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Uma outra institucionalização: América Latina e alhures

Another institutionalization: Latin America and elsewhere

Resumos

Os estudiosos da democratização foram levados a acreditar que as novas democracias cedo ou tarde deveriam atingir as formas de institucionalização que caracterizam as democracias antigas. Quando isso não ocorre, as primeiras são vistas como "democracias bloqueadas". Argumenta-se que é preciso estudar as novas democracias, sobretudo as latino-americanas, não por aquilo que nelas está ausente, e sim por suas características positivas.


The stunted of democratization have been led to believe that the new democracies sooner or later should attain the forms of institutionalization that characterize the older ones. When this does not happen the former are seen as "stunded democracies". It is argued that the new democracies, first of all the Latin American ones, should be studied not for what is absent in them but for their positive characteristics.


REFORMAS

Uma outra institucionalização: América Latina e alhures* * "Another Institutionalization: Latin America and Elsewhere". Versão revisada do texto apresentado na Conferência "Consolidating Third Wave Democracies: Trends and Challenges", organizada pelo National Policy Research Institute e pelo International Forum for Democratic Studies, Taipé, 26-30 de agosto de 1995, Agradeço a Gabriela Ippolito O'Donnell, Scott Mainwaring, Sebastián Mazzuca, Gerardo Munck e a Adam Przeworski pelos comentários que fizeram a uma versão preliminar deste artigo. Tradução de Álvaro de Vita.

Another institutionalization: Latin America and elsewhere

Guillermo O'Donnell

Professor de Ciência Política e Estudos Internacionais na Universidade de Notre Dame e diretor acadêmico do Kellogg Institute for International Studies da mesma universidade

RESUMO

Os estudiosos da democratização foram levados a acreditar que as novas democracias cedo ou tarde deveriam atingir as formas de institucionalização que caracterizam as democracias antigas. Quando isso não ocorre, as primeiras são vistas como "democracias bloqueadas". Argumenta-se que é preciso estudar as novas democracias, sobretudo as latino-americanas, não por aquilo que nelas está ausente, e sim por suas características positivas.

ABSTRACT

The stunted of democratization have been led to believe that the new democracies sooner or later should attain the forms of institutionalization that characterize the older ones. When this does not happen the former are seen as "stunded democracies". It is argued that the new democracies, first of all the Latin American ones, should be studied not for what is absent in them but for their positive characteristics.

As democracias costumavam ser poucas, a maioria delas localizadas no quadrante noroeste do mundo. Como sabemos, nas últimas duas décadas muitos países se livraram de seus regimes autoritários. Há muitas variações entre esses países. Os regimes políticos de alguns deles ainda são autoritários (ainda que de um tipo diverso daquele que existiu no passado), não obstante as eleições que de vez em quando se realizam. Outros países são nitidamente democráticos. Há muitos outros que parecem habitar uma zona cinzenta: eles têm algumas semelhanças de família com as democracias solidamente estabelecidas, mas não dispõem de alguns dos atributos destas últimas, ou esses atributos só têm uma existência precária. Segundo a maior parte da literatura contemporânea, essas democracias de algum modo "incompletas" não estão conseguindo se consolidar ou se institucionalizar plenamente. Isso apresenta dois problemas. Um deles é o de encontrar critérios para estabelecer um divisor de águas separando o conjunto de todas as democracias existentes de todos os demais casos de países que não são democracias. Esse divisor de águas é arbitrário, uma vez que ele depende das perguntas que queiramos fazer. Entre as muitas definições de democracia oferecidas1 1 Refletindo a ausência de critérios bem estabelecidos na literatura, David Collier e Steven Levistky inventariaram e discutiram de forma instigante os mais de cem qualificativos vinculados ao temo "democracia", muitos dos quais usados com o propósito de mostrar que os casos em questão de alguma forma não dispõem de todos os atributos da democracia tal como cada autor a define. Ver de Collier e Levistky, "Democracy 'With Adjectives': Finding Conceptual Order in Recent Comparative Research" (Berkeley, Universidade da California, Departamento de Ciência Política, paper não-publicado). , penso que o conceito de "poliarquia" é especialmente útil, ainda que, como veremos, ele necessite de alguns acréscimos e não elimine as ambigüidades na classificação de certos casos. Uma vez que um conjunto razoavelmente bem delimitado de democracias é obtido, o segunto problema é o de examinar os critérios dos quais uma dada corrente da literatura se vale para comparar os casos que caem dentro desse conjunto.2 2 Mais precisamente, para comparar os grupos de casos, ou subtipos, dentro desse conjunto. Caso esses critérios sejam considerados deficientes, o passo seguinte é o de propor outros conceitos para fazer as comparações. É o que tentarei fazer aqui, mesmo que de uma forma esquemática.

O meu referencial empírico é a América Latina contemporânea, ainda que os temas por mim discutidos também dizem respeito a inúmeros países recém-democratizados em outras partes do mundo. Não examino de forma mais detalhada os países latino-americanos recém-democratizados ou redemocratizados; há estudos recentes que fazem isso muito bem.3 3 Ver os anais de uma conferência que ocorreu recentemente na Universidade de Notre Dame como parte do "Projeto América Latina 2000" do Hellen Kellog Institute for International Studies: Catherine Conaghan, "Democracy that Matters: The Search for Authencity, Legitimacy, and Civic Competence in the Andes" (Kellog Institute, Working Paper no. 1, 1994); Scott Mainwaring, "Democracy in Brazil and the Southern Cone: Achievements and Problems", (Working Paper no.2, 1994); Laurence Whitehead, "The Peculiarities of 'Transition' a la Mexicana", (Working Paper no.4, 1994); e Terry L. Karl, "Central America in the Twenty-First Century: The Prospects for a Democratic Region" (Working Paper no.5, 1994). Estes textos podem ser requisitados ao Kellog Institute, Notre Dame, IN 46566. Para uma excelente revisão geral do assunto ver Larry Diamond, "Democracy in Latin America: Degrees, Ilusions, and Directions for Consolidation", in Tom Farer (org.), Beyond Sovereignty: Collectively Defending Democracy in the Americas (Baltimore, The John Hopkins University Press, 1995). Ver também Scott Mainwaring, Guillermo O'Donnell e J. Samuel Valenzuela (orgs.), Issues in Democratic Consolidation: The New South America Democracies in Comparative Perspective (Notre Dame, University of Notre Dame Press, 1992). Em vez disso, analiso algumas das características desses países da perspectiva dos componentes definidores da poliarquia. A seguir, discuto uma idéia corrente na literatura sobre a democratização: a de que as novas poliarquias não são consolidadas, ou não estão institucionalizadas, ou só estão precariamente institucionalizadas, em contraste com as poliarquias (relativamente) antigas que, em sua maior parte, estão agrupadas no quadrante noroeste do mundo. Depois de exprimir meu ceticismo sobre essas suposições, argumento que o problema de muitas das novas poliarquias não é a ausência de institucionalização. Essas poliarquias dispõem de duas instituições extremamente importantes, mas a forma pela qual os cientistas políticos costumeiramente conceituam "instituição" não nos ajuda a reconhecê-las como tais. Uma dessas instituições é altamente formalizada, mas é intermitente e não se materializa em organizações formais que funcionem em caráter permanente: as eleições. A outra é informal, permanente e ubíqua: o particularismo (ou o clientelismo, definido de forma ampla). Depois de demonstrar esse argumento, chamo a atenção para um fato importante: em contraste com os períodos de autoritarismo, hoje o particularismo coexiste em uma instável tensão com, e na vigência delas, as normas e instituições formais daquilo que denomino o complexo institucional da poliarquia. Esse argumento descerra um conjunto de questões analíticas e empíricas às quais aqui só faço uma breve menção e que discutirei mais detalhadamente em publicações futuras. O objetivo geral deste artigo é o de propor um desafio: se os meus argumentos não são de todo equivocados, aguarda-nos uma agenda comparativa e conceituai para o estudo adequado do conjunto todo das poliarquias, em especial aquelas que estão informalmente institucionalizadas.4 4 Não consegui encontrar termos apropriados para aquilo a que a literatura se refere como as democracias altamente institucionalizadas versus as não-institucionalizadas (ou fracamente institucionalizadas), ou como as democracias consolidadas versus as não-consolidadas, pertencendo as poliarquias antigas ao primeiro termo e a maioria das novas ao segundo termo desses pares. Por razões que ficarão claras adiante, optei por rotular o primeiro grupo de democracias "formalmente institucionalizadas" e o segundo de democracias "informalmente institucionalizadas"

POLIARQUIA

Recordemos os atributos que conjuntamente caracterizam a poliarquia:5 5 Tais como formulados nas obras clássicas de Robert Dahl. A transcrição que vem a seguir foi retirada de Democracy and its Critics (New Haven: Yale University Press, 1989), p. 221. Neste livro, o leitor encontrará uma discussão mais detalhada desses atributos.

1. Eleição dos governantes.

2. Eleições livres e limpas.

3. Sugrágio universal.

4. Direito de concorrer aos cargos eletivos.

5. Liberdade de expressão.

6. Pluralismo de fontes de informação.

7. Liberdade de associação.

Os atributos de 1 a 4 nos dizem que uma característica básica da poliarquia é a realização de eleições limpas e competitivas, com um amplo direito de voto. Os atributos de 5 a 7 referem-se às liberdades políticas e sociais que são minimamente necessárias, durante o pleito e no período inter-eleitoral, para que se possa considerar as eleições como limpas e competitivas. De acordo com esses critérios, alguns países da América Latina ainda não são poliarquias: a República Dominicana, o Haiti e o México realizaram eleições recentemente, mas elas foram desfiguradas por graves irregularidades que ocorreram antes, no decorrer e depois do pleito.

É preciso acrescentar outros atributos aos sete propostos por Dahl. Um deles é o de que os representantes escolhidos para as posições governamentais mais elevadas, além de serem eleitos em pleitos honestos, não devem ter os seus mandatos interrompidos antes de se completar o período estabelecido constitucionalmente.6 6 Este e os demais acréscimos que vem a seguir ao conceito de poliarquia mostram que é preciso explicitar algumas das suposições ou das omissões das teorias da democracia, se é que se quer capacitá-las a viajar para fora do quadrante noroeste do globo. Fujimori e Yeltsin podem ter sido eleitos em eleições limpas, mas eles aboliram a poliarquia no momento em que fecharam arbitrariamente o Congresso e demitiram a Suprema Corte. Uma outra omissão do critério de Dahl relativo à escolha eletiva das autoridades governamentais, menos importante para os meus propósitos, é a ressalva que é obviamente necessária com respeito àquelas importantes autoridades que na maioria das poliarquias não são eleitas: os juizes da Suprema Corte e dos demais tribunais. Um segundo acréscimo é o de que as autoridades eleitas não devem estar sujeitas a restrições severas ou a vetos que sejam impostos por outros atores não-eleitos, em particular as forças armadas, e nem devem ser por estes excluídas de determinados âmbitos de decisão política.7 7 Este acréscimo, que depois veio a ser adotado por inúmeros autores, que eu saiba foi primeiramente proposto por J. Samuel Valenzuela, "Democratic Consolidation in Post-Transitional Settings: Notion, Process, and Facilitating Conditions", in Scott Mainwaring .et. al, op. cit., pp. 57-104, e por Philippe Schmitter e Terry Lyinn Karl, "What Democracy Is ... and Is Not" (Journal of Democracy, 2, n.3, Summer 1991, pp. 75-88). Nesse sentido, a Guatemala e o Paraguai, e provavelmente também El Salvador e Honduras, não se qualificam como poliarquias.8 8 Sobre esses países ver Terry L. Karl, "The Hybrid Regimes of Central America" (Journal of Democracy, 6, n.3, julho de 1995, pp. 75-88) e "Imposing Consent?" Electoralism vs. Democratization in El Salvador", in Paul Drake e Eduardo Silva (orgs.), Elections and Democratization in Latin America (San Diego, Center for Iberian and Latin American Studies, 1986), pp. 9-36. O Chile é um caso único, em que essas e outras restrições9 9 Sobre este país, ver a discussão dos "poderes tutelares" e das "prerrogativas exclusivas" em J. Samuel Valenzuela, op. cit., e dos "enclaves autoritários" em Manuel Antonio Garretón, "La posibilidad democrática in Chile" (Santiago do Chile, FLACSO, 1989) e Hacia una nueva era polí tica. Estudio sobre las democratizaciones (México, Fondo de Cultura Económica, 1995). foram incorporadas à constituição herdada do regime autoritário. Mas o Chile satisfaz nitidamente os sete critérios de Dahl para a poliarquia. O Peru é outro caso duvidoso, uma vez que as eleições presidenciais de 1995 não foram de todo insuspeitas10 10 Ver Lasa Forum, 26, n.2, 1995, pp. 9-20, "Articles on the Peruvian 1995 Election", informes de Catherine Conaghan, Bruce Kay e David Scott Palmer. , e já que as forças armadas mantêm poderes tutelares sobre as decisões em várias áreas de política pública e até mesmo sobre partes do território deste país. Um terceiro acréscimo é o de que deve haver um território indisputado que define claramente o demos votante.11 11 Ver, sobretudo, Juan Linz e Alfred Stepan, Problems of Democratic Consolidation: Southern Europe, South America, and Postcommunist Europe (Baltimore, The John Hopkins University Press, no prelo); e Philippe Schmitter, "Dangers and Dilemmas of Democracy" (Journal of Democracy, 5, n. 2, abril de 1994, pp. 57-74). Finalmente, como veremos, uma definição adequada de poliarquia deve ainda incluir uma dimensão temporal: a expectativa generalizada de que um processo eleitoral limpo e as liberdades que o acompanham terão vigência por um futuro indefinido.

Esses critérios nos deixam com as três poliarquias — Colômbia, Costa Rica e Venezuela — que precederam a onda de democratização que teve início em meados dos anos 70 e com aquelas que dela resultaram: Argentina, Bolívia, Brasil, Equador, Nicarágua, Panamá, Uruguai, e, com as já mencionadas ressalvas, Chile e Peru. Mas somente na mais antiga poliarquaia latino-americana, a Costa Rica, e nos dois casos de redemocratização da América do Sul, o Chile e o Uruguai, o executivo, o congresso, os partidos e o judiciário funcionam de forma razoavelmente próxima às suas normas institucionais, e, conseqüentemente, constituem-se em elos institucionais que têm certa efetividade no fluxo do poder político e das políticas públicas.12 12 Mas lembremos que no Uruguai e no Chile existem pesadas restrições à aplicação da lei aos quadros das forças armadas. Esta é uma importante lacuna na universalização do império da lei que, na América Latina, somente a Costa Rica conseguiu superar. A Colômbia e a Venezuela antes se incluíam nesse grupo, mas isso já não mais ocorre.13 13 Para análises recentes da crise política destes dois países, ver Catherine Conaghan, op. cit.; Michael Coppedge, "Venezuela's Vulnerable Democracy" (Journal of Democracy, 3, n.4, outubro de 1992, pp. 32-44; e Michael Gold-Biss, "Colombia: Understanding Recent Democratic Transformations in a Violent Polity" (Latin American Research Review, 28, n.1, 1993, pp. 215-34). Estes países, junto com Argentina, Bolívia, Brasil, Equador, Nicarágua, Panamá e Peru — um grupo que inclui uma ampla maioria da população e o grosso do PIB latino-americanos — funcionam de uma forma que a teoria democrática vigente não nos ajuda a entender muito bem.14 14 A despeito de tratá-la e de respondê-la de um ângulo distinto, Giovanni Sartori levanta essa mesma questão em "How Far Can Free Government Travel?" (Journal of Democracy, 6, n.3, julho de 1995, pp. 101-111).

Precisamos voltar à definição de poliarquia. Esta definição é bastante precisa com respeito às eleições (atributos de 1 a 4) e um tanto genérica com respeito a determinadas liberdades políticas (atributos 5 a 7). E ela nada diz com respeito às instituições formais de regime e de governo, tais como parlamentarismo ou presidencialismo, centralismo ou federalismo, decisões por maioria ou por consenso e a existência ou não de uma constituição escrita e do controle da constitucionalidade pelo judiciário. Mais ainda, a definição de poliarquia nada diz sobre aspectos menos formalizados com respeito aos quais a precisão é mais difícil, entre os quais a questão de se, como e em que medida os governos respondem às expectativas dos cidadãos e a estes prestam contas (de outras formas que não por meio de eleições), e a questão de que em que medida o império da lei se estende pelo território e pelos diferentes estratos ou classes sociais.15 15 Para uma relação útil dessas variações institucionais, ver Schmitter e Karl, op. cit.. Esses silêncios são apropriados. A definição de poliarquia estabelece um critério decisivo de diferenciação: ela separa os casos em que há eleições limpas e competitivas, e as correspondentes liberdades fundamentais, de uma variedade de outros casos. Estes incluem não só os regimes assumidamente autoritários, e sim também os países que, a despeito de realizarem eleições, não apresentam todas as características que conjuntamente definem a poliarquia.

De outra parte, uma vez estabelecido esse critério decisivo, o conceito de poliarquia admite muitas variações dentro do conjunto de casos delimitado. Essas diferenças são empíricas, mas elas também podem ser avaliadas normativamente. Elas podem ainda ser avaliadas prospectivamente, em termos das suas conseqüências para as perspectivas de sobrevivência de cada poliarquia. Essas são importantes questões que, na medida em que se aplicam a todas as poliarquias, e não somente àquelas que consideramos melhores em algum sentido, necessitam de alguns esclarecimentos conceituais.

INSTITUIÇÕES

Por definição, todos os casos latino-americanos que qualifiquei como poliarquias entram nessa categoria devido a um fato simples mas decisivo: as eleições estão institucionalizadas. Por "instituição" entendo um padrão regulado de interação que é conhecido, praticado e aceito (ainda que não necessariamente aprovado) pelos atores que têm a expectativa de continuar interagindo sob as normas sancionadas e garantidas por esse padrão.16 16 Para uma discussão mais detalhada sobre instituições, ver meu artigo "Democracia delegativa?" (Novos Estudos 31, outubro de 1991, pp. 25-40). Tal como enfatizam perspectivas de orientação sociológica, a existência e a continuidade das instituições é presumida pelos atores que interagem com elas e por meio delas.17 17 Ver, especialmente, Ronald L. Jepperson, "Institutions, Institucional Effects, and Institutionalism", in Paul J. DiMaggio e Walter W. Powell (orgs.), Te New Institucionalism in Organizational Analysis. (Chicago, The University of Chicago Press, 1992), pp. 143-63. As instituições "estão lá", regulando expectativas e condutas que normalmente não questionam sua (das instituições) existência socialmente dada. Às vezes, mas não necessariamente, as instituições tornam-se organizações complexas: espera-se que funcionem de acordo com normas explícitas e altamente formalizadas, e se materializam em edifícios, rituais e em indivíduos que são autorizados a falar pela organização. São essas as instituições que tanto a ciência política "pré-comportamental" como a maior parte da ciência política contemporânea têm em vista. Uma característica incomum das eleições qua instituição é a de que elas são altamente formalizadas (em termos da explicitação e do detalhamento das normas que a elas se aplicam), mas funcionam de forma intermitente e normalmente não dispõem de uma corporificação organizacional permanente.

Em todas as poliarquias, nas antigas e nas novas, as eleições estão institucionalizadas, tanto em si mesmas como na razoável18 18 Admito que o termo "razoável" é ambíguo. Em parte alguma essas liberdades são inteiramente ilimitadas, em vista, não fosse por nenhuma outra razão, das conseqüências políticas da desigualdade social. Por "razoável" entendo que não há proibições de jure a essas liberdades, nem esforços sistemáticos, que costumam ser bem-sucedidos, da parte do governo ou de atores privados, de anulá-las. efetividade das condições que as cercam: as liberdades de expressão, de acesso a fontes alternativas de informação e de associação. É essa a dimensão intertemporal que mencionei acima como um outro componente importante da poliarquia: quando as eleições estão institucionalizadas, não somente se realizam eleições limpas e competitivas, mas sim há também a expectativa generalizada de que novas rodadas de eleições limpas e competitivas ocorrerão durante um futuro indefinido. Assim, a maioria dos líderes políticos e dos eleitores dão por certo que no futuro as eleições ocorrerão tal como programadas, alistar-se-ão corretamente os eleitores, estes não serão coagidos fisicamente e seus votos serão corretamente computados. Também se dá por certo que os eleitos assumirão seus cargos e que não terão seus mandatos interrompidos arbitrariamente. Além disso, de acordo com a definição que adotei, para que esse processo eleitoral possa ocorrer, é preciso que existam também as liberdades de opinião e de associação (incluindo a liberdade de constituir partidos políticos), e uma mídia não sujeita à censura. Os países em que as eleições não têm essas características não se qualificam como poliarquias.19 19 De outra parte, é possível tornar as eleições mais competitivas por meio, digamos, de medidas que diminuam as vantagens dos que estão no governo ou dos partidos economicamente mais poderosos. É claro que questões como essas são importantes. Mas o ponto que quero enfatizar no momento é o de que essas diferenças se verificam entre os países que já se qualificam como poliarquias.

INSTITUCIONALIZAÇÃO PLENA?

Para a maior parte da literatura atual que trata da democratização, as novas poliarquias não estão, ou estão escassamente, institucionalizadas. Vimos, entretanto, que por definição todas as poliarquias, novas ou velhas, têm eleições institucionalizadas. De outra parte, são poucas as novas poliarquias que parecem ter institucionalizado qualquer outra coisa, pelo menos em termos do que se esperaria observando-se algumas20 20 A ressalva que está implícita no termo "algumas" será esclarecida adiante. das poliarquias antigas. Mas essa expectativa é enganadora: constitui um non sequitur supor que certas poliarquias não estão institucionalizadas porque algumas de suas instituições não se parecem com aquelas das poliarquias antigas, ou não funcionam da mesma forma que estas últimas. É possível que outras instituições existam, ainda que não sejam as que a maioria de nós preferiria ou reconheceria de imediato.

Quando as eleições estão institucionalizadas, pode-se dizer que a poliarquia, ou a democracia, está "consolidada": se há a expectativa de que eleições limpas e competitivas ocorrerão durante um futuro indefinido, se essa expectativa é compartilhada pela maioria dos atores políticos21 21 Não é preciso que todos esses atores sejam "democratas" em um sentido subjetivo. Basta que se tenham convencido de que "fazer o jogo das eleições" constitui a melhor opção estratégica que a eles encontra-se disponível, e que os autoritários convictos encontrem-se isolados politicamente. e da opinião pública, se muitos atores investem recursos estrategicamente com base na suposição de continuidade das eleições e de permanência de governantes eleitos, e se as liberdades políticas e sociais são razoavelmente respeitadas, então, ceteris paribus, é provável que a poliarquia perdure. Nisso, juntamente com a condição de ausência de prerrogativas de veto sobre as autoridades eleitas, consiste a influente definição de "consolidação democrática" oferecida por Juan Linz como aquela situação em que "nenhum dos atores políticos, partidos, interesses organizados, forças ou instituições de peso supõe que há uma alternativa ao processo democrático para chegar ao poder, e... [em que] nenhum grupo ou instituição pleiteia o direito de vetar a ação de governantes democraticamente eleitos ... Dizendo isso de forma mais simples, é preciso que a democracia seja considerada como 'the only game in town'."22 22 Linz, Juan. "Transitions to Democracy". Washington Quarterly, 13, n.3, 1990, p. 156. A afirmação sobre "the only game in town" implica algumas ambigüidades que discuto adiante. Outras definições minimalistas, também com base na democracia se tornar "the only game in town", podem ser econtradas em Adam Przeworski, Democracy and the Market. Political and Economic Reforms in Eastern Europe and Latin America ( Cambridge, Cambridge University Press, 1991); e em Giuseppe Di Palma, To Craft Democracies. An Essay on Democratic Transitions (Berkerley e Los Angeles, University of California Press, 1990). Esta é uma definição minimalista que tem vantagens importantes. Mas não vejo muito ganho analítico em se vincular o termo "consolidada" a alguma coisa que provavelmente, ainda que isso não seja garantido, perdurará — "democracia" e "consolidação" são termos demasiado polissêmicos para constiuírem um bom par.23 23 Como recentemente afirmaram James March e Johan Olsen, em Democratic Governance, "'democracia' tornou-se um termo de tal legitimidade geral e de tal uso indiscriminado a ponto de se comprometer sua pretensão a um sentido" (New York, The Free Press, 1995, p.1). Como veremos, o termo "consolidação" é ainda mais problemático. Por exemplo, em "Towards Consolidated Democracies: Five Arenas and Three Surmountable Obstacles", paper apresentado na conferência sobre "Consolidating Third Wave Democracies" (Taipé, agosto de 1995), Juan Linz e Alfred Stepan propuseram uma definição minimalista de consolidação democrática que discuto adiante. De momento, observo que esses autores sustentam que as democracias consolidadas não estão imunes a sofrer um colapso. Esta ressalva seria obviamente supérflua não fossem as conotações indesejáveis do termo "consolidação".

Outros autores propõem definições ampliadas de consolidação democrática, muitos delas centradas na realização de um grau elevado de "institucionalização".24 24 A despeito de a maioria das definições de consolidação democrática girarem em torno da "institucionalização" (seja explicita ou implicitamente, asseverando-se a aceitação e/ou a aprovação de instituições democráticas e de suas normas formais), elas propõem uma grande variedade de outros critérios. Minha própria conta em uma revisão recente da literatura chegou a doze; ver Don Chull Shin, "On the Third Wave of Democratization. A Synthesis and Evaluation of Recent Theory and Research" (World Politics, 47, outubro de 1994, pp. 135-70). Alguns desses critérios são bastante exigentes, tais como a realização de um "consenso substancial e de princípio" com respeito à democracia entre os líderes, ou de um "consenso das elites sobre os procedimentos junto com uma ampla participação de massa nas eleições e em outros processos institucionais", ou a exigência de que a democracia se torne "ampla e profundamente legítima", ou a identificação de uma situação em que "a aceitação de um dado conjunto de normas constitucionais torna-se crescentemente generalizada, valorizada e automatizada", ou em que uma cultura política democrática emerge (por falta de espaço, remeto o leitor a Shin, op. cit., p. 144 e seguintes, e às fontes que lá são citadas). Em geral essas definições não vêem as eleições como uma instituição. Elas enfocam as organizações formais, basicamente o executivo, os partidos, o congresso e às vezes o judiciário. Muitos estudos valiosos foram realizados com base nesse ponto de vista. Mas em razão da própria lógica da sua argumentação, esses estudos têm de se valer, como critério comparativo, de uma visão genérica e por vezes idealizada das poliarquias antigas. Para começar, preciso confessar minha perplexidade sobre o que esse critério comparativo realmente significa: muitas vezes não fica claro se se trata de algo como uma média das características observadas no interior do grupo das poliarquias antigas, ou de um tipo ideal gerado a partir de algumas dessas características, ou de uma generalização das características de alguns de seus membros para o grupo todo, ou de uma formulação normativa de características preferidas. Os casos que não "chegaram" à institucionalização plena, ou que não parecem estar se movendo nessa direção, são vistos como bloqueados25 25 É mais do que tempo para a auto-crítica. Usei o termo [democracia] "bloqueada" junto com Scott Mainwaring e Samuel Valenzuela na introdução a nosso op. cit., p.l 1. Além disso, no capítulo que escrevi para este livro (pp. 17-56), proponho uma definição não-minimalista de consolidação democrática e o conceito de uma "segunda transição", de um governo democraticamente eleito para um regime democrático consolidado. Esses conceitos compartilham da teleologia que aqui estou criticando. , congelados, prolongadamente não-consolidados, e por aí a fora. Mas uma visão como essa supõe que existem, ou que deveriam existir, fatores que impulsionam certa direção da mudança e que esses casos "bloqueram-se" em um certo ponto, ou etapa, da rota que leva a sua consolidação e/ou institucionalização. De outra parte, os fatores que, segundo essa interpretação, são contrários a essa direção de mudança (isto é, os fatores que mantêm esses casos em sua situação de não-institucionalização ou de não-consolidação) só podem ser vistos como "obstáculos" à direção de mudança que de outra forma operaria sem restrições.26 26 Essa visão teleológica é análoga àquela empregada por muitos estudos de modernização nos anos 50 e 60; na época, esta última foi fartamente criticada, ainda que, como agora fica evidente, não de uma forma decisiva. Para uma crítica do conceito de "consolidação democrática" que é semelhante à minha, ver Ben Ross Scheneider, "Democratic Consolidation: Some Broad Comparisons and Sweeping Arguments" (Latin American Research Review, 30, n.2,1995, pp. 215-34), que conclui fazendo uma advertência contra "a falácia do universalismo excessivo", p. 231. O fato de que algumas dessas poliarquias permaneçam em um estado de "não-consolidação prolongada"27 27 Philippe Schmitter e Terry Karl, The Conceptual Travels of Transitologists and Consolidologists: How Far to the East Should They Attempt to Go? (Slavic Review 63, 1994, pp. 173-85). já por uns vinte anos sugere que há algo de muito estranho com esse tipo de conceito.

Para fundamentar melhor esse argumento, talvez seja útil referir-se a um livro recentemente publicado sobre a consolidação democrática.28 28 Gunther, Richard, Diamandouros, P. Nikiforos e Puhle, Hans-Jurgen (orgs.). The Politics of Democratic Consolidation. Southern Europe in Comparative Perspective. Baltimore, The John Hopkins University Press, 1995. Trata-se do primeiro de uma série de cinco volumes resultantes de um projeto de oito anos que envolveu, como co-autores e debatedores, muitos dos mais ativos e ilustres estudiosos da democratização. A introdução (pp. 1-32) e o capítulo de conclusões (pp. 389-413), escritos pelos organizadores, são uma destilação impressionantemente douta desse amplo processo de intercâmbios acadêmicos voltados para "(1) desenvolver um estudo sistemático da natureza da consolidação democrática na Grécia, em Portugal, na Espanha e na Itália pós-fascista ... e (2) contribuir para o emergente debate, mais geral e teórico, sobre as propriedades da consolidação democrática, e sobre os processos que nela estão envolvidos, utilizando os insights derivados desse estudo regional de caso".29 29 Ibid., p. xxix. Trata-se de um livro importante, e, considerando-se a qualidade dos co-autores deste volume e dos participantes do projeto como um todo, de um empreendimento justificadamente ambicioso. E é também paradigmático dos pontos de vista que aqui estou discutindo, provavelmente porque os organizadores e seus colaboradores consideram que os quatro países estudados são democracias consolidadas. Os organizadores se valem do conceito de "trajetórias de transições e de consolidações democráticas" com o qual, mesmo ressalvando que "de forma alguma se deve entendê-lo como envolvendo um viés conceituai determinista", pretendem "apreender e esclarecer a combinação e a interação específicas de liberdade e obstrução em cada um das sucessivas etapas do processo de democratização"30 30 Ibid., p. xvi (ênfase minha). . Mais adiante, os autores afirmam que "consideramos bastante importante o movimento contínuo em direção a um tipo ideal de consolidação democrática"31 31 Ibid., p. 9 (ênfase minha). . De uma forma também consistente com esse ponto de vista — e em contraste com os países da Europa meridional que, de acordo com esses autores, se tornaram democracias consolidadas em parte por que "passaram aos saltos" pelas etapas de democratização e de desenvolvimento32 32 Ibid., p. xiv, xv e xvii (ênfase minha). — , os autores consideram que a maior parte da América Latina "ainda está às voltas com problemas de transição de variadas, muitas vezes de vastas, magnitude e intensidade". Uma exceção é a transição chilena, que "está se movendo em direção à consolidação",33 33 Ibid., p. 19 (ênfase minha). e que "parece estar percorrendo com firmeza a rota que conduz a um desenlace bem-sucedido"34 34 Ibid., p. 389 (ênfase minha). . Além disso, em contraste com a Europa do Leste, a maioria dos países da América do Sul, assim como a Coréia do Sul, "parecem ter realizado um considerável progresso em direção à consolidação de seu sistema político democrático..."35 35 Ibid., p. 390 (ênfase minha). A imagem teleológica de estágios é tão forte que os autores afirmam, surpreendentemente, que é somente no período "que vem após a consolidação democrática", o estágio de "persistência democrática"36 36 Ibid., p.413. , que se apresenta "um conjunto inteiramente novo de questões, relacionadas a problemas tais como o da qualidade da democracia e do desempenho de suas instituições políticas". Ao que parece, no período em que a democracia já está consolidada (que "se deve considerar como anterior e distinto da persistência democrática"37 37 Ibid., p. xiii (ênfase minha). ), essas questões de qualidade e de desempenho não têm relevância. Um entre os vários outros problemas que essa perspectiva apresenta, além do fato de que não nos oferece nenhum critério para saber quando o "estágio" da consolidação termina e tem início o da persistência, diz respeito à dificuldade muito grande de atestar em que momento a consolidação é alcançada. Retornarei a este ponto adiante; de passagem, observo que neste livro mencionam-se três diferentes datas referentes ao momento em que a Grécia tornou-se uma democracia consolidada,38 38 1977, 1981 ( ibid., p. 29) e 1974 ( ibid., capítulo de Juan Linz e Alfred Stepan, "Democratic Transition and Consolidation in Southern Europe, with Reflections on Latin American and Eastern Europe", p. 110). sem falar da afirmação extremamente contra-intuitiva — pelo menos para mim — de que a democracia grega tornou-se quase que instantaneamente consolidada, ao passo que a Itália levou quase três décadas39 39 Ibid.,p. 22 e p. 412. para chegar a esse ditoso estado.

De uma forma ou de outra, as poliarquias que são percebidas como não-consolidadas, não-institucionalizadas ou pouco institucionalizadas, como esses próprios termos indicam, são caracterizadas negativamente, por aquilo que lhes falta: o tipo e/ou o grau de institucionalização supostamente alcançado pelas poliarquias antigas. No entanto, as definições e obstáculos negativos desviam a atenção da construção de tipologias de poliarquias com base nas características específicas e positivamente descritas de cada subtipo.40 40 Lembremos que várias tipologias foram propostas para as poliarquias formalmente institucionalizadas; ver, especialmente, Arend Lijphart, Democracies. Patterns of Majoritarian and Consensus Government in Twenty Countries (New Haven, Yale University Press, 1984). Que este livro tenha sido extremamente útil para fazer avançar o conhecimento sobre essas poliarquias, só faz aumentar a necessidade de esforos similares voltados para o conjunto enormemente ampliado de poliarquias hoje existente. Uma tentativa interessante nessa direção é a de Carlos Acuña e William Smith, "Future Political-Economic Scenarios for Latina America", in William Smith, Carlos Acuña e Edurardo Gamarra, orgs., Democracy, Markets, and Structural Reform in Latin America (New Brunswick, Transaction Publishers, 1993), pp. 1-28. Tipologias positivas dessa natureza são necessárias, entre outras razões, para avaliar as possibilidades de permanência de cada tipo, para explorar seus padrões de mudança e para esclarecer as várias dimensões com respeito às quais as questões da qualidade e do desempenho da poliarquia podem ser pesquisadas e discutidas.

Não há nenhuma teoria capaz de nos dizer quando e como as novas poliarquias que institucionalizaram as eleições virão a "completar" sua estrutura institucional ou virão a tornar-se "consolidadas". Tudo o que podemos dizer no estágio presente de nosso conhecimento é que, uma vez que as eleições institucionalizaram-se, as poliarquias provavelmente perdurarão. Podemos adicionar a hipótese de que essa probabilidade é maior no caso das poliarquias que estão formalmente institucionalizadas. Mas essa formulação não me parece fantasticamente interessante se não levamos em conta outros fatores que muito provavelmente têm consideráveis efeitos independentes sobre as probabilidades de sobrevivência das poliarquias.41 41 Adam Przeworski e seus colaboradores descobriram que um maior desenvolvimento econômico e um regime parlamentarista aumentam a taxa média de sobrevivência das poliarquias. Essas descobertas são importantes, mas os autores não testaram os impactos da desigualdade sócio-econômica e do tipo de institucionalização informal que discuto adiante. Até que sejam mais pesquisadas, é impossível avaliar a direção causal e o peso de todas essas variáveis. Suspeito que uma elevada desigualdade sócio-econômica está estreitamente relacionada à institucionalização informal. Mas não sabemos se uma dessas variáveis ou ambas afetam, direta ou indiretamente, as probabilidades de sobrevivência da poliarquia, ou se podem cancelar o efeito do desenvolvimento econômico que Przeworski et. al. descobriram. Ver Adam Przeworski e Fernado Limongi, "Modernization: Theories and Facts", Chicago Center for Democracy, University of Chicago, Working Paper n.4 (novembro de 1994); e Adam Przeworski, Michael Alvarez, José Antonio Cheibub e Fernando Limongi, "Economic and Institutional Conditions of Durability of Democracy", paper não-publicado, New York University (setembro de 1995).

Conseqüentemente, vincular os termos "consolidada" ou "altamente institucionalizada" a algumas poliarquias pode não dizer nada além de que elas são institucionalizadas da forma como se espera e se aprova. Na ausência de uma teoria sobre como e por que isso pode ocorrer, parece no mínimo prematura a expectativa de que outras poliarquias se tornarão, ou devem se tornar, "consolidadas". De qualquer modo, tal teoria só pode ser elaborada com base em uma descrição positiva das principais características dos casos pertinentes.

NORMAS FORMAIS E INFORMAIS

A poliarquia é o resultado afortunado de processos que têm séculos de duração, a maior parte dos quais em países localizados no quadrante noroeste do planeta. A despeito de haver muitas variações entre esses países, a poliarquia tomou corpo em um complexo institucional: um conjunto de normas e de instituições (muitas das quais são organizações complexas) que se encontra explicitamente formalizado em constituições e na legislação infra-constitucional. Supõe-se que as normas guiam a conduta dos indivíduos dentro das instituições e a conduta dos indivíduos que com elas interagem. Quando outros países adotam a poliarquia, a instituição eleitoral funciona de forma bastante próxima àquilo que suas normas determinam. Mas em muitas das novas poliarquias, o mesmo não ocorre com as outras instituições — as organizações complexas da estrutura institucional completa da poliarquia. É difícil determinar empiricamente o grau em que a conduta (ou as expectativas de conduta) se aproxima ou se desvia da conduta prescrita por normas formais. Quando há uma razoável conformação de uma coisa à outra, as normas formais simplificam a nossa tarefa; elas se prestam bem a prever a conduta e as expectativas; e, nesse caso, pode-se dizer que todas as normas e instituições formais da poliarquia, ou a maior parte delas, são quase que totalmente institucionalizadas.42 42 Um tópico do qual não me ocupo no momento é em que medida as normas formais encontram-se institucionalizadas em diferentes poliarquias antigas, e, dentro de cada uma delas, em âmbitos distintos de problemas. As variações parecem ser bastante importantes nessas duas dimensões. Quando a conformidade é frouxa ou praticamente inexistente, defrontamo-nos com a dupla tarefa de descrever a conduta efetiva e de descobrir as normas (em geral informais) que de fato orientam a conduta e as expectativas. Os atores são tão racionais nesses contextos como o são nos ambientes altamente formalizados, mas essa racionalidade não pode ser determinada sem que se conheçam as normas, e a percepção compartilhada que delas se forma, que estabelecem os parâmetros decisivos da conduta e das expectativas. É claro que se pode definir essa situação negativamente, somente em termos da falta de conformidade entre o comportamento observado e as normas formais. Mas, como já foi observado antes, e como os antropólogos já há muito se deram conta, isso não serve de substituto para o estudo das normas que são efetivamente seguidas, e nem nos autoriza a supor que de alguma forma há uma tendência em direção ao aumento da conformidade. Isso é verdadeiro sobretudo quando as normas informais são amplamente compartilhadas e profundamente arraigadas; nesse caso, são essas as normas altamente institucionalizadas, e não as formais.43 43 Fazem parte do folclore de muitos países as anedotas sobre o estrangeiro ingênuo ou o nativo "trouxa" que, seguindo as normas formais de uma dada situação, se metem em sérias dificuldades. Explorei algumas dessas questões, tendo o Brasil e a Argentina por referência, em "Democracia en la Argetina: micro e macro", Working Paper, n. 2 (Notre Dame, Kellog Institute, 1983); em "Y a mi qué me importa? Notas sobre sociabilidad y política en Argentina y Brasil", Working Paper no. 9 (Notre Dame, Kellogg Institute, 1984); e em "Micro-cenas da privatização do público no Brasil" (Novos Estudos 22, 1988).

Em certa medida, o mesmo se passa nas poliarquias antigas. Os freqüentes lamentos, provenientes de todos os pontos do espectro ideológico, pela decadência da democracia nesses países são em grande medida uma conseqüência da lacuna visível, e aparentemente cada vez maior, aberta entre as normas formais e o comportamento de atores políticos de todos os tipos. Mas a lacuna é ainda maior em muitas das novas poliarquias — nestas, as normas formais sobre como as instituições devem funcionar muitas vezes oferecem pistas muito insatisfatórias para aquilo que realmente ocorre.

PARTICULARISMO E POLIARQUIA

Não quis dizer na seção anterior que o processo político não é institucionalizado, e sim que concentrar a atenção em instituições formais e corporificadas em termos organizacionais impede que se perceba uma outra instituição que, a despeito de ser informal e às vezes oculta, exerce uma enorme influência em muitas das novas poliarquias: o clientelismo e, de forma mais geral, o particularismo. Espero ser perdoado por não tratar esses termos, neste artigo, com todos os detalhes e nuanças que seriam necessários em uma discussão adequada do tema;44 44 Para os propósitos do argumento genérico que apresento neste artigo, de agora em diante utilizo, não sem antes hesitar em razão de sua vagueza, o termo "particularismo" para me referir a esses fenômenos. Para uma discussão recente da relevância contemporânea do clientelismo, incluindo em poliarquias, ver Luis Roniger e Ayse Gunes-Ayata, orgs., Democracy, Clientelism, and Civil Society (Boulder: Lynne Rienner Publishers, 1994). Para estudos focalizados na América Latina que têm afinidades com o meu argumento, ver, sobretudo, Roberto DaMatta, A casa e a rua. Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil (São Paulo, Brasiliense, 1985); Jonathan Fox, "The Difficult Transition from Clientelism to Citizenship" (World Politics, 46, 2, janeiro de 1994, pp. 151-184); Francis Hagopian, "The Compromised Transition: The Political Class in the Brazilian Transition", in Scott Mainwaring et. al., orgs., op. cit., pp. 243-293; e Scott Mainwaring, "Brazilian Party Underdevelopment in Comparative Perspective" (Political Science Quarterly, 107, 4, pp. 677-707). aqui me refiro aos vários tipos de relações não-universalistas, desde as relações particularistas hierárquicas, a patronagem, o nepotismo, os favores e jeitinhos, até as ações que, sob as normas formais do complexo institucional da poliarquia, seriam consideradas corruptas.45 45 Talvez seja preciso insistir que as poliarquias formalmente institucionalizadas não estão isentas de relações particularistas. Entretanto, estou assinalando problemas de grau que parecem suficientemente grandes para merecerem um reconhecimento conceituai. Uma evidência importante dessas diferenças é a extraordinária leniência com que, nas poliarquias informalmente institucionalizadas, os líderes políticos, a maior parte da opinião pública e mesmo os tribunais lidam com as situações que em outras poliarquias seriam consideradas como envolvendo graves conflitos de interesses.

O particularismo — e sua contraparte, as concepções e práticas neopatrimonialistas46 46 Para uma discussão deste tópico, ver meu "Transições, continuidades e alguns paradoxos", in Fábio Wanderley Reis e Guillermo O'Donnell (orgs.). A democracia no Brasil. Dilemas e perspectivas (São Paulo, Vértice, 1988). Uma interessante discussão recente do neopatrimonialismo é a de Jonathan Hartlyn em "Crisis-Ridden Elections (Again) in the Dominican Republic: Neopatrimonialism, Presidentialism, and Weak Electoral Oversight" (Journal of Interamerican and Worl Affairs, 34,4, 1994, pp. 91-144). e delegativas de governo — é antagônico a um dos principais aspectos do complexo institucional da poliarquia: a distinção comportamental, legal e normativa entre uma esfera pública e uma esfera privada. A efetividade dessa distinção é um aspecto importante da institucionalização formal da poliarquia. Supõe-se que os indivíduos que desempenham funções nas instituições política e, de forma geral, nas instituições estatais, não são guiados por motivos particularistas, mas sim por orientações universalistas voltadas para a realização de alguma versão do bem público. Muitas vezes ocorre de os limites entre o público e o privado não serem nítidos nas poliarquias antigas. Mas a própria noção de que a distinção existe é amplamente aceita e, em certos momentos, quando as ações de autoridades públicas orientadas por motivos particularistas parecem violá-la, ela é vigorosamente defendida.47 47 Como diz Sephen Macedo, "o cinismo não deve nos cegar para o fato de que os próprios volume e intensidade da crítica dirigida à política de interesses particularistas mostram que muitas pessoas acreditam que podemos e devemos fazer melhor do que isso. Fora da academica, as defesas públicas da política particularista muitas vezes se vêem em dificuldades". Liberal Virtues. Citizenship, Virtue, and Community in Liberal Constitutionalism (Oxford, Clarendon Press, 1990), p. 117. Nos casos em que o particularismo é onipresente, essa noção é mais fraca, não é muito compartilhada e dificilmente se faz cumprir.

Mas a poliarquia faz diferença, mesmo nas esferas institucionais que, contrariamente a suas normas formais, são dominadas pelo particularismo. Nessas esferas, no congresso e no judiciário, e em algumas ações do executivo, os rituais e os discursos são praticados como se as normas formais fossem os principais determinantes da conduta. As conseqüências são duas. De uma parte, prestando-se tributo às normas formais do complexo institucional da poliarquia, esses rituais e discursos facilitam as ações de políticos cuja conduta é orientada de forma mais universalista, assim como as demandas sociais de que essas normas sejam efetivamente seguidas e de que uma conduta governamental mais orientada para o interesse público prevaleça.48 48 Há uma rica historia, nesses países, de políticos, líderes sociais e ONGs que reivindicam o que se deve entender, afinal, como a efetividade do império da lei tal como proposto pelo complexo institucional da poliarquia. Aqui não é o lugar de reconstituir essa história e seus resultados indefinidos, senão desencorajadores. De outra parte, a hipocrisia descarada de muitos desses rituais e discursos alimenta o cinismo generalizado em relação às instituições da poliarquia, autoridades públicas e "políticos" em geral. Na medida em que essa segunda conseqüência é altamente visível, o particularismo é dado por suposto e é praticado como a principal forma acesso ao poder político e de exercê-lo (com a peculariedade suplementar de se esperar que sejam mera mera retórica, e de se percebê-los como tal, os discursos políticos que pretendem estar de acordo com o outro tipo de normas). O particularismo é um importante componente do regime político dessas poliarquias.49 49 Por regime entendo "o conjunto de padrões efetivamente existentes (não necessariamente formalizados legalmente) que estabelecem as modalidades de recrutamento e acesso às funções governamentais e os recursos permissíveis que constituem o fundamento das expectativas de acesso a essas funções", tal como defini em Bureaucratic Authoritarism. Argentina, 1966-1973, in Comparative Perspective (Berkeley, University of California Press, 1988), p. 6. Gerardo Munck, em "Political Regime, Transition, and Consolidation. Conceptual Issues in Regime Analysis" (paper apresentado na reunião de 1995 da Latin American Studies Association, Washington DC), oferece uma análise interessante do conceito de regime e de seu uso em estudos comparativos. As poliarquias são regimes políticos, mas nem todas as poliarquias se constituem no mesmo tipo de regime.

É nesse sentido que a afirmação já citada de Linz, Przeworski e outros sobre a consolidação se verificar quando "a democracia se torna 'the only game in town'" é ambígua. Do contexto, fica claro que Linz e Przeworski estão se referindo às normas formais da poliarquia.50 50 Isso está explicito na definição não-minimalista, tridimensional, que Juan Linz e Alfred Stepan propõem em seu texto op. cit. Essa definição inclui uma "dimensão constitucional" que traduz um "espírito do constitucionalismo" que "exige uma clara hierarquia de leis, interpretadas por um sistema judicial independente e que encontram apoio em uma vigorosa cultura legal na sociedade civil" (p. 5). De passagem, observo que este é um critério muito exigente; se literalmente interpretado, ele levaria à exclusão de países tais como Itália, índia e Japão do grupo de democracias consolidadas. De modo mais geral, ainda que não se refiram à "institucionalização", os autores que se limitam ao termo "consolidação", de forma mais ou menos implícita, também têm em mente essa mesma estreita conformidade entre comportamento efetivo e normas formais.51 51 Ver, entre outras que poderiam ser citadas (muitas das quais transcritas em Shin e em Gunther, Diamandouros e Puhle, op. cit.), a definição de consolidação democrática que Linz e Przeworski propõem: "a consolidação...diz respeito à obtenção de um substancial apoio em termos de atitudes para as novas instituições democráticas e para as normas que elas estabelecem, e à obtenção de uma substancial conformidade comportamental a essas instituições e normas" (P. 3; uma definição mais extensa, mas equivalente a esta, é proposta na p. 7). Por exemplo, Przeworski argumenta que a consolidação democrática ocorre "... quando ninguém pode se imaginar agindo fora das instituições democráticas ...". Mas isso não exclui a. possibilidade de que os jogos disputados "dentro" das instituições possam ser diferentes daqueles que suas normas formais estabelecem. Przeworski afirma ainda: "para dizê-lo de uma forma uma pouco mais técnica, a democracia está consolidada quando o cumprimento das normas — a atuação dentro da estrutura institucional — constitui o equilíbrio das estratégias descentralizadas de todas as forças relevantes".52 52 Przeworski, Democracy and the Market, op. cit., p. 26. Przeworski está claramente supondo que só há um equilíbrio, aquele que é gerado por uma estreita conformidade entre normas formais e comportamento. Entretanto, ainda que sejam inferiores aos desempenhos e resultados que valorizamos, as situações que estou descrevendo também podem ser equilíbrios.53 53 Apesar de não se valer dessa linguagem, Philippe Schimitter, em uma outra discussão merecidamente influente, expressa um ponto de vista similar da consolidação democrática em termos de uma estreita conformidade, percebida como o único equilíbrio possível, entre normas formais e comportamento. Ver "Dangers and Dilemmas of Democracy" (Journal of Democracy, 5, 2, 1994, pp. 56-74). Schmitter começa afirmando que "na América do Sul, Europa do Leste e Âsia, o espectro que ronda a transição é ... a não-consolidação ... Esses países estão 'condenados' a permanecer democráticos quase que pela ausência de uma outra opção", e mesmo reconhecendo que os atributos da poliarquia podem se conservar nesses países, "esses padrões não chegam a se cristalizar" (pp. 60-1). Essa é uma outra maneira de dizer que praticamente em toda parte, à exceção do quadrante noroeste do mundo, a democracia existe "quase que por ausência de opção" (isto é, ela é definida negativamente) e não chega a se "cristalizar" (isto é, não é formalmente institucionalizada).

Mais ainda, se, de forma mais ou menos explícita, o principal critério para a consolidação democrática ou para a institucionalização é uma razoável conformidade entre normas formais e conduta, então esses pontos de vista enfrentam um sério problema no caso de países tais como a Itália, o Japão e a Índia. Trata-se de poliarquias de longa existênca nas quais todas as evidências vão no sentido de que há formas variadas e importantes de particularismo. Mas esses casos não são considerados problemáticos pela literatura que estou discutindo. O fato de serem arrolados entre as poliarquias "consolidadas" (ou pelo menos de não o serem entre as poliarquias "não-consolidadas") sugere a força — e a inconsistência — desse ponto de vista: atribui-se o rótulo "consolidadas" às poliarquias que evidentemente não correspondem a esses argumentos, mas que já conseguiram se manter por um período significativamente mais longo do que as novas poliarquias até o momento. Essa é uma típica anomalia paradigmática: enfrentam-se esses casos relegando-os a um limbo teórico54 54 Uma exceção é Gunther, Diamandouros e Puhle, op. cit., em que a Itália é um dos quatro casos estudados. Mas a forma como os autores lidam com os recentes eventos na Itália não é menos ilustrativa do pântano conceituai que resulta da idéia de consolidação democrática. Seguindo o conceito de Schmitter de regimes parciais (ver nota 57), os autores afirmam que na Itália "... inúmeros regimes parciais importantes ... foram colocados em questão, tornaram-se não-consolidados e entraram em um significativo processo de reestruturação que teve início em 1991" (p. 19). Esses regimes parciais incluem nada menos do que "o sistema eleitoral, o sistema partidário e a própria estrutura do Estado" (ibid.), assim como "o caráter fundamental das relações executivo-legislativo" (p. 412) — por fim, praticamente todos os aspectos importantes do sistema político e mesmo do Estado italianos tornaram-se "não-consolidados". Se os autores querem dizer que, a despeito de passar por uma crise severa, a poliarquia italiana provavelmente sobreviverá, então estou de acordo. como se, por conta de se julgá-los de alguma forma "consolidados", as consideráveis lacunas neles existentes entre normas formais e conduta fossem irrelevantes. Isso é lamentável, por que perdem-se de vista variações que são empírica e teoricamente importantes para o estudo do conjunto todo das poliarquias existentes — as consolidadas, as não-consolidadas e as consolidadas por sua longa duração.

Uma outra questão confusa é a que diz respeito a quem deveria, e em que medida, aderir às normas formais para a democracia se consolidar — esta é a exigência de "legitimidade" que algumas das definições acrescentam. Sobre isso, a literatura oscila entre a exigência de que essa adesão se aplique somente a determinados líderes ou, alternativamente, à maioria da população, e entre a exigência de haver uma aceitação normativa fundamentada em princípios e a mera crença de que não há alternativas exeqüíveis à democracia. O escopo dessa adesão também é problemático: é suficiente que ela se refira somente às organizações formais do regime ou ela deveria se estender para outros âmbitos, por exemplo para a formação de uma cultura democrática amplamente compartilhada?

Considerando-se as dificuldades conceituais que estou discutindo, não é surpreendente que seja impossível definir com precisão, analitica e empiricamente, quando uma democracia "consolidou-se". Pode-se fazer uma idéia dessa dificuldade adicional a partir das "medidas empíricas inequívocas" que Gunther, Diamandouros e Puhle propõem como indicadores de consolidação democrática.55 55 Op. cit., p. 13 e seguintes. Supõe-se que esses indicadores os ajudem a diferenciar os casos da Europa Meridional da maior parte dos casos da América Latina, Europa do Leste e Ásia. Esses "testes rigorosos" são os seguintes: 1) a "alternância de antigos rivais no poder"; 2) "a preservação de um amplo apoio [à poliarquia] e da estabilidade durante períodos de dificuldades econômicas extremas"; 3) "o êxito na derrota e punição de pequenos grupos de rebeldes estrategicamente posicionados"; "a estabilidade do regime em face da restruturação radical do sistema partidário"; e 5) "a ausência de um importante partido ou movimento social anti-sistema".56 56 Ibid., pp. 12-13. Com respeito à América Latina, vale a pena observar, no que se refere a cada um desses pontos, que: (1) alternâncias no poder (isto é, no governo) por meio de processos eleitorais pacíficos ocorreram mais freqüentemente na América Latina do que na Europa Meridional; 2) naquela, o apoio à estabilidade do regime persistiu — entre outros países, na Argentina, no Brasil e na Bolívia — mesmo diante de recessões muito mais agudas do que as que ocorreram na Europa Meridional, e em meio a inflações de quatro dígitos; nas duas regiões, ainda que existam exceções importantes, não há muitos registros de punição; 4) mesmo tendo-se em mente o caso da Itália de hoje, é difícil imaginar reestruturações de sistemas partidários mais radicais do que as que ocorreram na Bolívia, Brasil, Equador e Venezuela; e 5) partidos políticos e movimentos sociais "anti-sistema" estão tão ausentes dos países da América Latina quanto o estão das poliarquias da Europa Meridional. Como o leitor já deve ter-se dado conta, não estou argumentando que as poliarquias hoje existentes na América Latina são casos de consolidação democrática. O que estou dizendo é que os indicadores de consolidação democrática invocados por esses autores são extremamente ambíguos; levando-se seus argumentos até seu reductio ad absurdum se poderia argumentar que as poliarquias latino-americanas são "mais consolidadas" por que passaram por mais "testes severos" do que as da Europa Meridional...

ALGUMAS AFINIDADES ELETIVAS

Por vários motivos, podemos preferir — eu prefiro — um jogo que se conforma às normas formais do complexo institucional da poliarquia. Entretanto, existem poliarquias— algumas delas tão antigas quanto as da Itália, índia e Japão, e, na América Latina, as da Colômbia e Venezuela — que podem perdurar mesmo não funcionando da forma estabelecida por suas normas formais. Para compreender esses casos, temos de conhecer quais são os jogos efetivamente jogados e com que normas.

Nos países em que uma divisão profunda entre o país real e o país legal é parte de sua história, a continuidade e mesmo a alta visibilidade dessa divisão podem não ameaçar a sobrevivência da poliarquia — mas tampouco ajudam a superar a divisão. As instituições são resistentes, sobretudo quando elas têm raízes históricas profundas; o particularismo não é certamente uma exceção a isso.57 57 Nem é preciso dizer que se faz necessária uma análise mais abrangente e dinâmica do que a que faço aqui. Essa análise deve incluir, no mínimo, o papel já mencionado de políticos e de segmentos da sociedade que exigem normas mais universalistas e formas de conduta publicamente orientadas; a estranha coexistência de um particularismo onipresente com estilos altamente tecnocráticos de tomada de decisões de política econômica; as pressões internacionais (sobretudo no que se refere à corrupção e à incerteza que cerca a elaboração legislativa e, em especial, a prestação jurisdicional) para que a conduta de altas autoridades públicas esteja mais de acordo com as normas formais; e a necessidade de levar em conta os vários tipos e os nichos institucionais do clientelismo e do particularismo. Além disso, Philippe Schmitter desenvolveu o instigante argumento de que as poliarquias devem ser desagregadas em diversos "regimes parciais", muitos dos quais se mostrariam muito diferentes em uma comparação entre os casos formalmente institucionalizados e os informalmente institucionalizados. De Schmitter, ver "The Consolidation of Democracy and Representation of Social Groups" (American Behavioral Scientist 35, n. 4 & 5, 1992, pp. 422-49). O particularismo é um traço permanente da sociedade humana que, só muito recentemente, e somente em algumas regiões e em alguns âmbitos institucionais, foi moderado por normas e procedimentos universalistas. Mas, ao mesmo tempo, nessas poliarquias a incumbência das posições governamentais mais elevadas é determinada pelo procedimento, de um universalismo supremo, que consiste em corretamente contar cada voto como um voto. Isso pode parecer paradoxal, mas não é; o que isso significa é que essas são poliarquias, mas não são nem as que a teoria da democracia levou em conta, conforme se desevolveu como uma reflexão sobre os regimes políticos do Noroeste, e nem aquelas que muitos dos estudos atuais da democratização supõem que devessem ser.

O fato de que algumas poliarquias são informalmente institucionalizadas tem muitas conseqüências importantes. Aqui quero ressaltar uma delas que está intimamente relacionada à ausência de fronteiras claras separando as esferas pública e privada: a prestação de contas (accountability), um aspecto crucial das poliarquias formalmente institucionalizadas, é seriamente obstada. É verdade que a institucionalização das eleições significa que há uma prestação eleitoral de contas de natureza restrospectiva.58 58 E que funciona, a julgar pela elevada rotatividade de partidos no governo em muitas dessas poliarquias. Além disso, a existência de uma imprensa razoavelmente livre e de vários segmentos ativos da sociedade civil permite que alguns dos atos notoriamente ilegais dos governos sejam divulgados (ainda que raramente punidos). Nesses aspectos, a poliarquia, ainda que não institucionalizada formalmente, faz uma diferença muito grande em relação a regimes autoritários de todos os tipos. Mas o que em grande medida se encontra ausente é uma outra dimensão da prestação de contas, que denomino "horizontal".59 59 Em "Democracia delegativa?", op. cit., faço uma discussão mais detalhada deste tópico. Por isto, entendo os controles que se supõe que determinadas agências públicas exerçam sobre as demais. As poliarquias formalmente institucionalizadas, independentemente de serem parlamentaristas ou presidencialistas, ou de terem ou não uma divisão consitucional de poderes, dispõem de várias agências estatais dotadas de uma autoridade legalmente constituída de inspecionar e eventualmente de impor punições (ou mobilizar outra agência para fazê-lo) aos atos ilegais de outras agências estatais. Essa é uma dimensão muitas vezes negligenciada do império da lei em um dos âmbitos em que é mais difícil implantá-lo: o controle das agências públicas, sobretudo as que são dirigidas por altas autoridades públicas, eleitas ou não. A idéia básica é a de que as instituições formais têm limites legais bem definidos, que delimitam o exercício apropriado de sua autoridade, e de que há agências estatais investidas do poder de controlar e de corrigir as violações desses limites praticadas por qualquer autoridade ou agência. Esses limites estão intimamente relacionados às fronteiras entre o privado e o público em um ponto central: na suposição de que aqueles que desempenham papéis na esfera pública estão obrigados a se conformar, não a seus interesses privados, e sim a normas universalistas e de orientação pública. Obviamente, a efetividade dessas normas depende da existência de agências estatais, o que inclui os tribunais mas não se restringe a eles, que não só nominalmente mas que de fato exerçam os controles horizontais.60 60 Essa não é uma relação puramente bilateral entre uma agência de controle e uma agência controlada; é uma característica geral do sistema legal tal como aplicado ao funcionamento do Estado, do regime e do governo. Este é um outro ponto que pretendo elaborar em trabalhos futuros. O funcionamento dessa rede de limites e de formas de prestação de contas é um outro componente importante da institucionalização formal do complexo da poliarquia.

Ainda que esteja longe da perfeição, a prestação horizontal de contas é um importante componente do modo de funcionamento das poliarquias antigas. Em contraste, há pouca prestação horizontal de contas na maioria das novas poliarquias. Além disso, em muitas delas o executivo desenvolve enérgicos esforços, e muitas vezes com sucesso, para erodir qualquer forma de prestação horizontal de contas que porventura exista. A combinação de três componentes, as eleições institucionalizadas, o particularismo como uma instituição política dominante e uma grande distância entre as normas formais e o funcionamento da maioria das instituições políticas, tem uma forte afinidade com as concepções e práticas delegativas, e não representativas, de autoridade política. Por "democracia delegativa" entendo a concepção cesarista e plebiscitária de um executivo eleito que se supõe estar investido do poder de governar o país da forma como lhe aprouver.61 61 Ver meu "Democracia delegativa?", op. cit., para uma discussão mais extensa dessa questão. Com os agravantes das urgências impostas por severas crises sócio-econômicas, e em conformidade com percepções não-individualistas e völkischen da política, essa concepção é inimiga ao extremo da institucionalização política formal. Segundo as concepções delegativas, o congresso, o judiciário e as diversas agências estatais de controle são obstáculos colocados no caminho da adequada execução das tarefas que foram delegadas ao executivo pelo eleitorado. Os esforços do executivo para enfraquecer essas instituições, invadir a autoridade que lhes é legalmente atribuída e para desprestigiá-las constituem um corolário lógico dessas concepções.62 62 O leitor certamente percebeu que estou me referindo a países que têm um regime presidencialista e que, conseqüentemente, estou passando por cima dos argumentos, primeiramente formulados por Juan Linz e depois seguidos por inúmeros scholars, sobre as vantagens do parlamentarismo sobre os regimes presidencialistas que próprios da América Latina. Apesar desses argumentos me convencerem em um nível abstrato, sou cético, em razão das próprias características que estou descrevendo, quanto às conseqüências práticas de se tentar implantar o parlamentarismo nesses países. De outra parte, como nos alertou Max Weber, as instituições que são privadas de poder e responsabilidade reais tendem a agir de formas que parecem confirmar as razões invocadas para justificar essa privação. Nos casos que ora nos dizem respeito, o particularismo se torna ainda mais desmedido no congresso e nos partidos, os tribunais falham ostensivamente em ministrar a justiça e as agências de controle são eliminadas ou reduzidas à passividade. Esse contexto encoraja a imposição de privações ainda maiores, sobretudo mas não exclusivamente pelo executivo, torna ainda mais tênue a delimitação entre o público e o privado e cria tentações muito fortes para a prática da corrupção.

Por que, nesse oceano de particularismo e de fronteiras pouco claras entre o público e o privado, o procedimento universalista de eleições limpas sobrevive? Os governos que se dispõem a desfigurar as leis e mesmo a constituição não são avalistas confiáveis da integridade do processo eleitoral. Entretanto, pelo menos no que se refere às eleições para os postos governamentais mais elevados, o atual contexto internacional é extremamente importante. As eleições nacionais são cuidadosamente observadas e, sobretudo no caso de se detectarem irregularidades, amplamente noticiadas. A lisura dessas eleições é a principal característica, senão a única, que pode atestar a democracia desses países perante os outros governos e a opinião internacional.63 63 Como se viu, por exemplo, na condenação, pela maioria das grandes potências, dos golpes perpetrados pelos presidentes Yeltsin e Fujimori, ambos democraticamente eleitos. É claro que havia razões importantes de realpolitik por trás dessa condenação, sobretudo no caso da Rússia. Mas isso só enfatiza o quão decisivo é esse critério puramente eleitoral para certificar, vis a vis atores poderosos no cenário internacional, não somente a existência mas também a continuidade da poliarquia, mesmo quando outros de seus atributos tenham sido descaradamente suprimidos. Esse atestado, hoje em dia, traz importantes vantagens para os países e para aqueles que os governam. Dentro do país, as eleições são um momento em que algo similar a uma prestação horizontal de contas ocorre: partidos outros que não o que está no governo se fazem presentes nos locais de votação, todos com o claro interesse de evitar as manobras fraudulentas do segundo. Além disso, as eleições e seus resultados concentram uma grande parte da atenção nacional e são intensamente cobertas pela mídia, uma parte da qual, pelo menos, dispõe-se a noticiar as violações ao processo eleitoral. Provavelmente, nesses momentos de atenção concentrada em questões políticas, momentos em que, ademais, um denso conjunto de símbolos e de rituais cercam o ato de votar, tratar de forma fraudulenta o voto das pessoas violaria um senso fundamental de justiça. E quando muitos têm sua atenção voltada para os resultados eleitorais, é provável que essa violação fosse imediatamente divulgada. A percepção de iniqüidade e os eventuais protestos que se produziriam, e suas repercussões na mídia internacional, junto com o dano ulterior que seria provocado pela tentativa de impor como válidos resultados eleitorais que são obviamente viciados, parecem envolver custos que são suficientemente grandes a ponto de levar os governos mais importantes a aceitar os riscos de um processo eleitoral limpo.

O particularismo generalizado, a democracia delegativa, a reduzida prestação horizontal de contas e, em conseqüência, a transparência muito baixa dos processos de representação e de elaboração de políticas, têm pelo menos duas conseqüências negativas que aqui quero mencionar. Uma delas é a de que a ausência generalizada de controles permite que velhas práticas autoritárias ganhem um novo fôlego.64 64 Análises dessas situações podem ser encontradas em Paulo Sérgio Pinheiro, Túlio Kahn e Malak El-Chichini Popovic, "Pobreza, Violência e direitos humanos" (Novos Estudos 39, julho de 1994) e em Paulo Sé rgio Pinheiro, "The Legacy of Authoritarianism in Democratic Brazil", in Stuart S. Nagel, org., Latin American Development and Public Policy (New York, St. Martins's Press, 1995), pp. 237-253; Martha K. Huggins, org., Vigilantism and the State in Modern Latin America. Essays on Extralegal Violence (New York, Praeger, 1991). Ver também a análise preocupante de Diamond, com base em dados da Fredom House, em seu op. cit.: nos últimos anos, o número de países latino-americanos que sofreram um retrocesso nos índices de liberdade (elaborados por Diamond com base nesses dados) superou o número dos que tiveram melhoras nesses mesmos índices. A outra diz respeito à introdução de fortes predisposições, em termos de influência sobre a tomada e a implementação de decisões, em favor de interesses economicamente poderosos e altamente organizados — em países que inauguraram suas poliarquias em condições de desigualdade acentuada e crescente.

A situação como um todo resulta em uma disjunção que, vista à luz da experiência histórica da maioria das poliarquias formalmente institucionalizadas, parece estranha.65 65 Essa afirmação merece uma importante ressalva. Essa seqüência só se aplica, na maioria desses países [os formalmente institucionalizados], à população masculina, como observa Sylvia Walby em "Is Citizenship Gendered?" (Sociology 28, 2, maio de 1994, pp. 379-95). Nos países de que ora nos ocupamos, as liberdades mais políticas, democráticas, são efetivas. Isso diz respeito à ausência de coerção sobre o voto e às liberdades de opinião, de movimento, de associação e outras já enumeradas. Mas para vastos segmentos da população, são negadas ou espezinhadas as liberdades liberais fundamentais. Os direitos de mulheres espancadas de processar seus maridos, de camponeses de conseguir um julgamento justo contra os seus patrões proprietários de terras, a inviolabilidade de domicilio em bairros pobres e, de forma geral, o direito do pobre e de várias minorias a um tratamento decente e a um acesso eqüitativo a agências públicas e aos tribunais são freqüentemente violados. A efetividade do conjunto todo de direitos, democráticos e liberais, contribui para uma cidadania civil e política plena. Em muitas das novas poliarquias, os indivíduos somente são cidadãos em relação à única instituição — as eleições — que funciona de acordo com que suas normas formais prescrevem. Em tudo o mais, somente os membros de uma minoria privilegiada são plenamente cidadãos.66 66 Há um vasto tema adjacente que não discutirei aqui: as inter-relações entre esses problemas e a pobreza em larga escala, e, mais do que isso, entre eles e as profundas desigualdades de vários tipos. As poliarquias formalmente institucionalizadas exibem combinações diversas de democracia, liberalismo e republicanismo (entendido, este último, como uma perspectiva que concorda com o liberalismo no que se refere a distinguir nitidamente entre o público e o privado, mas que a essa distinção acrescenta uma concepção enobrecedora e pessoalmente rigorosa da incumbência de cargos na esfera pública). As democracias informalmente institucionalizadas são democráticas, no sentido que ressaltei acima e também porque acrescentam à institucionalização das eleições um componente de poder político delegativo e de natureza fortemente majoritária. Mas os componentes liberal e republicano dessas democracias são extremamente débeis.

EM VEZ DE CONCLUSÕES, ALGUMAS SUGESTÕES

Como um autor que cometeu a maioria dos equívocos que aqui estou criticando, acredito que nós, os estudiosos da democratização, ainda somos presas da atmosfera de épocas que, mesmo estando próximas no tempo em alguns de nossos países, em todos eles já parecem fazer parte de um passado distante. Acreditamos que a democracia, mesmo em sua versão não tão grandiosa da democracia política, ou poliarquia, é uma coisa muito boa, enormemente preferível a variedade toda de regimes autoritários que a precederam. Compartilhamos do júbilo pela queda desses regimes, e alguns de nós participaram desses eventos históricos. Foram momentos de imensos entusiasmo e esperança. Muitas pessoas se mobilizaram para reivindicar a democracia, e nisso foram apoiadas pela opinião pública internacional. É claro que a reivindicação de democracia tem muitos sentidos. Mas parece claro que, em todos os casos, havia um poderoso denominador comum: "Nunca Mais!"67 67 Este é o título dos relatórios das comissões que investigaram as violações de direitos humanos na Argentina e no Brasil. Faço uma discussão mais detalhada do que denomino uma "disposição anti-autoritária generalizada" em "Transições, continuidades e paradoxos". op. cit.; sobre isso, ver também Nancy Bermeo, "Democracy and the Lessons of Dictatorship" (Comparative Democracy 24, abril de 1992, pp. 273-91). Por mais confusas, utópicas ou limitadas que fossem as idéias que cada um tinha acerca da democracia, ninguém tinha dúvidas de que ela significava se livrar de governantes autoritários, que jamais se deveria permitir que voltassem ao governo. A DEMOCRACIA, a despeito ou talvez em razão dos diferentes sentidos que a ela se atribuíam, era a demanda central que mobilizava em prol de alguma coisa que tinha de ser conquistada e preservada para sempre. De alguma forma, imediatamente ou em um futuro não muito distante, essa democracia viria a se parecer com as democracias dos admirados países do Noroeste — admirados por suas democracias de longa existência, porque são ricos e por que havia a impressão de que as duas coisas caminham juntas. Tal como nesses países, após a transição a democracia deveria se estabilizar ou se consolidar. O Noroeste era visto como o ponto final de uma trajetória que em grande medida, se é que não por inteiro, se completaria no momento em que fosse possível se livrar dos governantes autoritários.68 68 Alimentando as esperanças geradas pela transição, e dando um enorme impulso às mobilizações que a levaram adiante, havia ainda a percepção de que todos os tipos de coisas boas viriam junto com a democracia — nos países pós-comunistas, uma transição rápida e quase indolor para uma "economia de mercado", e, na América Latina, uma melhoria igualmente rápida e quase indolor no padrão de vida da maioria da população. O fato de que essas expectativas exageradas estão por trás do desencanto, e mesmo da nostalgia pelo autoritarismo, que hoje se observam em muitas das novas democracias, isso constitui uma parte do quadro todo que é importante, mas que não é relevante para o argumento que aqui estou apresentando. Não há dúvida que essa ilusão foi extremamente útil para mobilizar a população contra os governantes autoritários. Os resíduos dessas esperanças e de seus discursos significam que DEMOCRACIA e CONSOLIDAÇÃO ainda são termos úteis do discurso político e, por isso mesmo, pragmaticamente válidos.69 69 Como sintomáticas ilustrações dos resíduos da linguagem e das esperanças da transição, assim como das influências mutuas entre os discursos político e acadêmico, em diversas ocasiões os governos dos países que conheço melhor (Argentina, Brasil, Chile e Uruguai) anunciaram triunfalmente que suas democracias haviam "consolidado-se". Mas já é mais do que tempo de examinar sua pertinência analítica.

É com esse espírito que enfatizei a necessidade de reconhecer, como componentes fundamentais de muitas das novas democracias, algumas instituições que são freqüentemente negligenciadas nos estudos que hoje se fazem da democratização.70 70 É óbvio que o particularismo e os fenômenos que o acompanham não são ignorados por pesquisadores de campo competentes. Os textos citados na nota 44 estão entre os que apresentam análises cuidadosas e sofisticadas desses fenômenos. Mas, uma vez mais atestando a força paradigmática das concepções prevalecentes sobre a democratização, as ricas informações e de descobertas que emergem desses estudos de caso simplesmente nó são processadas conceitualmente como parte da problemática da democratização, ou são entendidas como "obstáculos" colocados no caminho de sua suposta direção de mudança. É esse argumento que fundamentou meu ceticismo sobre alguns dos conceitos centrais dessa literatura. Depois, discuti brevemente diversos temas que estão correlacionados ao particularismo como uma instituição ubíqua e profundamente enraizada, ou que com ele parecem guardar uma forte afinidade eletiva. Esses temas necessitam de análises detalhadas que eu não teria como desenvolver aqui. Mas espero que este artigo sirva para fazer o desafio que mencionei no início: o de começar a descrever e a teorizar positivamente as poliarquias informalmente institucionalizadas, mesmo que elas não sejam as que gostaríamos que fossem e mesmo que algumas delas jamais venham a se parecer com as "democracias consolidadas" do Noroeste.

  • * "Another Institutionalization: Latin America and Elsewhere". Versão revisada do texto apresentado na Conferência "Consolidating Third Wave Democracies: Trends and Challenges", organizada pelo National Policy Research Institute e pelo International Forum for Democratic Studies, Taipé, 26-30 de agosto de 1995,
  • 1 Refletindo a ausência de critérios bem estabelecidos na literatura, David Collier e Steven Levistky inventariaram e discutiram de forma instigante os mais de cem qualificativos vinculados ao temo "democracia", muitos dos quais usados com o propósito de mostrar que os casos em questão de alguma forma não dispõem de todos os atributos da democracia tal como cada autor a define. Ver de Collier e Levistky, "Democracy 'With Adjectives': Finding Conceptual Order in Recent Comparative Research" (Berkeley, Universidade da California, Departamento de Ciência Política, paper não-publicado).
  • 3 Ver os anais de uma conferência que ocorreu recentemente na Universidade de Notre Dame como parte do "Projeto América Latina 2000" do Hellen Kellog Institute for International Studies: Catherine Conaghan, "Democracy that Matters: The Search for Authencity, Legitimacy, and Civic Competence in the Andes" (Kellog Institute, Working Paper no. 1, 1994);
  • Scott Mainwaring, "Democracy in Brazil and the Southern Cone: Achievements and Problems", (Working Paper no.2, 1994);
  • Laurence Whitehead, "The Peculiarities of 'Transition' a la Mexicana", (Working Paper no.4, 1994);
  • e Terry L. Karl, "Central America in the Twenty-First Century: The Prospects for a Democratic Region" (Working Paper no.5, 1994).
  • Estes textos podem ser requisitados ao Kellog Institute, Notre Dame, IN 46566. Para uma excelente revisão geral do assunto ver Larry Diamond, "Democracy in Latin America: Degrees, Ilusions, and Directions for Consolidation", in Tom Farer (org.), Beyond Sovereignty: Collectively Defending Democracy in the Americas (Baltimore, The John Hopkins University Press, 1995).
  • Ver também Scott Mainwaring, Guillermo O'Donnell e J. Samuel Valenzuela (orgs.), Issues in Democratic Consolidation: The New South America Democracies in Comparative Perspective (Notre Dame, University of Notre Dame Press, 1992).
  • 5 Tais como formulados nas obras clássicas de Robert Dahl. A transcrição que vem a seguir foi retirada de Democracy and its Critics (New Haven: Yale University Press, 1989), p. 221.
  • 7 Este acréscimo, que depois veio a ser adotado por inúmeros autores, que eu saiba foi primeiramente proposto por J. Samuel Valenzuela, "Democratic Consolidation in Post-Transitional Settings: Notion, Process, and Facilitating Conditions", in Scott Mainwaring .et. al, op. cit., pp. 57-104,
  • e por Philippe Schmitter e Terry Lyinn Karl, "What Democracy Is ... and Is Not" (Journal of Democracy, 2, n.3, Summer 1991, pp. 75-88).
  • 8 Sobre esses países ver Terry L. Karl, "The Hybrid Regimes of Central America" (Journal of Democracy, 6, n.3, julho de 1995, pp. 75-88) e "Imposing Consent?" Electoralism vs.
  • Democratization in El Salvador", in Paul Drake e Eduardo Silva (orgs.), Elections and Democratization in Latin America (San Diego, Center for Iberian and Latin American Studies, 1986), pp. 9-36.
  • 9 Sobre este país, ver a discussão dos "poderes tutelares" e das "prerrogativas exclusivas" em J. Samuel Valenzuela, op. cit., e dos "enclaves autoritários" em Manuel Antonio Garretón, "La posibilidad democrática in Chile" (Santiago do Chile, FLACSO, 1989) e Hacia una nueva era polí
  • tica. Estudio sobre las democratizaciones (México, Fondo de Cultura Económica, 1995).
  • 10 Ver Lasa Forum, 26, n.2, 1995, pp. 9-20,
  • 11 Ver, sobretudo, Juan Linz e Alfred Stepan, Problems of Democratic Consolidation: Southern Europe, South America, and Postcommunist Europe (Baltimore, The John Hopkins University Press, no prelo);
  • e Philippe Schmitter, "Dangers and Dilemmas of Democracy" (Journal of Democracy, 5, n. 2, abril de 1994, pp. 57-74).
  • 13 Para análises recentes da crise política destes dois países, ver Catherine Conaghan, op. cit.; Michael Coppedge, "Venezuela's Vulnerable Democracy" (Journal of Democracy, 3, n.4, outubro de 1992, pp. 32-44;
  • e Michael Gold-Biss, "Colombia: Understanding Recent Democratic Transformations in a Violent Polity" (Latin American Research Review, 28, n.1, 1993, pp. 215-34).
  • 14 A despeito de tratá-la e de respondê-la de um ângulo distinto, Giovanni Sartori levanta essa mesma questão em "How Far Can Free Government Travel?" (Journal of Democracy, 6, n.3, julho de 1995, pp. 101-111).
  • 16 Para uma discussão mais detalhada sobre instituições, ver meu artigo "Democracia delegativa?" (Novos Estudos 31, outubro de 1991, pp. 25-40).
  • 17 Ver, especialmente, Ronald L. Jepperson, "Institutions, Institucional Effects, and Institutionalism", in Paul J. DiMaggio e Walter W. Powell (orgs.), Te New Institucionalism in Organizational Analysis. (Chicago, The University of Chicago Press, 1992), pp. 143-63.
  • 22 Linz, Juan. "Transitions to Democracy". Washington Quarterly, 13, n.3, 1990, p. 156.
  • A afirmação sobre "the only game in town" implica algumas ambigüidades que discuto adiante. Outras definições minimalistas, também com base na democracia se tornar "the only game in town", podem ser econtradas em Adam Przeworski, Democracy and the Market. Political and Economic Reforms in Eastern Europe and Latin America ( Cambridge, Cambridge University Press, 1991);
  • e em Giuseppe Di Palma, To Craft Democracies. An Essay on Democratic Transitions (Berkerley e Los Angeles, University of California Press, 1990).
  • 23 Como recentemente afirmaram James March e Johan Olsen, em Democratic Governance, "'democracia' tornou-se um termo de tal legitimidade geral e de tal uso indiscriminado a ponto de se comprometer sua pretensão a um sentido" (New York, The Free Press, 1995, p.1).
  • Como veremos, o termo "consolidação" é ainda mais problemático. Por exemplo, em "Towards Consolidated Democracies: Five Arenas and Three Surmountable Obstacles", paper apresentado na conferência sobre "Consolidating Third Wave Democracies" (Taipé, agosto de 1995),
  • 24 A despeito de a maioria das definições de consolidação democrática girarem em torno da "institucionalização" (seja explicita ou implicitamente, asseverando-se a aceitação e/ou a aprovação de instituições democráticas e de suas normas formais), elas propõem uma grande variedade de outros critérios. Minha própria conta em uma revisão recente da literatura chegou a doze; ver Don Chull Shin, "On the Third Wave of Democratization. A Synthesis and Evaluation of Recent Theory and Research" (World Politics, 47, outubro de 1994, pp. 135-70).
  • 26 Essa visão teleológica é análoga àquela empregada por muitos estudos de modernização nos anos 50 e 60; na época, esta última foi fartamente criticada, ainda que, como agora fica evidente, não de uma forma decisiva. Para uma crítica do conceito de "consolidação democrática" que é semelhante à minha, ver Ben Ross Scheneider, "Democratic Consolidation: Some Broad Comparisons and Sweeping Arguments" (Latin American Research Review, 30, n.2,1995, pp. 215-34),
  • 27 Philippe Schmitter e Terry Karl, The Conceptual Travels of Transitologists and Consolidologists: How Far to the East Should They Attempt to Go? (Slavic Review 63, 1994, pp. 173-85).
  • 28 Gunther, Richard, Diamandouros, P. Nikiforos e Puhle, Hans-Jurgen (orgs.). The Politics of Democratic Consolidation. Southern Europe in Comparative Perspective. Baltimore, The John Hopkins University Press, 1995.
  • 40 Lembremos que várias tipologias foram propostas para as poliarquias formalmente institucionalizadas; ver, especialmente, Arend Lijphart, Democracies. Patterns of Majoritarian and Consensus Government in Twenty Countries (New Haven, Yale University Press, 1984).
  • Que este livro tenha sido extremamente útil para fazer avançar o conhecimento sobre essas poliarquias, só faz aumentar a necessidade de esforos similares voltados para o conjunto enormemente ampliado de poliarquias hoje existente. Uma tentativa interessante nessa direção é a de Carlos Acuña e William Smith, "Future Political-Economic Scenarios for Latina America", in William Smith, Carlos Acuña e Edurardo Gamarra, orgs., Democracy, Markets, and Structural Reform in Latin America (New Brunswick, Transaction Publishers, 1993), pp. 1-28.
  • 41 Adam Przeworski e seus colaboradores descobriram que um maior desenvolvimento econômico e um regime parlamentarista aumentam a taxa média de sobrevivência das poliarquias. Essas descobertas são importantes, mas os autores não testaram os impactos da desigualdade sócio-econômica e do tipo de institucionalização informal que discuto adiante. Até que sejam mais pesquisadas, é impossível avaliar a direção causal e o peso de todas essas variáveis. Suspeito que uma elevada desigualdade sócio-econômica está estreitamente relacionada à institucionalização informal. Mas não sabemos se uma dessas variáveis ou ambas afetam, direta ou indiretamente, as probabilidades de sobrevivência da poliarquia, ou se podem cancelar o efeito do desenvolvimento econômico que Przeworski et. al. descobriram. Ver Adam Przeworski e Fernado Limongi, "Modernization: Theories and Facts", Chicago Center for Democracy, University of Chicago, Working Paper n.4 (novembro de 1994);
  • e Adam Przeworski, Michael Alvarez, José Antonio Cheibub e Fernando Limongi, "Economic and Institutional Conditions of Durability of Democracy", paper não-publicado, New York University (setembro de 1995).
  • 43 Fazem parte do folclore de muitos países as anedotas sobre o estrangeiro ingênuo ou o nativo "trouxa" que, seguindo as normas formais de uma dada situação, se metem em sérias dificuldades. Explorei algumas dessas questões, tendo o Brasil e a Argentina por referência, em "Democracia en la Argetina: micro e macro", Working Paper, n. 2 (Notre Dame, Kellog Institute, 1983);
  • em "Y a mi qué me importa? Notas sobre sociabilidad y política en Argentina y Brasil", Working Paper no. 9 (Notre Dame, Kellogg Institute, 1984);
  • e em "Micro-cenas da privatização do público no Brasil" (Novos Estudos 22, 1988).
  • 44 Para os propósitos do argumento genérico que apresento neste artigo, de agora em diante utilizo, não sem antes hesitar em razão de sua vagueza, o termo "particularismo" para me referir a esses fenômenos. Para uma discussão recente da relevância contemporânea do clientelismo, incluindo em poliarquias, ver Luis Roniger e Ayse Gunes-Ayata, orgs., Democracy, Clientelism, and Civil Society (Boulder: Lynne Rienner Publishers, 1994).
  • Para estudos focalizados na América Latina que têm afinidades com o meu argumento, ver, sobretudo, Roberto DaMatta, A casa e a rua. Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil (São Paulo, Brasiliense, 1985);
  • Jonathan Fox, "The Difficult Transition from Clientelism to Citizenship" (World Politics, 46, 2, janeiro de 1994, pp. 151-184);
  • Francis Hagopian, "The Compromised Transition: The Political Class in the Brazilian Transition", in Scott Mainwaring et. al., orgs., op. cit., pp. 243-293;
  • e Scott Mainwaring, "Brazilian Party Underdevelopment in Comparative Perspective" (Political Science Quarterly, 107, 4, pp. 677-707).
  • 46 Para uma discussão deste tópico, ver meu "Transições, continuidades e alguns paradoxos", in Fábio Wanderley Reis e Guillermo O'Donnell (orgs.). A democracia no Brasil. Dilemas e perspectivas (São Paulo, Vértice, 1988).
  • Uma interessante discussão recente do neopatrimonialismo é a de Jonathan Hartlyn em "Crisis-Ridden Elections (Again) in the Dominican Republic: Neopatrimonialism, Presidentialism, and Weak Electoral Oversight" (Journal of Interamerican and Worl Affairs, 34,4, 1994, pp. 91-144).
  • 47
    47 Como diz Sephen Macedo, "o cinismo não deve nos cegar para o fato de que os próprios volume e intensidade da crítica dirigida à política de interesses particularistas mostram que muitas pessoas acreditam que podemos e devemos fazer melhor do que isso. Fora da academica, as defesas públicas da política particularista muitas vezes se vêem em dificuldades". Liberal Virtues. Citizenship, Virtue, and Community in Liberal Constitutionalism (Oxford, Clarendon Press, 1990), p. 117.
  • 49 Por regime entendo "o conjunto de padrões efetivamente existentes (não necessariamente formalizados legalmente) que estabelecem as modalidades de recrutamento e acesso às funções governamentais e os recursos permissíveis que constituem o fundamento das expectativas de acesso a essas funções", tal como defini em Bureaucratic Authoritarism. Argentina, 1966-1973, in Comparative Perspective (Berkeley, University of California Press, 1988), p. 6.
  • Gerardo Munck, em "Political Regime, Transition, and Consolidation. Conceptual Issues in Regime Analysis" (paper apresentado na reunião de 1995 da Latin American Studies Association, Washington DC),
  • 52 Przeworski, Democracy and the Market, op. cit., p. 26.
  • 53 Apesar de não se valer dessa linguagem, Philippe Schimitter, em uma outra discussão merecidamente influente, expressa um ponto de vista similar da consolidação democrática em termos de uma estreita conformidade, percebida como o único equilíbrio possível, entre normas formais e comportamento. Ver "Dangers and Dilemmas of Democracy" (Journal of Democracy, 5, 2, 1994, pp. 56-74).
  • 57 Nem é preciso dizer que se faz necessária uma análise mais abrangente e dinâmica do que a que faço aqui. Essa análise deve incluir, no mínimo, o papel já mencionado de políticos e de segmentos da sociedade que exigem normas mais universalistas e formas de conduta publicamente orientadas; a estranha coexistência de um particularismo onipresente com estilos altamente tecnocráticos de tomada de decisões de política econômica; as pressões internacionais (sobretudo no que se refere à corrupção e à incerteza que cerca a elaboração legislativa e, em especial, a prestação jurisdicional) para que a conduta de altas autoridades públicas esteja mais de acordo com as normas formais; e a necessidade de levar em conta os vários tipos e os nichos institucionais do clientelismo e do particularismo. Além disso, Philippe Schmitter desenvolveu o instigante argumento de que as poliarquias devem ser desagregadas em diversos "regimes parciais", muitos dos quais se mostrariam muito diferentes em uma comparação entre os casos formalmente institucionalizados e os informalmente institucionalizados. De Schmitter, ver "The Consolidation of Democracy and Representation of Social Groups" (American Behavioral Scientist 35, n. 4 & 5, 1992, pp. 422-49).
  • 64 Análises dessas situações podem ser encontradas em Paulo Sérgio Pinheiro, Túlio Kahn e Malak El-Chichini Popovic, "Pobreza, Violência e direitos humanos" (Novos Estudos 39, julho de 1994) e em Paulo Sé
  • rgio Pinheiro, "The Legacy of Authoritarianism in Democratic Brazil", in Stuart S. Nagel, org., Latin American Development and Public Policy (New York, St. Martins's Press, 1995), pp. 237-253;
  • Martha K. Huggins, org., Vigilantism and the State in Modern Latin America. Essays on Extralegal Violence (New York, Praeger, 1991).
  • 65 Essa afirmação merece uma importante ressalva. Essa seqüência só se aplica, na maioria desses países [os formalmente institucionalizados], à população masculina, como observa Sylvia Walby em "Is Citizenship Gendered?" (Sociology 28, 2, maio de 1994, pp. 379-95).
  • 67 Este é o título dos relatórios das comissões que investigaram as violações de direitos humanos na Argentina e no Brasil. Faço uma discussão mais detalhada do que denomino uma "disposição anti-autoritária generalizada" em "Transições, continuidades e paradoxos". op. cit.; sobre isso, ver também Nancy Bermeo, "Democracy and the Lessons of Dictatorship" (Comparative Democracy 24, abril de 1992, pp. 273-91).
  • *
    "Another Institutionalization: Latin America and Elsewhere". Versão revisada do texto apresentado na Conferência "Consolidating Third Wave Democracies: Trends and Challenges", organizada pelo National Policy Research Institute e pelo International Forum for Democratic Studies, Taipé, 26-30 de agosto de 1995, Agradeço a Gabriela Ippolito O'Donnell, Scott Mainwaring, Sebastián Mazzuca, Gerardo Munck e a Adam Przeworski pelos comentários que fizeram a uma versão preliminar deste artigo. Tradução de Álvaro de Vita.
  • 1
    Refletindo a ausência de critérios bem estabelecidos na literatura, David Collier e Steven Levistky inventariaram e discutiram de forma instigante os mais de cem qualificativos vinculados ao temo "democracia", muitos dos quais usados com o propósito de mostrar que os casos em questão de alguma forma não dispõem de todos os atributos da democracia tal como cada autor a define. Ver de Collier e Levistky, "Democracy 'With Adjectives': Finding Conceptual Order in Recent Comparative Research" (Berkeley, Universidade da California, Departamento de Ciência Política,
    paper não-publicado).
  • 2
    Mais precisamente, para comparar os grupos de casos, ou subtipos, dentro desse conjunto.
  • 3
    Ver os anais de uma conferência que ocorreu recentemente na Universidade de Notre Dame como parte do "Projeto América Latina 2000" do Hellen Kellog Institute for International Studies: Catherine Conaghan, "Democracy that Matters: The Search for Authencity, Legitimacy, and Civic Competence in the Andes" (Kellog Institute, Working Paper no. 1, 1994); Scott Mainwaring, "Democracy in Brazil and the Southern Cone: Achievements and Problems", (Working Paper no.2, 1994); Laurence Whitehead, "The Peculiarities of 'Transition'
    a la Mexicana", (Working Paper no.4, 1994); e Terry L. Karl, "Central America in the Twenty-First Century: The Prospects for a Democratic Region" (Working Paper no.5, 1994). Estes textos podem ser requisitados ao Kellog Institute, Notre Dame, IN 46566. Para uma excelente revisão geral do assunto ver Larry Diamond, "Democracy in Latin America: Degrees, Ilusions, and Directions for Consolidation",
    in Tom Farer (org.),
    Beyond Sovereignty: Collectively Defending Democracy in the Americas (Baltimore, The John Hopkins University Press, 1995). Ver também Scott Mainwaring, Guillermo O'Donnell e J. Samuel Valenzuela (orgs.),
    Issues in Democratic Consolidation: The New South America Democracies in Comparative Perspective (Notre Dame, University of Notre Dame Press, 1992).
  • 4
    Não consegui encontrar termos apropriados para aquilo a que a literatura se refere como as democracias altamente institucionalizadas
    versus as não-institucionalizadas (ou fracamente institucionalizadas), ou como as democracias consolidadas
    versus as não-consolidadas, pertencendo as poliarquias antigas ao primeiro termo e a maioria das novas ao segundo termo desses pares. Por razões que ficarão claras adiante, optei por rotular o primeiro grupo de democracias "formalmente institucionalizadas" e o segundo de democracias "informalmente institucionalizadas"
  • 5
    Tais como formulados nas obras clássicas de Robert Dahl. A transcrição que vem a seguir foi retirada de
    Democracy and its Critics (New Haven: Yale University Press, 1989), p. 221. Neste livro, o leitor encontrará uma discussão mais detalhada desses atributos.
  • 6
    Este e os demais acréscimos que vem a seguir ao conceito de poliarquia mostram que é preciso explicitar algumas das suposições ou das omissões das teorias da democracia, se é que se quer capacitá-las a viajar para fora do quadrante noroeste do globo. Fujimori e Yeltsin podem ter sido eleitos em eleições limpas, mas eles aboliram a poliarquia no momento em que fecharam arbitrariamente o Congresso e demitiram a Suprema Corte. Uma outra omissão do critério de Dahl relativo à escolha eletiva das autoridades governamentais, menos importante para os meus propósitos, é a ressalva que é obviamente necessária com respeito àquelas importantes autoridades que na maioria das poliarquias não são eleitas: os juizes da Suprema Corte e dos demais tribunais.
  • 7
    Este acréscimo, que depois veio a ser adotado por inúmeros autores, que eu saiba foi primeiramente proposto por J. Samuel Valenzuela, "Democratic Consolidation in Post-Transitional Settings: Notion, Process, and Facilitating Conditions",
    in Scott Mainwaring
    .et. al, op. cit., pp. 57-104, e por Philippe Schmitter e Terry Lyinn Karl, "What Democracy Is ... and Is Not"
    (Journal of Democracy, 2, n.3, Summer 1991, pp. 75-88).
  • 8
    Sobre esses países ver Terry L. Karl, "The Hybrid Regimes of Central America"
    (Journal of Democracy, 6, n.3, julho de 1995, pp. 75-88) e "Imposing Consent?" Electoralism vs. Democratization in El Salvador",
    in Paul Drake e Eduardo Silva (orgs.),
    Elections and Democratization in Latin America (San Diego, Center for Iberian and Latin American Studies, 1986), pp. 9-36.
  • 9
    Sobre este país, ver a discussão dos "poderes tutelares" e das "prerrogativas exclusivas" em J. Samuel Valenzuela,
    op. cit., e dos "enclaves autoritários" em Manuel Antonio Garretón, "La posibilidad democrática in Chile" (Santiago do Chile, FLACSO, 1989) e
    Hacia una nueva era polí tica. Estudio sobre las democratizaciones (México, Fondo de Cultura Económica, 1995).
  • 10
    Ver
    Lasa Forum, 26, n.2, 1995, pp. 9-20, "Articles on the Peruvian 1995 Election", informes de Catherine Conaghan, Bruce Kay e David Scott Palmer.
  • 11
    Ver, sobretudo, Juan Linz e Alfred Stepan,
    Problems of Democratic Consolidation: Southern Europe, South America, and Postcommunist Europe (Baltimore, The John Hopkins University Press, no prelo); e Philippe Schmitter, "Dangers and Dilemmas of Democracy"
    (Journal of Democracy, 5, n. 2, abril de 1994, pp. 57-74).
  • 12
    Mas lembremos que no Uruguai e no Chile existem pesadas restrições à aplicação da lei aos quadros das forças armadas. Esta é uma importante lacuna na universalização do império da lei que, na América Latina, somente a Costa Rica conseguiu superar.
  • 13
    Para análises recentes da crise política destes dois países, ver Catherine Conaghan,
    op. cit.; Michael Coppedge, "Venezuela's Vulnerable Democracy"
    (Journal of Democracy, 3, n.4, outubro de 1992, pp. 32-44; e Michael Gold-Biss, "Colombia: Understanding Recent Democratic Transformations in a Violent Polity"
    (Latin American Research Review, 28, n.1, 1993, pp. 215-34).
  • 14
    A despeito de tratá-la e de respondê-la de um ângulo distinto, Giovanni Sartori levanta essa mesma questão em "How Far Can Free Government Travel?"
    (Journal of Democracy, 6, n.3, julho de 1995, pp. 101-111).
  • 15
    Para uma relação útil dessas variações institucionais, ver Schmitter e Karl,
    op. cit..
  • 16
    Para uma discussão mais detalhada sobre instituições, ver meu artigo "Democracia delegativa?"
    (Novos Estudos 31, outubro de 1991, pp. 25-40).
  • 17
    Ver, especialmente, Ronald L. Jepperson, "Institutions, Institucional Effects, and Institutionalism",
    in Paul J. DiMaggio e Walter W. Powell (orgs.),
    Te New Institucionalism in Organizational Analysis. (Chicago, The University of Chicago Press, 1992), pp. 143-63.
  • 18
    Admito que o termo "razoável" é ambíguo. Em parte alguma essas liberdades são inteiramente ilimitadas, em vista, não fosse por nenhuma outra razão, das conseqüências políticas da desigualdade social. Por "razoável" entendo que não há proibições
    de jure a essas liberdades, nem esforços sistemáticos, que costumam ser bem-sucedidos, da parte do governo ou de atores privados, de anulá-las.
  • 19
    De outra parte, é possível tornar as eleições mais competitivas por meio, digamos, de medidas que diminuam as vantagens dos que estão no governo ou dos partidos economicamente mais poderosos. É claro que questões como essas são importantes. Mas o ponto que quero enfatizar no momento é o de que essas diferenças se verificam entre os países que já se qualificam como poliarquias.
  • 20
    A ressalva que está implícita no termo "algumas" será esclarecida adiante.
  • 21
    Não é preciso que todos esses atores sejam "democratas" em um sentido subjetivo. Basta que se tenham convencido de que "fazer o jogo das eleições" constitui a melhor opção estratégica que a eles encontra-se disponível, e que os autoritários convictos encontrem-se isolados politicamente.
  • 22
    Linz, Juan. "Transitions to Democracy".
    Washington Quarterly, 13, n.3, 1990, p. 156. A afirmação sobre "the only game in town" implica algumas ambigüidades que discuto adiante. Outras definições minimalistas, também com base na democracia se tornar "the only game in town", podem ser econtradas em Adam Przeworski,
    Democracy and the Market. Political and Economic Reforms in Eastern Europe and Latin America ( Cambridge, Cambridge University Press, 1991); e em Giuseppe Di Palma,
    To Craft Democracies. An Essay on Democratic Transitions (Berkerley e Los Angeles, University of California Press, 1990).
  • 23
    Como recentemente afirmaram James March e Johan Olsen, em
    Democratic Governance, "'democracia' tornou-se um termo de tal legitimidade geral e de tal uso indiscriminado a ponto de se comprometer sua pretensão a um sentido" (New York, The Free Press, 1995, p.1). Como veremos, o termo "consolidação" é ainda mais problemático. Por exemplo, em "Towards Consolidated Democracies: Five Arenas and Three Surmountable Obstacles",
    paper apresentado na conferência sobre "Consolidating Third Wave Democracies" (Taipé, agosto de 1995), Juan Linz e Alfred Stepan propuseram uma definição minimalista de consolidação democrática que discuto adiante. De momento, observo que esses autores sustentam que as democracias consolidadas não estão imunes a sofrer um colapso. Esta ressalva seria obviamente supérflua não fossem as conotações indesejáveis do termo "consolidação".
  • 24
    A despeito de a maioria das definições de consolidação democrática girarem em torno da "institucionalização" (seja explicita ou implicitamente, asseverando-se a aceitação e/ou a aprovação de instituições democráticas e de suas normas formais), elas propõem uma grande variedade de outros critérios. Minha própria conta em uma revisão recente da literatura chegou a doze; ver Don Chull Shin, "On the Third Wave of Democratization. A Synthesis and Evaluation of Recent Theory and Research"
    (World Politics, 47, outubro de 1994, pp. 135-70). Alguns desses critérios são bastante exigentes, tais como a realização de um "consenso substancial e de princípio" com respeito à democracia entre os líderes, ou de um "consenso das elites sobre os procedimentos junto com uma ampla participação de massa nas eleições e em outros processos institucionais", ou a exigência de que a democracia se torne "ampla e profundamente legítima", ou a identificação de uma situação em que "a aceitação de um dado conjunto de normas constitucionais torna-se crescentemente generalizada, valorizada e automatizada", ou em que uma cultura política democrática emerge (por falta de espaço, remeto o leitor a Shin,
    op. cit., p. 144 e seguintes, e às fontes que lá são citadas).
  • 25
    É mais do que tempo para a auto-crítica. Usei o termo [democracia] "bloqueada" junto com Scott Mainwaring e Samuel Valenzuela na introdução a nosso
    op. cit., p.l 1. Além disso, no capítulo que escrevi para este livro (pp. 17-56), proponho uma definição não-minimalista de consolidação democrática e o conceito de uma "segunda transição", de um governo democraticamente eleito para um regime democrático consolidado. Esses conceitos compartilham da teleologia que aqui estou criticando.
  • 26
    Essa visão teleológica é análoga àquela empregada por muitos estudos de modernização nos anos 50 e 60; na época, esta última foi fartamente criticada, ainda que, como agora fica evidente, não de uma forma decisiva. Para uma crítica do conceito de "consolidação democrática" que é semelhante à minha, ver Ben Ross Scheneider, "Democratic Consolidation: Some Broad Comparisons and Sweeping Arguments"
    (Latin American Research Review, 30, n.2,1995, pp. 215-34), que conclui fazendo uma advertência contra "a falácia do universalismo excessivo", p. 231.
  • 27
    Philippe Schmitter e Terry Karl, The Conceptual Travels of Transitologists and Consolidologists: How Far to the East Should They Attempt to Go?
    (Slavic Review 63, 1994, pp. 173-85).
  • 28
    Gunther, Richard, Diamandouros, P. Nikiforos e Puhle, Hans-Jurgen (orgs.).
    The Politics of Democratic Consolidation. Southern Europe in Comparative Perspective. Baltimore, The John Hopkins University Press, 1995.
  • 29
    Ibid., p. xxix.
  • 30
    Ibid., p. xvi (ênfase minha).
  • 31
    Ibid., p. 9 (ênfase minha).
  • 32
    Ibid., p. xiv, xv e xvii (ênfase minha).
  • 33
    Ibid., p. 19 (ênfase minha).
  • 34
    Ibid., p. 389 (ênfase minha).
  • 35
    Ibid., p. 390 (ênfase minha).
  • 36
    Ibid., p.413.
  • 37
    Ibid., p. xiii (ênfase minha).
  • 38
    1977, 1981 (
    ibid., p. 29) e 1974 (
    ibid., capítulo de Juan Linz e Alfred Stepan, "Democratic Transition and Consolidation in Southern Europe, with Reflections on Latin American and Eastern Europe", p. 110).
  • 39
    Ibid.,p. 22 e p. 412.
  • 40
    Lembremos que várias tipologias foram propostas para as poliarquias formalmente institucionalizadas; ver, especialmente, Arend Lijphart,
    Democracies. Patterns of Majoritarian and Consensus Government in Twenty Countries (New Haven, Yale University Press, 1984). Que este livro tenha sido extremamente útil para fazer avançar o conhecimento sobre essas poliarquias, só faz aumentar a necessidade de esforos similares voltados para o conjunto enormemente ampliado de poliarquias hoje existente. Uma tentativa interessante nessa direção é a de Carlos Acuña e William Smith, "Future Political-Economic Scenarios for Latina America",
    in William Smith, Carlos Acuña e Edurardo Gamarra, orgs.,
    Democracy, Markets, and Structural Reform in Latin America (New Brunswick, Transaction Publishers, 1993), pp. 1-28.
  • 41
    Adam Przeworski e seus colaboradores descobriram que um maior desenvolvimento econômico e um regime parlamentarista aumentam a taxa média de sobrevivência das poliarquias. Essas descobertas são importantes, mas os autores não testaram os impactos da desigualdade sócio-econômica e do tipo de institucionalização informal que discuto adiante. Até que sejam mais pesquisadas, é impossível avaliar a direção causal e o peso de todas essas variáveis. Suspeito que uma elevada desigualdade sócio-econômica está estreitamente relacionada à institucionalização informal. Mas não sabemos se uma dessas variáveis ou ambas afetam, direta ou indiretamente, as probabilidades de sobrevivência da poliarquia, ou se podem cancelar o efeito do desenvolvimento econômico que Przeworski
    et. al. descobriram. Ver Adam Przeworski e Fernado Limongi, "Modernization: Theories and Facts", Chicago Center for Democracy, University of Chicago, Working Paper n.4 (novembro de 1994); e Adam Przeworski, Michael Alvarez, José Antonio Cheibub e Fernando Limongi, "Economic and Institutional Conditions of Durability of Democracy", paper não-publicado, New York University (setembro de 1995).
  • 42
    Um tópico do qual não me ocupo no momento é em que medida as normas formais encontram-se institucionalizadas em diferentes poliarquias antigas, e, dentro de cada uma delas, em âmbitos distintos de problemas. As variações parecem ser bastante importantes nessas duas dimensões.
  • 43
    Fazem parte do folclore de muitos países as anedotas sobre o estrangeiro ingênuo ou o nativo "trouxa" que, seguindo as normas formais de uma dada situação, se metem em sérias dificuldades. Explorei algumas dessas questões, tendo o Brasil e a Argentina por referência, em "Democracia en la Argetina: micro e macro", Working Paper, n. 2 (Notre Dame, Kellog Institute, 1983); em "Y a mi qué me importa? Notas sobre sociabilidad y política en Argentina y Brasil", Working Paper no. 9 (Notre Dame, Kellogg Institute, 1984); e em "Micro-cenas da privatização do público no Brasil"
    (Novos Estudos 22, 1988).
  • 44
    Para os propósitos do argumento genérico que apresento neste artigo, de agora em diante utilizo, não sem antes hesitar em razão de sua vagueza, o termo "particularismo" para me referir a esses fenômenos. Para uma discussão recente da relevância contemporânea do clientelismo, incluindo em poliarquias, ver Luis Roniger e Ayse Gunes-Ayata, orgs.,
    Democracy, Clientelism, and Civil Society (Boulder: Lynne Rienner Publishers, 1994). Para estudos focalizados na América Latina que têm afinidades com o meu argumento, ver, sobretudo, Roberto DaMatta,
    A casa e a rua. Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil (São Paulo, Brasiliense, 1985); Jonathan Fox, "The Difficult Transition from Clientelism to Citizenship"
    (World Politics, 46, 2, janeiro de 1994, pp. 151-184); Francis Hagopian, "The Compromised Transition: The Political Class in the Brazilian Transition",
    in Scott Mainwaring
    et. al., orgs.,
    op. cit., pp. 243-293; e Scott Mainwaring, "Brazilian Party Underdevelopment in Comparative Perspective"
    (Political Science Quarterly, 107, 4, pp. 677-707).
  • 45
    Talvez seja preciso insistir que as poliarquias formalmente institucionalizadas não estão isentas de relações particularistas. Entretanto, estou assinalando problemas de grau que parecem suficientemente grandes para merecerem um reconhecimento conceituai. Uma evidência importante dessas diferenças é a extraordinária leniência com que, nas poliarquias informalmente institucionalizadas, os líderes políticos, a maior parte da opinião pública e mesmo os tribunais lidam com as situações que em outras poliarquias seriam consideradas como envolvendo graves conflitos de interesses.
  • 46
    Para uma discussão deste tópico, ver meu "Transições, continuidades e alguns paradoxos",
    in Fábio Wanderley Reis e Guillermo O'Donnell (orgs.).
    A democracia no Brasil. Dilemas e perspectivas (São Paulo, Vértice, 1988). Uma interessante discussão recente do neopatrimonialismo é a de Jonathan Hartlyn em "Crisis-Ridden Elections (Again) in the Dominican Republic: Neopatrimonialism, Presidentialism, and Weak Electoral Oversight"
    (Journal of Interamerican and Worl Affairs, 34,4, 1994, pp. 91-144).
  • 47
    Como diz Sephen Macedo, "o cinismo não deve nos cegar para o fato de que os próprios volume e intensidade da crítica dirigida à política de interesses particularistas mostram que muitas pessoas acreditam que podemos e devemos fazer melhor do que isso. Fora da academica, as defesas públicas da política particularista muitas vezes se vêem em dificuldades".
    Liberal Virtues. Citizenship, Virtue, and Community in Liberal Constitutionalism (Oxford, Clarendon Press, 1990), p. 117.
  • 48
    Há uma rica historia, nesses países, de políticos, líderes sociais e ONGs que reivindicam o que se deve entender, afinal, como a efetividade do império da lei tal como proposto pelo complexo institucional da poliarquia. Aqui não é o lugar de reconstituir essa história e seus resultados indefinidos, senão desencorajadores.
  • 49
    Por regime entendo "o conjunto de padrões efetivamente existentes (não necessariamente formalizados legalmente) que estabelecem as modalidades de recrutamento e acesso às funções governamentais e os recursos permissíveis que constituem o fundamento das expectativas de acesso a essas funções", tal como defini em
    Bureaucratic Authoritarism. Argentina, 1966-1973, in Comparative Perspective (Berkeley, University of California Press, 1988), p. 6. Gerardo Munck, em "Political Regime, Transition, and Consolidation. Conceptual Issues in Regime Analysis" (paper apresentado na reunião de 1995 da Latin American Studies Association, Washington DC), oferece uma análise interessante do conceito de regime e de seu uso em estudos comparativos.
  • 50
    Isso está explicito na definição não-minimalista, tridimensional, que Juan Linz e Alfred Stepan propõem em seu texto
    op. cit. Essa definição inclui uma "dimensão constitucional" que traduz um "espírito do constitucionalismo" que "exige uma clara hierarquia de leis, interpretadas por um sistema judicial independente e que encontram apoio em uma vigorosa cultura legal na sociedade civil" (p. 5). De passagem, observo que este é um critério muito exigente; se literalmente interpretado, ele levaria à exclusão de países tais como Itália, índia e Japão do grupo de democracias consolidadas.
  • 51
    Ver, entre outras que poderiam ser citadas (muitas das quais transcritas em Shin e em Gunther, Diamandouros e Puhle,
    op. cit.), a definição de consolidação democrática que Linz e Przeworski propõem: "a consolidação...diz respeito à obtenção de um substancial apoio em termos de atitudes para as novas instituições democráticas e para as normas que elas estabelecem, e à obtenção de uma substancial conformidade comportamental a essas instituições e normas" (P. 3; uma definição mais extensa, mas equivalente a esta, é proposta na p. 7).
  • 52
    Przeworski,
    Democracy and the Market, op. cit., p. 26.
  • 53
    Apesar de não se valer dessa linguagem, Philippe Schimitter, em uma outra discussão merecidamente influente, expressa um ponto de vista similar da consolidação democrática em termos de uma estreita conformidade, percebida como o único equilíbrio possível, entre normas formais e comportamento. Ver "Dangers and Dilemmas of Democracy"
    (Journal of Democracy, 5, 2, 1994, pp. 56-74). Schmitter começa afirmando que "na América do Sul, Europa do Leste e Âsia, o espectro que ronda a transição é ... a não-consolidação ... Esses países estão 'condenados' a permanecer democráticos quase que pela ausência de uma outra opção", e mesmo reconhecendo que os atributos da poliarquia podem se conservar nesses países, "esses padrões não chegam a se cristalizar" (pp. 60-1). Essa é uma outra maneira de dizer que praticamente em toda parte, à exceção do quadrante noroeste do mundo, a democracia existe "quase que por ausência de opção" (isto é, ela é definida negativamente) e não chega a se "cristalizar" (isto é, não é formalmente institucionalizada).
  • 54
    Uma exceção é Gunther, Diamandouros e Puhle,
    op. cit., em que a Itália é um dos quatro casos estudados. Mas a forma como os autores lidam com os recentes eventos na Itália não é menos ilustrativa do pântano conceituai que resulta da idéia de consolidação democrática. Seguindo o conceito de Schmitter de regimes parciais (ver
    nota 57 57 Nem é preciso dizer que se faz necessária uma análise mais abrangente e dinâmica do que a que faço aqui. Essa análise deve incluir, no mínimo, o papel já mencionado de políticos e de segmentos da sociedade que exigem normas mais universalistas e formas de conduta publicamente orientadas; a estranha coexistência de um particularismo onipresente com estilos altamente tecnocráticos de tomada de decisões de política econômica; as pressões internacionais (sobretudo no que se refere à corrupção e à incerteza que cerca a elaboração legislativa e, em especial, a prestação jurisdicional) para que a conduta de altas autoridades públicas esteja mais de acordo com as normas formais; e a necessidade de levar em conta os vários tipos e os nichos institucionais do clientelismo e do particularismo. Além disso, Philippe Schmitter desenvolveu o instigante argumento de que as poliarquias devem ser desagregadas em diversos "regimes parciais", muitos dos quais se mostrariam muito diferentes em uma comparação entre os casos formalmente institucionalizados e os informalmente institucionalizados. De Schmitter, ver "The Consolidation of Democracy and Representation of Social Groups" (American Behavioral Scientist 35, n. 4 & 5, 1992, pp. 422-49). ), os autores afirmam que na Itália "... inúmeros regimes parciais importantes ... foram colocados em questão, tornaram-se não-consolidados e entraram em um significativo processo de reestruturação que teve início em 1991" (p. 19). Esses regimes parciais incluem nada menos do que "o sistema eleitoral, o sistema partidário e a própria estrutura do Estado"
    (ibid.), assim como "o caráter fundamental das relações executivo-legislativo" (p. 412) — por fim, praticamente todos os aspectos importantes do sistema político e mesmo do Estado italianos tornaram-se "não-consolidados". Se os autores querem dizer que, a despeito de passar por uma crise severa, a poliarquia italiana provavelmente sobreviverá, então estou de acordo.
  • 55
    Op. cit., p. 13 e seguintes.
  • 56
    Ibid., pp. 12-13.
  • 57
    Nem é preciso dizer que se faz necessária uma análise mais abrangente e dinâmica do que a que faço aqui. Essa análise deve incluir, no mínimo, o papel já mencionado de políticos e de segmentos da sociedade que exigem normas mais universalistas e formas de conduta publicamente orientadas; a estranha coexistência de um particularismo onipresente com estilos altamente tecnocráticos de tomada de decisões de política econômica; as pressões internacionais (sobretudo no que se refere à corrupção e à incerteza que cerca a elaboração legislativa e, em especial, a prestação jurisdicional) para que a conduta de altas autoridades públicas esteja mais de acordo com as normas formais; e a necessidade de levar em conta os vários tipos e os nichos institucionais do clientelismo e do particularismo. Além disso, Philippe Schmitter desenvolveu o instigante argumento de que as poliarquias devem ser desagregadas em diversos "regimes parciais", muitos dos quais se mostrariam muito diferentes em uma comparação entre os casos formalmente institucionalizados e os informalmente institucionalizados. De Schmitter, ver "The Consolidation of Democracy and Representation of Social Groups"
    (American Behavioral Scientist 35, n. 4 & 5, 1992, pp. 422-49).
  • 58
    E que funciona, a julgar pela elevada rotatividade de partidos no governo em muitas dessas poliarquias.
  • 59
    Em "Democracia delegativa?",
    op. cit., faço uma discussão mais detalhada deste tópico.
  • 60
    Essa não é uma relação puramente bilateral entre uma agência de controle e uma agência controlada; é uma característica geral do sistema legal tal como aplicado ao funcionamento do Estado, do regime e do governo. Este é um outro ponto que pretendo elaborar em trabalhos futuros.
  • 61
    Ver meu "Democracia delegativa?",
    op. cit., para uma discussão mais extensa dessa questão.
  • 62
    O leitor certamente percebeu que estou me referindo a países que têm um regime presidencialista e que, conseqüentemente, estou passando por cima dos argumentos, primeiramente formulados por Juan Linz e depois seguidos por inúmeros
    scholars, sobre as vantagens do parlamentarismo sobre os regimes presidencialistas que próprios da América Latina. Apesar desses argumentos me convencerem em um nível abstrato, sou cético, em razão das próprias características que estou descrevendo, quanto às conseqüências práticas de se tentar implantar o parlamentarismo nesses países.
  • 63
    Como se viu, por exemplo, na condenação, pela maioria das grandes potências, dos golpes perpetrados pelos presidentes Yeltsin e Fujimori, ambos democraticamente eleitos. É claro que havia razões importantes de
    realpolitik por trás dessa condenação, sobretudo no caso da Rússia. Mas isso só enfatiza o quão decisivo é esse critério puramente eleitoral para certificar,
    vis a vis atores poderosos no cenário internacional, não somente a existência mas também a continuidade da poliarquia, mesmo quando outros de seus atributos tenham sido descaradamente suprimidos.
  • 64
    Análises dessas situações podem ser encontradas em Paulo Sérgio Pinheiro, Túlio Kahn e Malak El-Chichini Popovic, "Pobreza, Violência e direitos humanos"
    (Novos Estudos 39, julho de 1994) e em Paulo Sé rgio Pinheiro, "The Legacy of Authoritarianism in Democratic Brazil",
    in Stuart S. Nagel, org.,
    Latin American Development and Public Policy (New York, St. Martins's Press, 1995), pp. 237-253; Martha K. Huggins, org.,
    Vigilantism and the State in Modern Latin America. Essays on Extralegal Violence (New York, Praeger, 1991). Ver também a análise preocupante de Diamond, com base em dados da Fredom House, em seu
    op. cit.: nos últimos anos, o número de países latino-americanos que sofreram um retrocesso nos índices de liberdade (elaborados por Diamond com base nesses dados) superou o número dos que tiveram melhoras nesses mesmos índices.
  • 65
    Essa afirmação merece uma importante ressalva. Essa seqüência só se aplica, na maioria desses países [os formalmente institucionalizados], à população masculina, como observa Sylvia Walby em "Is Citizenship Gendered?"
    (Sociology 28, 2, maio de 1994, pp. 379-95).
  • 66
    Há um vasto tema adjacente que não discutirei aqui: as inter-relações entre esses problemas e a pobreza em larga escala, e, mais do que isso, entre eles e as profundas desigualdades de vários tipos.
  • 67
    Este é o título dos relatórios das comissões que investigaram as violações de direitos humanos na Argentina e no Brasil. Faço uma discussão mais detalhada do que denomino uma "disposição anti-autoritária generalizada" em "Transições, continuidades e paradoxos".
    op. cit.; sobre isso, ver também Nancy Bermeo, "Democracy and the Lessons of Dictatorship"
    (Comparative Democracy 24, abril de 1992, pp. 273-91).
  • 68
    Alimentando as esperanças geradas pela transição, e dando um enorme impulso às mobilizações que a levaram adiante, havia ainda a percepção de que todos os tipos de coisas boas viriam junto com a democracia — nos países pós-comunistas, uma transição rápida e quase indolor para uma "economia de mercado", e, na América Latina, uma melhoria igualmente rápida e quase indolor no padrão de vida da maioria da população. O fato de que essas expectativas exageradas estão por trás do desencanto, e mesmo da nostalgia pelo autoritarismo, que hoje se observam em muitas das novas democracias, isso constitui uma parte do quadro todo que é importante, mas que não é relevante para o argumento que aqui estou apresentando.
  • 69
    Como sintomáticas ilustrações dos resíduos da linguagem e das esperanças da transição, assim como das influências mutuas entre os discursos político e acadêmico, em diversas ocasiões os governos dos países que conheço melhor (Argentina, Brasil, Chile e Uruguai) anunciaram triunfalmente que suas democracias haviam "consolidado-se".
  • 70
    É óbvio que o particularismo e os fenômenos que o acompanham não são ignorados por pesquisadores de campo competentes. Os textos citados na nota 44 estão entre os que apresentam análises cuidadosas e sofisticadas desses fenômenos. Mas, uma vez mais atestando a força paradigmática das concepções prevalecentes sobre a democratização, as ricas informações e de descobertas que emergem desses estudos de caso simplesmente nó são processadas conceitualmente como parte da problemática da democratização, ou são entendidas como "obstáculos" colocados no caminho de sua suposta direção de mudança.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Dez 2010
    • Data do Fascículo
      1996
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