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Os direitos sociais em xeque

The social rights in check

Resumos

Examina-se como a crise do mundo keynesiano, com suas políticas corretivas de desequilíbrios distributivos, e o retorno do mercado ao comando dos processos econômicos vem afetando o universo dos direitos.


The article deals with the question of how the crisis of keynesianism and the return of the market to a central position reminiscent of ninetenth-century conceptions undermine the policies geared to the correction of distributive inequality and jeopardize social rights.


DEMOCRACIA

Os direitos sociais em xeque*

The social rights in check

Rolf Kuntz

Professor no Departamento de Filosofia da FFLCH/USP

RESUMO

Examina-se como a crise do mundo keynesiano, com suas políticas corretivas de desequilíbrios distributivos, e o retorno do mercado ao comando dos processos econômicos vem afetando o universo dos direitos.

ABSTRACT

The article deals with the question of how the crisis of keynesianism and the return of the market to a central position reminiscent of ninetenth-century conceptions undermine the policies geared to the correction of distributive inequality and jeopardize social rights.

Norberto Bobbio termina seu último livro, Direita-Esquerda, com uma declaração de otimismo. "O impulso em direção a uma igualdade cada vez maior entre os homens é, como Tocqueville havia observado no século passado, irresistível. Cada superação desta ou daquela discriminação com base na qual os homens se dividiram em superiores e inferiores, em dominadores e dominados, em ricos e pobres, em senhores e escravos, representa uma etapa, por certo não necessária, mas possível, do processo de civilização". Etapa não necessária, escreve Bobbio, mas, apesar disso, ele manifesta sua esperança como se houvesse um movimento histórico irrefreável. Essa mesma aposta, de inspiração explicitamente iluminista, havia sido feita, alguns anos antes, numa entrevista e, depois, num ensaio reproduzido no volume A Era dos Direitos

Vou concentrar a atenção nos chamados direitos sociais, também conhecidos como de segunda geração. Embora rotulados de "sociais", são marcadamente econômicos. Seu caráter "social" é definível sobretudo por contraste com o significado individual de outros direitos consagrados mais cedo, como o de propriedade, tanto de bens externos quanto da própria força de trabalho, o de proteção pública, o de julgamento segundo normas processuais equitativas e o de participação na vida política. Pode ser instrutivo lembrar que Locke, no capítulo 9º do Segundo Tratado, recobre com o termo "propriedade" os significados de vida, liberdade e patrimônio. Essas faculdades constituem, de modo geral, as condições mínimas indispensáveis à consolidação das sociedades políticas modernas e ao desenvolvimento das economias de mercado.

Os chamados direitos sociais pressupõem o mercado já desenvolvido. Historicamente, só são inteligíveis em situações criadas pelo capitalismo, em especial a partir da expansão da indústria. De modo geral, envolvem garantias de trabalho e de remuneração, condições mínimas de segurança econômica e, ainda, oportunidades de acesso ao mercado em condições dignas. Esse conjunto inclui os direitos trabalhistas, nas suas várias formulações, e as garantias previdenciárias e assistenciais, como a aposentadoria, o socorro médico e o seguro-desemprego. Mas eu acrescentaria também, como itens de grande importância, a educação pública universal, pelo menos no nível básico, a assistência de saúde à gestante e à criança e o tratamento tributário diferenciado. Educação básica, assistência médica à maternidade e à infância, cuidados de nutrição e tributação progressiva podem ser fatores decisivos para igualar as condições no ponto de partida, ou, pelo menos, para diminuir grandemente a desigualdade inicial. Integram-se claramente naquelas condições básicas constitutivas, para John Rawls, de padrões de eqüidade. Esses padrões incluem mais do que as condições formais de liberdade e de igualdade, como Rawls procura deixar claro desde a exposição inicial de seus dois princípios de justiça.

Noutros casos, a consagração direito se deu pela adoção de políticas de governo. O objetivo do pleno emprego esteve associado, por algumas décadas, à estratégia orçamentária de vários países. As políticas de inspiração keynesiana funcionaram, ao mesmo tempo, como garantias de emprego, remuneração e condições mínimas de bem-estar, e como amortecedoras de conflitos distributivos. A fase keynesiana será lembrada, talvez, como a idade de ouro do século 20, ou, quem sabe, como a era da inocência do capitalismo contemporâneo.

Durante esse período, conseguiu-se conciliar enormes transformações tecnológicas e gerenciais com a manutenção e a ampliação do emprego e a redução das desigualdades em grande parte do mundo capitalista. Foi possível, ao mesmo tempo, abrir espaço à industrialização de economias atrasadas. O Estado nunca esteve ausente desses processos, nem na América Latina, nem no Leste da Ásia, onde se criaram os chamados Tigres. Há uma tendência, hoje, a reescrever a história, para associar o desenvolvimento dos Tigres a políticas desde o início liberais. Basta examinar os relatórios do Banco Mundial a respeito das economias da região para verificar que isso é uma tolice. Ou ler sobre o plano de governo atualmente em execução em Taiwan. Mas este não é o momento de entrar nesse debate.

Nossa questão é outra: é examinar como a crise do mundo keynesiano afetou e está afetando o universo dos direitos. A palavra crise acentua, naturalmente, apenas uma aspecto das mudanças. O processo pode ser nomeado, também, com palavras positivas. Globalização tem sido um dos termos mais empregados para indicar, de forma sintética, as transformações. Não são apenas alterações nos padrões de competição, nas formas de operação das empresas e, como contrapartida, no funcionamento do mercado de emprego. Estão em jogo, ao mesmo tempo, os padrões, objetivos e eficácia das políticas fiscal, monetária, tarifária e cambial, utilizadas tradicionalmente para regular os preços, o nível de atividade, o emprego e as transferências internas de rendimentos. Está em jogo, em suma, a competência do governo para realizar as funções corretivas enumeradas por John Rawls, ao discutir as instituições voltadas para a justiça distributiva.

Para cientistas políticos e juristas, o desafio mais evidente, neste momento é dar conta da recomposição do sistema de poder e, como contrapartida necessária, da crescente importância das normas internacionais. Mais e mais relações passam a ser vinculadas, em pouco tempo, a normas de alcance mundial. Pode ser tão precipitado quanto ingênuo falar em aniquilação da soberania. Mas não há como negar que os formuladores de políticas são forçados a levar em conta, com peso crescente, variáveis externas à jurisdição e ao escopo do Estado.

Ora, essas novas condições tendem a enfraquecer e, no limite, a anular uma das bases, talvez a mais importante historicamente, dos direitos sociais. Estes foram consagrados principalmente como esquemas compensatórios, isto é, como formas de atenuar certos efeitos da operação dos mercados. Adam Smith reconheceu explicitamente, no capítulo 8º da Riqueza das Nações, o desequilíbrio entre capitalista e trabalhador, no momento de negociar emprego e salário. "Os patrões, sendo em menor número, podem combinar muito mais facilmente. A lei, além disso, autoriza, ou, pelo menos, não proíbe as suas combinações, enquanto proíbe as dos trabalhadores (...) Em todas as disputas desse tipo, os patrões podem agüentar muito mais tempo." A solução smithiana, porém, seria a a mais ampla liberdade para utilizar e movimentar fatores, única forma, segundo ele, de garantir bem-estar ao maior número no longo prazo. No entanto, o dado básico, utilizado por outros para justificar uma política de direitos, não foi por ele negado. A politização do mercado de trabalho pode ter sido justificada com variados argumentos morais e políticos. O grande argumento subjacente, no entanto, foi sempre o da eqüidade. Do ponto de vista social, neutralizar ou reduzir a diferença de poder entre capitalista e assalariado poderia aparecer como justiça distributiva. Do ponto de vista do mercado, porém, seria uma questão de justiça comutativa, isto é, de equilíbrio entre as partes.

Esta correção só poderia ganhar estabilidade e segurança, como norma, por meio do poder político. Em outras palavras, a iniqüidade do mercado só poderia ser compensada no âmbito do Estado. Historicamente, foi a única instância capaz de regular, de forma eficaz, as condições mínimas de participação no bolo econômico. O custo mínimo de reprodução da força de trabalho, é verdade, poderia ser, e foi, determinada culturalmente pela chamada "sociedade civil". Era claro, para Ricardo, que esse custo não correspondia estritamente às necessidades biológicas. Quanto a este ponto, Marx nada acrescentou à teoria ricardiana. Mas essa noção só era verdadeira, para qualquer dos dois autores, como descrição de uma tendência verificável no longo prazo, não no dia a dia do mercado, nem, necessariamente, nas oscilações cíclicas. Seria preciso, portanto, distinguir o valor da mão-de-obra de seu preço variável no jogo diário da oferta e procura. Este ponto já seria um forte argumento a favor de mecanismos corretivos. Além disso, porém, mesmo esse valor de longo prazo poderia ser considerado muito baixo. Depois, o freqüente excesso de oferta de mão-de-obra tenderia a manter o salário em nível miserável. As melhoras ocorridas em fases de expansão econômica poderiam ser neutralizadas, em prazo não muito longo, por mudanças tecnológicas e organizacionais, ou, simplesmente, por maior investimento em máquinas conhecidas. Aqui aparece a diferença mais notável entre as teorias de Marx e de Ricardo a respeito do salário. O capital, segundo Marx, tem um papel ativo na determinação do mercado de mão-de-obra. Atua não só na procura, mas também na oferta de trabalhadores, forçando-os a manter um estoque permanente de candidatos a emprego. é este, talvez, o único estoque garantido para pronta entrega. A idéia clássica de um vínculo entre o ciclo econômico e a variação demográfica é reduzida a uma ficção.

Recapitulando: o primeiro e mais visível efeito da globalização é por em xeque a intervenção no sistema de preços e, portanto, no mecanismo formador do custo da mão-de-obra. A ação política tradicional, vinculada ao poder do Estado, tende a perder eficácia ou simplesmente a reduzir o poder de competição do produtor local. Essa tendência fica mais visível quando se considera a mundialização dos produtos. Um carro pode ser montado no Brasil, na Austrália ou na Alemanha com peças fabricadas na Coreia, no México e no Japão, com financiamentos obtidos na França e serviços diversos, como planejamento publicitário, por exemplo, realizados na Inglaterra e nos Estados Unidos. Com a produção horizontalizada, o jogo implica a homogeneização mundial dos custos para os mesmo setores.

Em termos simples, é como se o mercado, depois de mais de um século de sujeição a amarras de tipo institucional, se libertasse e voltasse a comandar o processo, com seu potencial de iniqüidade amplamente restaurado.

A frase anterior pode parecer excessivamente dramática, mas peço que a tomem por seu valor de face. Não é preciso superestimar a noção de "potencial de iniqüidade". Basta entender que se trata de algo bem longe de desprezível.

A contraposição entre as forças de mercado, revigoradas pela globalização, e as possibilidades de intervenção institucional é apenas uma preliminar para o debate. Muitas forças podem estar operando ao mesmo tempo. Todas convergem, porém, para um ponto: o enfraquecimento dos mecanismos compensatórios. A relação causal entre as mudanças tecnológicas e organizacionais e a globalização pode não ser sempre clara e unidirecional. Os dois fenômenos, porém, tendem a somar-se na produção de certos efeitos, como o achatamento do organograma das empresas, a horizontalização da atividade produtiva, a troca da antiga linha de produção seriada pela produção diferenciada segundo encomendas (esta é uma das possibilidades abertas pela robotização) e a valorização de um novo tipo de trabalhador. Este novo tipo é mais versátil que o antigo operário qualificado e, em princípio, mais preparado para tomar decisões e assumir riscos. Esta é, talvez, a mais imprevista das transformações: a robotização não tornou o operário inteligente substituível por um imbecil apertador de botões. Ao contrário: criou demanda por um tipo especial de trabalhador, menos ocupado com operações repetitivas e mais voltado para questões como o controle da qualidade e a busca de diferenciais de eficiência. Sem isto, aliás, a redução dos níveis gerenciais não teria sido possível. Produzir um trabalhador deste tipo exige, em primeiro lugar, como já foi dito repetidamente, uma boa educação fundamental, muito forte em linguagem, conhecimentos básicos de matemática e rudimentos de ciência. A especialização passa a ser quase um acidente na vida deste operário. Se alguém precisar de um forte argumento a favor de uma urgente reforma do ciclo básico, este pode ser usado legitimamente.

Outro fator concorrente, na última década, foi a crise financeira do setor público. Não só no Brasil, mas na maior parte do mundo capitalista, o poder de ação dos governos foi severamente limitado pela acumulação de déficits fiscais cada vez menos administráveis. Esses déficits decorreram, em parte, da expansão das funções públicas e da ampliação, muitas vezes descontrolada, dos benefícios garantidos ou administrados com fundos governamentais. Em alguns casos, como no da previdência, em crise em quase todo o mundo, a dramática mudança da proporção entre contribuintes e beneficiários levou os sistemas tradicionais à falência. De certo modo, o Estado do Bem-Estar, ou o Estado-Providência, foi erodido tanto pela própria expansão quanto pelo êxito das políticas assistenciais. Lamentavelmente, do ponto de vista atuarial, as pessoas têm vivido mais e a proporção entre ativos e aposentados está se tornando insustentável.

Para tornar um pouco mais material este quadro de problemas, vale a pena citar alguns números. Os dados valem, neste momento, apenas como ilustrações:

# a Europa está prosperando, depois de anos de recessão, mas o desemprego na União Européia corresponde a cerca de 11% da força de trabalho. Nos Estados Unidos é bem menor, algo em torno de 6%, embora a economia americana tenha estado em firme expansão durante pelo menos dois anos. Foram necessárias sete elevações da taxa de juros para começar a conter a demanda. Até os anos 70, o admitia-se como desemprego "natural", isto é, compatível com um quadro macroeconômico sustentável, uma taxa entre 4% e 4,5%. Abaixo disso haveria pressões inflacionárias. Acima, a economia estaria entrando em recessão. Hoje, a maioria dos países industriais tem desemprego acima de 6%. Mesmo no Japão, onde a taxa permanece comparativamente muito baixa, algo entre 2% e 3%, a desocupação é sensivelmente maior do que havia sido durante muitos anos. Mesmo no Japão as relações de trabalho se altera e a segurança do emprego, antes uma relação vitalícia para muita gente, deixa de existir;

# a desigualdade na distribuição de rendimentos aumentou em 12 de 17 países do mundo industrializado, na década de 80, segundo relatório divulgado em 1993 pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômicos (OCDE). De modo geral, a remuneração dos grupos de maior rendimento tendeu a crescer mais que a dos grupos intermediários, enquanto a das faixas inferiores tendeu a distanciar-se dos ganhos dos setores médios;

# uma pesquisa norte-americana citada pela revista The Economist pode dar uma idéia mais clara da mudança recente. Nos Estados Unidos, a desigualdade encolheu entre 1929 e 1969 e depois aumentou. Em 1969, os 20% de famílias com rendimentos mais altos ganhavam 7,5 vezes a remuneração dos 20% mais pobres das famílias. Em 1992, a diferença havia aumentado para 11 vezes. Algo semelhante ocorreu na Grã-Bretanha. Em 1977, os rendimentos dos 20% mais ricos eram 4 vezes os dos 20% mais pobres. Em 1991,7 vezes;

# a qualidade dos empregos tem piorado. Muitos trabalhadores deslocados conseguem voltar ao mercado somente em posições piores que as anteriores. Há informações a respeito disso em vários países. No Brasil, os indícios de redução da qualidade do emprego são muito claros. Nos últimos 5 anos, o emprego industrial diminuiu entre 20% e 25% no País, segundo pesquisas mencionadas em seminário recente pelo economista Edward Amadeo, da PUC-Rio. Grande parcela do pessoal demitido foi para a atividade informal, por conta própria, ou para empregos sem registro. Uma parcela foi transferida para o setor de serviços, empregando-se em atividades de remuneração mais baixa e menores condições de segurança;

# parte da reorganização empresarial consistiu na terceirização de atividades-meio (em alguns casos, embora ilegalmente, vêm sendo terceirizadas também atividades-fim). O trabalhador afastado pela terceirização pode ter sido deslocado para indústrias menores, dinâmicas e modernas, com boa remuneração e boas perspectivas profissionais. Mas pode, também, e este parece o caso mais comum, ter ficado numa empresa prestadora de serviços, com salários muito baixos, quase nenhum benefício adicional (seguro-saúde, cesta básica, refeição etc.) e nenhum apoio de um sindicato forte. Esta é uma das conseqüências importantes da horizontalização do sistema produtivo: a marginalização de uma parte dos antigos pertencentes às categorias mais organizadas.

É facil, agora, apontar outra conseqüencia desse conjunto de transformações (mudança tecnológica, reforma gerencial e globalização): o sistema legal de proteção perde eficácia. Terceirização, aumento dos contratos por tempo parcial e informalização do emprego tendem a reduzir as possibilidades de intervenção institucional no mercado. Este processo é descrito e analisado de forma muito interessante pelo professor José Eduardo Faria, da Faculdade de Direito da USP, num livro, Os novos desafios da Justiça do Trabalho, publicado este ano.

A solução, dizem especialistas em questões do trabalho, é radicalizar o domínio do mercado. Isso implica tornar as relações de emprego menos reguladas politicamente e mais flexíveis. é preciso baixar o custo de contratar e demitir. Mas também é recomendável, acrescentam, mudar o sistema previdenciário, para aliviar o setor público e torná-lo mais ágil e mais capaz de realizar certas tarefas tradicionais, como a provisão de segurança, de justiça e, talvez, de educação básica, nos moldes requeridos pela nova empresa. Os novos requisitos do sistema empresarial coincidem, neste ponto, com as preocupações dos reformadores do governo. é preciso reduzir os custos por unidade de produto em todo tipo de atividade. Não se trata apenas, é claro, de racionalidade administrativa, mas de ajustar todo o sistema às condições do mercado.

A discussão pouco tem avançado. Os defensores das razões do mercado se mostram, por enquanto, mais preparados para argumentar. Não é surpreendente: afinal, o seu dever-ser não é mais que o reforço de tendências observáveis no mercado. Nisto consiste seu realismo: em assumir o papel de batedores da marcha da história. Muitos grupos de esquerda já pretenderam, noutros tempos, um papel parecido com esse, apenas com o sinal oposto.

Sobram, como registro provisório, dois fatos um tanto cômicos. Em alguns países, a desmontagem dos mecanismos compensatórios vem recebendo grande apoio eleitoral. Isso é muito claro nos Estados Unidos, principalmente depois da vitórias dos republicanos liderados por Newton Gingrich. Neste momento (julho de 1995), o Partido Republicano examina formas de reduzir o gasto federal com assistência médica, empurrando parte da clientela para os serviços privados. Também se discute a desmontagem da compensação tributária para os pobres, o chamado imposto de renda negativo. Implantado nos anos 70, o sistema foi ampliado por dois presidentes republicanos, Reagan e Bush. Talvez não fossem bastante radicais quanto os novos senhores do Congresso. Mas o quadro eleitoral em países da Europa não tem sido muito diferente. Em parte, isso parece resultar de uma revolta do contribuinte. Talvez o cidadão não perceba o que está sendo jogado fora, juntamente com o suposto excesso de tributação. Dentro de alguns anos, talvez 10 ou 15, a percepção poderá ter mudado.

O segundo fato, ainda mais cômico, é que já se avança dos direitos de terceira geração (defesa do consumidor, proteção ambiental etc.) para a discussão dos de quarta. O debate se torna incrivelmente complexo, com o falatório a respeito, por exemplo, das possibilidades e riscos da manipulação genética. Enquanto isso, os direitos de segunda geração, que pareciam haver-se tornado tão naturais e tão inseparáveis da vida moderna quanto o jornal das oito e o telefone, começam a escorrer pelo ralo, como incompatíveis com este admirável mundo pós-keynesiano. A vingança do mercado pode acabar sendo uma das viradas mais terríveis da história.

  • 1
    1 Bobbio se refere à resposta de Kant à pergunta sobre "se o gênero humano está em constante progresso para o melhor". Segundo a interpretação kantiana, o entusiasmo diante da Revolução Francesa seria um sinal premonitório. "Inspirando-me nessa extraordinária passagem de Kant", escreveu Bobbio, exponho minha tese: do ponto de vista da filosofia da história, o atual debate sobre os direitos do homem – cada vez mais amplo, cada vez mais intenso, tão amplo que agora envolve todos os povos da Terra, tão intenso que foi posto na ordem do dia pelas mais autorizadas assembléias internacionais – pode ser interpretado como um "sinal premonitório" (signun prognosticum) do progresso moral da humanidade" (A Era dos Direitos, Rio de Janeiro, Editora Campus, pg. 51 e 52).
  • 1
    . Talvez se possa falar nesse movimento de longa duração. Não o discutirei. Até onde a experiência dos últimos 10 ou 15 anos permite enxergar, porém, o cenário é sombrio e nada autoriza apostar num aumento de igualdade. Por que igualdade? Porque este valor tem sido a referência principal no movimento de ampliação dos direitos, nos últimos duzentos anos ou pouco mais. Não a liberdade ou as liberdades, simplesmente mas liberdade ou liberdades para um número crescente de pessoas. Matemática ou moralmente, isso é igualação.
  • 2
    Alguns desses direitos foram consagrados na legislação, embora não da mesma forma, nem com a mesma amplitude, em diferentes países. Nesses casos, foram criadas obrigações legalmente definidas, tanto para agentes privados (empregadores, por exemplo), quanto para o Estado. Direitos desse tipo se converteram em exigibilidades formais. Para defendê-los, indivíduos e grupos podem recorrer a um tribunal.
  • 3
  • 4
    O argumento reformista, a favor da criação de limites e compensações institucionais, seria sustentável em qualquer caso. Isso permitiria justificar não só a defesa da organização sindical, como também a regulação dos contratos de trabalho, a criação de indenizações, de auxílio ao desempregado e assim por diante.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Dez 2010
    • Data do Fascículo
      1995
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