Paulo, com o PMDB, e Rio de Janeiro, com o PDT.
  • 2
    A esse respeito ver Lamounier, Bolívar. "O 'Brasil autoritário' revisitado: o impacto das eleições sobre a abertura". In Stepan, Alfred (org.),
    Democratizando o Brasil (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988).
  • 3
    Para uma acurada análise do poder dos governadores no Brasil, ver Abrucio, Fernando Luiz. "Os Barões da Federação"
    (Lua Nova 33, 1994) e
    Os Barões da federação: o poder dos governadores no Brasil pós-autoritário (Dissertação de mestrado. Departamento de Ciência Política. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1995).
  • 4
    Bresser descreve a crise fiscal do Estado como uma redução significativa da capacidade de poupança do setor público, que tem como implicação a redução das taxas de investimento e crescimento da economia brasileira, daí, a necessidade de recuperar a capacidade de poupança do setor público para que seja retomado o desenvolvimento. Suas causas residiriam no peso representado pela dívida externa e no preço pago pelo setor público no processo de ajuste levado a cabo no início dos anos 80. A este respeito ver Bresser Pereira, Luiz Carlos. "Problematizando uma experiência de governo: contra a corrente no ministério da Fazenda".
    {Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 19, ano 7, junho de 1992). Para uma descrição da catástrofe econômica que tem lugar no governo Figueiredo ver Fishlow, Albert. "Uma história de dois presidentes: a economia política da gestão da crise". In Stepan, Alfred (org.).
    Democratizando o Brasil (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988).
  • 5
    Almeida, Maria Herminia Tavares de. "Pragmatismo por necessidade: os rumos da reforma econômica no Brasil"
    {Dados vol. 39, nº 2, 1996, p. 213).
  • 6
    Sallum Jr., Brasílio. "Transição política e crise de Estado". (
    Lua Nova, 32, 1994); Sallum Jr., Brasílio & Kugelmas, Eduardo. "O Leviatã acorrentado: a crise brasileira dos anos 80". In Sola, Lourdes (org.)
    Estado, mercado e democracia: política e economia comparadas (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993).
  • 7
    Sallum Jr., Brasílio, "Porque não tem dado certo: notas sobre a transição política brasileira", in Sola, Lourdes (org.).
    O Estado da transição — política e economia na Nova República. (São Paulo, Vértice, 1988, p. 119)
    apud Sallum Jr., Brasílio,
    Labirintos: dos generais à Nova República. (São Paulo, Hucitec, 1996, p. 8).
  • 8
    Lamounier, Bolívar.
    A Democracia brasileira no limiar do século 21. Série Pesquisas, nº 5. (São Paulo, Fundação Konrad-Adenauer-Stiftung, 1996).
  • 9
    Refiro-me aqui, sobretudo, aos governadores do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, que passaram a exercer o papel de lideranças significativas no PMDB da Nova República, em particular no que diz respeito à atuação das bancadas estaduais desse partido na Assembléia Nacional Constituinte.
  • 10
    Banco de Dados POLI-CEDEC, 08.08.1987-004.
  • 11
    Lijphart, Arend,
    As democracias contemporâneas (Lisboa: Gradiva, 1989).
  • 12
    A esse respeito ver o excelente artigo de Mainwaring, Scott. "Políticos, partidos e sistemas eleitorais".
    (Novos Estudos, 37, 1991)
  • 13
    Quando menciono o fato de que mecanismos de democracia direta (notavelmente o plebiscito) não têm sido muito utilizados no plano
    nacional, pretendo deixar registrado que eles foram freqüentes em diversas localidades brasileiras no período pós-Constituinte. O plebiscito para decidir acerca da criação de novos municípios, bastando lembrar que houve um aumento de 30% no número de cidades brasileiras nesse período para se avaliar a dimensão do fenômeno. Além disso, mecanismos outros de democracia direta têm sido implementados, sobretudo em localidades governadas por partidos de esquerda. Quanto à aparição significativa do mecanismo plebiscitário em nível nacional, refiro-me, obviamente, à consulta sobre forma e sistema de governo realizada em 1993.
  • 14
    Figueiredo & Limongi, "Partidos políticos na Câmara dos Deputados".
    (Dados, vol. 38, nº 3, 1995a) demonstram com propriedade como o
    continuum esquerda-direita se manifesta de forma linear e perfeita nas votações parlamentares. Também Kinzo, Maria D'Alva Gil,
    Radiografia do quadro partidário brasileiro. (Série Pesquisas, nº 1. São Paulo: Fundação Konrad-Adenauer-Stiftung, 1993). demonstra isto com base em entrevistas realizadas com os parlamentares.
  • 15
    Mainwaring, Scott. "Políticos, partidos e sistemas eleitorais"
    (Novos Estudos, 37, 1991).
  • 16
    Mainwaring compara a fragmentação partidária média da Câmara dos deputados brasileira de 1990 com a de outros 25 países do mundo no período 1945-1973 (antes porém do período que analiso). O índice brasileiro é o mais alto (0,884), seguido de perto apenas pela Finlândia (0,804) e pela
    Confederação Suíça (0,801). O país presidencialista mais próximo é o Chile (0,796), seguido pelo próprio Brasil no período 1950-1962 (0,774). Superamos, portanto, mesmo o índice de fragmentação de um país como a Itália (0,721), que apesar de parlamentarista apresentou enorme instabilidade em seus gabinetes no pós-guerra. Os Estados Unidos, caso paradigmático de presidencialismo estável e democracia durável, apesar de freqüentes períodos de "governo dividido" (congresso controlado por um partido diferente daquele do presidente), apresenta o segundo mais baixo índice de fragmentação (0,483). Mainwaring, 1993,
    cit., p. 27.
  • 17
    Para um excelente estudo acerca da permissividade das regras eleitorais e partidárias brasileiras ver Lima Jr., Olavo Brasil de.
    Democracia e instituições políticas no Brasil dos anos 80 (Rio de Janeiro: Loyola, 1993). Um estudo recente e bastante detalhado sobre as trocas de partidos no Congresso brasileiro é o de Nicolau, Jairo Marconi. "A Migração partidária na Câmara dos Deputados (1991-96)"
    (Monitor Público, ano 3, nº 10, 1996. Nele, o autor mostra que 33% dos deputados eleitos em 1991 "deixaram o partido pelo qual se elegeram" antes do fim da legislatura, sendo que, desses, mais de 20% mudaram mais de uma vez de legenda (pp. 41-2). Apenas no primeiro ano da legislatura iniciada em 1995, 16% dos parlamentares trocaram de partido (p. 45).
  • 18
    Para a discussão desta questão, ver Abrucio, cit..
  • 19
    Essa questão é apontada também por Lamounier, Bolívar.
    A Democracia brasileira no limiar do século 21, cit., p. 24.
  • 20
    A esse respeito ver Figueiredo, Argelina & Limongi, Femando. "Mudança constitucional, desempenho do legislativo e consolidação institucional"
    (Revista Brasileira de Ciências Sociais; vol. 10, nº 29, 1995). Acerca da questão partidária ver idem, "Partidos políticos na Câmara dos Deputados"
    (Dados, vol. 38, nº 3, 1995).
  • 21
    Um outro elemento importante apontado por Lijphart, que deixarei de lado aqui, diz respeito à capacidade de julgar a constitucionalidade das leis. Caso uma instituição externa ao Legislativo tenha essa atribuição, podendo rever leis votadas por uma maioria parlamentar, teremos então um novo dispositivo consociativo. Novamente, é este o caso do Brasil. Para uma discussão a este respeito ver Arantes, Rogério Bastos.
    O Controle da constitucionalidade das leis no Brasil: a construção de um sistema híbrido. (Dissertação de Mestrado. Departamento de Ciência Política. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1994).
  • 22
    Talvez o exemplo mais notável de medida controversa obstaculizada na Constituinte tenha sido a reforma agrária. O texto que acabou sendo aprovado representou um retrocesso até mesmo com relação à legislação anterior, editada pelo regime militar, sendo ainda mais restritivo.
  • 23
    Como diz Lamounier, cit., p. 27: "Mas o Brasil fez pior, neste particular, que os demais países latino-americanos: entrincheirou na Constituição de 1988 uma formidável série de entraves a essas reformas [econômicas], cuja necessidade era cada vez mais reconhecida entre os economistas e empresários e no debate público, de maneira geral".
  • 24
    É bom lembrar que o Centrão não foi apenas um bloco parlamentar situacionista. Foi também o polo agregador de boa parte das forças mais conservadoras no interior da Assembléia Nacional Constituinte, visando assegurar uma série de dispositivos constitucionais considerados de primordial importância para essas forças.
  • 25
    Dentre as características apontadas pelos estudiosos do ajuste estrutural como condições para sua efetivação está a "insulação burocrática" dos responsáveis pela formulação e implementação das medidas. O recurso das MPs dá grande autonomia à equipe econômica do Executivo no que diz respeito às políticas monetária, cambial e de comércio exterior (bases, aliás, do Plano Real). Iniciativas de maior alcance, contudo, dependem do Congresso, em particular aquelas que resvalam em limitações constitucionais. Cf. Haggard & Kaufman, 1993; Sola, 1993; Fiori, 1995; Almeida, 1996, cit.; Lechner, 1996; Torre, 1996.
  • 26
    É importante lembrar que esses percentuais tomam como base as bancadas iniciais dos partidos, decorrentes da eleição. Após a posse, com as mudanças de legenda por parte dos parlamentares, esses números modificaram-se, mas não ao ponto de comprometer as indicações feitas aqui, uma vez que a migração partidária teve como destino principal os partidos da base governista. Segundo Nicolau (cit., p. 44), a bancada do PPR/PPB recebeu 21 adesões durante a legislatura, número idêntico ao do PFL, ao passo que o PSDB recebeu 30 novas adesões; 80,7% de todas as mudanças parlamentares direcionaram-se para esses partidos.
    27 O PPB surgiu no ano de 1995 como resultado da fusão do PPR com o PP. Sua bancadas aparecem aqui somadas, portanto, embora o PPB não tenha contado com todos os parlamentares do antigo PP.
  • 28
    O Estado de S. Paulo, 22.12.1996, p. A-10.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Nov 2010
    • Data do Fascículo
      1997
    CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - CEDEC, Rua Riachuelo, 217 - conjunto 42 - 4°. Andar - Sé, 01007-000 São Paulo, SP - Brasil, Telefones: (55 11) 3871.2966 - Ramal 22 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: luanova@cedec.org.br