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A área cultural das terras baixas da América do Sul: por uma definição estrutural1 1 Desde a primeira apresentação deste artigo em 1973, eu mudei de ideia sobre certos pontos. Isto é resultado de novos dados etnográficos e de discussões com outras pessoas, em particular aqueles que contribuíram para este volume. Sou grato a muitos destes que responderam às minhas cartas com informação, conselhos e críticas. A única grande mudança envolve minha visão a respeito da posição dos povos falantes de línguas Jê. Eu havia originalmente defendido que eles deviam ser incluídos na cultura da Floresta Tropical; agora eu defendo que não o devem.

El área cultural de las tierras bajas de América del Sur: hacia una definición estructural

Resumo

Este artigo, originalmente escrito em 1973 e publicado aqui pela primeira vez, propõe que, a despeito de sua evidente variedade cultural, as sociedades indígenas das terras baixas da América do Sul compartilham uma característica estrutural invariante que as define como “área cultural”. Esta característica é a sua terminologia de relacionamento em duas linhas articulada pela troca direta. Uma análise de terminologias de uma ampla gama de sociedades da região revela tal característica invariante apesar das diferenças terminológicas. O artigo é precedido por uma curta nota introdutória escrita especificamente para a publicação.

Palavras-chave:
Terras Baixas da América do Sul; Área Cultural; Terminologia de relacionamento em duas linhas

Resumen

El presente artículo, escrito originalmente en 1973 y publicado aquí por primera vez, propone que, a pesar de su evidente variedad cultural, las sociedades indígenas de las tierras bajas de América del Sur comparten una característica cultural invariante que las definen como un “área cultural” específica. Esta característica es su terminología de relacionamiento que se articula en dos secciones a partir del intercambio directo. Un análisis de las terminologías propias de una amplia gama de las sociedades de la región revela tal característica invariante a pesar de las diferencias terminológicas. Precede al artículo una breve nota introductoria escrita especialmente para esta publicación.

Palabras clave:
Tierras Bajas de América del Sur; Área Cultural; Terminología de relacionamiento en dos secciones

Abstract

This article, originally written in 1973 and published here for the first time, argues that, despite their evident cultural variety, the Indigenous societies of lowland South America share an invariant structural characteristic that define them as a ‘culture area’. This characteristic is a two-line relationship terminology articulated by a principle of direct exchange. An analysis of a wide range of societies from the region reveals this invariant characteristic within their terminological differences. The article is preceded by a short introductory note written specifically for this publication.

Key Words:
Lowland South America; Culture Area; Two-line relationship terminology

Apresentação (2019)

Este trabalho, que os editores deste periódico tiveram a gentileza (ou a insensatez) de publicar, viu a luz do dia pela primeira vez como uma apresentação em um simpósio da AAA em Nova Orleãs, em dezembro de 1973. O simpósio era intitulado “Práticas matrimoniais nas terras baixas da América do Sul” e foi organizado pelo já falecido Kenneth Kensinger. Os participantes do simpósio foram convidados a submeter versões de trabalhos para publicação e, no devido tempo, i.e., 1984, um volume incluindo alguns dos trabalhos, mas não o meu, foi publicado. Voltarei a isto mais a frente, mas primeiro é preciso observar que este foi o primeiro de uma série de simpósios que Kensinger organizou em colaboração com outros.

Os anais de alguns desses simpósios foram publicados em uma série manuscrita chamada “Trabalhos em desenvolvimento sobre índios sul-americanos” (Working Papers on South American Indians), da qual Kensinger foi editor geral, enquanto cada número tinha seu editor próprio. Cinco volumes destes trabalhos enfim apareceram entre 1979 e 1984, abrangendo uma gama de tópicos e todos com contribuidores cujos nomes serão familiares para qualquer um que trabalhe nas terras baixas da América do Sul. Apesar disto, tem sido raro encontrar referência a estes volumes em trabalhos recentes, possivelmente devido ao número relativamente pequeno que foi produzido e de seu formato.

Os anais do encontro de 1973 foram enfim publicados em 1984 no nº 14 do Illinois Studies in Anthropology. O volume não contém todos os trabalhos apresentados no encontro, embora incluísse dois que não haviam sido divulgados. Os trabalhos submetidos (e eu não sei quais não o foram) tinham sido enviados para pareceristas. Após um pedido no site da Sociedade de Antropólogos das Terras Baixas da América do Sul (SALSA), buscando o paradeiro dos trabalhos editados por Kensinger, especialmente aqueles relacionados à publicação deste volume, Norman Whitten entrou em contato comigo. Ele muito gentilmente obteve para mim, da Illinois University Press, uma carta que tratava dos pareceres. A editora havia enviado as contribuições para um único parecerista, F. K. Lehmann, um especialista na Birmânia, empregado na Universidade de Illinois. A editora produziu uma carta de apresentação para o que aparentemente era um parecer de sete páginas, em espaçamento simples, do qual não tinha mais uma cópia. Tal relatório também não se encontra entre os trabalhos de Kensinger depositados na Universidade de Uppsala, onde Jan-Ǻke Alvarsson teve a gentileza de buscá-lo.

A carta contém menções a algumas das contribuições, mas não à minha. A identidade do parecerista, contudo, é significativa, pois se adequa exatamente à minha memória do que aconteceu. Lehmann aderiu ao método formal de análise de parentesco proposto em Yale por Floyd Lounsbury e Harold Scheffler. Isto certamente explicaria o porquê, como eu me lembro, de eu ter recebido uma carta de Kensinger sugerindo que eu reescrevesse meu trabalho usando o método da semântica estrutural. Isto era tão contrário ao que eu estava tentando fazer que retirei minha contribuição e ela permaneceu não publicada até agora. Ela recebeu, contudo, certo reconhecimento como “o mais citado trabalho não publicado sobre parentesco amazônico”.2 2 Esta observação foi feita por Paul Henley. No entanto, embora ambos lembremos de ele a ter feito, nenhum de nós conseguiu encontrá-la! Sou ainda grato a Paul por ter mantido uma cópia deste trabalho. Eu descobri que não o tinha, e perguntei a ele na esperança de que ainda tivesse seus trabalhos e notas reunidos enquanto preparava seu “South Indian models in the Amazonia Lowlands”, Manchester Papers in Social Anthropology 1 (1996). Ademais, o trabalho utiliza a forma de análise de parentesco que tem sido mais amplamente adotada por antropólogos das terras baixas da América do Sul.

Eu deixei o trabalho quase exatamente como foi submetido para publicação. Logo percebi que se tentasse modificá-lo, todo o argumento iria rapidamente se desfazer. O trabalho deve ser lido como um documento histórico, de quase meio século, que reflete sua idade. Como eu não sabia, quando o escrevi, quais trabalhos apresentados em Nova Orleãs em 1974 seriam publicados, incluí comentários a todos eles. Isto significa que o trabalho se refere às seguintes apresentações que não aparecem na versão publicada: Michael Harner sobre os Jívaro, Napoleon Chagnon e Jacques Lizot sobre os Yanomam, Janet Siskind sobre os Cubeo, e comentários gerais sobre o noroeste amazônico por John Sorenson. Por fim, trabalhos sobre dois dos povos falantes de línguas Jê, os Apinayé, de Roberto DaMatta, e os Bororo, de Chris Crocker, não apareceram no volume publicado, embora recebam comentários no meu trabalho. As duas contribuições que foram incluídas no volume e são discutidas aqui, mas não foram apresentadas no simpósio, são aquelas sobre os Kagwahiv (Parintintin) de Waud Kracke e os Canelos Quichua de Norman e Dorothea Whitten.

I

A divisão dos povos aborígenes da América do Sul em áreas culturais que se tornou e permanece sendo a mais conhecida e influente é aquela representada pelos quatro primeiros volumes do The Handbook of South American Indians.3 3 Houve numerosas tentativas, usando uma gama de critérios de classificação de culturas sul-americanas (e. g. Wissler 1917; Stout 1938; Cooper 1942; Bennet & Bird 1949; Murdock 1951; Steward & Faron 1959). Nenhuma delas sobreviveu e a maioria foi logo esquecida. Também deve ser notado que não há correlação aparente entre cultura e língua (para uma demonstração disto em uma pequena área, ver Rivière 1969b), embora eu tenha feito um esforço provisório de isolar a cultura Carib (Rivière 1974). Neste trabalho são reconhecidas as culturas Marginais, Andinas, da Floresta Tropical e Circum-caribenhas.

Os critérios utilizados para defini-las e distingui-las são traços culturais variados, embora a ênfase colocada em elementos particulares varie de um volume para outro. Assim, a cultura circum-caribenha é identificada pela presença de um sistema de classes e cultos de templo, enquanto a Floresta Tropical e as culturas Marginais são definidas pelas respectivas presença e ausência de agricultura e a posse de certos artefatos materiais. Que havia algo errado com essa abordagem rapidamente ficou evidente e, mesmo antes da publicação de todo o Handbook, o editor, J. H. Steward, admitia que os critérios usados e o método por meio do qual eles foram aplicados deram origem a certas dificuldades classificatórias. Desse modo, como ele escreveu: “Os povos circum-caribenhos pertenceriam à Floresta Tropical se elementos materiais fossem enfatizados e aos Andes se tivesse sido dado maior peso a elementos sociais e rituais” (H.S.A.I., vol. 5:671STEWARD, Julian (org.). 1946-1950. Handbook of South American Indians. 7 vols. Bureau of American Ethnology.). Na resenha em que critica os volumes anteriores, Steward propõe uma classificação alternativa baseada principalmente em padrões religiosos e sociopolíticos. Enquanto parece, aqui, termos um movimento na direção correta, a reclassificação de Steward permanece vulnerável às mesmas críticas que podem ser dirigidas ao uso de critérios majoritariamente culturais.

Quando lemos a introdução de Lowie ao Volume 3 do Handbook, dedicado aos povos da Floresta Tropical, o que sobressai é que ele parece estar prestando atenção apenas nas diferenças. A impressão não é de que nós temos aqui uma área cultural distinta, tipificada por algumas características comuns, mas sim uma interminável e quase arbitrária variação. Essa situação pouco melhora com a adoção do critério de padrões de organização sociopolítica e instituições religiosas proposto por Steward, pois a diversidade de tais fenômenos permanece grande demais para constituir a característica definidora de uma cultura da Floresta Tropical.

Não obstante, tendo criticado essas abordagens que enfatizam a diversidade no interior da área, é forçoso admitir que tal variação existe. De fato, uma situação curiosa, até paradoxal, surge na medida em que a definição da cultura da Floresta Tropical compreende uma lista de elementos culturais que tende a enfatizar a variação, enquanto o termo genérico “cultura da Floresta Tropical” desvia a nossa atenção de mudanças extraordinariamente interessantes e frequentemente significantes na distribuição de elementos quando se passa de tribo para tribo. Isto não significa que estamos negando a existência de uma cultura da Floresta Tropical. Independente de como as chamamos, há algo, ou algumas coisas, que os povos que vivem na região da floresta tropical da América do Sul compartilham.

Aqueles que trabalham com povos da Floresta Tropical estão completamente cientes de que eles estão trabalhando em uma única tradição cultural. Eles tendem a se sentir em casa com as etnografias uns dos outros; eles reconhecem e apreciam o pano de fundo básico, e muitas vezes detalhes específicos encontram paralelos em suas próprias experiências e em seus conhecimentos. Eles geralmente estão acostumados não só com as características materiais e institucionais da existência humana na área, tais como retratadas em etnografias provenientes de regiões amplamente dispersas, como também com o modo como os mesmos objetos e seres - anacondas, jaguares, pedras e árvores podres - são usados repetidamente como símbolos para expressar ideias semelhantes. Assim sendo, este artigo não tem como meta questionar a existência desta tradição cultural. De fato, não há obstáculo, e sim vantagens para aceitar a cultura da Floresta Tropical como uma classe politética. Contudo, não precisamos parar por aí. O que precisa ser feito é considerar se não haveria afinal alguma característica, ou algumas características, que todos os povos que são representativos dessa tradição cultural compartilham. Se existe tal característica ou se existem características, parece improvável que ela ou elas sejam encontradas no nível fenomênico da organização política, grupamentos residenciais, instituições econômicas ou cultura material, em outras palavras, no nível em que a variação é máxima. É necessário olhar para além destes aspectos superficiais para ver se não há algum elemento mais fundamental e estrutural que seja a característica comum a todos os povos da Floresta Tropical.

II

Este artigo tenta propor uma característica única que pode ser encontrada entre todos os povos da Floresta Tropical. Esta característica é a terminologia de relacionamento em duas linhas, que é articulada pelo princípio da troca direta. A forma observável em que esta característica se manifesta no nível da organização social varia muito em toda a região. Estas formas vão desde sociedades com regras de descendência unilinear, metades exogâmicas e outras instituições sociais até sociedades com organização cognática e sem qualquer agrupamento permanente identificável. O termo organização dualista pode, às vezes, ser aplicado de forma adequada ao primeiro tipo de sociedade, mas uma distinção significativa deve ser feita entre aquelas sociedades cujas terminologias de relacionamento se adequam de modo consistente com as unidades sociais mais amplas e onde, consequentemente, a troca direta funcionaria na ausência dessas unidades mais amplas, e aquelas sociedades em que a troca direta depende da presença de tais unidades sociais mais amplas para operar. Argumentar-se-á que sociedades deste último tipo se situam fora da cultura da Floresta Tropical e o punhado de tais sociedades representadas neste volume serão tratadas na seção VI. Para aquelas sociedades que não possuem regras de descendência unilinear e formações sociais identificáveis, a descrição “organização dualista” revela-se sempre inapropriada, pois a natureza dual de tais sociedades existe somente como um aspecto do inter-relacionamento das categorias sociais normalmente referidas como “termos de parentesco” e não se manifesta de forma institucionalizada, exceto como ocorrência ocasional do casamento entre primos cruzados bilaterais. Assim, seja qual for o modo de organização social, o essencial é a presença de uma terminologia de relacionamento que exibe algumas características bastante específicas. Estas serão discutidas detalhadamente abaixo, mas primeiro há dois outros assuntos que precisam ser esclarecidos

Um aspecto do princípio da troca direta que articula estas terminologias é sua natureza prescritiva, e é necessário deixar perfeitamente explícito o modo pelo qual este termo será utilizado. A prescrição é compreendida como se referisse a um aspecto formal de um conjunto de categorias sociais que normalmente chamamos de “terminologia de relacionamento”. Embora possa ser acompanhada de uma regra explícita, a prescrição é uma característica intrínseca de certas terminologias de relacionamento e sua presença ou ausência pode ser descoberta pelo procedimento analítico correto. Uma vez que a prescrição é uma característica formal de uma terminologia de relacionamento, não é possível determinar sua presença ou ausência pela observação do agregado de ações individuais. A existência de prescrição como regra ou como princípio de ordenação não pode ser demonstrada por meios estatísticos, assim como não poderia ser qualquer outra regra ou princípio. Isto não significa que as ações dos indivíduos não tenham importância, pois estas claramente o são e devem ser levadas em consideração em qualquer estudo de campo. É simplesmente que, se quisermos encontrar algum princípio que todos os povos da Floresta Tropical têm em comum, não vai ser no nível do comportamento individual que o encontraremos, mas no nível das categorias sociais e dos princípios pelos quais elas são ordenadas. Pode-se notar aqui que, usados ​​neste sentido, “prescritivo” e “preferencial” não são tipos exclusivos de sociedade, pois as preferências podem ocorrer no interior da categoria prescrita. Assim, dentro da categoria prescrita, pode haver certos indivíduos específicos, genealogicamente definidos, com os quais o casamento é preferido, porque certas vantagens advêm do casamento com eles. O casamento preferencial, em oposição aos sistemas prescritivos, pode ser expresso estatisticamente. Veremos que muitas das sociedades discutidas na Seção III têm preferências (e proibições) em relação com quais membros da categoria prescrita deve se casar.

O segundo ponto é que o termo “aliança” foi evitado. Isto é proposital, pois parece que pelo menos parte do mal-entendido que gira em torno do estudo de sistemas prescritivos resulta do uso deste termo. “Aliança” em inglês é uma questão mais concreta do que precisa ser em francês. “Aliança” em inglês parece implicar uma relação, frequentemente de tom político, entre grupos reconhecíveis de indivíduos, seja como estes últimos forem definidos. Isto é fatal, pois tem tido a tendência de fazer os antropólogos pensarem que a aliança prescritiva acarreta relacionamentos entre grupos identificáveis ​​e, além disso (e pior), que esses grupos são de alguma forma representativos das categorias de relacionamento. Em algumas sociedades, essa situação é válida; existem alianças entre grupos e até mesmo uma ligação entre grupos e categorias. No entanto, em muitas sociedades e entre vários povos da Floresta Tropical, este não é o caso, e por esta razão a noção de aliança foi excluída como potencialmente enganosa.

Se o aspecto comum à cultura da Floresta Tropical é uma terminologia de relacionamento de duas linhas articulada pela troca direta prescritiva, como sua presença deve ser reconhecida? Em primeiro lugar, uma vez que esta característica é uma qualidade intrínseca da terminologia de relacionamento, ela surge quando o procedimento analítico correto é aplicado. Um aspecto fundamental e essencial é que as categorias que compõem a terminologia de relacionamento podem ser coerentemente e consistentemente ordenadas em duas linhas, em pelo menos dois níveis genealógicos e geralmente em três. Para efeitos deste artigo, essas duas linhas serão chamadas de “parentes” [kin] e “afins” [affines], embora como as chamemos seja relativamente sem importância. O que importa é salientar que essas linhas não têm nada a ver com descendência, sendo uma característica da terminologia revelada pela análise. A existência dessas duas linhas é diagnosticada pelo reconhecimento de certas equações e distinções que ocorrem na distribuição de especificações genealógicas entre os termos em uma terminologia de relacionamento. A distribuição correta das especificações também identificará a relação direta de troca entre as linhas e a natureza prescritiva da terminologia

A descrição que se segue aponta as equações e as distinções básicas que podem ser encontradas em formas simples de terminologias de duas linhas com troca direta prescritiva. Para o presente propósito, a maneira mais fácil de se referir a essas equações e distinções é pelas especificações genealógicas dos termos específicos. No entanto, é preciso estar ciente dos perigos desta abordagem e deve-se ressaltar que ela está sendo usada como uma abreviação conveniente e idiomática que pode ser totalmente estranha às pessoas cujas categorias nos interessa entender. Os números discutidos abaixo referem-se às posições da Figura 1.

No nível genealógico do ego,4 4 A menos que o contrário seja indicado, o ponto de vista do ego masculino é adotado ao longo deste artigo. os aspectos básicos do tipo de terminologia sob consideração incluem um termo (5) que abrange irmãos e primos paralelos masculinos de ego, um termo (7) para irmãs e primas paralelos femininas, um termo (8) para primos cruzados e um termo (6) para primas cruzadas.

O caráter prescritivo e de troca direta da terminologia se torna aparente quando adicionamos as especificações dos afins. O termo 8 para primos cruzados também se aplica ao marido da irmã e ao irmão da esposa, e o termo 6, para primas cruzadas, à esposa, esposa em potencial e esposa do irmão.

No primeiro nível genealógico ascendente, a equação importante é a do pai com o irmão do pai (1), e a distinção significativa é a deste termo daquele (4) para o irmão da mãe. Os termos correspondentes para mulheres equiparam a mãe à irmã da mãe (2) e as distinguem da irmã do pai (3). O termo (4) para o irmão da mãe cobre as especificações afins do marido da irmã do pai e do pai da esposa, e (3) para a irmã do pai, a esposa do irmão da mãe e a mãe da esposa.

No primeiro nível genealógico descendente, as várias especificações são geralmente distribuídas entre quatro termos da seguinte maneira: um termo (9) para filho, filho do irmão, filho do primo paralelo e filho da prima cruzada; um termo (11) para filha, filha do irmão, filha do primo paralelo e filha da prima cruzada; um termo (12) para filho da irmã, filho da prima paralela e filho de um primo cruzado; e um termo (10) para filha da irmã, filha da prima paralela e filha do primo cruzado. Os aspectos de afinidade igualam o filho da irmã (12) ao marido da filha, e a filha da irmã (10) à esposa do filho.

Esta é uma revisão simplificada (optamos, por exemplo, por ignorar os níveis genealógicos ascendentes e descendentes de segunda geração, que carecem de importância diagnóstica) das mais importantes equações e distinções características do tipo de terminologia em consideração. Mesmo assim, o leitor não deve ter dificuldade em entender por que tal terminologia pode ser descrita como de “duas linhas”, “troca direta” e “prescritiva”. Existem inúmeras sociedades cujas terminologias se aproximam dessa forma ideal e simples, mas, não surpreendentemente, muitas sociedades têm terminologias mais complexas. Variações comuns encontradas na área da Floresta Tropical incluem termos diferentes para germanos mais velhos e mais novos, a não distinção entre o sexo de irmãos mais novos, termos recobrindo especificações de mais de um nível genealógico e a ausência, em algum nível, da distinção entre as duas linhas (por exemplo, um único termo para os filhos do irmão e da irmã). No entanto, variações como estas são de grau e não de tipo, e nenhuma delas ameaça a estrutura fundamental das terminologias.

III

Podemos agora considerar exemplos concretos de povos da Floresta Tropical e suas terminologias de relação. Tudo que se pretende neste artigo é ilustrar a proposta provisória e, para este propósito, os exemplos foram limitados aos povos que são tema de outros artigos deste volume. Terminologias de relação estão disponíveis para todos eles, com exceção dos Wachipaeri. Não se pretende lidar com cada terminologia em detalhe, mas sim revisar cada uma, selecionando atributos interessantes e discutindo características aparentemente anômalas.

1) A terminologia Piaroa é um excelente exemplo do tipo que estamos discutindo e por isso ela merece tratamento especial (ver Kaplan 1975KAPLAN, Joanna Overing. 1975. The Piaroa: A People of the Orinoco Basin. Oxford: The Clarendon Press. ). A terminologia é assim:

  • cha’o: F, FB, MZH.

  • cha’hu: M, MZ, FBW.

  • chiuinya: MB, FZH, WF.

  • chuminyahu: FZ, MBW.

  • chú’bio: eB, FBSe, MZSe.

  • chihawa: yB, FNSy, MZSy.

  • chirekwa: FZD, MBD, W, BW.

  • chú’buoa: eZ, FBDe, MZDe.

  • Chihawahu: yZ, FBDy, MZDY.

  • chisapo: FZS, MBS, WB, ZH.

  • chitti: S, BS, FBSS, MZSS, FZDS, MBDS.

  • chuhorihu: ZD, FBDD, MZDD, FZSD, MBSD, SW.

  • chittihu: D, BD, FBSD, WZSD, FZDD.

  • chuhori: ZS, FBDS, MZDS, FZSS, MBSS, DH.

A inspeção deste conjunto de termos rapidamente revela que existem quatro termos em cada nível genealógico, exceto no do ego, onde se distingue entre irmãos e irmãs mais velhos(as) e mais novos(as). Com exceção desta pequena variação que, como já foi destacado, é muito comum na floresta tropical da América do Sul, a distribuição de especificações genealógicas entre os termos é exatamente a mesma retratada na figura 1. Para facilitar a comparação, os termos foram numerados tais como na figura 1.

Um atributo incomum e interessante da terminologia de relacionamento dos Piaroa é que, com exceção dos termos para primos cruzados, a mesma raiz ocorre em dois termos em cada nível genealógico. Um sufixo de gênero é usado para distinguir entre formas masculinas e femininas. Por exemplo, cha: cha’o, F; cha’hu, M. Esse uso também serve para acentuar a oposição entre parentes e afins. No primeiro nível genealógico ascendente, a mesma raiz é compartilhada por mãe e pai em oposição à da mãe da esposa e a do pai da esposa. No nível de ego, a mesma raiz é compartilhada por germanos e no primeiro nível genealógico descendente a mesma raiz é compartilhada por filho e filha em oposição àquela usada para seus cônjuges.

2) A terminologia Kulina é outro exemplo que exibe todos as equações e distinções diagnósticas delineadas na seção II (ver o artigo de Townsend e Adam). Existem dois pequenos pontos que podem ser levantados sobre esta terminologia. Primeiro, enquanto existe um termo para irmãos e primos paralelos mais velhos, e outro para irmãs e primas paralelas mais velhas, só há um termo para todos os germanos e primos paralelos mais novos. Essa indiferenciação terminológica entre o sexo dos germanos e primos paralelos mais novos é muito comum entre povos da Floresta Tropical. O segundo ponto é que pai e mãe são distinguidos de seus germanos do mesmo sexo, da seguinte maneira:

  • abi: F; abi ohuaha: FB (ohuaha: eB)

  • ami: F; ami onihi: MB (onihi: eZ)

Este detalhe não tem consequências para a natureza prescritiva de duas linhas da terminologia.

3) Os Jívaro são outro povo que, com uma exceção, possuem uma terminologia prescritiva de duas linhas perfeitamente clara. No nível genealógico de ego e no primeiro nível descendente, as equações e as distinções normais são feitas. O problema ocorre no primeiro nível genealógico ascendente onde o termo nuku cobre as seguintes especificações:

  • Nuku: M, MZ, FZ, FBW, MBW

Em outras palavras, todas as mulheres do primeiro nível genealógico ascendente são terminologicamente igualadas. No entanto, Harner nota que há um termo - tsatsa - que é substituído por nuku se ego se casa com a filha de um MBW, de uma FZ, ou de uma FBW. Há ainda alguma ambiguidade aqui, pois não está claro se tsatsa se aplica somente a essas especificações genealógicas quando e se tal pessoa se torna mãe da esposa de ego, ou se seria um termo para mãe da esposa no geral, uma especificação que é conspícua por sua ausência da lista de termos reportados. Uma possível solução é que nuku signifique “mulher do nível geneológico da mãe” e que tsatsa seja usado para distinguir um status feminino particular dentre todas essas mulheres, isto é, a mãe da esposa. Se essa suposição estiver correta, então tsatsa pode cobrir qualquer especificação genealógica que a mãe da esposa possa ter, apesar de que, considerando-se todos os atributos da terminologia, FZ e MBW parecem candidatas mais prováveis para a posição de mãe da esposa do que FBW. De fato, pode-se notar que há alguma sustentação para essa sugestão na tabela de parentesco reportada por Harner (1973:102) onde ambas FZ e MBW são tanto nuku quanto tsatsa, mas FBW é somente nuku.

4) Apesar de haver variação considerável em detalhe e organização entre um subgrupo Yanomam5 5 O termo Yanomam é usado aqui para referir a todo o grupo de índios linguisticamente relacionados que vivem no Brasil e na Venezuela, próximo das cabeceiras do Orinoco. e outro, parece-nos agora perfeitamente evidente que todos os subgrupos possuem terminologias de relacionamento prescritivas de duas linhas. No que diz respeito às terminologias em si, existem ênfases divergentes entre subgrupos no uso de termos de idade relativa; mas um segundo e mais interessante atributo é o uso de um termo para cobrir especificações de mais de um nível genealógico, algo que ainda não tínhamos visto nos exemplos já considerados, apesar de ser bem comum na área. Neste caso são o primeiro e o segundo níveis ascendentes que estão em questão, e a maneira exata em que essas especificações se distribuem mostra uma variação regional intrigante.

No extremo nordeste, entre os Sanumá, a seguinte distribuição é encontrada:

  • hayä: F, FB , FF, MF

  • shoya: MB, FZH, WF

No extremo sudoeste, entre os Shamatari, os temos são distribuídos desta forma:

  • hayä: F, FB

  • shoya: MB, FZH, WF, FF, MF

De acordo com o relato Lizot (1971LIZOT, Jacques. 1971. “Remarques sur le vocabulaire de parenté Yanomami”. L’Homme, 11:25-38.:30), referente a uma região central, há alguma confusão sobre se os homens do segundo nível genealógico ascendente devem ser referidos como hayä ou shoaya.

A situação, no que diz respeito aos termos para as mulheres desses dois níveis genealógicos, não foi tão claramente relatada por etnógrafos, mas há evidência de uma mudança similar. Chagnon (1974CHAGNON, Napoleon. 1974. “Studying the Yanomamö”. New York: Holt, Rinehart & Winston.:222-223), assim, relata o seguinte para os Shamatari:

  • nayä: M, MZ.

  • yayä: FZ, MBW, WM, FM, MM.

Enquanto Lizot, da região central, relata o seguinte (1971LIZOT, Jacques. 1971. “Remarques sur le vocabulaire de parenté Yanomami”. L’Homme, 11:25-38.:28-30):

  • nayä: M, MZ, MM, FM

  • amiwä: eZ, FBD, MZD, MM, FM.

  • Yayä: FZ, MBW, WM

Enquanto essa variação é de grande interesse potencial no estudo da sociedade Yanomam, seu valor imediato está em demonstrar o quanto mudanças consideráveis na distribuição das especificações genealógicas entre os termos podem ocorrer sem que a natureza essencial das duas linhas e da prescirção de uma terminologia sejam perturbadas.

Antes de abandonar os Yanomam, existe um ponto da contribuição de Chagnon para esse volume que vale a pena ser brevemente discutido. Ele se refere a “tipos de casamentos prescritivos” que ocorrem entre os Yanomamo. Seu uso da palavra “prescritivo” difere do meu. Nos meus termos, os Yanomamo têm uma única categoria prescrita, e Chagnon está se referindo às várias preferências no interior daquela categoria em razão de considerações sociais, econômicas ou políticas. Além do mais, enquanto nos meus termos faz sentido falar sobre a força de uma preferência, não faz nenhum sentido se referir à força de uma prescrição.

5) Os povos do Xingu são representados neste volume por dois diferentes grupos, os Kalapalo e os Kuikuru, embora ambos falem línguas Carib. Houve alguma discussão sobre as terminologias Kalapalo e Kuikuru, nenhuma das quais à primeira vista parece distinguir quatro categorias no nível genealógico de ego. Dole (1969DOLE, Gertrude. 1969. “Generation kinship nomenclature as an adaptation to endogamy”. Southwestern Journal of Anthropology , 25:105-123. ) afirma que os termos para os primos cruzados entre os Kuikuru desapareceram em virtude de mudanças demográficas, além de outros fatores. Basso (1970BASSO, Ellen. 1970. “Xingu Carib kinship terminology and marriage”. Southwestern Journal of Anthropology, 26:402-416.) questiona tal interpretação, e demonstra que para os Kalapalo a distinção, de um lado, entre germanos e primos paralelos, e, de outro, entre primos cruzados, é uma questão de contexto e da relevância do contraste entre casável e não casável.

Do ponto de vista do argumento deste artigo, o desacordo entre Basso e Dole é desimportante. Em sua contribuição para este volume, Basso discute a afinidade Kalapalo e sua terminologia em operação. Não surpreendentemente, isto faz o sistema parecer bem mais complexo, mas não nega a natureza de duas linhas prescritas da terminologia.6 6 Para um exemplo do contraste entre a relativa simplicidade da estrutura formal de uma terminologia e seu complicado uso social, veja Rivière (1969a, capítulos IV e V). O argumento de Dole, por sua vez, não nega, mas assume a presença anterior na terminologia da distinção entre germanos/primos paralelos e primos cruzados. Esta suposição é sustentada pela terminologia Kuikuro coletada por Oberg (1953OBERG, Kalevo. 1953. Indian Tribes of Northern Mato Grosso. Washington: Institute of Social Anthropology.) que exibe a maioria das equações e distinções importantes que caracterizam a terminologia de duas linhas.

Não parece haver razão para se prolongar nesses casos xinguanos, e que a situação pode ser resumida da seguinte maneira: a natureza de duas linhas dessas terminologias não está em disputa no primeiro nível genealógico ascendente e no primeiro descendente, mas há alguma ambiguidade no nível de ego, onde a distinção parente/afim morreu terminologicamente ou só é usada em certos contextos. O peso da evidência, no entanto, indica sem dúvida que os Kalapalo e os Kuikuro têm agora, ou tiveram num passado recente, uma termologia de duas linhas prescritas.7 7 Neste ponto, evidência dos Mehinacu, outro povo do Xingu que foi originalmente incluído neste volume, é de interesse. A terminologia Mehinacu tal qual registrada por Galvão (1953), embora incompleta, tem a maioria das características que Dole registra para os Kuikuru. No entanto, Gregor, que trabalhou mais recentemente entre os Mehinacu, alinha-se com Basso e escreve que embora a terminologia de Galvão esteja correta, na prática a situação é mais complexa. “Há uma série de termos no uso cotidiano que são transversais ao sistema... Isto é, por exemplo, um termo referencial usado para primos cruzados que quando usado é muito parecido com o termo para primo cruzado que Basso descreve para os Kalapalo”.

6) A próxima área que iremos abordar é o noroeste amazônico, sendo que três contribuições se referem aos povos dessa região: Jackson sobre os Bará, Siskind sobre os Cubeo, e Sorensen que tece comentários gerais mas úteis.

Os povos da área são característicos por terem uma organização social mais elaborada do que a dos casos já examinados. Mesmo assim, pode-se prontamente demonstrar que as terminologias destes povos são do tipo de duas linhas prescritivas. Os atributos particulares da organização social da região são uma regra de descendência patrilinear, a existência de grupos de descendência patrilineares e, na maioria dos casos (mas não entre os Cubeo), uma regra de exogamia linguística. Para os propósitos presentes, uma das coisas mais interessantes é como a patrilinearidade é refletida na terminologia de relações, especialmente no nível de ego.

Se tomarmos primeiramente os Bará, descobriremos que no primeiro nível genealógico ascendente a terminologia exibe todas as equações e distinções convencionais que esperamos de uma terminologia de duas linhas. As variações menores são um termo específico para pai que é distinto daquele para irmão do pai e marido da irmã da mãe, e um para mãe que se distingue daquele para irmã da mãe e esposa do irmão do pai. No primeiro nível genealógico descendente encontramos as divisões normais de filho, filha, filho da irmã e filha da irmã.

As variações importantes e interessantes na terminologia ocorrem no nível de ego. Há termos para irmão e irmã que são respectivamente aplicados ao primo e à prima paralelos patrilineares, mas não aos primos e às primas paralelos matrilineares, a não ser que estes últimos também sejam patrilineares, isto é, que sejam primos e primas paralelos bilaterais. Os termos para primos paralelos matrilineares são formados do termo para mãe e daquele para filho ou filha. Isto pode estar relacionado à regra de descendência patrilinear e ao fato de que se a irmã da mãe de ego não é casada com um homem do grupo patrilinear de ego, então a criança da irmã da mãe de ego pertence a um grupo patrilinear que não é nem o de ego, nem o de sua mãe.

Uma situação semelhante se observa no caso de primos cruzados. Os primos cruzados bilaterais e patrilineares são chamados por um de dois termos dependendo do sexo, e os primos cruzados matrilineares por um de dois termos dependendo do sexo. Apesar de ambas as categorias de primos cruzados serem casáveis, a preferência é para o primo cruzado bilateral/patrilinear, uma vez que tais indivíduos fazem emergir a troca direta, seja imediata ou diferida.8 8 Jackson escreveu que embora os Bará de fato expressem uma preferência patrilateral, eles também têm um modelo alternativo de sociedade no qual grupos matrilineares são preferidos.

Para esclarecer a questão, aqui estão os termos Bará para germanos e primos (Jackson 1972JACKSON, Jean. 1972. Marriage and Linguistic Identity among the Bará Indians of the Vaupés, Colombia. Tese de Doutorado, Universidade de Stanford.:174):

  • bäi: B, FBS, FBS/MZS.

  • bayó: Z, FBD, FBD, MZD.

  • pahkó-mahkú: MZS (literalmente pahkó, M; e mahkú, S).

  • ahkó-mahkó: MZD (literalmente pahkó, M; e mahkó, D).

  • mehkó-mahkú: FZS, FZS/MBS (literalmente mehkó, FZ; e mahkú, S).

  • mehkó-mahkó: FZD, FZD/MBD (literalmente mehkó, FZ; e mahkó, D).

  • mehkú-mahkú: MBS (literalmente mehkú, MB; e mahkú, S).

  • mehkú-mahkó: MBD (literalmente mehkú, MB; e mahkó, D).

Os Cubeo revelam alguns contrastes interessantes com os Bará, pois, embora as terminologias de relações sejam semelhantes no que tange à distribuição de especificações genealógicas entre os termos, existem algumas diferenças organizacionais. Primeiramente, como mecionado acima, os Cubeo são incomuns na região pela sua preferência pela endogamia linguística. Em segundo lugar, ao contrário dos Bará, os Cubeo consideram casável uma prima paralela matrilinear que não seja também uma prima paralela patrilinear (Goldman 1963GOLDMAN, Irving. 1963. The Cubeo: Indians of the Northwest Amazon. Urbana: University of Illiniois Press. :126). Em terceiro lugar, no bojo da prescrição bilateral, os Cubeo expressam uma preferência matrilinear a uma patrilinear. Goldman escreve (:137): “Há uma forte preferência por uma mulher do mesmo sib de onde provém mãe, apesar de que, curiosamente, eles veem tais uniões como formas de troca direta”. Sorensen, em sua contribuição, também observa a preferência pela prima cruzada matrilinear e oferece, como razão (que não pode ser aplicada no caso dos Cubeo endogâmicos), o fato de que é mais provável que um homem fale a língua do grupo natal de sua mãe do que aquela do marido da irmã de seu pai.

Estas diferenças na prática social foram mencionadas para, mais uma vez, enfatizar que a mesma estrutura subjacente pode dar origem a uma grande variação no nível do comportamento.

7) A terminologia Cashinahua é claramente do tipo de duas linhas prescritiva, mas ela contém um atributo que, apesar de bastante comum na área, não ocorre em nenhuma das terminologias consideradas até o momento. Este atributo é a alternância, de modo que os termos que ocorrem no nível genealógico de ego recorrem no segundo nível ascendente e descendente. Por exemplo:

  • Betsa: FF, B, FBS, SS

  • Chai: MF, MBS/FZS, DS

Alguma forma de alternância foi relatada, em anos recentes, entre os Panare (Dumont 1971DUMONT, Jean-Pierre. 1971. “Compte rendu de mission chez les indiens Panará”. L”Homme, 11:83-88.:87), os Cuiva (Arcand 1972ARCAND, Bernard. 1972. “A contribution to Cuiva ethnohraphy”. Tese de Doutorado, University of Cambridge, Cambridge.), e os Yanomamo (Chagnon 1974CHAGNON, Napoleon. 1974. “Studying the Yanomamö”. New York: Holt, Rinehart & Winston.:221).

Os Cashinahua também possuem duas formas de classificação social que merecem alguma consideração. Primeiro, eles têm patrimetades exogâmicas nomeadas tanto para homens quanto para mulheres. Segundo, eles têm seções nomeadas. Tratando somente dos homens, o sistema funciona assim: as metades exogâmicas dos homens são chamadas de inubakebu e duabakebu. Todos os homens de inuabakebu pertencem a awabakebu ou kanabakebu, e os de duabakebu a yawabakebu ou dunubakebu. Enquanto a afiliação à metade exogâmica ocorre através da patrilinha, o pertencimento à seção no interior da metade resulta da alternância. Um homem, portanto, pertencerá à mesma seção nomeada que o pai de seu pai, e filho de seu filho, enquanto seu pai e seu filho pertencerão à outra seção da metade. Regras de casamento ligam as seções das diferentes metades. Logo, homens awabake se casam com mulheres yawabake e vice-versa. Todos os detalhes estão na contribuição de Kensinger, logo não há necessidade de repeti-los além de dizer que este é o único caso relatado da América do Sul de um chamado sistema “Kariera”.

O caso cashinahua tem alguma importância no presente argumento. Sugeriu-se que o atributo universal da cultura da Floresta Tropical era a presença de um tipo específico de terminologia de relação. Também foi afirmado que aquelas sociedades em que tal terminologia está ausente, mas onde encontramos uma organização dualista e um sistema de troca direta através de unidades sociais mais amplas, não seriam classificadas como da Floresta Tropical. Os Cashinahua são um exemplo útil do caso oposto. Apesar de possuírem duas formas de organização dualista, seções e metades, sua terminologia de relações se adequa consistentemente a ambas estas formas. Portanto, um homem inubakebu que pertence à seção awabakebu chamará todos os homens dessa seção de betsa. De fato, a coisa notável sobre o sistema cashinahua é o grau de redundância embutido nele.

8) O caso parintintin também é esclarecedor. A terminologia gravada por Kracke é inquestionavelmente de tipo duas linhas prescritiva. Além do mais, a terminologia se encaixa com as metades exogâmicas. No entanto, a situação, conforme descrita por Kracke, é confusa e, como seu título indica, as metades parecem ter perdido sua função. Talvez exista uma lição a ser tirada desse exemplo, embora esta só possa ser especulativa. A ideologia oficial é de metades exogâmicas, mas na prática casamentos são frequentemente inconsistentes com a ideologia. Ao contrário, parece que a maioria dos casamentos ocorre entre “patrilinhas” e envolve troca direta, e supor-se-ia que nesse nível a terminologia é totalmente operacional. Em outras palavras, enquanto as unidades sociais mais amplas estão caindo em decadência por alguma razão (declínio demográfico, introdução de um terceiro elemento no sistema), a terminologia de relação, mais flexível, continua a operar de forma perfeitamente satisfatória. Eu sugeriria que isto é evidência de minha afirmação de que terminologias de relação, ou melhor, os princípios que as articulam, são fundamentais para as sociedades da Floresta Tropical, enquanto as formas organizacionais são acessórios que podem ser dispensados.

Isto conclui a breve pesquisa daqueles povos que são tema dos outros capítulos deste volume, para os quais temos clara evidência da existência de uma terminologia prescritiva de duas linhas. Pode-se notar, ainda, que por outros critérios, sejam esses culturais ou geográficos, todos estes povos seriam inquestionavelmente classificados como pertencentes à cultura da Floresta Tropical.

IV

Os quatro casos restantes neste volume são importantes uma vez que nos ajudam a examinar o outro lado do argumento. Enquanto se afirma que os povos da Floresta Tropical são caracterizados por uma terminologia de relacionamento estruturada de uma maneira específica, é também útil considerar o que ocorre quando nos afastamos da região. Todos os povos que serão agora considerados habitam regiões periféricas à floresta tropical, e em todos os casos a terminologia de duas linhas, tão prontamente identificável nos exemplos tratados acima, está ausente. Curiosamente, no entanto, enquanto em alguns destes casos a ênfase na dualidade é ainda mais marcada do que nos casos abordados, em lugar algum ela é de tal maneira intrínseca à terminologia de relacionamento.

9) Os Canelos Quichua, localizados entre as terras baixas e as terras altas, compartilham em sua cultura traços de ambas as áreas. Dadas as afiliações linguísticas desses povos, talvez não seja surpreendente descobrir que eles não têm a terminologia prescritiva de duas linhas, embora seja interessante notar o grau em que a terminologia exibe as características inerentes a ela. Whitten joga com a ideia de identificá-la como de troca restrita, mas se abstém acertadamente de fazê-lo. A razão que ele oferece, contudo, não é em si mesma adequada na medida em que apontamos exemplos nos quais germanos e primos paralelos são terminologicamente equacionados com primos cruzados, e nos quais certos membros da categoria prescrita são proibidos. Uma razão mais básica para não aceitar a terminologia dos Canelos como prescritiva é a equação dos pais com os sogros.

  • yaya: F, FB, WF, HF.

  • mama: M, MZ, WM, HM.

Ademais, há termos para irmão da mãe (jachi) e irmã do pai (miquia), mas faltam a eles a essencial denotação de afinidade.9 9 O sistema Canelos Quichua, tal qual representado por Whitten no seu diagrama (p. 18 das provas do livro) é de troca patrilateral indireta, com Ego casando com a sua FZD. Como observa Whitten, tais sistemas facilmente se convertem em sistemas bilaterais, ou de troca direta.

10) Os últimos três casos, os Apinayé, Bororo e Canella, são todos povos falantes de línguas Jê, um grupo que é claramente diferenciado em diversos aspectos sociais e culturais dos povos da Floresta Tropical. Nenhum dos exemplos Jê neste volume tem uma terminologia prescritiva de duas linhas, embora sejam sociedades marcadas por várias formas de organização dual. Assim, Christopher Crocker escreve sobre os Bororo que “a única regra prescritiva é a exogamia de metades” (1969CROCKER, Jon Christopher. 1969. “Men’s house associates among the Eastern Bororo”. Southwestern Journal of Anthropology , 25:236-260.:238), mas esta prescrição não é refletida na terminologia de relacionamento. Diferente do caso parintintin, os Bororo não têm onde se apoiar, e o desaparecimento de seu sistema de metades implicaria a perda de seu sistema prescritivo.

Os casos Apinayé e Canella são igualmente claros. Embora ambas as sociedades contenham formas de organização em metades, estas não são sustentadas, mesmo ali onde elas estão relacionadas ao casamento, por uma terminologia prescritiva de duas linhas. As terminologias dessas duas sociedades contêm diversas equações e distinções típicas de terminologias de duas linhas, mas estas surgem apenas esporadicamente, o que não é suficiente, dado que o essencial é a natureza sistemática de tais equações e distinções.

A descoberta no exterior da floresta tropical de terminologias de relacionamento prescritivas de duas linhas não invalida o argumento deste artigo, a saber, que os povos pertencentes à cultura da Floresta Tropical compartilham ao menos um aspecto em comum. Sob a diversidade de formas sociais há uma estrutura comum. Seria um exercício interessante examinar se esta estrutura desaparece quando se alcançam as margens da floresta tropical. Se este é o caso, a estrutura em questão não é simplesmente um aspecto geral da cultura da floresta tropical, mas também algo que a distingue de seus vizinhos para além da floresta tropical. Por ora, contudo, há trabalho suficiente para checar se, como é afirmado aqui, a terminologia prescritiva de duas linhas é o fator comum que dá unidade sob a variedade cultural da floresta tropical.

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  • WISSLER, Clark. 1917. The American Indian: An Introduction to the Anthropology of the New World New York: Oxford University Press.

Notas

  • 1
    Desde a primeira apresentação deste artigo em 1973, eu mudei de ideia sobre certos pontos. Isto é resultado de novos dados etnográficos e de discussões com outras pessoas, em particular aqueles que contribuíram para este volume. Sou grato a muitos destes que responderam às minhas cartas com informação, conselhos e críticas. A única grande mudança envolve minha visão a respeito da posição dos povos falantes de línguas Jê. Eu havia originalmente defendido que eles deviam ser incluídos na cultura da Floresta Tropical; agora eu defendo que não o devem.
  • 2
    Esta observação foi feita por Paul Henley. No entanto, embora ambos lembremos de ele a ter feito, nenhum de nós conseguiu encontrá-la! Sou ainda grato a Paul por ter mantido uma cópia deste trabalho. Eu descobri que não o tinha, e perguntei a ele na esperança de que ainda tivesse seus trabalhos e notas reunidos enquanto preparava seu “South Indian models in the Amazonia Lowlands”, Manchester Papers in Social Anthropology 1 (1996).
  • 3
    Houve numerosas tentativas, usando uma gama de critérios de classificação de culturas sul-americanas (e. g. Wissler 1917WISSLER, Clark. 1917. The American Indian: An Introduction to the Anthropology of the New World. New York: Oxford University Press.; Stout 1938STOUT, Dietrich. 1938. “Culture types and culture areas in South America”. Paper of the Michigan Academy of Science, Arts, and Letters, v. 23:73-86.; Cooper 1942COOPER, John M. 1942. “Areal and temporal aspects of aboriginal South American culture”. Primitive Man, 14:1-38. ; Bennet & Bird 1949BENNET, Wendell & BIRD, Junius. 1949. Andean Culture History. Garden City, NY: American Museum of Natural History.; Murdock 1951MURDOCK, George Peter. 1951. “South American cuture areas”. Southwestern Journal of Anthropology , 7:415-436.; Steward & Faron 1959STEWARD, Julian & FARON, Louis. 1959. Native Peoples of South America. New York: McGraw-Hill.). Nenhuma delas sobreviveu e a maioria foi logo esquecida. Também deve ser notado que não há correlação aparente entre cultura e língua (para uma demonstração disto em uma pequena área, ver Rivière 1969bRIVIÈRE, Peter.1969b. “Myth and material culture: Some symbolic interrelations”. In: Victor Turner (org.), Forms of Symbolic Action. Seattle: University of Washington Press.), embora eu tenha feito um esforço provisório de isolar a cultura Carib (Rivière 1974RIVIÈRE, Peter.1974. “Some problems in the comparative study of Carib societies”. Atas do XL Congresso Internacional de Americanistas 1972, v. 2:639-643.).
  • 4
    A menos que o contrário seja indicado, o ponto de vista do ego masculino é adotado ao longo deste artigo.
  • 5
    O termo Yanomam é usado aqui para referir a todo o grupo de índios linguisticamente relacionados que vivem no Brasil e na Venezuela, próximo das cabeceiras do Orinoco.
  • 6
    Para um exemplo do contraste entre a relativa simplicidade da estrutura formal de uma terminologia e seu complicado uso social, veja Rivière (1969aRIVIÈRE, Peter. 1969a. Marriage Among the Trio. Oxford: The Clarendon Press ., capítulos IV e V).
  • 7
    Neste ponto, evidência dos Mehinacu, outro povo do Xingu que foi originalmente incluído neste volume, é de interesse. A terminologia Mehinacu tal qual registrada por Galvão (1953)GALVÃO, Eduardo. 1953. “Cultura e sistema de parentesco das tribos do Alto Rio Xingu”. Boletim do Museu Nacional, n. 14, Rio de Janeiro., embora incompleta, tem a maioria das características que Dole registra para os Kuikuru. No entanto, Gregor, que trabalhou mais recentemente entre os Mehinacu, alinha-se com Basso e escreve que embora a terminologia de Galvão esteja correta, na prática a situação é mais complexa. “Há uma série de termos no uso cotidiano que são transversais ao sistema... Isto é, por exemplo, um termo referencial usado para primos cruzados que quando usado é muito parecido com o termo para primo cruzado que Basso descreve para os Kalapalo”.
  • 8
    Jackson escreveu que embora os Bará de fato expressem uma preferência patrilateral, eles também têm um modelo alternativo de sociedade no qual grupos matrilineares são preferidos.
  • 9
    O sistema Canelos Quichua, tal qual representado por Whitten no seu diagrama (p. 18 das provas do livro) é de troca patrilateral indireta, com Ego casando com a sua FZD. Como observa Whitten, tais sistemas facilmente se convertem em sistemas bilaterais, ou de troca direta.
  • Traduzido por João Kelmer, Luiz Paulo Bittencourt e Antonio Geo Marteletto.
  • Revisão técnica: Luiz Costa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    02 Ago 2022
  • Aceito
    10 Ago 2022
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