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Políticas penitenciárias, um fracasso?

PESQUISA

Políticas penitenciárias, um fracasso?

Rosa Maria FischerI; Sérgio França Adorno de AbreuII

IProfessora-doutora do Faculdade de Economia e Administração da USP e pesquisadora do CEDEC

IIProfessor-doutor do Departamento de Ciências Sociais da USP e pesquisador do CEDEC

O panorama atual do sistema penitenciário do Estado de São Paulo não é, como se sabe, tranqüilizador. Reconhecidas como o espetáculo privilegiado de toda sorte de violências, as prisões paulistas vêm sendo alvo de incontáveis críticas, freqüentemente ambíguas e contraditórias, procedentes de segmentos diversos da sociedade. Por um lado, há quem veja nas condições sociais dominantes nos estabelecimentos penitenciários um desrespeito permanente ao direito de qualquer ser humano à vida, independente de raça, classe, cultura ou situação jurídica. Para quem assim vislumbre a questão penitenciária, o acúmulo de sentenciados em uma única cela; a ociosidade como contrapartida ao pequeno número de condenados distribuídos para o trabalho; a precariedade dos serviços institucionais prestados à massa carcerária; a deficitária assistência judiciária; a agressividade perpetrada por agentes penitenciários que recorrem a abusos físicos como forma de manutenção da disciplina; a incompetência técnica aliada a um suposto descompromisso político manifestos por determinados estratos funcionais renitentes a toda e qualquer iniciativa no sentido de promover mudanças no perfil normativo desse sistema — tudo isto somente pode convergir para o mesmo ponto: o recrudescimento incontrolável da violência. Assim, submetidos a tais condições, congressos penitenciários reagem às oportunidades adversas que lhes são propiciadas pelo mundo da liberdade—locus do contrato, da ordem e da desigualdade social — segundo a lógica que efetivamente lhes orienta o comportamento: a ofensa criminal. Sob essa perspectiva, não há outra alternativa senão reincidir. Por outro lado, há quem, embora reconheça as condições violentas que vicejam nas prisões, admita que o panorama, sobretudo o atual, dos estabelecimentos penitenciários se explique em virtude de um afrouxamento dos controles sociais institucionais. Para quem assim compreenda a questão penitenciária, a vacilação daqueles que se encontram nos postos diretivos em adotar posturas resolutas, enérgicas, inflexíveis, dotadas de sentido unívoco, a par da quebra de certos padrões de hierarquia e de sociabilidade, entendidos como indispensáveis à perpetuação da segurança interna do sistema, respondem pelos desmandos que vêm se verificando com relativa intensidade e regularidade.

A imprensa periódica paulista tem noticiado com freqüência o suceder de crises no sistema penitenciário. Destas, algumas parecem ter características mais graves porque marcadas pela ocorrência de rebeliões e motins de sentenciados, com conseqüências deploráveis. Outras, aparentemente mais amenas e que nem sempre chegam ao conhecimento do público externo, implicam principalmente mudanças na correlação de forças entre grupos internos que disputam influência sobre o poder institucional, seja no quadro funcional seja entre a população carcerária. É sob essa perspectiva que a imprensa periódica tem mobilizado a opinião pública, quer para denunciar as condições reinantes nas prisões e reclamar do descaso das autoridades encarregadas de implementar políticas penitenciárias, quer para adotar uma posição de ceticismo quanto às propostas apresentadas visando a superação da situação social problemática.

De qualquer forma, esse quadro parece apontar para a existência de uma correlação entre o processo de transição democrática que incide sobre esta sociedade, pelo menos nos últimos anos, e a insistência com que a questão penitenciária vem sendo veiculada pelos principais periódicos que circulam nessa cidade. Se essa correlação é positiva, nada obsta que se acredite em um pressuposto: a construção democrática não pode desconhecer o imperativo político que requer atenção especial para as instituições tradicionalmente encarregadas da preservação da ordem pública; não há como passar ao largo do complexo polícia-justiça-prisão.

Aliás, parecia ser este o propósito que animou a política penitenciária no Estado de São Paulo, no início da gestão Montoro. Implementada pela Secretaria de Estado da Justiça sob o signo da humanização do tratamento e da assistência prestados à massa carcerária e buscando adequar os objetivos de ressocialização enunciados nos programas de ação à transformação do complexo institucional, desde logo a política dos direitos humanos dos sentenciados encontrou poderosas resistências externas e internas ao sistema. Elas revelaram, notadamente quando a ocorrência de levantes as tornavam mais transparentes, que as autoridades públicas haviam promovido um diagnóstico que pecava por desconhecer a eficácia da rede interna de relações sociais, a solidariedade que faz daqueles aparentemente desprovidos de força poderosos, enfim, a natureza profundamente tradicional e conservadora da cultura institucional. Cedo se verificou que não bastavam boas intenções, impressas em documentos e em propostas de trabalho. Haveria que dar um salto de qualidade que desfibrasse o nó constituído ao longo de tantos anos de práticas institucionais orientadas por princípios de segurança, disciplina e ordem, que elegeram a repressão indiscriminada como modo de concretizá-los.

Hoje, mais do que nunca, os impasses se agravaram. A sucessão de motins no sistema penitenciário paulista, não raramente seguidos de massacres e de intervenções policiais com efeitos incontroláveis, põe em confronto direto duas alternativas radicalmente opostas. De um lado,i se reconhece ou, quando menos, se acredita que a democratização da sociedade reclama progressiva e inadiável "desinstitucionalização" do complexo penitenciário, conquanto pouco se saiba como atingir objetivo tão audacioso. Já que as prisões estão fadadas ao fracasso, cabe encerrá-las como instrumentos corretivos do passado. Por outro lado, à medida que os motins colocam em evidência a precariedade das instalações disponíveis e o déficit crônico de vagas, não resta outra alternativa senão construir novos estabelecimentos penitenciários. Será politicamente eficaz esta orientação a que o sistema penitenciário paulista vem sendo condicionado, há longo tempo? Representa um passo à frente ou um passo atrás? Corresponde às expectativas de democratização da sociedade? Tomada como alternativa inexorável, por que falha?

O dilema da legislação penal

Certamente, a questão penitenciária não é paulista e sequer nacional. Outras sociedades do mundo ocidental capitalista vêm experimentando semelhantes dissabores com a administração de suas prisões e com os resultados pouco animadores de suas práticas ressocializadoras. Parece universal a constatação de que o grande projeto disciplinar que nomeou as prisões instrumentos ortopédicos por excelência, de correção de costumes e hábitos da população, elaborado no curso do século passado, está condenado à extinção, se é que algum dia tenha se manifestado eficaz do ponto de vista dos objetivos a que se propôs. Em contrapartida, sua eficácia política é bem conhecida; seus efeitos, enquanto instrumento de controle social, renderam e vêm rendendo dividendos na consciência do cidadão comum, haja vista as moções de apoio ao aperfeiçoamento dos mecanismos e das práticas de punição e de encarceramento que vêm se espraiando com admirável sintonia em diferentes sociedades, apesar das dificuldades de se lidar com as explosões de cólera e de revolta da massa carcerária.

Particular, contudo, é o modo como a questão penitenciária vem sendo, nesta sociedade, abordada na imprensa periódica, nos gabinetes executivos, no plenário parlamentar e mesmo nos debates públicos. Insiste-se em tratá-la como problema técnico e atual. Técnico porque reclama medidas profiláticas de saneamento e de aperfeiçoamento institucional, como sejam, o aumento da oferta de vagas, a consolidação de frentes de trabalho prisional, a abertura de oportunidades escolares, a promoção de recursos humanos capacitados para as peculiaridades da organização penitenciária. Atual porque entendido como conjuntural, fruto de condições econômicas e sociais adversas e momentâneas que, superadas, poderão conduzir o controle da criminalidade, da violência e da vida no interior das prisões a padrões considerados compatíveis com os meios disponíveis e com as metas a serem alcançadas; vale dizer, compatíveis com padrões racionais de "terapêutica criminiátrica". É justamente nesse modo de abordar a questão penitenciária que parecem residir os impasses e dilemas que o fundamentam, quer do ponto de vista de suas realizações, quer do ponto de vista ideológico. De fato, a questão penitenciária, nesta sociedade e sobretudo em São Paulo, não é exclusivamente técnica e sequer específica do atual momento histórico; antes de tudo, trata-se de uma questão política.

É substancialmente política porque pertinente à intervenção do Estado no terreno da regulamentação de comportamentos tipificados como ofensa criminal. Estudos históricos recentes vêm demonstrando que a estatização da justiça criminal remonta à alta Idade Média, muito embora os fins do século XVIII e princípios do século XIX tenham testemunhado uma verdadeira revolução nas regras e nos procedimentos de exceção penal. Instaurou-se uma sorte de racionalização da justiça criminal que demandou ou complexa mutação no direito de punir, resultado inevitável de um novo modo de conceber e de regulamentar as relações entre os indivíduos e o poder político.

A racionalização da justiça criminal manifestou-se em, pelo menos, três iniciativas reformadoras. Primeiro, a legislação penal, tradicionalmente centrada no conceito de infração e destinada à defesa da sociedade e de seus valores, passa pouco a pouco a revelar maior preocupação para com o controle e a reforma moral e psicológica dos sentenciados. Segundo, procedeu-se à separação entre o ato de julgar e o ato de punir, processo que não somente instaurou uma espécie de "divisão de trabalho" entre o aparelho judiciário e o aparelho policial, como também recorreu ao concurso do saber especializado. A psiquiatria, a psicologia, a medicina, a pedagogia e a criminologia aliaram-se àqueles aparelhos tanto no sentido de aperfeiçoar a vigilância exercida sobre aqueles considerados potencialmente perigosos, quanto no sentido de socializar o ônus advindo da incômoda tarefa de castigar em uma sociedade que se via, cada vez mais, às voltas com postulados liberais de organização social. Terceiro, nada disso teria sido possível caso, no limite, não houvesse sido "inventado" o sistema penitenciário enquanto empresa de reforma dos indivíduos e de seus desvios.

Diferentes sociedades do mundo ocidental enveredaram por esta trajetória. A sociedade brasileira não permaneceu imune ao movimento reformador da justiça criminal. Já em fins do século passado, como advento da forma republicana de governo, o novo Código Penal (1890) introduziu inovações na questão da responsabilidade criminal. O princípio de livre-arbítrio (responsabilidade moral do autor do ilícito penal), pedra angular do direito penal clássico, começa a ser relativizado mediante a possibilidade de isentar-se de culpa àqueles reconhecidamente incapazes de compreender o significado de seus atos, por força de "'perturbação dos sentidos ou da inteligência". As pressões visando implementar e ampliar iniciativas dessa natureza se acentuaram nas duas primeiras décadas do século XX. Grupos constituídos de advogados, delegados de polícia, psiquiatras, médicos-legistas e professores universitários — todos eles portadores de notoriedade pública, simpatizantes das novas técnicas de tratamento criminiátrico em voga, àquela época, nos Estados Unidos e Europa — desencadearam movimento, tanto no âmbito da opinião pública quanto do espaço político-parlamentar, cujo resultado foi a edição do Código de 1940.

O novo código veio coroar as intenções daqueles que acreditavam nas virtudes de uma justiça criminal alicerçada antes no pressuposto da recuperação do sentenciado do que na simples punição à ofensa criminal cometida. No entanto, mesmo apostando no "psiquismo" e nos valores culturais do indiciado como requisitos de aplicação de justiça e de tratamento, o Código Penal de 1940 não se desvinculou do paradigma clássico do direito penal. Ao contrário, o legislador optou por uma tentativa de conciliar pressupostos antagônicos, procedentes de concepções diferenciadas acerca do indivíduo delinqüente e do modo pelo qual a sociedade deve proteger a vida, a propriedade e os bens culturais de seus cidadãos. Tratou-se, sem dúvida, de promover a conciliação entre duas concepções opostas quanto ao papel do Estado na intervenção, tutela e sanção aos comportamentos considerados indesejáveis a uma convivência social civilizada. Assim, ao mesmo tempo que o Código de 1940 advogou a aplicação e tratamento individualizado da pena, não abriu mão do caráter exemplarmente punitivo da sanção judiciária.

As recentes mudanças incorporadas ao direito penal com a edição da parte geral do novo código (1985) não fizeram senão perpetuar os conflitos que se vêm arrastando há não pouco tempo nessa sociedade. A extinção da medida de segurança e a expectativa de que o conjunto de novas medidas implantadas venha assegurar quer o regime progressivo/regressivo de execução penal, quer o tratamento individualizado do autor do ilícito penal, não eliminaram o dilema entre recuperar e punir, inerente à legislação anterior. A nova reforma persiste editando o confronto decorrente da crença na causalidade individual do crime simultaneamente à crença na responsabilidade moral de seu autor.

O gerenciamento da massa carcerária

Esse dilema não se manifesta apenas no contexto da legislação penal. Ele se torna transparente quando o foco de atenção repousa na implementação dos preceitos legais no interior do sistema penitenciário. É precisamente nesse âmbito que se acentuam os contrastes entre a teoria e a prática, entre os propósitos embutidos nas políticas públicas penitenciárias e as correspondentes práticas institucionais. É nele igualmente que a questão penitenciaria se transfigura em problema técnico e a execução penal se converte em gerenciamento da massa carcerária.

Em São Paulo, sintomas desse dilema já ganhavam a preocupação das autoridades públicas desde a primeira metade do século XIX. Os problemas recrudesceram na virada do século, assim como se exacerbou o temor das elites políticas relativamente à possibilidade — real ou aparente — de que a criminalidade se espraiasse pelo espaço urbano, colocando em risco a segurança daqueles considerados cidadãos. A resposta a este temor culminou com a edificação e implantação da Penitenciária do Estado (1920) e, logo a seguir, com a criação do Manicômio Judiciário (1927).

Mas é a partir da década de 50 que os problemas do setor se acumularam e passaram a reclamar intervenção sistemática e deliberada do poder público. Como aponta a literatura especializada, esta década é marcada por substantivas mudanças estruturais na economia brasileira, acompanhadas por um novo estilo e padrão de acumulação capitalista, por uma redefinição do papel do Estado frente ao mercado, por demandas procedentes de uma nova etapa de industrialização e de urbanização aceleradas. Entre os diversos e múltiplos efeitos desse conjunto de mudanças que conheceu a sociedade brasileira, àquela década, verificou-se um crescimento acentuado da demanda por serviços públicos, em ritmo superior ao crescimento da população e da renda. Não sem razão os meados da década de 50, em São Paulo, se singularizam pelo conseqüente incremento de importância da burocracia civil e dos quadros técnicos da administração pública, fazendo com que determinados setores da intervenção estatal adquiram maior peso e influência nos processos decisórios, notadamente os setores de competência das secretarias da Fazenda e Viação. Não se pense, todavia, que a chamada administração "tradicional" — segurança e justiça — tenha permanecido imune a esse ímpeto modernizador. Problemas relacionados ao crescimento e à expansão desordenados do espaço urbano criaram situações novas para as agências encarregadas do controle da ordem pública.

No que concerne à segurança, nos últimos trinta e cinco anos e, particularmente, no período em que o aparato policial esteve concentrado no projeto de repressão política, a modernização desse setor consistiu em um programa deliberado de expansão física, de ampliação do raio de intervenção policial, de integração e coordenação de setores, de introdução de mudanças no organograma dos órgãos que compõem a Secretaria de Segurança, de ampliação da frota de veículos e do sistema de comunicações e, com certa precocidade quando comparado com outras instituições de repressão e de reparação social, na montagem de um complexo sistema de processamento eletrônico destinado a conferir "rapidez" e "eficiência" aos serviços policiais e às práticas de controle e de vigilância.

Quanto à administração penitenciária, a política adotada, no Estado de São Paulo, no curso dos últimos trinta e cinco anos, manifestou momento privilegiado em meados da década de 50, quando a gestão Jânio Quadros projetou a expansão do sistema penitenciário, elaborando, grosso modo, uma espécie de "plano diretor" para as décadas subseqüentes. As sucessivas gestões governamentais se limitaram, com pequenas alterações, a implementar esse plano. Disso resulta que a tônica dominante nas políticas públicas penitenciárias residiu na edificação de novos estabelecimentos e na ampliação do numero de vagas, permanecendo como pura retórica o propósito de introduzir substanciais alterações no perfil do sistema penitenciário, sobretudo no que respeita às esferas do trabalho, da educação e da assistência judiciária do sentenciado. Iniciativas nas administrações Paulo Egydio e Montoro, em que estiveram à testa da Secretaria de Justiça, respectivamente, Manoel Pedro Pimentel e José Carlos Dias, tendentes a promover sensíveis mudanças no quadro institucional existente, revelaram-se, em curto espaço de tempo, inócuas porque subordinadas ao imperativo político de expansão física do sistema.

Importa relevar o confronto permanente entre essa tônica e as atividades-fim, impressas nos programas e documentos oficiais, indicadoras do universo ideológico no interior do qual as políticas públicas penitenciárias são formuladas. Basta uma rápida vista d'olhos nesses programas e documentos para se certificar que essas políticas são formuladas e implementadas sob o signo da recuperação e da ressocialização dos sentenciados. Seja nas mensagens anuais do governo do Estado à Assembléia Legislativa ou no preâmbulo de atos legislativos, enfatiza-se que as medidas adotadas, ao lado de pretenderem propiciar condições necessárias à fiscalização e ao cumprimento de penas privativas de liberdade e das medidas de segurança detentiva, pretendem igualmente promover a reabilitação humana e social dos sentenciados, a reintegração social dos egressos penitenciários, além de oferecer assistência à família dos sentenciados. Portanto, o discurso ideológico que subjaz a tais políticas se sustenta no tripé trabalho/profissionalização-educação/escolarização-assistência (jurídica e social). Sob esta perspectiva, esse discurso parece fazer coro e sintonia com aquele impresso à legislação penal, reproduzindo, com suas particularidades, os mesmos dilemas e impasses.

De fato, não é preciso grande esforço de observação para se constatar a inexistência de meios técnicos adequados e suficientes para assegurar a consecução dos objetivos propostos com eficácia mínima. Um breve exame do perfil normativo do sistema penitenciário paulista, no período compreendido entre 1950 e 1985, faz saltar aos olhos as ambigüidades entre o idealizado e o vivido. Vale destacar que o perfil normativo configura área de intervenção especialmente sensível à observação porque traduz o resultado da ação do poder público, mediante a edição de atos — leis, decretos, portarias, resoluções, etc. —, em sua tentativa de consolidar os fins enunciados nos programas governamentais.

Nestes últimos trinta e cinco anos, o perfil normativo do sistema penitenciário paulista revela características que põem à prova a eficácia pretendida pelas políticas formuladas e dirigidas a esse setor. Há um privilégio desmesurado aos aspectos administrativos do sistema, cuja concentração repousa em atos que visam o gerenciamento do cotidiano dos estabelecimentos penitenciários e de seus órgãos afins. Como outras instituições públicas, o sistema penitenciário tende a funcionar tal qual uma grande repartição que perde de vista os objetivos organizacionais para os quais existe e limita a maior parte de seu esforço em garantir o funcionamento de sua dinâmica interna e própria. Não resulta estranho que praticamente metade da energia legislativa dispendida, no curso desse longo período, tenha se voltado para a solução de problemas relacionados à administração do funcionalismo locado no sistema penitenciário. Nesse horizonte normativo, não se detecta, entretanto, esforço no sentido de consolidar uma política de recursos humanos habilitados para as peculiaridades do trabalho nessa área da vida institucional, pois a maior freqüência de atos se dirige para dirimir problemas como remanejamentos, licenças, nomeações, etc.

Quando as atenções são voltadas para os atos que visam implementar objetivos ressocializadores dos sentenciados custodiados, sobressai a pobreza e a exigüidade de medidas técnicas adotadas para o longo período indicado. A maior parte dessas medidas não vai muito além da constituição de grupos de trabalho e de comissões, responsabilizados pelo estudo de temáticas específicas, cujos resultados, salvo exceções, exercem impacto transformador restrito ao perfil normativo do sistema penitenciário. No terreno do trabalho, a despeito da importância que esta temática ocupa, seja para os teóricos das teorias de terapia ocupacional, seja para as análises de custos do sistema, o conteúdo dos atos baixados não implementa e sequer define uma política específica de profissionalização ou de ocupação da mão-de-obra segregada. No âmbito da assistência judiciária, carente de atenção própria, as medidas se limitam à solução de problemas circunstanciais, corroborando-se um quadro no qual o personagem principal — o sentenciado — é o grande ausente. Se a este panorama se agregar a inexistência de atos promotores da assistência psicológica e da observação criminológica, a par da diminuta importância atribuída ao serviço social no conjunto das práticas reabilitadoras, ressaltarão com dramaticidade os impasses ideológicos que permeiam as políticas públicas penitenciárias: o dilema entre recuperar e punir dissolve-se, em verdade, na constatação de que o sistema constitui aparelho exemplarmente punitivo e funciona exclusivamente como depósito de corpos e de mentes.

Questão penitenciária, questão política

É somente em sua dimensão política que a questão penitenciária se aclara. A sobrevivência de problemas que se acumularam no setor ao longo do tempo e o privilégio conferido à gestão administrativa do sistema penitenciário não podem ser equacionados com a introdução ininterrupta de medidas e procedimentos técnicos julgados saneadores. É indispensável, antes de tudo, conhecer a magnitude do problema com que se defronta — diagnóstico do qual prescindem as autoridades encarregadas de implementar políticas públicas penitenciárias —, os elementos e fatores condicionantes de sua dinâmica, os interesses em jogo, as diferentes concepções que lhe são inerentes, etc. Sob essa perspectiva, qualquer investimento governamental no sentimento de introduzir modificações substanciais no quadro existente não poderá se eximir de enfrentar, com algum êxito político, quer as forças que disputam o controle hegemônico na formulação de políticas públicas penitenciárias, quer as forças que disputam o controle da massa carcerária.

Não se trata, efetivamente, de questão política de fácil solução, aliás, como tantas outras. Ela requer tarefas de amplitude considerável. Implica intervir decisivamente nas instâncias que produzem concepções ideológicas acerca da natureza da massa carcerária, da criminalidade, do papel do Estado como espaço possível de controle, etc. Trata-se aqui de descortinar à opinião pública os fundamentos ideológicos que sustentam sobretudo o arcabouço legal. Ademais, na medida em que a questão penitenciária não se encerra nos estreitos limites do sistema penitenciário, há que se intervir na complexa e problemática divisão de trabalho entre os aparelhos policial, judiciário e prisional. Enquanto persistirem, sem qualquer controle por parte do poder público, as históricas disputas e confrontos de força entre grupos situados estrategicamente no interior desses aparelhos e enquanto não se definirem com meridiana clareza limites de atuação, restringindo-lhes a autonomia muitas vezes promotora de arbitrariedades, firmando-lhes as responsabilidades e competências compatíveis com o exercício democrático do poder, nenhuma política penitenciária estará isenta de dilemas e dificilmente será dotada de eficácia. Certamente, há ainda outras tantas tarefas...

Não se pode ignorar a existência de grupos organizados no interior do sistema penitenciário, que agregam sentenciados e/ou até agentes institucionais, que atravessam heterogêneos interesses no controle da massa carcerária e que se pautam por modelos de cultura organizacionais inflexíveis. Eles jogam papel decisivo no sucesso ou fracasso de medidas introduzidas, aliás, como recentes experiências governamentais vieram demonstrar. Como democratizar a "sociedade de cativos" constitui, seguramente, desafio à imaginação política.

É igualmente necessário dimensionar o peso político do saber especializado e os limites da atuação técnica. Ao mesmo tempo em que eles não podem ser privados de exercer efeitos transformadores significativos, é preciso que o sentido e significado dessas transformações esteja sob observância de declarados princípios políticos. Tal perspectiva envolve a definição de uma política de recursos humanos que possibilite a seleção, treinamento e aperfeiçoamento de trabalhadores que aliem à competência técnica compromissos políticos insuspeitos.

É somente no amplo quadro de transformações que se poderá aquilatar o peso e o lugar das propostas e das medidas técnicas. Será eficaz persistir na política de aumento do número de vagas? Em um programa de introdução de medidas tendentes a resguardar a dignidade humana dos sentenciados, como serão distribuídos os recursos, que setores serão priorizados? Enfim, estas são algumas das questões que deverão incitar o debate público, espaço no qual, em sociedades democráticas, os erros e os acertos são socializados. É nesse horizonte que se afigura viável formular políticas públicas penitenciárias e fomentar um sistema penitenciário compatível com o controle democrático do poder em uma sociedade na qual a segurança dos cidadãos e a justiça social constituem princípios condutores da convivência social.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1987
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