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CARTAS

"Aos amigos do Cedec

Quinta-feira, 19 de setembro, 7:15 horas. Sob o chuveiro muitos pensamos que estávamos tendo um enjôo. Com a cara e o corpo cheios de sabão, os gritos de Alejandra me fizeram ver que não se tratava de um enjôo. A terra estava tremendo.

À tarde, o centro da cidade do México, o México antigo, o lugar do grande Tenochtitlan, era a imagem viva da desolação e do horror. A energia elétrica, a água, os telefones estavam cortados em quase toda a cidade, desde o momento do sismo. Também não havia transporte coletivo. A fumaça, o pó, o ruído da sirene e o silêncio de transeuntes que caminhavam como sonâmbulos, desenhavam um México que eu não conhecia.

Na sexta-feira, depois que o presidente de la Madrid declarou que os mexicanos se arranjariam sozinhos — o que provocou um atraso de dois dias para receber ajuda internacional nos trabalhos de resgate — os cidadãos começaram a ganhar as ruas. De todos os poros da sociedade surgiram formas de organização, de solidariedade e ajuda. As brigadas de solidariedade se multiplicaram como uma epidemia. Cada cidadão na rua sentia uma responsabilidade. Se sabia com certeza dos mil soterrados e se buscava vida dentro dos escombros. Rodeados de morte, nós recuperávamos a cidadania. Muitos mexicanos que não acorremos às urnas para votar, que nos damos ao luxo de rechaçar essa forma de cidadania, nos encontramos na rua rebaixando não só as autoridades locais de cada bairro mas também o exército que pretendeu controlar a situação e "dirigir" os trabalhos de resgate. Qualquer civil, por sua especialidade e por sua entrega, chegou a ter mais autoridade que um tenente ou um sargento.

Todos ficamos loucos, todos estivemos e ainda estamos loucos e afetados. Todos os erros cometidos, como duplicidade em muitos lugares, desacertos da informação transmitida pelo rádio, foram parte dessa loucura e de não saber como e o que fazer numa situação de emergência. Sem dúvida, se fez muito sem autoridade formal e sem credenciais governamentais.

Há dias, me avisaram da chegada de um telex do Brasil. Os queridos amigos do CEDEC perguntando por nós. Manolo, Pepe, Juan Enrique, Severo, Carlos, eu. Nossas famílias e amigos e nós mesmos estamos bem. Estamos vivos. Talvez muitos permaneçam sem mutações. Eu sinto que a morte me tocou, que algo em mim mudou e que, hoje, dizer que por acaso estou viva, que amo profundamente a vida, é muito mais que uma frase feita e um lugar comum." Angélica Cuêllar, México.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1985
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