Acessibilidade / Reportar erro

A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória

RESENHAS

OLIVEIRA, João Pacheco de (org). 2011. A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro: Contra Capa. 714pp.

Maria Regina Celestino de Almeida

Universidade Federal Fluminense

Os povos indígenas do Nordeste nunca deixaram de existir. Do século XVI aos nossos dias, estabeleceram distintas formas de interação bélica, política, econômica, religiosa e social com diferentes agentes sociais e étnicos para enfrentar situações de extrema violência. Guerras, acordos de paz, conversões religiosas, alianças, roubos, conflitos armados, recursos jurídicos, negociações, deslocamentos, fugas, apropriações de novos códigos culturais e políticos, rearticulações culturais, sociais e identitárias foram algumas das muitas estratégias por eles adotadas. Misturaram-se e transformaram-se muito, porém não deixaram de ser índios, como revelam os 23 capítulos desta coletânea. A ideia equivocada de que os povos indígenas do Nordeste foram extintos junto com suas aldeias coloniais no século XIX, que já vem sendo desconstruída desde o século passado, recebe um golpe fatal com a publicação deste livro e deve ser definitivamente enterrada.

Além de demonstrar a falácia dessa noção, o livro leva o leitor a entender como e porque uma ideia tão equivocada, que absolutamente não se sustenta com a própria documentação da época, foi construída e mantida ao longo dos séculos XIX, XX e XXI, alimentando a opinião pública e os discursos e as análises de intelectuais e políticos que contribuíam para reforçá-la. Com o objetivo de "fornecer ao leitor um amplo painel compreensivo da trajetória histórica dos índios do Nordeste" (:10), João Pacheco de Oliveira reuniu textos de reconhecidos especialistas na temática indígena da região, cujas pesquisas sólidas e inovadoras têm contribuído para uma revisão significativa dos estudos históricos e antropológicos sobre os índios. Apresentado como desdobramento de um amplo projeto de pesquisa que resultou na exposição "Os primeiros brasileiros" e contou com a participação de vários autores aqui reunidos, o livro inclui um instigante caderno de imagens que, no entanto, exceto pela apresentação e pelo capítulo final, é pouco explorado ao longo da obra.

Com esta publicação, Pacheco de Oliveira dá continuidade ao relevante trabalho que, junto a outros antropólogos e historiadores, vem desenvolvendo há várias décadas. Suas significativas reflexões teóricas sobre os índios misturados, somadas ao desenvolvimento, ao incentivo e à orientação de inúmeras pesquisas empíricas sobre o tema, têm contribuído para descartar antigas concepções dualistas, como índio puro/índio aculturado, resistência/aculturação; estruturas/processos históricos que, em grande parte, embasavam os discursos do desaparecimento dos índios do Nordeste desde o século XIX até muito recentemente. Na linha da antropologia histórica e da história antropológica, os estudos atuais valorizam a compreensão de cultura e etnicidade como produtos históricos que se alteram, conforme as interações dos povos indígenas entre si e com as sociedades envolventes, tal como se verifica na coletânea A viagem da volta, por ele organizada, em 1999.

Os historiadores, por sua vez, no rumo indicado por John Monteiro, estudam os índios como sujeitos históricos, cuja atuação é compreendida a partir dos seus próprios interesses que, vinculados à dinâmica de suas sociedades, modificam-se continuamente pelas experiências do contato. O olhar antropológico sobre a documentação e a historicização dos conceitos e das categorias analíticas, das relações interétnicas, dos processos de mestiçagem, da produção dos documentos, da construção das leis e dos discursos e análises políticos e intelectuais sobre os índios são essenciais para compreensões mais amplas e complexas de suas trajetórias. Como afirma Pacheco de Oliveira, os "indígenas longe de serem portadores de características constantes e imutáveis são sempre descritos por qualificativos variáveis [...] pois se mantêm sempre referidos a um regime de memória específico"(:13). Os vários registros de memória sobre os índios devem, pois, ser analisados e problematizados nos respectivos contextos nos quais foram elaborados.

Três questões básicas foram colocadas pelo coordenador para orientar a elaboração dos textos: "1. Que processos de submissão foram concretamente usados contra os indígenas e que graus de eficácia tiveram em torná-los dependentes dos colonizadores e cada vez mais invisíveis no conjunto da população?; 2. Como se engendrou e se manteve a representação sobre a inexistência e a invisibilidade dos indígenas no Nordeste?; 3. Por quais caminhos saíram da condição de invisibilidade e de caboclos e se transformaram em índios?"(:11)

Com diferentes abordagens e tratando temas variados, que incluem análises dos registros e das produções intelectuais sobre os índios, os autores responderam ao desafio, apresentando, em tempos e espaços diversos, distintos caminhos seguidos pelos povos estudados. As quatro partes do livro se articulam entre si e são organizadas por temas, seguindo mais ou menos as trajetórias históricas dos indígenas em cinco séculos de contato e priorizando algumas questões centrais que respondem ao objetivo da obra.

A primeira parte,"Honras e mercês: a nobreza da terra",engloba quatro capítulos que analisam as complexas relações dos indígenas entre si e com os europeus do final do século XVI a meados do XVIII. Em conjunturas de guerra e de muita violência e discriminação contra os índios, Maia, Raminelli e Vieira enfocam a ação dos líderes indígenas, conforme os códigos culturais e políticos do Antigo Regime por eles apropriados.Enfatizam seus próprios interesses e capacidade de negociação nas inconstantes alianças estabelecidas e no complexo jogo político no qual souberam atuar, dividindo-se entre si, e buscando possíveis ganhos, como honras e mercês às quais tinham limitados acessos em troca dos serviços prestados, sobretudo militares. A catequese jesuítica e suas necessárias adaptações, de acordo com as especificidades locais e as interações com os índios, incluindo suas próprias formas de apreensão do catolicismo,são analisadas em toda a sua complexidade por Castelnau-L'Estoile, através da ação missionária do Padre Francisco Pinto.

Os efeitos das reformas pombalinas sobre os índios são abordados em seis capítulos da segunda parte do livro,"Demônios e cativos, ou limites da transformação em vassalos". As adaptações do Diretório dos Índios para a região e as diferentes formas de sua aplicação conforme os locais e os grupos indígenas específicos evidenciam-se em análises que articulam política indigenista e políticas indígenas, apontando os limites impostos pelos índios às propostas para eles traçadas. Em época de intensos conflitos por terra, tanto nas áreas dos antigos aldeamentos, analisadas por Lopes e Medeiros, como nos sertões estudados por Apolinario, Galindo, Oliveira e Pompa, enfocam-se as complexas relações de guerras e negociações entre os índios aldeados, os do sertão e os não indígenas, destacando-se a intensa mobilidade e interação entre eles. O discurso da mistura, da dispersão e do desaparecimento dos índios já se colocava nesse período, em contraste com sua ação, como apontam alguns autores, introduzindo o tema da terceira parte.

"A Fabricação social da mistura"inclui sete capítulos que tratam essencialmente do processo de extinção das aldeias coloniais, enfatizando os conflitos de terra e os discursos sobre o desaparecimento dos índios, vistos como construções históricas que justificavam legalmente a extinção das aldeias. A ação decisiva dos índios, defendendo seus direitos coletivos, contradiz sua extinção e é evidenciada na ampla e diversificada documentação consultada pelos autores, que destacam contradições por vezes presentes em um mesmo documento. Alguns estudos concentram-se em regiões e/ou grupos específicos, como os de Carvalho, Magalhães, Dantas e Edson Silva que analisam os índios do extremo sul da Bahia, os Chocó, o aldeamento de Ipanema e os Xucuru, respectivamente.Maranhão Valle, Octaviano do Valle e Peixoto da Silva apresentam análises mais gerais que enfatizam os conflitos de terra na região associados à política indigenista, sem desconsiderar as especificidades dos atores políticos e as discordâncias entre diferentes instâncias de poder.

"Examinando descontinuidades: território, populações, tradições" é a quarta parte do livro e inclui seis capítulos que demonstram a presença significativa dos índios do Nordeste nos séculos XX e XXI, sem desconsiderar os intensos processos de mestiçagem. As relações interétnicas, as misturas e as várias categorias utilizadas para classificar os índios, tais como caboclos e remanescentes, são identifica-das pelos autores nos vários temas abordados: nos conflitos por terra e afirmação identitária dos Kaimbé analisados por Reesink; nas intensas e múltiplas trocas e influências culturais entre os vários gêneros musicais do Nordeste e a música indígena, conforme demonstra Pereira; nas construções intelectuais sobre os índios de Capistrano de Abreu estudadas por Gontijo; na Etnografia do salvamento do etnoarqueólogo americano Hohenthal Jr. analisada por Grünevald e Palitot; nos textos de Carlos Estevão de Oliveira e Mario Melo sobre os índios do nordeste discutidos por Secundino; como também nos registros numéricos empregados em períodos diversos para quantificar os índios, conforme análise de Pacheco de Oliveira. Ao contextualizarem historicamente a produção das informações e analisá-las à luz das atuais tendências teóricas já apontadas, os autores abordam estes vários temas, evidenciando que as mestiçagens não levavam absolutamente à extinção dos índios. Ao contrário, suas análises demonstram o "ressurgimento e a disseminação da categoria índio na região Nordeste" (:12).

Os 23 textos têm em comum a preocupação em dar visibilidade à presença indígena nos processos históricos por eles vivenciados. Os conteúdos dos capítulos dialogam entre si e até se repetem com enfoques diferenciados. Personagens, documentos e episódios particularmente marcantes aparecem, por vezes, em vários textos. Sem desconsiderarem a extrema violência das várias situações de contato, os autores demonstram a capacidade dos índios de se apropriarem dos novos códigos políticos, culturais e religiosos à sua própria maneira, utilizando-os a seu favor.

Os autores, ao valorizarem a agência indígena nas relações de contato, procurando perceber os significados que eles próprios atribuíam às suas fluidas e inconstantes alianças bélicas e políticas, aos cargos, mercês e honras desejados e nem sempre recebidos, às religiosidades impostas e assumidas, às classificações étnicas conferidas, negadas ou apropriadas, aos deslocamentos forçados ou voluntários, às diferentes formas de inserção nas várias atividades econômicas, aos conflitos por terra etc., evidenciam que a violência do contato não extinguiu os índios nem os imobilizou como agentes sociais. "Misturados e aculturados", encontraram meios de se rearticularem entre si e com outros grupos, sobrevivendo em novas bases e mantendo diferentes formas de luta em defesa de seus direitos. Vale destacar a diversidade e a riqueza da documentação consultada pelos autores, que cruzam informações de diferentes tipos de fontes orais e escritas, problematizando-as e levantando questões, sobretudo quanto às contradições a respeito do propalado desaparecimento dos índios de meados do século XVIII aos nossos dias.

Ponto alto das pesquisas é o enfoque sobre regiões, grupos e atores específicos, identificando as relações no nível local, sem perder de vista contextos mais amplos. O olhar centrado sobre atores indígenas e não indígenas, principalmente sobre os agentes intermediários (líderes indígenas, religiosos, diretores parciais de aldeias, diretores gerais de províncias, capitães mores, governadores, ouvidores, camaristas, delegados, fazendeiros etc.), considerando as especificidades dos cargos ocupados e as complexas relações entre as diferentes instâncias de poder, revela a complexidade e o vaivém das relações entre os atores que, absolutamente, não agiam como blocos monolíticos. As misturas e os deslocamentos intensos (forçados ou voluntários) entre os índios das aldeias, os dos sertões e os não índios que circulavam frequentemente entre vilas, cidades e fazendas, desde o século XVII, são analisados em vários textos da coletânea como importantes fatores para a compreensão do entrelaçamento dos processos de apagamento e ressurgimento das identidades indígenas. Afinal, ser chamado de caboclo, sertanejo, remanescente, pardo ou mestiço não significa necessariamente deixar de ser índio, como apontam as análises aqui reunidas.

É instigante observar que as atuais lutas por demarcação de terra baseadas nas identidades étnicas têm significativos antecedentes no passado, pois, desde meados do século XVIII, moradores e Câmaras municipais já ameaçavam e usurpavam as terras das aldeias indígenas com o discurso de que os índios já estavam misturados e civilizados. Em nossos dias, vários povos indígenas em processo de luta por direitos e reafirmação identitária afirmam suas origens nos aldeamentos do período colonial. A articulação contínua entre presente e passado apresenta-se, pois, em vários capítulos do livro. Desde os tempos coloniais, os índios fundamentam suas reivindicações, com base em trajetórias passadas, reconstruindo memórias a partir de referenciais do presente, grosso modo, enfatizando suas atividades de guerra e alianças com agentes de diferentes instâncias do poder. Os processos de apagamento das identidades indígenas dos séculos XVIII e XIX e de etnogênese nos séculos XX e XXI articulam-se e ganham novos significados com o aprofundamento dos estudos sobre as trajetórias específicas dos diferentes povos indígenas do nordeste.

Cabe, assim, celebrar a publicação deste livro, leitura indispensável não apenas para os especialistas do tema, mas para todos os interessados na realidade social e política do Brasil atual, onde os índios estão cada vez mais presentes e atuantes em esferas políticas, sociais e acadêmicas do nordeste e de outras regiões.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jun 2014
  • Data do Fascículo
    Abr 2014
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistamanappgas@gmail.com