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ESAÚ E JACÓ: UMA POÉTICA DO IMPASSE

ESAÚ E JACÓ: A STALEMATE POETICS

Resumo

Neste ensaio, verificamos se, em Esaú e Jacó, Machado de Assis teria ficcionalizado um episódio referido no Diário de Notícias de 8 de setembro de 1892DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Tolo e revoltante. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, ano IX, n. 2614, p. 1, 8 set. 1892. Disponível em: <Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=369365&pasta=ano%20189&pesq=&pagfis=11075 >. Acesso em: 20 jan. 2023.
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. Inicialmente, discute-se a presença de menções alegóricas e a maneira como Machado recorreu a elas no enredo. Em seguida, discorre-se sobre a referida nota veiculada no jornal, como possível fonte para o "episódio da tabuleta". Ao final, aborda-se a postura do conselheiro Marcondes Aires frente ao golpe republicano de 1889, em contraste com o alheamento de Custódio à mudança de regime político.

Palavras-chave:
Alegoria; ficcionalização; apropriação

Abstract

In this essay, we verify if Machado de Assis would have fictionalized an episode, referred in Diário de Notícias of September 8, 1892DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Tolo e revoltante. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, ano IX, n. 2614, p. 1, 8 set. 1892. Disponível em: <Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=369365&pasta=ano%20189&pesq=&pagfis=11075 >. Acesso em: 20 jan. 2023.
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, in the novel Esaú e Jacó. Initially, we discuss the presence of allegorical mentions and the Machado's method used in the plot. Then, we analyze a note that was published in the newspaper, as a possible source for the "tablet episode", from the novel. At the end, we consider the position of counselor Marcondes Aires in face of the republican coup of 1889, in contrast to Custódio alienation regarding the new political regime.

Keywords:
Allegory; fictionalization; appropriation

De um ou de outro modo, a influência dos nomes é certa

Machado de Assis, "A Semana", 1894

Recentemente, Edgar Lyra procedeu a uma detida análise da Retórica de Aristóteles, tendo em vista demonstrar que seria proveitoso recorrer à arte da persuasão para reposicionar o debate em torno de questões políticas, que se estendem para a cultura e a educação (no ensino de filosofia, em particular) e outras áreas do saber. De acordo com a sua perspectiva, "O que frequentemente acontece em âmbitos acadêmicos é que problemas agudos surgem por simples falta de atenção aos componentes patológicos e éticos1 1 Edgar Lyra refere-se aos conceitos de pathos e ethos, recordando as três dimensões do discurso sistematizadas por Aristóteles [ethos > caráter demonstrado/afetado pelo orador; logos > saber, razão, palavra; pathos > paixão(ões) a ser(em) despertada(s) pelo orador no auditório]. necessários, inclusive, para que o logos possa encontrar adequada escuta e recepção" (LYRA, 2021LYRA, Edgar. O esquecimento de uma arte: retórica, educação e filosofia no século 21. São Paulo: Edições 70, 2021., p. 18).

A preocupação do filósofo é procedente. Como se sabe, desde a invenção do nacionalismo, na década de 1830, e sua conversão em programa de governo, na década seguinte, por d. Pedro II e a intelligentsia brasileira incrustada no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), assistimos a uma visão ambivalente da retórica:2 2 Conforme assinalou Roberto Acízelo de Souza (1999, p. 1), "Durante o século XIX, há no Brasil um grande interesse pelos estudos de retórica (a que se anexam ou com que se confundem os de poética), interesse traduzido por várias publicações e pela inserção das disciplinas mencionadas nos currículos escolares. Observa-se, contudo, que esse interesse desaparece no final dos anos de 1800, embora diversos resíduos dessa tradição se tenham conservado no século XX". ora ela foi percebida como repositório de fórmulas desgastadas, associadas à grandiloquência fora de contexto, ora como conjunto de artifícios, aplicados decorosamente em acordo com os gêneros discursivos, os assuntos tematizados e o estilo conveniente a cada modalidade.3 3 "Durante os Oitocentos, a arte de 'bem-dizer' (na definição de Quintiliano) confundia-se com a pompa dos oradores de mesa, canapé e tribuna. Na literatura, avulta o nome de Machado de Assis, que, segundo Maria Nazaré Lins Soares, 'ridicularizou, através da sua [obra] todos aqueles que se compraziam em erguer no vazio estruturas verbais grandiloquentes, pensando com isso estar fazendo literatura'." (CHAUVIN, 2017, p. 19). Um dos saldos dessa percepção oscilante é que, pelo menos até a década de 1970, parte expressiva de nossa crítica literária desprezou, quando não ignorou, a importância da retórica e da poética na análise e interpretação dos textos ficcionais, ainda que reconhecesse os débitos dos poetas e prosadores para com modelos situados entre a Antiguidade e o século XVIII.

Talvez por esse motivo, até recentemente foi dada menor atenção aos meandros da linguagem e aos artifícios empregados pelos narradores e personagens machadianos. Hélio Guimarães (2004GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. São Paulo: Edusp; Nankin , 2004., p. 259) pontuou que, em Esaú e Jacó, "As imagens de dualidade e duplicação estão na base das comparações, que constituem o principal recurso retórico empregado por Machado de Assis para expor sua teoria da composição". João Cezar de Castro Rocha (2013ROCHA, João Cezar de Castro. Machado de Assis: por uma poética da emulação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2013., p. 158) mostrou que "Muitas instâncias da obra machadiana podem ser reavaliadas à luz do cruzamento de seus textos com preocupações extraídas da arte retórica".

Entre os numerosos recursos empregados pelo escritor,4 4 A litotes, revelada por Hélcio Martins (2005); a paródia, detectada por Dirce Côrtes Riedel (2008), Teresa Pires Vara (1976), Gilberto Pinheiro Passos (2000) e Hélio de Seixas Guimarães (2004); a estilização da linguagem, demonstrada por Maria Nazaré Lins Soares (1968), João Adolfo Hansen (2006), Dilson Ferreira da Cruz (2009), Ivan Teixeira (2010), Sílvia Maria Azevedo (2010), João Cezar de Castro Rocha (2013) etc. certamente podemos localizar a alegoria - que se traduzia em correspondências políticas, sociais, culturais e religiosas situadas no tempo e no espaço.5 5 O sentido mais abrangente de alegoria traduz-se na "exposição de um pensamento sob forma figurada" (CUNHA, 2010, p. 23). Na Routledge Encyclopedia of Narrative Theory (HERMAN; JAHN; RYAN, 2005, p. 10), encontramos a seguinte descrição do termo: "Derived from Greek allos (other) and agoreuo (to speak publicly, in the agora or marketplace), allegory may be broadly defined as the art of 'speaking other', that is, of conveying a multiple meaning" - "Derivada do grego allos (outro) e agoreuo (falar publicamente, na ágora ou no mercado), alegoria pode ser definida como a arte de 'dizer outro', ou seja, acumular múltiplos sentidos" (tradução nossa). Na Merriam Websters' Encyclopedia of Literature (1995, p. 35), lemos: "Literary allegories typically express situations, […] persons, and actions or interactions. Such early writers as Plato, Cicero, Apuleius, and Augustine made use of allegory, but it became especially popular in sustained narratives of the Middle Ages" - "Usualmente, as alegorias literárias expressam situações, […] personagens, e ações ou interações. Na Antiguidade, Platão, Cícero, Apuleio e Agostinho recorreram à alegoria, mas ela se tornou mais popular em narrativas produzidas durante a Idade Média" (tradução nossa). Georg Lukács (1967LUKÁCS, Georg. Alegoria y símbolo. In: ______. Estética: la peculiaridad de lo estético. v. 1, t. 4: Cuestiones liminares de lo estético. Tradução de Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1967. p. 423-474.) sugeria que um modo eficaz de compreender a alegoria seria contrapondo-a ao conceito de símbolo, supondo que ela aniquila a realidade imediata, a realidade sensível. Isso explicaria por que as antigas alegorias, embebidas de transcendência religiosa, pretendiam rebaixar a realidade terrena, contrapondo-a à esfera celestial.

João Adolfo Hansen (2006HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Hedra; Campinas: Editora da Unicamp, 2006., p. 9) explica que:

Pensada como dispositivo retórico para a expressão, a alegoria faz parte de um conjunto de preceitos técnicos que regulamentam as ocasiões em que o discurso pode ser ornamentado. As regras fornecem lugares-comuns - topoi (grego) ou loci (latim) - e vocabulário para substituição figurada de determinado discurso, tido como simples ou próprio, tratando de determinado campo temático. Assim, estática ou dinâmica, descritiva ou narrativa, a alegoria é procedimento intencional do autor do discurso; sua interpretação, ato do receptor, também está prevista por regras que estabelecem sua maior ou menor clareza, de acordo com o gênero e a circunstância do discurso.

Essa abordagem pode resultar produtiva. Diante de uma obra como Esaú e Jacó, é preciso levar em conta os componentes alegóricos, evidenciados desde o título do romance (que estabelece diálogo imediato entre os gêmeos Pedro e Paulo e as personagens bíblicas),6 6 Para o caso de o leitor não ter em mente as possíveis ligações entre o nome do romance e dos protagonistas, inclui-se esta breve explicação. De acordo com as Escrituras (cf. Gn 25,19-23), Esaú e Jacó, filhos de Isaque, desentendiam-se desde o ventre de Rebeca, sua mãe, da mesma forma que os gêmeos Pedro e Paulo. Aliás, é bem evidente a apropriação feita por Machado dessa passagem; basta comparar o trecho bíblico mencionado ao primeiro capítulo do romance, em que a cabocla pergunta a Natividade se os meninos haviam brigado no ventre materno e, em seguida, "prediz" um futuro brilhante para os rapazes. Além desse índice, há que se lembrar as desavenças entre os apóstolos Pedro e Paulo (cf. Gl 2,11-18) quanto à necessidade de observância, pelos prosélitos e novos convertidos, de ritos cerimoniais da lei de Moisés, àquela altura já abolidos pelo Concílio de Jerusalém (cf. At 15). Pode-se pensar em uma espécie de sobreposição de sentidos alegóricos na escolha do título do romance e dos nomes dos personagens (cf. BÍBLIA, 2015). mas que também transparece em diversos episódios em que fatores outros são problematizados, em particular o espectro político na transição do Império para a República. Esse reparo é importante, considerando-se que a linguagem figurada é trespassada pelo componente histórico - ingrediente que funda os pressupostos de uma ficção publicada em 1904, que tem parte do enredo recuada em quinze anos - e orienta o próprio método de composição binária do romance.

Cabe lembrar que a intensa rivalidade de Pedro e Paulo encontra duas convergências notáveis: (1) a origem no mesmo ventre materno; (2) o amor de ambos por Flora. Nesse sentido, a disputa entre os fetos, percebida por Natividade durante a gestação, assim como a competição pelo amor exclusivo da mesma mulher, na fase adulta, complexificam a caracterização e a conduta dos irmãos - que, não por acaso, dividem inclusive o protagonismo do romance, não harmonicamente, mas de modo antagônico. Por sinal, a agonia de Flora não se resume a um mal-estar passageiro, mas tem implicações fatais. Ora, nem mesmo a sua morte será capaz de dissolver a intensa disputa entre Pedro e Paulo.

Nesse sentido, poder-se-ia argumentar que Esaú e Jacó se estrutura e alimenta (n)uma poética do impasse. Quer dizer, a dicção do narrador e as ações das personagens participam quase solidariamente de um mecanismo narrativo em que a angústia amorosa, as dicotomias pessoais, as assimetrias sociais e as disputas políticas subjazem à relativa linearidade fabular.7 7 "[…] estilo da frase machadiana, […] que é perifrástica e tortuosa, ampulosa e por vezes obscura na sua constituição estrutural, pela necessidade de atender expressivamente àquele estilo de ébrio, de sucessivos contornos e alternadas quedas à direita e à esquerda, semelhante na sua linha à da própria composição do romance e do conto machadiano" (MARTINS, 2005, p. 323). Observe-se que a contenda entre os irmãos é reforçada a todo instante, inclusive em episódios aparentemente laterais à trama principal, como se detecta na divertida8 8 "[…] o jogo é diametralmente oposto à seriedade. À primeira vista, esta oposição parece tão irredutível a outras categorias como o próprio conceito de jogo. Todavia, caso o examinemos mais de perto, verificamos que o contraste entre jogo e seriedade não é decisivo nem imutável. É lícito dizer que o jogo é a não seriedade, mas esta afirmação, além do fato de nada nos dizer quanto às características positivas do jogo, é extremamente fácil de refutar. Caso pretendamos passar de 'o jogo é a não seriedade' para 'o jogo não é sério', imediatamente o contraste tornar-se-á impossível, pois certas formos de jogo podem ser extraordinariamente sérias" (HUIZINGA, 2008, p. 8). conversação entre o conselheiro Marcondes Aires e o comerciante Custódio, transcorrido aproximadamente na metade do romance.

Resultaria daí que o enredo provocasse sentimentos ambíguos no leitor, como se o romance tematizasse um jogo hermenêutico/interpretativo, permeado pela comunhão do trágico e do cômico, do sério e do risível, do sublime e do ridículo.

Um curioso episódio no Diário de Notícias

Em alentado panorama sobre a Primeira República, Edgard Carone (1974CARONE, Edgard. A República Velha (evolução política). 2. ed. São Paulo: Difel, 1974., p. 8), observou que a "Falta de participação do povo e [a] inércia das camadas dirigentes explicam o resultado feliz da quartelada no Rio de Janeiro", o que justificaria "a opinião desairosa que sobre o golpe teve a maior parte da imprensa estrangeira, perplexa em face da queda de um monarca reinante há quase cinquenta anos, quando nada, aparentemente, fazia prever um fim tão inglório". Por sua vez, Leôncio Basbaum (1976BASBAUM, Leôncio. História sincera da República: das origens a 1889. 4. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1976., p. 231) recordava a sentença de Afonso Celso de que "O povo é, quando muito, indiferente à forma de governo", proferida "um ano antes do golpe militar". O historiador ressaltava que "se é certo que a República veio ao Brasil, literalmente, da noite para o dia, não é menos certo que havia ambiente para ela: a desagregação, o desmoronamento lento, mas inexorável do regime, que todos sentiam mas que a poucos perturbava".

Apesar da heterogeneidade dos atores que participaram e promoveram o golpe republicano, os eventos estavam a cargo das classes dominantes, apoiadas por setores médios. José Murilo de Carvalho (2017CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 141) repara na falta de símbolos próprios que pudessem inspirar a vida política brasileira do final do século XIX e sugere que os mentores do novo regime "Não foram capazes de criar um imaginário popular republicano. Nos aspectos em que tiveram algum êxito, este se deveu a compromissos com a tradição imperial ou com valores religiosos". Quando reconstitui as controvérsias em torno da criação da nova flâmula nacional, Carvalho (2017CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 111) ressalta que a influência da ala positivista havia prevalecido, ilustrando-a com o relato de uma situação inusual, publicada no Diário de Notícias, de 8 de setembro de 1892DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Tolo e revoltante. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, ano IX, n. 2614, p. 1, 8 set. 1892. Disponível em: <Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=369365&pasta=ano%20189&pesq=&pagfis=11075 >. Acesso em: 20 jan. 2023.
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(Figura 1), na qual um comerciante da rua da Assembleia que era "[…] certamente monarquista, exibiu uma tabuleta que representava a bandeira positivista, na qual a divisa 'Ordem e Progresso' fora substituída por um 'dístico infamante'".

Figura 1
Primeira página do Diário de Notícias de 8 set. 1892DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Tolo e revoltante. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, ano IX, n. 2614, p. 1, 8 set. 1892. Disponível em: <Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=369365&pasta=ano%20189&pesq=&pagfis=11075 >. Acesso em: 20 jan. 2023.
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9 9 Transcrevemos os quatro primeiros parágrafos da nota, seguindo a ortografia da época: "Constando que uma casa estrangeira, a loja de camas da rua da Assembléa n. 71, de Luiz Seabra Coelho, tinha entre as taboletas uma imitação da bandeira nacional, em que fôra substituída por um dístico infamante a inscripção patriótica Ordem e Progresso, um grupo numeroso de populares exaltados dirigio-se á referida casa para, dizia elle, vingar a affronta. Lá chegando, não achou mais a escandalosa taboleta, que fôra prudentemente retirada. Em compensação verificou que toda a frente da casa de negocio estava coberta de laminas de zinco, onde as mais torpes palavras (que surprehende que não tivessem ainda sido vistas pela policia) se podiam ler de mistura com a data de 15 de novembro. Possuido de justo furor, o povo invadio a loja, exigindo energicamente a taboleta insultuosa para a nossa bandeira. Como a dita taboleta não pudesse ser encontrada, como não pôde tambem ser encontrado o dono do estabelecimento, o povo investio contra as bambinellas arriadas e servindo-se d'ellas como escadas, arrancou todas as taboletas onde figurava a data da revolução e as reunio para entregar á policia".

No início desse ensaio, sugeriu-se que a alegoria pode ser útil como dispositivo estético e persuasivo. Seguindo esse raciocínio, seria possível cogitar que a referida notícia teria sido instrumentalizada por Machado na ficcionalização do episódio da tabuleta, que acontece aproximadamente na metade do romance.

No romance, a cena gira em torno de uma confeitaria; não de uma loja de camas. Afora isso, o estabelecimento do Custódio se localizava na rua do Catete; a loja de camas, na rua da Assembleia - o mesmo local em que o pintor ficcional trabalhava. Outra diferença: de acordo com a nota veiculada pelo Diário de Notícias, o dono do estabelecimento era monarquista, ao passo que o dono da confeitaria, sujeito pragmático e aparentemente alheio dos debates acerca da implantação do novo regime, desejava apenas salvaguardar o estabelecimento, motivo pelo qual apressa o pintor encarregado de materializar a mudança de nome (e regime político) na placa. Ora, tanto na nota de jornal quanto no romance, a confusão se dá por causa do conteúdo que as tabuletas difundiam, fazendo menção ao regime que há pouco havia ruído. Retomemos o célebre "episódio da tabuleta".

A (in)ação do conselheiro Aires

Compreendido entre os capítulos LXII e LXIII, o "episódio da tabuleta" é, certamente, um dos mais importantes de Esaú e Jacó. Ele se passa entre os planos da rua e da residência do conselheiro Aires, evidenciando o abismo social e cultural que separa o diplomata que saboreia charutos, o criado que o defende, o confeiteiro aflito, o caixeiro que leva e traz mensagens e o orgulhoso pintor da tabuleta. Supondo que o leitor não traga essas cenas suficientemente frescas na memória, será oportuno resumir os acontecimentos.

Para tanto, precisaremos recuar até o capítulo LXI, onde encontraremos Marcondes Aires a degustar alguma teoria política de Xenofonte na língua original: "Tudo isto em grego, e com tal pausa que ele chegou ao fim do almoço, sem chegar ao fim do primeiro capítulo" (ASSIS, 2015ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015. v. 1, p. 1044-1193., p. 1126), salienta o narrador. A passagem é reveladora. A começar porque o conselheiro estava a ler impassivelmente sobre a ingovernabilidade dos homens, enquanto do lado de fora o seu bairro seguia em polvorosa. Aparentemente, ele não dava a mínima importância para o fato de que um ministro se ferira em razão da mudança de regime.

O fato de o narrador transcrever um excerto do livro do antigo filósofo estabelece um vínculo paródico entre a teoria de Xenofonte e o mundo empírico da capital do Império, cerca de dois mil e trezentos anos depois. Quer dizer, a cena é pautada pela indiferença de Marcondes Aires pelo ministro, quase na mesma proporção em que ele desqualifica a troca súbita e instantânea do regime político no país, durante a ausência de d. Pedro II, que se achava em Petrópolis:

Pouco depois passava pela rua do Catete a padiola que levava um ministro, ferido. Sabendo que os outros estavam vivos e sãos e o imperador era esperado de Petrópolis, não acreditou na mudança de regime que ouvira ao cocheiro de tílburi e ao criado José. Reduziu tudo a um movimento que ia acabar com a simples mudança de pessoal.

- Temos gabinete novo, disse consigo. (ASSIS, 2015ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015. v. 1, p. 1044-1193., p. 1126).

A refeição, digamos "cultural", de Aires continuará no capítulo seguinte, "Pare no D". Enquanto o conselheiro do Império, absorto na gravidade dos acontecimentos, saboreava um bom charuto, o criado anuncia-lhe a visita do vizinho Custódio, dono de uma confeitaria na mesma rua do Catete:

- Mas, S. Ex. está almoçando, dizia o criado no patamar da escada a alguém que pedia para falar ao conselheiro. Era falso, Aires acabava justamente de almoçar; mas o criado sabia que o amo gostava de saborear o charuto depois do almoço, sem interrupção. Agora estava no canapé e ouviu o diálogo do patamar. A pessoa insistia em dizer uma palavrinha.

- Não pode ser.

- Bem, eu espero; logo que S. Ex. acabe…

- O melhor é voltar depois; não mora ali defronte? Pois volte daqui a uma hora ou duas… (ASSIS, 2015ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015. v. 1, p. 1044-1193., p. 1127).

Marcondes Aires fazia jus à alta consideração e importância que lhe atribuía a sociedade. Entre ele e o visitante inopinado, temos a figura intermediária do criado - espécie de faz-tudo da casa. No entanto, a condição estelar do conselheiro não o impediria de conceder alguns minutos do dia ao comerciante que lhe pedia uma ou duas palavras: "[…] o velho diplomata, sabendo quem era, não esperou que acabasse o charuto; mandou-lhe dizer que viesse. Custódio saiu, correu, subiu e entrou assombrado" (ASSIS, 2015ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015. v. 1, p. 1044-1193., p. 1127, grifo nosso).

Essas passagens acumulam vários significados. O primeiro consiste em reparar nos diferentes ritmos em que estão as personagens: enquanto Aires lia um capítulo de Xenofonte durante o almoço e gastaria "uma ou duas horas" para fumar seu charuto, Custódio estava em plena azáfama. A essa altura, ainda não sabemos o motivo para tanto, mas essa assincronia, materializada nas ações das figuras, diz muito: estamos diante de um homem culto e bem-posicionado na corte que exerce o mando, em contraste com a figura apressada e esbaforida do confeiteiro que se ressente da mudança do regime.

Outro dado relevante envolve as diferentes posições ocupadas por conselheiro e confeiteiro. Repare-se que o criado de Aires atende o vizinho no alto da escada, o que reforça o fato de que enquanto Aires pode descansar demoradamente, o comerciante está a percorrer as ruas em ritmo acelerado, na tentativa de consertar um equívoco involuntário. A seu turno, o narrador, aderindo à postura do conselheiro, reproduz também a sua dicção: concede em sumarizar os fatos ao leitor, relativizando a gravidade do que acontecera a Custódio:

Custódio explicou-se. Vá, resumamos a explicação.

Na véspera, tendo de ir abaixo, Custódio foi a rua da Assembleia, onde se pintava a tabuleta. Era já tarde; o pintor suspendera o trabalho. Só algumas das letras ficaram pintadas, - a palavra Confeitaria e a letra d. A letra o e a palavra império estavam só debuxadas a giz. Gostou da tinta e da cor, reconciliou-se com a forma, e apenas perdoou a despesa. Recomendou pressa. Queria inaugurar a tabuleta no domingo.

Ao acordar de manhã não soube logo do que houvera na cidade, mas pouco a pouco vieram vindo as notícias, viu passar um batalhão, e creu que lhe diziam a verdade os que afirmavam a revolução e vagamente a república. (ASSIS, 2015ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015. v. 1, p. 1044-1193., p. 1127, grifos do original).

O leitor deve se lembrar que o título dado ao capítulo se refere à instrução entregue pelo caixeiro (a cargo de Custódio) ao sujeito que pintava a nova placa da confeitaria. No entanto, para desespero do confeiteiro, a mensagem não chegara em tempo de suspender o trabalho caprichado de confeccionar uma nova tabuleta para o seu estabelecimento:

Custódio enfiou um casaco de alpaca e voou à rua da Assembleia. Lá estava a tabuleta, por sinal que coberta com um pedaço de chita; alguns rapazes que a tinham visto, ao passar na rua, quiseram rasgá-la; o pintor, depois de a defender com boas palavras, achou mais eficaz cobri-la. Levantada a cortina, Custódio leu: "Confeitaria do império". Era o nome antigo, o próprio, o célebre, mas era a destruição agora; não podia conservar um dia a tabuleta, ainda que fosse em beco escuro, quanto mais na rua do Catete… (ASSIS, 2015ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015. v. 1, p. 1044-1193., p. 1127-1128, grifo do original).

Para além da prudência do pintor, que cobre a tabuleta por temer a reação dos adeptos do regime recém-implantado, é preciso reparar nos materiais que vestem o confeiteiro e protegem o material. Custódio "enfiou um casaco de alpaca" e "voou" até a "rua da Assembleia". Lá, a tabuleta "por sinal" estava "coberta com um pedaço de chita". Alpaca é um tecido de lã usualmente vestido por pessoas de menor condição financeira. Chita é um tecido de algodão com trama simples (portanto, menos resistente) utilizado na confecção de vestidos baratos. Trata-se de dois índices que, referidos en passant pelo narrador, dizem muito sobre as assimetrias sociais subjacentes ao episódio.

A cena em que Custódio "voa" até a "rua da Assembleia" recupera o ritmo veloz do confeiteiro desde o lance anterior, quando estivera na casa do conselheiro. Além disso, o nome das ruas não é gratuito. Aires e Custódio moram na rua do Catete, onde também fica a confeitaria; o pintor está na rua da Assembleia - algo sugestivo, considerando que o país atravessava um novo golpe político, décadas depois.10 10 Assim como a mudança de regime se deveu a um golpe capitaneado pelo Exército, em 1889, vale recordar o Golpe da Maioridade, que aconteceu em 1831. Por uma manobra dos homens mais poderosos, próximos da antiga corte portuguesa, Pedro II fora aclamado imperador aos cinco anos de idade, aguardando até catorze para assumir o trono.

Afora a representação das assimetrias sociais, mais ou menos atreladas aos logradouros e ambientes onde transcorre o episódio, há outro dado a observar. Relendo os capítulos LXII e LXIII com maior atenção, o leitor notará que Custódio se mostra mais preocupado que o esperado com a possibilidade de ter que pagar por um trabalho que não teria serventia alguma:

[…] Excelentíssimo. Ajude-me a sair deste embaraço. A tabuleta está pronta, o nome todo pintado. - "Confeitaria do Império", a tinta é viva e bonita. O pintor teima em que lhe pague o trabalho, para então fazer outro. Eu, se a obra não estivesse acabada, mudava de título, por mais que me custasse, mas hei de perder o dinheiro que gastei? V. Exª crê que, se ficar "Império", venham quebrar-me as vidraças? (ASSIS, 2015ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015. v. 1, p. 1044-1193., p. 1128).

A essa altura, talvez nos perguntemos por que ele age dessa maneira, já que, não havendo como reverter a pintura da tabuleta "viva e bonita", seria mais fácil contornar a situação encomendando um novo trabalho ao pintor, evitando se comprometer com saudosistas da monarquia ou ferrenhos republicanos. Afinal, por que Custódio não age dessa forma? A resposta pode parecer simples, mas é um tanto mais complexa, porque há uma sutileza a ser observada. Durante o episódio, há várias menções ao valor que ele teria que desembolsar pela nova tabuleta, mas isso não justificaria a sua extrema preocupação com isso. Para sermos mais exatos, a palavra "custo" aparece apenas uma vez; mas o verbo "pagar" comparece em quatro ocasiões e "despesa(s)", em nove:

[1] "Quer dizer que o senhor paga primeiro a despesa. Depois, pinto outra coisa." [2] "O pintor teima em que lhe pague o trabalho, para então fazer outro." [3] "Perdendo o que tinha, já perdia a celebridade, além de perder a pintura e pagar mais dinheiro." [4] "Disse-lhe então que o melhor seria pagar a despesa feita e não pôr nada, a não ser que preferisse o seu próprio nome: 'Confeitaria do Custódio'." (ASSIS, 2015ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015. v. 1, p. 1044-1193., p. 1128-1130, grifos nossos).

[1] "Gostou da tinta e da cor, reconciliou-se com a forma, e apenas perdoou a despesa." [2] "Quer dizer que o senhor paga primeiro a despesa." [3] "[…] Custódio confessou tudo o que perdia no título e na despesa […]." [4] "Não digo que não, e, a não ser a despesa perdida…" [5] "[…] não o afligia menos a despesa que teria de fazer de quando em quando […]." [6] "[…] só ele faria as despesas da pintura, e ainda por cima perdia a freguesia." [7] "[…] o melhor seria pagar a despesa feita e não pôr nada […]." [8] "[…] as revoluções trazem sempre despesas." [9] "Nem tudo são despesas na vida, e a glória das relações podia amaciar as agruras deste mundo." (ASSIS, 2015ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015. v. 1, p. 1044-1193., p. 1127-1130, grifos nossos).

A importância dos nomes atribuídos às personagens machadianas não pode ser descartada. Repare-se em como se chama o proprietário da confeitaria. Acrescente-se ao seu nome o fato de ele se mostrar mais preocupado com o valor que teria que pagar pelo trabalho do pintor do que com a turbulência política, devida à mudança do velho para o novo regime. O comportamento do confeiteiro soa caricato: o episódio sugere que se trata de um sujeito sovina e que, por conseguinte, detesta gastar.

Em outros termos, poderíamos supor que Custódio é um trocadilho: um nome composto que traduz, precisamente, o ódio ao custo. O narrador oferece algumas pistas ao leitor, em particular uma observação feita pelo conselheiro: "Aires compreendeu bem que o terror ia com a avareza" (ASSIS, 2015ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015. v. 1, p. 1044-1193., p. 1128, grifo nosso). Aceita essa hipótese, seria importante salientar como a ligeireza do confeiteiro, financeiramente remediado, contrasta com os gestos calmos e superiores do conselheiro do Império. A urgência de um leva-o a correr pelas ruas da cidade; a condição do outro permite-lhe manter a posição de homem sábio e discreto, com tempo de sobra para se divertir em busca de soluções sobre a redação da velha-nova tabuleta.

O alheamento do povo

Na madrugada do dia 15 de novembro, após passear com amigos, entusiastas do novo regime, Paulo volta para casa e encontra a mãe preocupada e arrependida por ter permitido que ele saísse. Antes de subir para o quarto, Natividade pede ao filho que não comente nada com Pedro, àquela hora já deitado, para evitar brigas. Enquanto permaneciam acordados, ambos os irmãos cogitavam sobre os eventos. Enfim, o sono chegou e fez com que as ideias se tornassem "esgarçadas, nevoentas e repetidas, até que se perderam e eles dormiram. Durante o sono, cessou a revolução e a contrarrevolução, não houve monarquia nem república, nem D. Pedro II nem Marechal Deodoro, nada que cheirasse a política" (ASSIS, 2015ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015. v. 1, p. 1044-1193., p. 1135-1136). Enquanto dormiam, os gêmeos deixaram a política de lado e sonharam com Flora.

Situado no capítulo LXVII, o excerto pode simbolizar a reação da burguesia oitocentista à mudança de regime. Desde a Conjuração Mineira, passando pelas revoluções que ocorreram no início do Segundo Império, o ideário republicano inspirava, em alguma medida, a classe política brasileira e contagiava muitos daqueles que estavam em seu entorno, provocando, de um lado, calorosos embates entre intelectuais; do outro, a repressão àqueles que se opunham ao regime monárquico. Quando a República foi proclamada, entretanto, o regime monárquico encontrava-se bastante desgastado. John Gledson (2003GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003., p. 200) formula hipótese interessante, em que associa a desintegração do Império ao episódio da tabuleta:

Será que isso [a tabuleta] não se aplica ao Império, que exteriormente ainda era o mesmo (de modo que tantos, inclusive Custódio, surpreendem-se profundamente quando ele desaba), mas por dentro estava deteriorado, incapaz de renovação? Menos que uma condenação moral do regime, parece seu julgamento histórico: os regimes, como as pessoas e os organismos, chegam ao fim de suas vidas úteis.

Em tese, as bases sobre as quais o Império fora erigido (escravidão, oligarquia agrária, apoio do clero, poder centralizado) teriam ruído e, como explicou Nelson Werneck Sodré (2004SODRÉ, Nelson Werneck. Panorama do Segundo Império. 2. ed. Rio de Janeiro: Graphia, 2004., p. 302), "Nos últimos anos da sua trajetória o império não faz mais do que ceder. Ceder e retrair-se". O desgaste, lento e contínuo, explicaria o motivo de a mudança de regime ter se dado de forma, por assim dizer, pacífica.11 11 "O que mais espanta aos que estudam o colapso do império não é que ele tivesse sido vítima de uma minoria, não é que ele tivesse sido derrocado por uma questão militar, aparentemente ligada ao simples fato de uma sucessão ministerial, não é que esse acontecimento tivesse se processado em horas - mas que a transição se operasse pacífica, que ela não encontrasse no regime a findar um único sinal de resistência." (SODRÉ, 2004, p. 312). Provavelmente, o povo não fazia ideia do que se passava: é possível que pensassem que se tratasse de um desfile militar. O fato é que, na manhã do dia 15 de novembro de 1889, o ministro Ouro Preto foi deposto e a República proclamada horas mais tarde. Conservador e monarquista convicto, simpático ao imperador Pedro II, o marechal Deodoro relutou até o último instante. Os registros sugerem que não houve tiros, nem enfrentamentos ou quaisquer ações que pudessem revelar que se vivenciava um golpe de Estado.

No Diário Popular de 18 de novembro de 1889, foi publicada a máxima de Aristides Lobo, referida por diversos historiadores,12 12 Leôncio Basbaum (1976), Cruz Costa (1972), Nelson Werneck Sodré (2004) e José Murilo de Carvalho (2019), entre outros, referem-se a essa declaração de Aristides Lobo. sobre o alheamento do povo quanto à mudança do regime - "O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada [militar]". De modo análogo ao conselheiro Aires,13 13 No capítulo LXIV, após Santos confirmar a mudança de regime, lê-se: "Aires quis aquietar-lhe o coração. Nada se mudaria; o regímen, sim, era possível, mas também se muda de roupa sem trocar de pele. Comércio é preciso. Os bancos são indispensáveis. No sábado, ou quando muito na segunda-feira, tudo voltaria ao que era na véspera, menos a constituição" (ASSIS, 2015, p. 1131). o povo - representado metonimicamente pelo dono da confeitaria - encontrava-se distante das discussões acerca da transição de governo. Segundo Cruz Costa (1972COSTA, Cruz. Pequena história da República. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972., p. 45), a instauração da República foi uma "nova composição das classes dominantes", amparada pelas Forças Armadas. A seu ver:

A declaração do novo regime político, por certo, não tivera o condão de transformar a ordem política do país, nas suas bases sociológicas, e, nem sequer, nas suas bases jurídicas, já que grande parte da legislação e das instituições governamentais que o país criara durante o Império, especialmente durante o segundo Império, continua na República. (COSTA, 1972COSTA, Cruz. Pequena história da República. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972., p. 46).

Isso posto, caberia indagar por que a população em geral não estava inteirada acerca dos fatos e eventos. Seria sintoma de mero descaso? A segunda metade do século XIX foi um período de grande efervescência social, política e cultural. Muitas ideias (quase todas exportadas pela Europa), de uma forma ou de outra, foram mal acomodadas à realidade brasileira. Um dos efeitos de importar esse ideário europeu foi terem se transplantado concepções de cidadania conflitantes. Uma das consequências é que as expectativas, quanto à efetiva participação popular da vida política, "se orientassem em direções distintas e afinal se frustrassem" (CARVALHO, 2019______. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 60).

Se as concepções eram alvo de calorosas discussões entre diferentes membros da sociedade burguesa, o grosso da população - a maior parte analfabeta - sequer fazia ideia do que acontecia. Com o decreto da abolição, houve a necessidade de mão de obra, demanda essa parcialmente suprida pela imigração estrangeira. Entretanto, as classes populares, constituídas por brasileiros desempregados e imigrantes, não eram unidas a ponto de fazer valer os direitos dos trabalhadores. Adotando como referencial a Revolução Francesa, um século antes, vários artistas e intelectuais criticavam a inação do povo, frente às decisões tomadas pelo exército.

A ideia predominante era a de que no Brasil "não havia povo político, não havia cidadãos, nem mesmo na capital do país. A política era, na melhor das hipóteses, assunto dos estados-maiores das classes dominantes" (CARVALHO, 2019______. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 65). Com o passar do tempo, setores expressivos da população começaram a se reunir em torno de sindicatos; mas as ações não eram respaldadas por concepções políticas sólidas e definidas. Pelo contrário, o setor popular era bastante fragmentado. As pautas que mais uniam os brasileiros eram de ordem moral e religiosa, na maioria das vezes, e "o encontro de governantes com o povo dava-se fora dos domínios da política" (CARVALHO, 2019______. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 134).

Considerações finais

As queixas e os protestos de setores das classes médias e populares nem sempre estavam relacionados à mudança de regime, mas ao despotismo que orientava os mandos e desmandos dos ilustres representantes do governo. Como salienta José Murilo de Carvalho (2019______. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 138), "entre as reivindicações não se colocava a de participação nas decisões, a de ser ouvido ou representado". Agitado e inseguro, em meio a um cenário tão turbulento, não seria difícil compreender a atitude pragmática do dono da confeitaria, temeroso de que o seu estabelecimento fosse prejudicado e sofresse represálias. Zelando por seus negócios, embora apartado do debate público, o comerciante não hesita: pede ao pintor que interrompa o trabalho. A seu ver, desde que as possibilidades de lucro não fossem comprometidas, a mudança de regime no país não teria maior relevância.14 14 No capítulo LXVI, Santos recebe alguns amigos para um jogo de cartas. A princípio, estava receoso e pensava em não jogar, mas cede e, segundo o narrador "Ninguém sabia se a vitória do movimento era um bem, se um mal, apenas sabiam que era um fato" (ASSIS, 2015, p. 1133).

A "reforma" de fachada na Confeitaria do Império, representada pela nova pintura da tabuleta, provavelmente teria se inspirado em nota veiculada pelo Diário de Notícias em 1892: política adotada por Rui Barbosa, à frente da pasta das Finanças, que consistia na expansão do crédito, no incentivo à criação de bancos e empresas, além da impressão de papel-moeda em larga escala. Como sabemos, o estratagema fracassou, levando à desvalorização monetária e à falência de muitas empresas (COSTA, 1972COSTA, Cruz. Pequena história da República. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972., p. 51) - situação também descrita no capítulo LXXIII do romance.

Nesse sentido, o episódio também pode ilustrar a especulação e a sede desmedida por lucro, durante o período. Iludida com a política econômica de Rui Barbosa, parte expressiva da população embarcou nas promessas do ministro, desatenta aos velhos-novos rumos do país, incapaz de enxergar as novas formas de violência e os perigos que avizinhavam da novíssima República. Sugestivamente, Gilberto Pinheiro Passos (2008______. As sugestões do conselheiro: a França em Machado de Assis: Esaú e Jacó e Memorial de Aires. 2. ed. São Paulo: Nankin; Edusp, 2008., p. 64) considera que Esaú e Jacó seja "um romance de representação do Brasil". Conforme sintetiza Dilson Ferreira da Cruz (2009CRUZ, Dilson Ferreira da. O éthos dos romances de Machado de Assis: uma leitura semiótica. São Paulo: Edusp; Nankin, 2009., p. 143-144):

Outro percurso constitui-se ao longo do romance: o do Brasil. A menção ostensiva a fatos da história brasileira, como não ocorre em nenhum outro texto de Machado, à exceção de Iaiá Garcia e das crônicas, acaba por fazer com o que o próprio País se constitua sujeito. Aspectos da vida nacional, até então só abordados nas colunas que Machado matinha nos jornais se fazem, então, presentes: a crise de 1855, a abolição da escravatura; o célebre baile da Ilha Fiscal, derradeiro do Império, descrito em primeira pessoa por Aires nos capítulos XLVIII e XLIX; a proclamação da República, que ocupa nove capítulos praticamente inteiros; vários fatos que se seguiram a ela, como a Constituição de 24.02.1891; a política do encilhamento, do qual Santos teria sido um dos protagonistas; o golpe de Estado de Deodoro e o contragolpe de Floriano, que derruba de novo a carreira de Batista; a revolta da armada e a revolução federalista; além do fato de o próprio marechal Floriano surgir como personagem e título do capítulo LXVII, "Visita ao Marechal" [sic].

Machado de Assis não apenas aludiu a diferentes pares alegóricos no romance. Ele incorporou temas estruturantes, como o das constantes dissensões entre os irmãos, "de modo diminuído" (PASSOS, 2008______. As sugestões do conselheiro: a França em Machado de Assis: Esaú e Jacó e Memorial de Aires. 2. ed. São Paulo: Nankin; Edusp, 2008., p. 58), além de transformar em matéria de ficção a nota de jornal que descrevia uma situação aparentemente corriqueira, elevada à categoria de pseudofilosofia pelo conselheiro Aires, cuja "única crença reside na capacidade da linguagem para mudar a aparência, mas não a essência, que permanece na ordem do inefável" (CRUZ, 2009CRUZ, Dilson Ferreira da. O éthos dos romances de Machado de Assis: uma leitura semiótica. São Paulo: Edusp; Nankin, 2009., p. 145).

O antagonismo alimentado pelos irmãos Pedro e Paulo, em paralelo com as assimetrias sociais que distanciam as demais personagens, caminha ao lado de poderosas alegorias que figuram o ocaso do Império e a súbita tomada de poder pelos republicanos. Ao recorrer a diferentes registros narrativos entre o jornal e o livro, mais ou menos situados entre a linguagem referencial e a linguagem poética, o romance dessacraliza as fontes históricas, estiliza o texto de jornal e contradiz o senso comum - pretensamente pautado na moral, nos bons costumes e na ilusão de modernidade.15 15 Como percebeu Hélio Guimarães (2004, p. 239), "Muitos desses procedimentos, que poderíamos chamar de desmistificadores do processo de construção ficcional, fazem-se notar desde Ressurreição. A especificidade é que agora o narrador procura arrastar seu interlocutor às profundezas da escrita, ou aos seus subterrâneos, para lembrar também outra metáfora radical, a de Augusto Meyer, insistindo nos ditos e desmentidos e na manipulação derrisória da paciência do leitor".

Esaú e Jacó também poderia ser lido como um competente estudo de caracteres, já que sublinha traços da ambição, do egoísmo e da mesquinharia, mal disfarçados pelo verniz cultural e pelo (violento) cinismo, ambientado dentro e fora da caserna.

Referências

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  • VARA, Teresa Pires. A mascarada sublime: estudo de Quincas Borba. São Paulo: Duas Cidades, 1976.
  • 1
    Edgar Lyra refere-se aos conceitos de pathos e ethos, recordando as três dimensões do discurso sistematizadas por Aristóteles [ethos > caráter demonstrado/afetado pelo orador; logos > saber, razão, palavra; pathos > paixão(ões) a ser(em) despertada(s) pelo orador no auditório].
  • 2
    Conforme assinalou Roberto Acízelo de Souza (1999SOUZA, Roberto Acízelo de. O império da eloquência: retórica e poética no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: EdUERJ; EdUFF, 1999., p. 1), "Durante o século XIX, há no Brasil um grande interesse pelos estudos de retórica (a que se anexam ou com que se confundem os de poética), interesse traduzido por várias publicações e pela inserção das disciplinas mencionadas nos currículos escolares. Observa-se, contudo, que esse interesse desaparece no final dos anos de 1800, embora diversos resíduos dessa tradição se tenham conservado no século XX".
  • 3
    "Durante os Oitocentos, a arte de 'bem-dizer' (na definição de Quintiliano) confundia-se com a pompa dos oradores de mesa, canapé e tribuna. Na literatura, avulta o nome de Machado de Assis, que, segundo Maria Nazaré Lins Soares, 'ridicularizou, através da sua [obra] todos aqueles que se compraziam em erguer no vazio estruturas verbais grandiloquentes, pensando com isso estar fazendo literatura'." (CHAUVIN, 2017CHAUVIN, Jean Pierre. Retórica, controvérsia do Oitocentos. Revista Patrimônio e Memória, Assis, v. 13, n. 2, p. 14-27, 2017., p. 19).
  • 4
    A litotes, revelada por Hélcio Martins (2005MARTINS, Hélcio. A litotes em Machado de Assis. In: ______. A rima na poesia de Carlos Drummond de Andrade & outros ensaios. Rio de Janeiro: ABL; Topbooks, 2005. p. 309-335.); a paródia, detectada por Dirce Côrtes Riedel (2008RIEDEL, Dirce Côrtes. Tempo e metáfora em Machado de Assis. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008.), Teresa Pires Vara (1976VARA, Teresa Pires. A mascarada sublime: estudo de Quincas Borba. São Paulo: Duas Cidades, 1976.), Gilberto Pinheiro Passos (2000PASSOS, Gilberto Pinheiro. O Napoleão de Botafogo: presença francesa no Quincas Borba de Machado de Assis. São Paulo: Annablume; Capes, 2000.) e Hélio de Seixas Guimarães (2004GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. São Paulo: Edusp; Nankin , 2004.); a estilização da linguagem, demonstrada por Maria Nazaré Lins Soares (1968SOARES, Maria Nazaré Lins. Machado de Assis e a análise da expressão. Rio de Janeiro: INL, 1968.), João Adolfo Hansen (2006HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Hedra; Campinas: Editora da Unicamp, 2006.), Dilson Ferreira da Cruz (2009CRUZ, Dilson Ferreira da. O éthos dos romances de Machado de Assis: uma leitura semiótica. São Paulo: Edusp; Nankin, 2009.), Ivan Teixeira (2010TEIXEIRA, Ivan. O altar & o trono: dinâmica do poder em "O alienista". Cotia: Ateliê; Campinas: Editora da Unicamp, 2010.), Sílvia Maria Azevedo (2010AZEVEDO, Sílvia Maria. Brasil em imagens: um estudo da revista Ilustração Brasileira (1876-1878). São Paulo: Editora Unesp, 2010.), João Cezar de Castro Rocha (2013ROCHA, João Cezar de Castro. Machado de Assis: por uma poética da emulação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2013.) etc.
  • 5
    O sentido mais abrangente de alegoria traduz-se na "exposição de um pensamento sob forma figurada" (CUNHA, 2010CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4. ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010., p. 23). Na Routledge Encyclopedia of Narrative Theory (HERMAN; JAHN; RYAN, 2005HERMAN, David; JAHN, Manfred; RYAN, Marie-Laure (Org.). Routledge Encyclopedia of Narrative Theory. London: Routledge, 2005., p. 10), encontramos a seguinte descrição do termo: "Derived from Greek allos (other) and agoreuo (to speak publicly, in the agora or marketplace), allegory may be broadly defined as the art of 'speaking other', that is, of conveying a multiple meaning" - "Derivada do grego allos (outro) e agoreuo (falar publicamente, na ágora ou no mercado), alegoria pode ser definida como a arte de 'dizer outro', ou seja, acumular múltiplos sentidos" (tradução nossa). Na Merriam Websters' Encyclopedia of Literature (1995MERRIAM-WEBSTER'S Encyclopedia of Literature. Springfield: Merriam-Webster, 1995., p. 35), lemos: "Literary allegories typically express situations, […] persons, and actions or interactions. Such early writers as Plato, Cicero, Apuleius, and Augustine made use of allegory, but it became especially popular in sustained narratives of the Middle Ages" - "Usualmente, as alegorias literárias expressam situações, […] personagens, e ações ou interações. Na Antiguidade, Platão, Cícero, Apuleio e Agostinho recorreram à alegoria, mas ela se tornou mais popular em narrativas produzidas durante a Idade Média" (tradução nossa).
  • 6
    Para o caso de o leitor não ter em mente as possíveis ligações entre o nome do romance e dos protagonistas, inclui-se esta breve explicação. De acordo com as Escrituras (cf. Gn 25,19-23), Esaú e Jacó, filhos de Isaque, desentendiam-se desde o ventre de Rebeca, sua mãe, da mesma forma que os gêmeos Pedro e Paulo. Aliás, é bem evidente a apropriação feita por Machado dessa passagem; basta comparar o trecho bíblico mencionado ao primeiro capítulo do romance, em que a cabocla pergunta a Natividade se os meninos haviam brigado no ventre materno e, em seguida, "prediz" um futuro brilhante para os rapazes. Além desse índice, há que se lembrar as desavenças entre os apóstolos Pedro e Paulo (cf. Gl 2,11-18) quanto à necessidade de observância, pelos prosélitos e novos convertidos, de ritos cerimoniais da lei de Moisés, àquela altura já abolidos pelo Concílio de Jerusalém (cf. At 15). Pode-se pensar em uma espécie de sobreposição de sentidos alegóricos na escolha do título do romance e dos nomes dos personagens (cf. BÍBLIA, 2015BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 2015.).
  • 7
    "[…] estilo da frase machadiana, […] que é perifrástica e tortuosa, ampulosa e por vezes obscura na sua constituição estrutural, pela necessidade de atender expressivamente àquele estilo de ébrio, de sucessivos contornos e alternadas quedas à direita e à esquerda, semelhante na sua linha à da própria composição do romance e do conto machadiano" (MARTINS, 2005MARTINS, Hélcio. A litotes em Machado de Assis. In: ______. A rima na poesia de Carlos Drummond de Andrade & outros ensaios. Rio de Janeiro: ABL; Topbooks, 2005. p. 309-335., p. 323).
  • 8
    "[…] o jogo é diametralmente oposto à seriedade. À primeira vista, esta oposição parece tão irredutível a outras categorias como o próprio conceito de jogo. Todavia, caso o examinemos mais de perto, verificamos que o contraste entre jogo e seriedade não é decisivo nem imutável. É lícito dizer que o jogo é a não seriedade, mas esta afirmação, além do fato de nada nos dizer quanto às características positivas do jogo, é extremamente fácil de refutar. Caso pretendamos passar de 'o jogo é a não seriedade' para 'o jogo não é sério', imediatamente o contraste tornar-se-á impossível, pois certas formos de jogo podem ser extraordinariamente sérias" (HUIZINGA, 2008HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 5. ed. Tradução de João Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 2008., p. 8).
  • 9
    Transcrevemos os quatro primeiros parágrafos da nota, seguindo a ortografia da época: "Constando que uma casa estrangeira, a loja de camas da rua da Assembléa n. 71, de Luiz Seabra Coelho, tinha entre as taboletas uma imitação da bandeira nacional, em que fôra substituída por um dístico infamante a inscripção patriótica Ordem e Progresso, um grupo numeroso de populares exaltados dirigio-se á referida casa para, dizia elle, vingar a affronta.
    Lá chegando, não achou mais a escandalosa taboleta, que fôra prudentemente retirada. Em compensação verificou que toda a frente da casa de negocio estava coberta de laminas de zinco, onde as mais torpes palavras (que surprehende que não tivessem ainda sido vistas pela policia) se podiam ler de mistura com a data de 15 de novembro.
    Possuido de justo furor, o povo invadio a loja, exigindo energicamente a taboleta insultuosa para a nossa bandeira.
    Como a dita taboleta não pudesse ser encontrada, como não pôde tambem ser encontrado o dono do estabelecimento, o povo investio contra as bambinellas arriadas e servindo-se d'ellas como escadas, arrancou todas as taboletas onde figurava a data da revolução e as reunio para entregar á policia".
  • 10
    Assim como a mudança de regime se deveu a um golpe capitaneado pelo Exército, em 1889, vale recordar o Golpe da Maioridade, que aconteceu em 1831. Por uma manobra dos homens mais poderosos, próximos da antiga corte portuguesa, Pedro II fora aclamado imperador aos cinco anos de idade, aguardando até catorze para assumir o trono.
  • 11
    "O que mais espanta aos que estudam o colapso do império não é que ele tivesse sido vítima de uma minoria, não é que ele tivesse sido derrocado por uma questão militar, aparentemente ligada ao simples fato de uma sucessão ministerial, não é que esse acontecimento tivesse se processado em horas - mas que a transição se operasse pacífica, que ela não encontrasse no regime a findar um único sinal de resistência." (SODRÉ, 2004SODRÉ, Nelson Werneck. Panorama do Segundo Império. 2. ed. Rio de Janeiro: Graphia, 2004., p. 312).
  • 12
    Leôncio Basbaum (1976BASBAUM, Leôncio. História sincera da República: das origens a 1889. 4. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1976.), Cruz Costa (1972COSTA, Cruz. Pequena história da República. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.), Nelson Werneck Sodré (2004SODRÉ, Nelson Werneck. Panorama do Segundo Império. 2. ed. Rio de Janeiro: Graphia, 2004.) e José Murilo de Carvalho (2019______. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.), entre outros, referem-se a essa declaração de Aristides Lobo.
  • 13
    No capítulo LXIV, após Santos confirmar a mudança de regime, lê-se: "Aires quis aquietar-lhe o coração. Nada se mudaria; o regímen, sim, era possível, mas também se muda de roupa sem trocar de pele. Comércio é preciso. Os bancos são indispensáveis. No sábado, ou quando muito na segunda-feira, tudo voltaria ao que era na véspera, menos a constituição" (ASSIS, 2015ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015. v. 1, p. 1044-1193., p. 1131).
  • 14
    No capítulo LXVI, Santos recebe alguns amigos para um jogo de cartas. A princípio, estava receoso e pensava em não jogar, mas cede e, segundo o narrador "Ninguém sabia se a vitória do movimento era um bem, se um mal, apenas sabiam que era um fato" (ASSIS, 2015ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2015. v. 1, p. 1044-1193., p. 1133).
  • 15
    Como percebeu Hélio Guimarães (2004GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. São Paulo: Edusp; Nankin , 2004., p. 239), "Muitos desses procedimentos, que poderíamos chamar de desmistificadores do processo de construção ficcional, fazem-se notar desde Ressurreição. A especificidade é que agora o narrador procura arrastar seu interlocutor às profundezas da escrita, ou aos seus subterrâneos, para lembrar também outra metáfora radical, a de Augusto Meyer, insistindo nos ditos e desmentidos e na manipulação derrisória da paciência do leitor".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Jan 2023
  • Aceito
    10 Abr 2023
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