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VÍNCULOS CLUBÍSTICOS DE FUNCIONÁRIOS INFAMES NO FUTEBOL PROFISSIONAL DA REGIÃO SUL DO RS: NARRATIVAS, PERTENCIMENTOS E IDENTIDADES

NON-FAMOUS EMPLOYEES AND THEIR TIES TO PROFESSIONAL FOOTBALL CLUBS IN SOUTHERN RIO GRANDE DO SUL: NARRATIVES, BELONGING AND IDENTITIES

VÍNCULOS CLUBÍSTICOS DE FUNCIONARIOS INFAMES EN EL FÚTBOL PROFESIONAL DE LA REGIÓN SUR DE RS: NARRATIVAS, PERTENENCIAS Y IDENTIDADES

Resumo

Este artigo analisa a constituição dos pertencimentos clubísticos e a produção de identidades de funcionários infames que atuam ou atuaram em diferentes clubes do futebol profissional da Região Sul do RS. Tendo como metodologia a História Oral, foram entrevistados quatro funcionários de clubes distintos, possibilitando concluir que o seu pertencimento clubístico se constituiu de diferentes formas. Tais como: idas aos estádios durante a infância, noções de sociabilidade construídas no clube, necessidade de uma atividade remunerada e a influência, mesmo que indireta, da família. Além disso, percebeu-se a importância dos clubes na constituição das identidades dos sujeitos, visto que os narradores, ao construírem uma hierarquia, colocam os clubes atrás apenas de suas famílias. Também foi possível analisar que os funcionários infames empregam diferentes maneiras de torcer durante os jogos, em que o local escolhido e determinadas atitudes são marcadores interessantes de análise.

Palavras-chave
Futebol; Clubes; Participação da comunidade; Construção social da identidade

Abstract

This article analyzes how club belonging and identity production are created for non-famous employees who work or have worked in different professional football clubs in the southern region of the state of Rio Grande do Sul, Brazil. Based on the methodology of Oral History, four employees from different clubs were interviewed, leading to the conclusion that club belonging was built in different ways, such as: going to stadiums during childhood; notions of sociability established at the club; the need for an income source; and family influence, even if indirect. Furthermore, the importance of clubs in building subjects’ identities was perceived as the narrators placed clubs only after their families when setting hierarchies. It was also possible to see that non-famous employees root for their teams in different ways during matches, and places chosen and certain attitudes are considered relevant markers for analysis.

Keywords
Football; Clubs; Community participation; Social construction of Identity

Resumen

Este artículo analiza la constitución de la pertenencia clubística y la producción de identidades de funcionarios infames que actúan o actuaron en diferentes clubes del fútbol profesional de la región Sur de RS. Teniendo como metodología la Historia Oral, fueron entrevistados cuatro funcionarios de clubes distintos, posibilitando que la pertenencia clubística de los mismos se constituyó de diferentes modos, como: idas a los estadios durante la niñez, nociones de sociabilidad construidas en el club, necesidad de una actividad remunerada y la influencia, aunque indirecta de la familia. Además, se percibió la importancia de los clubes en la constitución de las identidades de los sujetos, ya que los narradores al construir una jerarquía, ponen a los clubes detrás de sus familias. También fue posible analizar que los empleados infames emplean diferentes maneras de torcer durante los juegos en que el local escogido y determinadas actitudes son marcadores interesantes de análisis.

Palabras clave
Fútbol; Clubes; Participación de la comunidad; Construcción social de la Identidad

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente artigo analisa a constituição dos pertencimentos clubísticos e identidades de funcionários infames de diferentes clubes do futebol profissional, sediados na Região Sul do Rio Grande do Sul. Entende-se por funcionário infame de algum clube do futebol profissional o sujeito que desenvolve serviços, os quais não dispõem de tamanha veiculação midiática e que possuem menor fama, se comparados com atletas, comissão técnica e dirigentes. O interesse em estudar tais personagens ocorre em função do entendimento que desempenham funções importantes nos bastidores dos clubes de futebol. Logo, a intenção deste artigo é lançar o olhar, especificamente, sobre roupeiros, porteiros e secretárias que atuam ou atuaram por algum espaço de tempo nas agremiações em questão.

Nesse sentido, cabe fazer uma analogia entre os sujeitos estudados neste texto com o que Foucault (2009FOUCAULT, Michel. A vida dos Homens infames. In: O que é um autor. 7.ed. Lisboa, Portugal: Nova Vega, 2009. p.89-128.) adjetiva como infame. O autor, ao se deparar com as lettres de cachet1 1 Documentos emitidos em nome do rei, mas não necessariamente, nem na sua maioria, por sua própria iniciativa, e que tinham como função sujeitar a medidas de segurança, tais como a prisão e o internato todo o indivíduo cujos comportamentos eram, no discurso desses mesmos documentos tipificados de “indesejáveis” (FOUCAULT, 2009. p. 104). , observou existências singulares de sujeitos reais, que tinham suas vidas contadas em poucas linhas. Normalmente, eram indivíduos recolhidos a hospícios ou prisões, cujas poucas linhas escritas, acerca de suas vidas, se davam nos registros de internamento. Dessa forma, a expressão se refere à noção de sujeitos não famosos.

Alguns estudos2 2 Ver Correia (2014), Guimarães (2012), Rigo (2007) e Rigo et.al. (2005). sobre futebol desenvolvidos nos últimos anos vêm fazendo aproximações entre o esporte e o conceito de infâmia, a partir da leitura de Foucault (2009FOUCAULT, Michel. A vida dos Homens infames. In: O que é um autor. 7.ed. Lisboa, Portugal: Nova Vega, 2009. p.89-128.). Nota-se, portanto, que o olhar voltado à relação famoso e infame no cerne do futebol, além de não ser uma novidade acadêmica, gera uma forma de entendimento e de reconhecimento dos fenômenos menos midiatizados e dos seus processos de sociabilidade3 3 Gastaldo (2006, p. 3) analisa a sociabilidade como: “[…] uma espécie de ‘jogo da vida social’, um momento de prazer, distinto das coisas ‘sérias’ da vida cotidiana, este frágil refúgio das agruras do mundo do trabalho, da economia e da política”. .

2 A ESCOLHA DOS NARRADORES E OS PASSOS METODOLÓGICOS

Optou-se por construir narrativas4 4 A utilização da expressão narrativa se ampara no discurso de Alberti (2012), à medida que, segundo a autora, a transição do que antes era denominado como versão para o conceito de narrativa acaba reforçando o caráter documental de uma entrevista em História Oral. a partir de entrevistas em História Oral, as quais, segundo Portelli (2010PORTELLI, Alessandro. Ensaios de História Oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010.), se caracterizam como: “[…] uma narração dialógica que tem o passado como assunto” (p. 210). Tais narrativas são resultado de entrevistas que partiram de um roteiro básico. Para este texto, recortamos a participação de quatro sujeitos vinculados a diferentes clubes profissionais de futebol, em atividade na Região Sul do RS. Partindo dos princípios de Meihy e Holanda (2007MEIHY, José Carlos Sebe Bom; HOLANDA, Fabíola. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto: 2007.) e Meihy e Ribeiro (2011)MEIHY, José Carlos Sebe Bom; RIBEIRO, Suzana Salgado Ribeiro. Guia Prático deHistória Oral: para empresas, comunidades, famílias. São Paulo: Contexto, 2011., as entrevistas foram agendadas previamente e tiveram seus áudios gravados e transcritos para fins de registro e armazenamento. Após a transcrição, houve retorno aos entrevistados para que pudessem realizar a leitura do texto e conceder o direito de utilização da narrativa, através da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido5 5 Os preceitos éticos utilizados são inspirados na leitura de Portelli (1997) e Meihy e Hollanda (2007). .

A primeira entrevista foi realizada em 2015, com Paulo Renato de Oliveira Laranjeira, mais conhecido como Seu Laranjeira, porteiro do Sport Club Rio Grande (S.C. Rio Grande). A segunda, no ano de 2016, com Alexandre da Silva Dutra, roupeiro do Grêmio Esportivo Bagé (G.E. Bagé). A terceira e a quarta entrevistas, já em 2018, foram realizadas respectivamente com Edelmar Marshall Ramos, ex-roupeiro do Sport Club São Paulo (S.C. São Paulo), também conhecido como Nenê do Sampa, e com Dona Sandra Rejane Canez Borges, secretária do Esporte Clube Pelotas (E.C. Pelotas).

É importante assinalar que a elegibilidade dos entrevistados foi construída a partir de uma pluralidade de aspectos, no caso, cada um necessitou ser ou ter sido funcionário do clube, ocupar uma função com menor veiculação midiática se comparada a jogadores, comissão técnica e diretores e ter uma trajetória longeva junto à agremiação, mesmo que no momento da entrevista o vínculo empregatício se apresentasse cessado.

No que se refere ao recorte geográfico onde o estudo se desenvolveu, optou-se por investigar as trajetórias dos personagens vinculados a clubes da Região Sul do RS. Tal opção se estabeleceu intencionalmente, pela proximidade entre os diferentes municípios (e seus clubes), colocação geográfica dos pesquisadores, além da relevância dessa região no cenário futebolístico gaúcho, na medida em que é sede de agremiações que, em algum momento histórico, se sagraram campeãs estaduais.

3 A CONSTRUÇÃO DO PERTENCIMENTO CLUBÍSTICO NO IMAGINÁRIO DOS FUNCIONÁRIOS INFAMES

O pertencimento clubístico no cerne do futebol é um sentimento que, embora estabelecido, se constituiu como de difícil compreensão, muitas vezes adjetivado até mesmo como irracional. Está presente na vida da grande maioria dos brasileiros, sem distinção de gênero, etnia, classe social ou crença. O futebol, por ser um dos esportes mais populares do país e, sobretudo, em razão do forte apelo midiático, faz com que mesmo aqueles que não sejam torcedores fervorosos ou, no mínimo, adeptos do esporte, tenham conhecimento sobre suas nuances, suas lógicas e seu cotidiano. Partindo desse contexto, Damo (2002DAMO, Arlei Sander. Futebol e identidade social: uma leitura antropológica das rivalidades entre torcedores e clubes. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002., p. 33) assinala que o futebol: “é um dos símbolos da identidade brasileira”.

Na lógica do ser funcionário e ter um sentimento de pertencimento6 6 Cabe ressaltar que existe a possibilidade de o sujeito fazer parte do quadro de funcionários de um determinado clube, mas não ser torcedor. , que se coloca à frente de várias outras esferas da vida privada, estão os casos de Seu Laranjeira, Alexandre, Nenê e Dona Rejane. Todos eles construíram, ao longo dos anos, uma grande ligação com os clubes, no entanto, não é somente constituída a partir do vínculo empregatício que estabelecem ou estabeleceram com as agremiações, mas, principalmente, pelo sentimento de pertencimento.

Foi possível observar que a escolha7 7 A expressão “escolha” se ampara no texto de Damo (2001), porém, cabe ressaltar que a utilização feita pelo autor não se configura como um aspecto voluntário, pois analisa a construção do pertencimento clubístico para além da racionalidade. do clube de coração dos quatro personagens se deu de maneira multifatorial. Em alguns casos a opção ocorreu antes do ingresso no quadro de funcionários e em outros se estabeleceu a partir de distintos elementos, um deles sendo a influência familiar. Nessa lógica, Damo (2001DAMO, Arlei Sander. Futebol e estética. São Paulo em Perspectiva, v. 15, n.3, p.82-91, 2001.) analisa que:

Exceto aqueles cuja escolha ocorreu muito cedo - isto é muito frequente entre famílias de torcedores fanáticos, cujo ‘pertencimento’ a mesma agremiação remonta três e até quatro gerações, assemelhando-se a uma casta - ou outros, cuja importância dada ao futebol é mínima, os demais geralmente lembram com detalhes o momento em que se tornaram palmeirenses, atleticanos ou vascaínos. Como não se trata de uma escolha de natureza ideológica, embora política, os processos de convencimento são travados na esfera das emoções e o ‘sim’ normalmente é ritualizado: por ocasião de um presente, de um autógrafo e da ida ao estádio (DAMO, 2001DAMO, Arlei Sander. Futebol e estética. São Paulo em Perspectiva, v. 15, n.3, p.82-91, 2001., p. 87).

Com relação ao momento em que se manifestou a preferência pelo clube do coração e as circunstâncias que levaram os quatro personagens a pertencer a um determinado clube, tais escolhas, exceto uma, se deram na infância, a partir de diferentes motivações. No caso de Seu Laranjeira, porteiro do S. C. Rio Grande que, em 2015, tinha 62 anos e trabalhava no clube ininterruptamente havia quatorze anos8 8 Seu Laranjeira assinala que na sua juventude já havia prestado serviços ao clube, entretanto, teve de se afastar em razão de necessidades financeiras, embora o sentimento de torcedor nunca tenha arrefecido. Após garantir sua aposentadoria, retorna ao clube para exercer a função de porteiro. , a identificação começa aos nove anos de idade. Tal sentimento não se originou da influência familiar, tendo em vista que sua mãe é torcedora do S. C. São Paulo, principal rival do S. C. Rio Grande. A escolha, então, começa quando o ainda menino Laranjeira trabalhava como vendedor ambulante, comercializando pastéis e, no exercício desta função, acabou se deparando com a entrada do estádio em dia de jogo. A entrada no campo esportivo despertou um sentimento que com os anos foi aumentando e se configurando em um pertencimento clubístico, que, segundo o próprio entrevistado, é difícil de explicar, mas foi primordial na decisão de trabalhar no interior do clube.

Essa difícil explicação também se pauta na questão do gosto pelo esporte estar vinculado à apropriação de uma determinada agremiação, como o time do coração. Ao ser questionado sobre seu possível envolvimento como praticante de futebol, seu Laranjeira dá uma resposta bem-humorada:

A bola, pra mim, é quadrada. Limpo fossa, que não é demérito, mas é um dos piores serviços, pro Rio Grande. Se for na minha folga não tem problema, venho de graça, mas não posso trabalhar dentro do campo. Não me peçam pra fazer nada na hora do jogo dentro do campo, que eu vou prejudicar o clube. Não, não tenho meios. Da tela pra dentro pra mim é outro mundo, não conheço parte tática. Simpatizo mais com a voluntariedade de algum jogador. Que todo o cara que não jogou bola, que é ruim, ele gosta é do esforçado, né? (LARANJEIRA, 2015)9 9 LARANJEIRA, Paulo Renato. Entrevista concedida a Jones Mendes Correia. Rio Grande, 11 nov. 2015. .

Dessa maneira, uma reflexão acerca de casos como esse do Seu Laranjeira é trazida por Damo (2002DAMO, Arlei Sander. Futebol e identidade social: uma leitura antropológica das rivalidades entre torcedores e clubes. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002., p.12):

A paixão pelos clubes desafia até mesmo uma máxima segundo a qual ‘gostar de futebol pressupõe entender de futebol’, o que para muitos só se consegue através da prática do jogo. Se é raro encontrar um futebolista praticante que não tenha seu clube do coração, é comum pessoas com escassa ou nenhuma prática desse esporte se dizerem torcedores fanáticos. Em outras palavras, a opção clubística transcende o próprio futebol […].

Nessa mesma lógica, está o caso de Alexandre, roupeiro do G. E. Bagé, pertencente ao quadro de funcionários desde 2008. Alexandre tem 36 anos de idade e sua ligação com os esportes começa na infância, quando praticava vôlei e basquete, além de se aventurar como goleiro no futebol. O roupeiro analisa que não dispunha de grande habilidade como atleta de futebol e que seu ingresso no meio esportivo se deu em função da oportunidade de desempenhar uma atividade remunerada. Sua ligação profissional com o esporte inicia no ano de 2008, através de convite de amigos para trabalhar no projeto Genoma Colorado10 10 Uma espécie de convênio organizado pelo Sport Club Internacional pelo interior do Rio Grande do Sul que visa revelar e formar jovens atletas. . Após essa experiência, no mesmo ano, recebeu o convite para ingressar na rouparia do G. E. Bagé.

A partir daí, Alexandre narra que começa a brotar pelo clube um sentimento que não existia. A descoberta da paixão clubística, por parte do roupeiro, se inicia, portanto, após o ingresso no quadro de funcionários do clube: “Não era simpatizante do clube. Aí, através dos anos que foi. Eu fui criando um vínculo maior com a agremiação e vim me apaixonando pelo Grêmio Esportivo Bagé. Mas não tinha nenhum vínculo ao Grêmio Esportivo Bagé” (DUTRA, 2016)11 11 DUTRA, Alexandre da Silva. Entrevista concedida a Jones Mendes Correia. Bagé, 29 jul. 2016. .

Partindo desse contexto, é possível analisar que, além das diferentes possibilidades de construções de pertencimentos clubísticos, existem também distintas trajetórias que levam o sujeito a se estabelecer como funcionário. Ao passo que Seu Laranjeira sempre teve o vínculo de torcedor e isso o levou a ingressar no quadro de funcionários. Alexandre teve uma trajetória distinta, uma vez que anuncia o gosto pelo esporte, mas salienta que seu ingresso como funcionário não se deu a partir da lógica sentimental.

Com relação a Nenê, ex-roupeiro do S. C. São Paulo, que ingressou no quadro de funcionários do clube com apenas 11 anos de idade e prestou serviços à agremiação por 23 anos, o pertencimento surge de uma maneira um tanto diferente. Ele se tornou torcedor após frequentar as dependências do estádio, com o objetivo de assistir treinamentos, o que o levou ao convite para trabalhar como auxiliar de roupeiro. Sobre a construção de seu pertencimento clubístico, analisa que:

Até foi por acaso porque uma vez eu passei aqui na frente e entrei no estádio e comecei a olhar. Eu acompanhava os jogos pela TV, bah, foi uma maravilha, me apaixonei, e aí comecei a olhar o treino. Foi quando eu conheci o Zé Carlos, que era o goleiro, aí sim, aí eu comecei a me identificar com o clube, comecei a vir direto, vinha aos treinos. Às vezes tava um calorão, ‘ah, vamos pra praia?’. ‘Não. Tem treino do São Paulo’. Então me identifiquei nessa parte, depois que eu entrei aqui e olhei esse gramado eu me apaixonei. Me apaixonei e fiquei. Hoje, eu sou um cara que, mesmo saindo do clube, que eu trabalhei 23 anos, aí entrou uma nova gestão e demitiram todo mundo. Tranquilo cara, eu continuo sendo São Paulo. Eu não sou as pessoas que dirigem o São Paulo, eu sou São Paulo de coração mesmo (RAMOS, 2018)12 12 RAMOS, Edelmar Marshall. Entrevista concedida a Jones Mendes Correia. Rio Grande, 6 de janeiro de 2018. .

Em virtude disso, foi possível entender que a construção do pertencimento clubístico de Nenê se constituiu a partir do seu gosto pelo futebol, sem a influência direta de sua família, mas, principalmente, pelas relações de sociabilidade que foi construindo no estádio do clube. O “ser torcedor”, no caso específico de Nenê, nasce paralelamente com o “ser funcionário” do clube. Ou seja, uma relação que pode ser considerada diferente, se comparada tanto com Seu Laranjeira, o qual já dispunha do sentimento de pertencimento antes de ser funcionário, quanto ao Alexandre, que construiu tal vínculo ao longo dos anos.

Por fim, chega-se a Dona Rejane, de 54 anos, 30 destes dedicados à secretaria do E. C. Pelotas. A escolha do clube é analisada por si mesma a partir de mais de um fator, já que acabou tendo uma influência indireta de sua família, além da preferência pelas cores de um clube e não a de seu rival. No que se refere às relações familiares, Dona Rejane analisa que havia certa rivalidade entre seu pai e sua mãe. O pai, torcedor do Grêmio Esportivo Brasil e a mãe do E. C. Pelotas tiveram seis filhos, três homens e três mulheres. Todos os homens seguiram os passos do pai, já as mulheres acompanharam a mãe. Cabe salientar, no entanto, que é possível assinalar que as escolhas não se produziram de forma contingencial, mas, sim, a partir das construções de masculinidades13 13 Sobre tal ponto, Bandeira (2010) analisa o estádio de futebol e suas masculinidades a partir de inúmeros fatores construídos na sociedade historicamente, principalmente, a partir da lógica da virilidade. Costa (2006/2007) concorda com o fato de as masculinidades nos estádios de futebol produzirem um espaço de difícil acesso para alguns grupos sociais, inclusive as mulheres. Entretanto, analisa que elas, nos últimos anos, mesmo que com muitas dificuldades, vêm frequentando de forma mais efetiva os estádios, porém, ainda em um espaço ainda repleto de masculinidades. , que faziam parte do meio futebolístico, já que: “Mulher não podia ir ao campo de futebol. O homem sim, o menino já no momento que se achava grandinho, seis anos, sete anos, o pai já levava ele pro futebol. Então, tu acaba criando aquele vínculo com o clube, mas induzido pelos pais, com certeza” (BORGES, 2018)14 14 BORGES, Sandra Rejane Canez. Entrevista concedida a Jones Mendes Correia. Pelotas, 24 de janeiro de 2018. .

Traçando um paralelo entre as masculinidades dos estádios de futebol com a escolha do clube do coração de Dona Rejane, é possível perceber que ela e suas irmãs não dispunham da mesma abertura que seus irmãos tinham, no que diz respeito a assistir futebol. Talvez, a escolha de ser “áureo-cerúleo15 15 Como é conhecido ser torcedor do Esporte Clube Pelotas. ”, tenha se dado como uma espécie de protesto, já que os seus irmãos, os quais eram levados ao estádio do G. E. Brasil, acabaram torcedores xavantes.

As narrativas expostas demonstram as diferentes formas em que os pertencimentos clubísticos dos funcionários infames foram se constituindo. Assim como os torcedores comuns, os sujeitos analisados, nesta pesquisa, dispararam gatilhos diferentes para a opção do clube do coração. Assistir a um jogo, construir sociabilidades com atletas da cidade, trabalhar no interior do clube ou a influência, mesmo que indireta, da família, foram os responsáveis por tais escolhas.

4 O CLUBE DE FUTEBOL E A CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES DOS FUNCIONÁRIOS INFAMES

A construção do pertencimento de cada funcionário analisado neste artigo, embora tenha sido produzida a partir de fatores diversos, traz consigo um elemento a mais dentro da constituição de suas identidades. É inegável que cada um dos funcionários dispõe de diversas posições sociais, ou seja, não são apenas os funcionários dos clubes, também são torcedores e, principalmente, têm outras relações sociais na sua vida privada, tais como família e amigos.

Partindo dessa afirmação, é possível inspirar o pensamento em Hall (2006HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.), que analisa a identidade a partir da lógica da construção. Não há um processo conclusivo no que diz respeito à identidade dos sujeitos, já que as relações sociais que vão ocorrendo ao longo dos anos, os espaços em que cada um se estabelece por um determinado tempo, as questões culturais, entre outros elementos, acabam se constituindo como pequenos componentes de uma identidade aberta e inconclusa.

Assim sendo, é importante reportar ao que Hall (2006HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.) denomina como crise de identidade. Ela se estabelece a partir de mudanças sociais, as quais impossibilitam a perpetuação do sujeito do iluminismo, o qual, segundo o autor, dispunha de uma identidade que, essencialmente, se mantinha inalterada por toda a vida, porquanto se tratava de: “[…] um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão de consciência e de ação …]” (p.10).

Após, Hall (2006HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.) começa a pensar a identidade a partir das diversas facetas às quais o indivíduo vem sendo exposto. Nesse momento, surge o entendimento do sujeito sociológico, quando não se acreditava mais na autonomia e autossuficiência para a composição de sua identidade, todavia, levava-se em conta a interação social com outros sujeitos. Tal efeito, segundo o autor, acompanha as mudanças que o mundo e a sociedade enfrentaram. Foram essas mudanças que construíram uma nova concepção de identidade, a do sujeito pós-moderno, em que é possível alocar os funcionários/torcedores do futebol profissional.

Há aqui a necessidade de um pequeno parêntese, pois é importante não remeter o sujeito pós-moderno à noção de “pós-torcedor” cunhada por Giulianotti (2002GIULIANOTTI, Richard. Sociologia do futebol: dimensões históricas e socioculturais do esporte das multidões. São Paulo: Nova Alexandria, 2002.). Apesar do pós-torcedor também ser produzido pela pós-modernidade, as características desse sujeito se diferem das características dos sujeitos desta pesquisa, já que o pós-torcedor apresenta certo distanciamento crítico no que se refere à cultura popular. Ainda, pode-se analisar tal sujeito também pela lógica mercadológica. Já os funcionários infames, presentes neste artigo, mesmo sendo considerados sujeitos pós-modernos, acabam se caracterizando de forma mais clara por Giulianotti (2012GIULIANOTTI, Richard. Fanáticos, seguidores, fãs e flaneurs: Uma taxonomia de identidades do torcedor no futebol. Recorde: Revista de História do Esporte. v. 5, n.1, p.1-35, jun. 2012., p.15) como “torcedores fanáticos”. À medida que personificam a ideia de “torcedor clássico” [...], o qual possui “um investimento pessoal e emocional de longo prazo com o clube” [...].

O sujeito pós-moderno está em constante construção identitária, o processo não termina na família, no trabalho ou no campo de futebol. Os elementos constitutivos vão se aglutinando, gerando, segundo Hall (2006HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006., p.12), uma espécie de “celebração móvel”, proporcionando que a construção da identidade não seja algo “fixo, essencial ou permanente”.

As narrativas que compõem este texto dimensionam as construções das identidades dos sujeitos. Os quatro entrevistados demonstram um grande pertencimento e identificação com o clube no qual trabalham, ou, no caso de Nenê, trabalharam. Porém, o amor à agremiação, que em dado momento mistura o sentimento de torcedor e de funcionário, não é o único elemento visto durante as narrativas, já que o fator família se mostra bastante consistente tanto na fala de Seu Laranjeira: “Eu me questiono, eu não sei onde termina o cidadão e começa o funcionário, ou o torcedor. Eu, tem horas que eu não sei o que eu sou. Até mesmo porque, pra mim, o Rio Grande está acima quase que de tudo, tirando a minha família, é o Rio Grande” (2015). Quanto na enunciação de Nenê: “Cara, São Paulo acima de tudo, primeiro a família, mas depois, pra mim, é o São Paulo. Eu sou doente pelo clube, [...] 100% São Paulo. Pra mim, o São Paulo é tudo, eu amo o São Paulo.” (2018).

Os fragmentos mostram dois elementos que compõem as identidades dos narradores. Tanto para Seu Laranjeira quanto para Nenê, os seus clubes se configuram como um dos principais elementos constitutivos das suas identidades, os quais, em termos de hierarquização de importância16 16 Fato percebido na narrativa, porém, não há interesse deste texto em produzir escalas e hierarquias no que diz respeito às produções das identidades. De modo a respeitar a narração, optou-se por deixar transparecer a percepção de cada entrevistado. , nas enunciações dos sujeitos, estão abaixo apenas de suas famílias.

Entretanto, também foi possível perceber o entrelaçamento desses dois elementos, já que os personagens acabam proporcionando aos seus descendentes, direta ou indiretamente, o contato e, consequentemente, o vínculo afetivo com sua agremiação. Duas falas de Seu Laranjeira mostram a influência da relação familiar, no que diz respeito ao processo de escolha do clube de seus descendentes. Em tom de brincadeira, ele afirma: “Eu não sei se o meu bisneto vai ser menino ou menina, sei que vai torcer pro Rio Grande” (2015). Logo em seguida, explica como leva seus familiares para o estádio:

E assim como eu, eu vou trazendo filho, vou trazendo neto, vou trazendo quem eu puder, enteado, quem eu puder botar aqui pra dentro eu vou botando. Alguns depois saem fora, não acompanham mais, mas a grande maioria, meus netos, meus filhos, sempre que possível, tão sempre aí (LARANJEIRA, 2015)17 17 LARANJEIRA, Paulo Renato. Entrevista concedida a Jones Mendes Correia. Rio Grande, 11 de novembro de 2015. .

Dona Rejane não entra em detalhes sobre a forma como opera o pertencimento dentro de sua família. No entanto, sua fala indica que existe influência dos mais velhos para os mais novos, na escolha do clube:

E os netos da minha irmã, todos os filhos são áureo-cerúleos e a minha filha é áureo-cerúlea, estuda na FURG18 18 Universidade Federal do Rio Grande. , […] e ela ia de camiseta todos os dias pra FURG. E, assim, quando tiver os netos também tem que vim depois que nascerem, vim pra cá e serem áureo-cerúleos (BORGES, 2018)19 19 BORGES, Sandra Rejane Canez. Entrevista concedida a Jones Mendes Correia. Pelotas, 24 de janeiro de 2018. .

Já Nenê analisa que sua função durante o tempo que trabalhou no S. C. São Paulo está diretamente ligada à escolha do clube de coração de sua família, visto que:

Família, agora, são todos fanáticos, todos, desde o pequenininho […]. Aí tem a menina também e tem o guri. O guri aprendeu a caminhar aqui atrás20 20 Referindo-se ao pavilhão social do estádio, local onde encontra-se a rouparia do clube. , […] a minha família, agora, de mulher, filhos tudo, são todos identificados, 100% com o São Paulo. […] a criação deles foi toda em torno do São Paulo. […] Às vezes, vinha a treino comigo, […] chegava sábado tinha essa descontração que era os ‘rachõezinhos’, aí, eu sempre trazia o meu guri junto, por que não teria problema, porque o trabalho da semana tinha sido concluído, […] aí eu trazia, ele conhecia os jogadores, participava tudo, aí surgiu a identificação (RAMOS, 2018)21 21 RAMOS, Edelmar Marshall. Entrevista concedida a Jones Mendes Correia. Rio Grande, 6 jan. 2018. .

Para além das relações familiares, foi possível verificar que as identidades de alguns funcionários infames podem ser constituídas também pelo seu local de moradia. Nesse caso, surge o exemplo de Alexandre, do G. E. Bagé, que reside no estádio da Pedra Moura, em um dos apartamentos que ficam ao fundo do pavilhão social. Sobre essa questão, o narrador desenvolve a seguinte análise:

Moro no clube, moro nos apartamentos do clube, vai fazer seis anos […], gosto de morar no clube […]. A gente deixa de ser um torcedor e se torna um apaixonado por aquele clube que, hoje, a gente exerce o trabalho. A paixão aumenta mais, né? A gente, às vezes, deixa de fazer certas coisas para suprir um trabalho no clube, a gente abre mão de certas coisas pra estar no clube no dia a dia (DUTRA, 2016)22 22 DUTRA, Alexandre da Silva. Entrevista concedida a Jones Mendes Correia. Bagé, 29 jul. 2016. .

As narrativas trazidas nesse item demarcam que a construção das identidades apresenta diversos elementos. Para os entrevistados, o clube e a família são os principais, porém, é importante salientar, assim como demonstra Hall (2006HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.), que a construção das identidades vai se dando a partir das formas como os sistemas culturais que rodeiam o sujeito vão o interpelando. Além disso, o próprio local pode forjar um aumento do pertencimento do funcionário para com o clube, e isso, sem dúvida, está presente na constituição da identidade do sujeito. Assim, não cabe pensar nem mesmo o clube de futebol como um organismo fixo, pois existem diferentes tipos de sociabilidades no seio do clube de futebol. Além disso, mudanças de gestões, atletas e comissões técnicas possibilitam à agremiação constantes transformações. Tais alterações também podem se colocar na constituição dessa identidade multifacetária dos funcionários/torcedores.

5 DIFERENTES MANEIRAS DE TORCER

Assim como os torcedores das arquibancadas, os funcionários/torcedores também acabam produzindo formas diferentes de torcer. Durante a partida, o funcionário acaba praticamente abdicando seu posto de trabalho e se transformando, exclusivamente, em torcedor. Durante os noventa minutos, a arquibancada, ou qualquer outro espaço de preferência, se torna o local onde os códigos simbólicos do “ser torcedor” tomam a frente. Sobre isso, Jahnecka, Rigo e Silva (2013JAHNECKA, Luciano; RIGO, Luiz Carlos; SILVA, Méri Rosane Santos da. Olhando Futebol: Jeitos Xavantes de Torcer. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v.35, n. 1, p.195-210, 2013., p.195) analisam que:

Para os frequentadores de um estádio, o torcer pode ser: xingar, entoar cantos, bater palmas, gritar, soltar foguetes, movimentar bandeiras, balões, camisetas ou outras vestimentas com as cores do clube. Essas práticas torcedoras criam e fortalecem afinidades entre sujeitos que, muitas vezes, nem se conheciam.

Com relação às formas de torcer desempenhadas pelos entrevistados, tais diferenças são visíveis. É preciso, no entanto, ressaltar que, em alguns casos, como Alexandre e Nenê, tendo em vista que suas funções no interior dos clubes estão diretamente ligadas à prática do futebol, não é possível dissociar o trabalho do ato de torcer, durante uma partida. Para os dois, o apoio ao time se dá/dava dentro do posto de trabalho, muitas vezes, próximo do acesso ao gramado.

Para Dona Rejane e Seu Laranjeira, as ações durante o jogo acabam indo além, já que, apesar de serem funcionários dos clubes, suas atividades permitem que possam acompanhar as partidas da arquibancada. No caso de Seu Laranjeira, ou de sua sala dentro do estádio, como faz Dona Rejane, tendo em vista que se mostra uma torcedora bastante supersticiosa:

É eu subir na escada a gente toma gol, eu sou muito pé-frio. Aí esse jogo eu fiquei muito triste, aí o pessoal: ‘Deixa de ser boba, capaz’. Gente eu sou pé-frio pra caramba, não... ‘Não, mas sobe, vamos lá, vamos ver’, sem mentira nenhuma. Eu fechei aqui, subi, quando eu botei o pé na arquibancada e me escorei assim, todo mundo me olhando e o cara o moreninho do Bagé dribla daqui, dribla dali e pá: gol. Eu digo, eu não acredito, não quero mais saber, vou descer, não quero mais. Nunca mais, não boto mais o meu pé pra lá (BORGES, 2018)23 23 BORGES, Sandra Rejane Canez. Entrevista concedida a Jones Mendes Correia. Pelotas, 24 jan. 2018. .

Nesse sentido, Lima, Moura e Antunes (2015LIMA, Rafael Leal de; MOURA, Diego Luz; ANTUNES Marcelo Moreira. Ritos e Sociabilidades no Torcer Coletivo: Um estudo etnográfico em uma torcida do Flamengo. Licere, v.18, n.1, p.136-156, mar. 2015., p.147) analisam a superstição como uma “crença sobre relações de causa e efeito que não se adequam à lógica formal, ou seja, são contrárias à racionalidade”. Daolio (2005DAOLIO, Jocimar. A superstição no futebol brasileiro. In: DAOLIO, Jocimar. Futebol, Cultura e Sociedade. São Paulo, Autores Associados, 2005. p.3-19.) assinala que a superstição é um elemento presente em todos os segmentos do futebol, podendo ser exercida de diversas formas e por diferentes atores: dirigentes, treinadores, jogadores e torcedores.

Já Seu Laranjeira, ao falar sobre seu comportamento na arquibancada, lembra que muitas vezes despertou o olhar de reprovação de seus familiares, à medida que, na visão do próprio narrador, tal comportamento se afasta dos códigos morais da sociedade:

Na arquibancada, eu faço coisa que eu vou lhe contar, eu perco os cadernos. Bom, o meu filho não senta perto de mim, meus filhos não sentam perto de mim, eu digo palavrão, coisa que eu não faço em casa. A primeira vez que a minha neta foi ao jogo comigo, […] ela chegou em casa dizendo palavrões e a minha filha repreendeu ela, ‘Mas o vô disse’. Então, é coisas assim que transforma a gente, eu sei que eu saio fora do sério, eu às vezes até me constrange. As pessoas devem pensar que eu sou um cachaceiro, um cara irresponsável, porque não, eu não me controlo, não me controlo (LARANJEIRA, 2015)24 24 LARANJEIRA, Paulo Renato. Entrevista concedida a Jones Mendes Correia. Rio Grande, 11 nov. 2015. .

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível concluir que os funcionários infames em clubes de futebol profissional constroem um pertencimento de maneira bastante acentuada. Tal vínculo acaba se constituindo em um elemento de grande importância na produção das identidades dos sujeitos, porquanto tais funcionários/torcedores constroem trajetórias bastante longevas nas agremiações, sendo submetidos a sentimentos diversos e a inúmeras relações pessoais.

A escolha do clube e os aspectos formadores das identidades dos sujeitos acabam sendo produzidas de maneiras multifatoriais. As relações familiares, por exemplo, em alguns momentos, se entrelaçam com o pertencimento e com a função exercida dentro do clube. Dessa forma, não há como negar o atravessamento desses funcionários/torcedores na escolha do clube de seus descendentes.

Com relação às formas de torcer, não existe uma regra de comportamento. Cada funcionário/torcedor o faz de forma bastante particular. Isso pois criam superstições bastante singulares e ocupam espaços, desenvolvendo ações que muitos outros torcedores também desenvolvem, tais como: proferir xingamentos. Cabe salientar que dois dos entrevistados manifestam o ato de torcer ao mesmo tempo em que estão trabalhando, já que são roupeiros.

Por fim, é necessário salientar que o clube de futebol, para tais funcionários, está além do ato de desenvolver uma atividade remunerada. Trabalhar no clube é para eles também uma espécie de realização pessoal porque, com o passar dos anos, o trato com as cores do clube somente faz aumentar o pertencimento clubístico.

REFERÊNCIAS

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  • GIULIANOTTI, Richard. Fanáticos, seguidores, fãs e flaneurs: Uma taxonomia de identidades do torcedor no futebol. Recorde: Revista de História do Esporte. v. 5, n.1, p.1-35, jun. 2012.
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  • PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho: algumas reflexões sobre a ética na História Oral. Projeto História, n.15, p. 13-49, abr. 1997.
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  • RIGO, Luiz Carlos et al Memórias de corpos esportivizados: a natação feminina e o futebol infame. Movimento, v. 11, n. 2, p.131-146, maio/ago. 2005.
  • 1
    Documentos emitidos em nome do rei, mas não necessariamente, nem na sua maioria, por sua própria iniciativa, e que tinham como função sujeitar a medidas de segurança, tais como a prisão e o internato todo o indivíduo cujos comportamentos eram, no discurso desses mesmos documentos tipificados de “indesejáveis” (FOUCAULT, 2009. p. 104).
  • 2
    Ver Correia (2014), Guimarães (2012), Rigo (2007) e Rigo et.al. (2005).
  • 3
    Gastaldo (2006, p. 3) analisa a sociabilidade como: “[…] uma espécie de ‘jogo da vida social’, um momento de prazer, distinto das coisas ‘sérias’ da vida cotidiana, este frágil refúgio das agruras do mundo do trabalho, da economia e da política”.
  • 4
    A utilização da expressão narrativa se ampara no discurso de Alberti (2012), à medida que, segundo a autora, a transição do que antes era denominado como versão para o conceito de narrativa acaba reforçando o caráter documental de uma entrevista em História Oral.
  • 5
    Os preceitos éticos utilizados são inspirados na leitura de Portelli (1997) e Meihy e Hollanda (2007).
  • 6
    Cabe ressaltar que existe a possibilidade de o sujeito fazer parte do quadro de funcionários de um determinado clube, mas não ser torcedor.
  • 7
    A expressão “escolha” se ampara no texto de Damo (2001), porém, cabe ressaltar que a utilização feita pelo autor não se configura como um aspecto voluntário, pois analisa a construção do pertencimento clubístico para além da racionalidade.
  • 8
    Seu Laranjeira assinala que na sua juventude já havia prestado serviços ao clube, entretanto, teve de se afastar em razão de necessidades financeiras, embora o sentimento de torcedor nunca tenha arrefecido. Após garantir sua aposentadoria, retorna ao clube para exercer a função de porteiro.
  • 9
    LARANJEIRA, Paulo Renato. Entrevista concedida a Jones Mendes Correia. Rio Grande, 11 nov. 2015.
  • 10
    Uma espécie de convênio organizado pelo Sport Club Internacional pelo interior do Rio Grande do Sul que visa revelar e formar jovens atletas.
  • 11
    DUTRA, Alexandre da Silva. Entrevista concedida a Jones Mendes Correia. Bagé, 29 jul. 2016.
  • 12
    RAMOS, Edelmar Marshall. Entrevista concedida a Jones Mendes Correia. Rio Grande, 6 de janeiro de 2018.
  • 13
    Sobre tal ponto, Bandeira (2010) analisa o estádio de futebol e suas masculinidades a partir de inúmeros fatores construídos na sociedade historicamente, principalmente, a partir da lógica da virilidade. Costa (2006/2007) concorda com o fato de as masculinidades nos estádios de futebol produzirem um espaço de difícil acesso para alguns grupos sociais, inclusive as mulheres. Entretanto, analisa que elas, nos últimos anos, mesmo que com muitas dificuldades, vêm frequentando de forma mais efetiva os estádios, porém, ainda em um espaço ainda repleto de masculinidades.
  • 14
    BORGES, Sandra Rejane Canez. Entrevista concedida a Jones Mendes Correia. Pelotas, 24 de janeiro de 2018.
  • 15
    Como é conhecido ser torcedor do Esporte Clube Pelotas.
  • 16
    Fato percebido na narrativa, porém, não há interesse deste texto em produzir escalas e hierarquias no que diz respeito às produções das identidades. De modo a respeitar a narração, optou-se por deixar transparecer a percepção de cada entrevistado.
  • 17
    LARANJEIRA, Paulo Renato. Entrevista concedida a Jones Mendes Correia. Rio Grande, 11 de novembro de 2015.
  • 18
    Universidade Federal do Rio Grande.
  • 19
    BORGES, Sandra Rejane Canez. Entrevista concedida a Jones Mendes Correia. Pelotas, 24 de janeiro de 2018.
  • 20
    Referindo-se ao pavilhão social do estádio, local onde encontra-se a rouparia do clube.
  • 21
    RAMOS, Edelmar Marshall. Entrevista concedida a Jones Mendes Correia. Rio Grande, 6 jan. 2018.
  • 22
    DUTRA, Alexandre da Silva. Entrevista concedida a Jones Mendes Correia. Bagé, 29 jul. 2016.
  • 23
    BORGES, Sandra Rejane Canez. Entrevista concedida a Jones Mendes Correia. Pelotas, 24 jan. 2018.
  • 24
    LARANJEIRA, Paulo Renato. Entrevista concedida a Jones Mendes Correia. Rio Grande, 11 nov. 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2018
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2018

Histórico

  • Recebido
    07 Maio 2018
  • Aceito
    11 Jul 2018
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