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O rock como modernismo minimalista: Lou Reed, 1942-2013

CRÍTICA

O rock como modernismo minimalista**] Publicado originalmente em Radical Philosophy, n-º 183, jan. - fev., 2014. [: Lou Reed, 1942-2013

David Cunningham

Professor do Instituto de Cultura Moderna e Contemporânea da Universidade de Westminster

Eu não me recomendaria como entretenimento.

Lou Reed, 1978

Tradução de Joaquim Toledo Jr.

A cena adquiriu status de momento primordial. 1964. Uma festa no Lower East Side, de Nova York, o lugar mítico do período. Terry Phillips, executivo da Pickwick Records, é apresentado a dois jovens de "cabelos longos". Achando que levam jeito para o papel, pergunta se gostariam de fazer parte de uma banda para divulgar um single que se tornara um (pequeno) sucesso local. O disco, intitulado The Ostrich e lançado sob a autoria de The Primitives, fora composto e gravado, na verdade, por um músico de Long Island recém-graduado pela Universidade de Syracuse chamado Lou Reed. Os dois jovens a quem Phillips o apresentaria eram John Cale e Tony Conrad.

A história é perfeita. A arte encontra o rock&roll na encruzilhada mais improvável da cultura musical de meados da década de 1960: os principais músicos da vanguarda da música contemporânea "séria" vão ao encontro da manifestação mais industrializada do pop comercial. Em 1964, Cale e Conrad ainda eram membros do Theatre of Eternal Music, conjunto de LaMonte Young, ex-membro do Fluxus e pioneiro do minimalismo musical; Lou Reed era empregado da gravadora Pickwick, produzindo aos montes o que havia de "mais novo" a partir de sua base em Coney Island ("eles me diziam, 'escreva dez músicas no estilo Califórnia, dez no estilo Detroit'", lembraria Lou Reed, "e íamos para o estúdio por uma ou duas horas"). Conrad e Walter De Maria, o baterista que Reed recrutou para o efêmero The Primitives, voltariam para o mundo das artes; com Sterling Morrison e Maureen Tucker, aos quais se juntariam, Reed e Cale produziriam, em dois álbuns e uma temporada como banda residente dos "Exploding Plastic Inevitable", eventos organizados por Andy Warhol, um tipo de música na qual as "metades partidas" da arte modernista e da cultura de massas de que falava Adorno não se complementariam - mas seriam obrigadas a se entender, gostassem ou não da ideia.

A excitação do "novo" é, certamente, intrínseca à música pop, assim como o sentimento de aceleração da mudança histórica que a acompanha: apenas vinte anos se passariam entre as gravações de Elvis Presley pela Sun Records e Autobahn do Kraftwerk. Mas, ainda que esse espaço cultural tenha sido aberto por Dylan, apenas com o Velvet Underground a ideia do rock como modernismo é colocada de forma consciente. É grande a tentação de associar isso ao envolvimento de Cale, violista com formação clássica e ex-aluno de Cornelius Cardew e Xenakis, e ao "patrocínio" de Warhol. Mas foi Reed - "um roqueiro punk saído direto de algum livro", como Conrad o descreveu (na verdade, um que lia muitos livros) - quem fez do Velvet Underground uma proposta muito diferente das bandas "artísticas" contemporâneas como The Fugs e United States of America.

Em um texto breve sobre Syd Barrett11] Radical Philosophy, n-º 165, jan. - fev., 2011. [, Howard Caygill o situou como figura exemplar do choque entre a vanguarda artística e a demanda "impiedosa" do pop por sucesso comercial. No entanto, por mais que isso tenha sido verdade (e difícil) para Barrett, é também verdade, como observou Ben Watson22] Radical Philosophy, n-º 166, mar. - abr., 2011. [, que, enquanto descrição genérica da "contracultura" dos anos 1960, essa leitura corre o risco de reforçar um conjunto de divisões que o tipo de rock produzido por bandas como Velvet Underground ou Captain Beefheart estava desfazendo. Os acenos de Cale para as primeiras experiências do minimalismo com entonações justas contínuas nos drones de viola amplificados que impulsionam "Heroin" e "Venus in furs" no primeiro álbum, assim como o estrondo surpreendente que interrompe o pulso rítmico inicial de "European son" (um "empréstimo" direto de Poem for table, chairs, benches, etc. de LaMonte Young, de 1960), são certamente transferência direta de técnicas da "vanguarda" contemporânea. Mas no coração dos cerca de dezessete discos que compõem o legado original do grupo está, acima de tudo, a intensificação e amplificação dos elementos mais básicos do próprio rock: pulso repetitivo, volume extremo e efeitos de timbre eletrônicos. (A repetição e as possibilidades formais do loop ou do "riff" eram, claro, a costura irregular que ligava o minimalismo, o pop de Warhol, o cinema estrutural e o rock de meados dos anos 1960.)

Esse encontro da vanguarda (minimalista) e do rock&roll (minimalista) não apenas colocou o último na posição de "tradutor" cultural, dourando a pílula dos experimentalismos contemporâneos para o mercado comercial, como o permitiu ultrapassar a vanguarda em seu próprio espírito de negação. O Velvet Underground talvez tenha sido a primeira "música pop" a insinuar que poderia ser artisticamente "importante" sem fazer sucesso, e, ao fazê-lo, The Velvet Underground and Nico (1967) e White Light/White Heat (1968) também afirmaram a capacidade da sonoridade "de massa" de um Bo Diddley ou um The Crickets de reconfigurar o sentido da vanguarda na segunda metade da década de 1960. Da perspectiva do material artístico mais avançado, a história que vai de Chuck Berry a Steve Cropper pode ser entendida como uma dinâmica modernista ready-made - a qual, justamente por causa de suas relações dialéticas inextricáveis com uma cultura mediada pela forma mercadoria, poderia ser tão, se não mais, importante do que o serialismo total ou o expressionismo abstrato. ("Syster Ray", com seus mais de dezessete minutos e centro tonal constante em sol, mas sem "tom" reconhecível, é, por exemplo, em seu núcleo, simplesmente uma improvisação, em escala enormemente estendida e ampliada, em cima das sonoridades dos recentes discos de 45 rotações de baixo orçamento como Louie Louie ou 96 tears.) O poder de uma estética "subalterna" derivada da disseminação comercial do som gravado - "rock&roll preto e branco grosseiro tocado por 'brancos grosseiros'", como Morrison se referiu às suas primeiras bandas com Lou Reed - se tornou, assim, o motor da dinâmica crua de novidade antagônica e negativa do Velvet Underground.

É claro que a tensão entre as liberdades - tanto sociais como artísticas - oferecidas pelo "underground", por um lado, e o espetáculo da mídia de massa, por outro, é uma característica geral da "contracultura" do final dos anos 1960. Mas se as composições de Reed para o Velvet Underground encarnavam as exigências culturais por "liberdade absoluta da época", isso foi feito de uma forma que colocava o grupo em oposição clara a suas manifestações dominantes. Reed e Morrison tinham uma dívida assumida com a apropriação redutora do R&B negro pelas bandas inglesas como os Yardbirds e os Rolling Stones no início de suas carreiras, mas a sua atitude em relação à cultura hippieamericana da costa oeste, então emergente, era de inflexível antipatia. Fredric Jameson usou a expressão "drogas e rock" para resumir a contracultura em seu ensaio sobre os anos 196033] Jameson, Frederic. "Periodizing the 60s". Social Text, n-º 9/10, 1984, pp. 178-209. [. Ambos, porém, eram tratados de maneira muito distinta na autoconstrução do Velvet Underground como crítica imanente da própria contracultura contemporânea. The Velvet Undergound and Nico foi gravado alguns meses antes de Sargeant Pepper's, mas poderia facilmente soar (principalmente nos anos 1970) como uma resposta incisiva a este - o realismo urbano direto de "Heroin" como contraponto antagônico ao subjetivismo escapista de "Lucy in the sky with diamonds" - e o desprezo de Reed, Cale e Morrison pelos "hippies estúpidos" e pela "intelectualização" da psicodelia como experiência de "expansão mental" ecoou de maneira evidente na década seguinte.

A intensificação da experiência urbana pela anfetamina e o entorpecimento sombrio dessa mesma experiência pela heroína - hiperestimulação e o tipo blasé, as duas dimensões intoxicadas da vida metropolitana moderna de Simmel - são opostos criativamente às "fantasias" perceptivas do ácido e da combinação de utopia tecnológica e visões pastorais de fuga do capitalismo urbano típica do acid rock. "Não era questão de ver uma coisa como outra, mas de vê-las como elas realmente são", como disse Morrison. Se há, então, um parentesco implícito com o pop de Warhol, é principalmente na forma peculiar de realismo de suas pinturas da vida moderna. "Apenas pela imersão de sua autonomia na imagerie da sociedade pode a arte superar a heteronomia do mercado", escreveu Adorno sobre Baudelaire. "A arte é arte moderna por meio da mimesis do embrutecido e do alienado." Reed e Warhol certamente compartilhavam o mesmo fascínio por uma mimese da alienação tão desapaixonada que beirava a crueldade. Mas, lírica e musicalmente, uma composição como "Sister Ray" - uma música sobre "um bando de drag queens que leva um bando de marinheiros para casa com elas, injetando heroína e fazendo uma orgia até a polícia aparecer", como a descreveu de forma memorável o crítico de arte Robert Hughes - é o melhor exemplo de um tipo de rearticulação modernista de virtudes "cínicas" que a resposta "nova-iorquina" ao escapismo da costa oeste representa. Também vale notar que, principalmente por sua associação com a Factory de Warhol (assim como a estética camp ou "trash" dos filmes independentes de Jack Smith), o terceiro termo que falta em "drogas e rock" de Jameson - sexo - aparece, também, em uma versão bastante diferente, "costa leste", confrontando a libertação (hetero)sexual personificada, em 1967, pelo exibicionismo priápico de Jim Morrison com a teatralidade bastante distinta da drag queen e do vagabundo. Reed olhava simultaneamente adiante para as subculturas gay dos anos 1970 (e para o próprio álbum Transformer, de 1972) e retrospectivamente para os escritos dos anos de 1950 de Burroughs e Ginsberg. É revelador que, na música "Candy says", a persona do observador etnográfico fotograficamente indiferente de Reed se transforme repentinamente em sentimento afetivo que dá voz aos culturalmente despojados.

Retrospectivamente, para os punks e pós-punks dos anos 1970, foi essa combinação específica de sexo, drogas e rock&roll que fez do Velvet Underground a primeira quebra "profética" da promessa de uma linguagem da música pop comum a toda uma geração, em torno da qual a própria identidade dos "anos 60" - e o papel desempenhado pelos Beatles e por Dylan, em especial - foi construída por volta de meados daquela década. Desse ponto de vista, a evocação da vida urbana decadente, mas excitante, de Nova York pelo Velvet Underground seria uma antecipação da expressão contracultural do punk da crise do capitalismo dos anos 1970 e uma confirmação de Reed como uma das poucas referências da distância proposital do punk em relação ao legado insuflado de uma envelhecida aristocracia do rock. No caso de Reed, ao longo de boa parte dos anos 1970, sua trajetória assumiu a forma de uma oscilação extrema entre momentos de sucesso comercial - como o entretenimento andrógino de Transformer e o sombrio Sally can't dance (1974) - que seriam imediatamente e de forma aparentemente intencional seguidos pelos desastres comerciais de Berlin (1973) e Metal machine music (1975).

Metal machine music, ao qual Reed retornou de forma um tanto obsessiva na última década de sua vida, é, nesse sentido, uma espécie de apoteose, não menos pela ambiguidade de suas intenções: gesto antiarte dadaísta ou composição "artística" séria. Na verdade, a melhor forma de compreender o álbum - com uma dívida evidente a Loop (1966) de Cale (o primeiro disco a ser lançado sob o nome do Velvet Underground na terceira edição da Aspen Magazine) - é como uma tentativa única de voltar e recuperar o meio do qual o Velvet Underground surgiu. Feito a partir da montagem de gravações de feedback de guitarra, e lançado pelo selo de música clássica Red Tape da RCA, o álbum era ao mesmo tempo minimalismo de vanguarda e o "o solo de guitarra definitivo", como Reed certa vez o descreveu.

Se Metal machine music era único - o melhor entre os demais álbuns dos anos 1970 -, Berlin, a gravação ao vivo hilariantemente agressiva Take no prisioners (1978) e Street hassle (1978) foram capazes de conjurar os fantasmas do Velvet Underground sem ser por eles subjugados. Os anos 1980, no entanto, começaram com uma série de tentativas, no geral enfadonhas, de ser comercialmente "contemporâneo", antes mesmo de terminar com a sonoridade "básica" do New York (1989). Álbum inquestionavelmente aprazível e intelectualizado, este também trazia, pela primeira vez, um antigo membro do Velvet Underground, o baterista Mo Tucker, e antecipava a colaboração um tanto nostálgica com Cale no álbum-homenagem Songs for Drella (1990), que abriria a década seguinte. Isso refletiu, de diversas maneiras, quanto o Velvet Underground, com Reed no papel de "estrela" principal, seria canonizado aos poucos na história do rock a partir da segunda metade dos anos 1980, à medida que novas gerações de bandas passaram a simplesmente se apropriar de pastiches de seus momentos mais acessíveis - e dos óculos escuros obrigatórios. O problema complexo, e muitas vezes tenso, da autonomia, colocado nos anos 1960, foi, assim, gradualmente transformado na narrativa mais confortável e romântica que trata Reed e o Velvet Underground como os Van Gogh do rock - ignorados em vida, redimidos no presente -, quando Velvet Undergound and Nico passou a sentir-se à vontade ao lado de Pet sounds, Revolver e os demais discos nas indefectíveis listas dos "100 maiores álbuns de todos os tempos" que proliferaram no mesmo período (embora o mais abrasivo White light/White heat raramente seja incluído). Da mesma maneira, Reed foi incluído no panteão do rock clássico, canonizado ao lado de Dylan, Neil Young e Paul Simon como mais um sobrevivente dos anos 1960.

Contra esse destino, talvez seja melhor lembrar de Reed como uma seção alternativa esperando para ser anexada ao capítulo final do clássico de Marshall Berman Tudo que é sólido desmancha no ar44] Tradução de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioratti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986., intitulado "Notas sobre o modernismo em Nova York". "Ser modernista", escreve Berman, "é sentir-se de alguma forma em casa em meio ao turbilhão", "fazer de seus ritmos o seu próprio": é a "sensibilidade" de uma identificação com a "transformação perpétua de nosso mundo e de nós mesmos". Judeus nova-iorquinos nascidos a dois anos um do outro, as visões da cidade de Reed e de Berman são muito diferentes. Mas, como encarnação do ímpeto estimulante gerado pelo "jogo dialético entre o processo de modernização do ambiente urbano e o desenvolvimento da arte e pensamento modernistas", a obra de Reed, em seus melhores momentos, dificilmente poderia ser superada.

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    ] Publicado originalmente em
    Radical Philosophy, n-º 183, jan. - fev., 2014.
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    Radical Philosophy, n-º 165, jan. - fev., 2011.
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    Radical Philosophy, n-º 166, mar. - abr., 2011.
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    ] Jameson, Frederic. "Periodizing the 60s".
    Social Text, n-º 9/10, 1984, pp. 178-209.
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    ] Tradução de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioratti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Jun 2014
    • Data do Fascículo
      Mar 2014
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